Introdução
A discussão sobre a legitimação do poder do Estado através da religião está presente na obra de Maquiavel. Tal autor dedicou parte de seus trabalhos ao debate acerca do poder eclesiástico, bem como sobre sua influência na consolidação de normas e regulamentos do Estado.
Maquiavel, atento ao contexto da época, através da ótica da realidade concreta - alheia à providência divina ou a fatores sobrenaturais, interpreta a religião por sua eficiência em influenciar na vida coletiva. Para ele, a religião, que se fundamenta no temor a Deus, exerce uma função auxiliar na estabilidade do Estado, visto que difunde valores como a obediência e a disciplina moral e cívica, elementos cruciais à virtù do povo.
Até os tempos modernos, não é possível afirmar que a política prescindiu da religião. As fronteiras que perpassam por essas esferas são tênues e estão em constante redimensionamento. São diversas as interpretações das funções políticas das religiões. Tratando-se de Maquiavel autor que dedicou espaço na sua obra para a abordagem da religião - notamos que o mesmo lança um olhar distinto quanto à influência da religião na política e a essa influência atribui valores diversos, porém, o autor reconhece a importância da religião como um instrumento de fortalecimento e legitimação do Estado.
O questionamento central que fica implícito neste artigo é: Para Maquiavel, como se daria a ordem e a manutenção do Estado sem a influência social da religião? Não há a pretensão de responder a tal questionamento, até mesmo porque a religião nunca deixou de exercer influência na esfera política mesmo, é claro, em Estados não confessionais. O objetivo do presente trabalho é trazer elementos, através da abordagem da filosofia político-clássica, para se pensar a função política da religião como elemento crucial na manutenção, legitimação, estabilidade do Estado e coesão social.
Maquiavel e a religião
Nas opiniões políticas de Maquiavel, sempre estiveram presentes questões de natureza religiosa, uma preocupação que buscava dar explicações sobre as constantes mudanças que a Itália vinha sofrendo, muitas decorrentes da influência da religião, visto que o teológico passava a estabelecer limites no exercício do poder do príncipe. A teologia política mostrava que tudo estava inserido numa ordem religiosa, nesse caso, para Maquiavel, era necessário estabelecer uma diferenciação entre o teológico e o mundano. O príncipe cristão tinha como característica a postura sempre limitada e cheia de regulações morais, diferentemente do príncipe de Maquiavel. A distinção entre religião e política (estabelecida pelo autor florentino), representará um legado importante ao pensamento moderno.
Na tentativa de compreender o fenômeno religioso, Maquiavel examina o mesmo a partir dos seus efeitos práticos; em outras palavras, pela sua capacidade de despertar nos cidadãos tanto o medo quanto o amor a favor do vivere civile. (AMES, 2006). O pensamento de Maquiavel não está fundamentado em movimentos espirituais contidos em uma pura ideia de política; ele ignora não só o transcendente e o eterno, mas também a dúvida moral e a ânsia que, em última instância, recusa a si mesma, e se vê, em consequência disso, forçada a transmutar o valor humano e o místico de determinada fé em um valor político, que esteja plenamente enquadrada nas ordens e nas leis do Estado. (CHABOD, 1984).
Para Maquiavel, a religião pode constituir, junto com a milícia e o estabelecimento de boas leis, o fundamento da vida social. No entanto, o que é importante destacar não é o sentimento em si revelado, nem a necessidade que o homem tem da religião, onde ele sustenta e apoia sua natural inquietude da alma, mas o caráter prático que é derivado da religião, onde a mesma pode passar a constituir um entrave à corrupção, ao mesmo tempo que poderá promover o desenvolvimento da vida coletiva. (CHABOD, 1984). Maquiavel observa a religião de acordo com sua forma exterior, “tal como a deixa ver suas instituições; e o valor moral que ela acarreta à existência dos povos é o de uma força coativa que descende das alturas, instruindo sabiamente os ânimos e ratificando-os no cumprimento de seus deveres civis”. (CHABOD, 1984, p. 89-90).
Burckhardt (2009) adverte que Maquiavel obteve posição de destaque, entre outros autores, por sua obra, devido ao seu brilhantismo na capacidade de julgar poder construir um Estado. Maquiavel toma as forças existentes como elementos vivos e ativos, apresentando novas alternativas de forma correta e admirável. Seus argumentos não procuram iludir nem a si próprio nem aos outros. O perigo em Maquiavel, segundo Burckhardt,
jamais reside em uma falsa genialidade, e tampouco num desfiar equivocado de conceitos, mas numa poderosa imaginação que, claramente, lhe custa esforço domar. Sua objetividade política é, por vezes, indubitavelmente terrível em sua franqueza, mas nascida em uma época de necessidades e perigos os mais extremos, em que os homens já não podiam facilmente crer no direito nem ter por pressuposto a justiça. [...] Maquiavel alimenta a esperança de introduzir a república como herdeira dos Medici, e, aliás, sob a forma de uma democracia moderada. (2009, p. 108-109).
Aqueles que assumem posições de comando reconhecem a capacidade de influência que o mandamento divino desempenha sobre o povo. Para Maquiavel, os príncipes de uma república ou de um reinado devem agir sempre favoravelmente a todas as coisas que possam surgir a favor da religião, ainda que as condenem como falsas e o farão na medida em que são mais prudentes e conhecedores das coisas naturais. (MAQUIAVEL, 1994). Os líderes políticos conhecem suas obrigações em relação a determinada coletividade, eles devem manter sempre o povo unido e obediente ao Estado.
Nos primórdios do século XVI, quando a cultura renascentista havia alcançado seu ápice e, ao mesmo tempo, a infelicidade política da nação já estava inevitavelmente confirmada, não faltavam à Itália, nessa época, pensadores capazes de relacionar tal infelicidade à grande imoralidade que era evidente. Durante esse período, Maquiavel, em meio às suas importantes considerações, declarava abertamente o pensamento de que os italianos seriam mesmo predominantemente ímpios e maus. (BURCKHARDT, 2009). Sobre esse cenário, Burckhardt adverte que qualquer membro dessa sociedade teria, talvez, declarado que os italianos consideram-se desenvolvidos preponderantemente na sua individualidade; que foram capazes de se libertar das barreiras da moral e da religião, cobertos de uma atitude de desprezo às leis exteriores, considerando o seu soberano um indivíduo legítimo, e seus funcionários e juízes como abjetos. (BURCKHARDT, 2009). O sentimento contrário à Igreja - que era identificado nas camadas média e alta da sociedade italiana - recobre o período de auge do Renascimento e se compõe, segundo Burckhardt (2009), de uma desdenhosa e profunda aversão, de uma acomodação à hierarquia estabelecida e também de uma dependência no que diz respeito a sacramentos, bênçãos e cerimônias religiosas. Pode-se acrescentar, como elemento peculiar à Itália, a significativa influência pessoal dos pregadores confessionais. No campo moral, sobre as individualidades desenvolvidas no Renascimento e o desdém pelo arrependimento, o Cristianismo passivo e contemplativo, que fazia referência a uma vida posterior mais elevada, não tinha mais a capacidade de dominar esses indivíduos. “Maquiavel ousa enunciar a consequência disso, afirmando que esse cristianismo tampouco poderia ser proveitoso ao Estado e à defesa de sua liberdade”. (BURCKHARDT, 2009, p. 486).
Maquiavel argumenta que a religião não deve ser percebida mais do que um instrumento socialmente indispensável, como uma base utilitária. Para ele o elemento que atribui valor a determinada religião é sua capacidade de promover solidariedade e coesão, enfatizando, assim, a importância social da religião. (BERLIN, 2002). Maquiavel admira os fundadores das grandes religiões e adverte que algumas, como, por exemplo, o paganismo romano, são boas às sociedades, pois elas têm a capacidade de tornar as pessoas fortes e com energia, porém, outras religiões, como o Cristianismo, podem influenciar ao contrário, promovendo a humildade e o desapego mundano, causando a desintegração e a decadência. Quando surge o enfraquecimento dos vínculos religiosos, surge o declínio, e a corrupção se torna geral. Não existe a necessidade de que a religião esteja baseada em elementos verdadeiros, desde que ela seja socialmente efetiva. (BERLIN, 2002).
Maquiavel não está preocupado com uma distinção entre o que deve ser considerado como valores especificamente morais de valores especificamente políticos, o que ele realiza não é a emancipação da política da ética ou de uma religião, o que ele estabelece é algo que evidencia um impacto ainda maior, ou seja, “uma diferenciação entre dois ideais incompatíveis de vida e, portanto, duas moralidades” (BERLIN, 2002, p. 314), uma proveniente do mundo pagão, e outra, do mundo cristão.
O seu trabalho pretende estabelecer uma análise comparada entre a religião dos antigos e a religião dos modernos. No paganismo de Maquiavel via virtudes, diferentemente do Cristianismo em que via vícios. Para ele, nas religiões modernas, se perderam muitas características que eram importantes, como, por exemplo, o respeito e a exaltação daqueles homens dotados de glória, os Capitães de Exército e os príncipes mais notórios das repúblicas. O Cristianismo enfraquecia as pessoas, tornando-as presas fáceis aos outros, ao mesmo tempo que manifestavam uma postura de aceitação de suas condições, suportando as opressões e abandonando qualquer tipo de atitude que remetesse à vingança.
Contra todo o universo moral dos pagãos, coloca-se, em primeiro lugar, um moralismo cristão. São vários os ideais do Cristianismo e entre eles se destacam: a misericórdia, o sacrifício, a caridade, o amor a Deus, o desprezo total pelos bens mundanos, o perdão aos inimigos, a fé na vida após a morte, a crença na salvação da alma individual como algo de incomparável valor - o que seria mais elevado do que todo o objetivo social, político ou qualquer outra intenção terrena, ou outro tipo de consideração militar, econômica ou estética, o que passa a ser, na verdade, algo que não se pode medir em relação a qualquer um desses valores. (BERLIN, 2002). Maquiavel adverte que não poderá ser instituída nenhuma comunidade satisfatória, na forma romana, se os homens acreditarem nesses ideais e os praticarem.
O autor florentino está convencido de que tudo aquilo que se toma comumente como virtudes elementares do Cristianismo, de qualquer valor intrínseco, são barreiras insuperáveis à construção de um tipo de sociedade que ele ambiciona ver surgir, um tipo de sociedade que Maquiavel inclina- se a crer como sendo o desejo natural de todos os indivíduos normais, um tipo de comunidade que é capaz de satisfazer todos os interesses e desejos permanentes de cada homem. (BERLIN, 2002). Segundo Berlin, Maquiavel demonstrou atenção na sua obra às noções comuns do que é bom e mau, o que é dito por todos, através de um tradicional vocabulário moral que é aceito pela humanidade, uma vez que
ele não diz nem sugere (como vários reformadores filosóficos radicais têm feito) que a humanidade, a bondade, o caráter não- mundano, a fé em Deus, a santidade, o amor cristão, a veracidade inabalável, a compaixão sejam atributos ruins ou pouco importantes; ou que a crueldade, a má-fé, a política do poder, o sacrifício de inocentes em prol das necessidades sociais, e assim por diante, sejam atributos bons. (BERLIN, 2002, p. 315-516).
Tudo o que é capaz de conduzir à ineficácia política é condenado por Maquiavel. Em uma passagem célebre de sua obra Discorsi, o autor comenta que a fé cristã é responsável por tornar os homens fracos, transformando-os em vítimas fáceis de sujeitos mal-intencionados, pois esses homens fracos, dotados de uma moral cristã, aceitam suportar as injurias de forma resignada e abandonam qualquer atitude de vingança. Como efeito geral de todos os ensinamentos provenientes do Cristianismo, surge a aniquilação do espírito cívico dos indivíduos, obrigando todos ao sofrimento das humilhações, sem qualquer tentativa de reclamação, o que é capaz de fornecer um cenário fácil aos déspotas e destruidores, visto que eles encontram pouca resistência. É devido a esses aspectos que o Cristianismo é comparado, de forma muito desfavorável, com a religião pagã romana, pois essa tornava os homens mais valentes e fortes. (BERLIN, 2002).
Contudo, Maquiavel não procurava corrigir a ideia cristã de um homem bom. Ele não afirmava que os santos não devem ser considerados santos, nem que o comportamento caracterizado como honrado não era honrado e apreciável; Maquiavel apenas dizia que esse modelo de bondade não deveria, pelo menos em suas formas tradicionais (as mais aceitas), criar ou manter uma sociedade segura, expressiva e forte, o que é fatal para esse objetivo. (BERLIN, 2002). O autor observa que, no mundo, os indivíduos que pretendem e buscam realizar esses ideais estão predestinados a ser derrotados e a dirigir outras pessoas à decadência, pois sua visão de mundo não está fundamentada na verdade, pelo menos não na verità effetuale “a verdade que é testada pelo sucesso e pela experiência - que (embora cruel) é sempre, no final, menos destrutiva do que a outra (embora nobre)”. (BERLIN, 2002, p. 318).
Os cristãos que Maquiavel conhecia na história e pela sua própria experiência, ou seja, os homens que, na prática, seguem fielmente os preceitos da doutrina cristã, são indivíduos geralmente bons, mas que, se governamEstados tendo como fio condutor esses princípios, acabam dirigindo tais Estados à decadência. Berlin enfatiza que Maquiavel não condena de forma explícita a moralidade cristã; ele apenas registra que ela é, pelo menos naqueles que exercem a função de governante, mas também em algum grau nos súditos, incompatível com os fins sociais que ele acreditava ser natural e prudente que os homens procurem. É possível salvar a alma de alguém, ou se pode até mesmo criar ou manter um Estado grande e glorioso, mas nem sempre é possível fazer as duas coisas ao mesmo tempo. (BERLIN, 2002).
Maquiavel esteve preocupado em escrever sobre questões relativas ao governo, e seu interesse era em assuntos de natureza pública, por exemplo: independência, segurança, glória, força, vigor, felicidade na Terra, e não no Céu, presente e futuro, e também no passado, no mundo real, e não em um mundo criado na imaginação. E, por essa razão, em virtude das limitações humanas que são difíceis de alterar, o código de regras que era preconizado pela Igreja, se fosse levado a sério, não funcionaria.
Com relação à moral, para o pensador italiano, todo aquele cujo raciocínio gira em torno de conceitos centrais antagônicos, como bem e mal, corrupto e puro, apresenta uma escala ética na sua mente que atua em razão de elogios ou acusações que ocorrem moralmente. Os valores utilizados por Maquiavel não são valores cristãos, mas morais. (BERLIN, 2002).
Sobre esse aspecto importante da sua obra, os valores de Maquiavel não são considerados elementos instrumentais, mas morais e últimos, e o próprio autor exige que sejam feitos grandes sacrifícios em nome desses valores morais. Por esses valores, ele rejeita a escala rival, ou seja, os princípios cristãos da submissão, não porque são considerados deficientes em si mesmos, mas porque se tornam inaplicáveis as condições da vida real, sendo que esta vida, para Maquiavel, não significava meramente a vida como a que era levada, ao seu redor, na Itália, em lugares como: Florença, Roma e Veneza. Sobre a religião, essa deveria ser fomentada, mesmo que fose falsa, desde que ela tenha a capacidade de preservar a solidariedade social, agindo no incentivo das virtudes viris, situação essa que a doutrina cristã tem historicamente fracassado em realizar.
Maquiavel demonstra preocupação, na sua obra, com o exercício do poder temporal desempenhado pela Igreja na Itália, pois essa acabou corrompendo sua missão espiritual. A religião cumpre um papel essencial na estrutura social. É através dela que é fornecida a coesão interna de uma comunidade e o devotamento à pátria como a um mandamento divino. A fé religiosa é capaz de inspirar a devoção cívica, o desenvolvimento e o cultivo da virtù coletiva, e nenhum tipo de Estado sobrevive sem ela. Os líderes da Igreja, quando se intrometem no Estado, podem aniquilar o sentido espiritual que incorpora o povo em uma nação. (AMES, 2006). O duelo do Estado com a Igreja, travado por diversos príncipes era uma forma de defender a religião contra a Igreja.
Uma Igreja secularizada perderia seu emprego que lhe caberia no cenário político desenvolvido por Maquiavel. Além da questão do esvaziamento de sentido religioso, um papa ávido de poder temporal poderia arriscar e provocar a reação dos Estados, colocando sob risco a vida de populações inteiras.
Maquiavel observa que a doutrina cristã se posicionou diante de muitos crentes, tomando o sentido exclusivo de resignação ao sofrimento terreno, da total renúncia a qualquer tipo de resistência humano-social. Foi esse sentido que acabou contrapondo-se à virtude cívica, que deveria identificar, na religião, uma nascente de inspiração à glorificação do serviço à pátria.
O autor de Florença entende que o caminho que a religião deve seguir é o mesmo que outras instituições seguem, como, por exemplo, os Estados. (AMES, 2006). Todas essas corporações mistas devem ser periodicamente encaminhadas àquela condição originária, responsável pela sua razão de existência, como o próprio autor ensina na sua obra, “para querer que uma seita ou uma república viva longamente, é necessário retornar freqüentemente para o seu princípio”. (MAQUIAVEL, 1994, Discorsi III, p. 1). Trata-se de um preceito que pretende sempre renovar as instituições através dessa dinâmica. O necessário retorno ao princípio representa uma exigência que não se pode evitar, que nasce da natureza histórica da instituição religiosa. (AMES, 2006). Foi sobre esse aspecto que o Cristianismo conseguiu sobreviver durante os séculos, pois teve a capacidade e soube retornar às suas origens, em um trabalho que foi capaz de renovar as estruturas sobre as quais está assentado.
Maquiavel também discorre sobre as questões que envolvem a formação militar com o auxílio da religião. Na sua obra Militie fiorentine ordinatio, o papel da religião ganha mais força para entender os sentimentos de obrigação do soldado. A religião passa a ser entendida como um elemento fundamental à garantia da manutenção da ordem no corpo militar e também para reforçar a autoridade sobre esses. (ADVERSE, 2009). Assim, a religião adquire significado nos escritos políticos de Maquiavel na relação do Estado com as instituições militaristas e também sobre a sua eficácia.
Os Discorsi e reflexões sobre religião
Apesar de Maquiavel não dedicar muitas linhas a questões relacionadas à religião na sua obra O Príncipe (2000), alguns capítulos dos Discorsi apresentam uma discussão mais detalhada sobre religião. De acordo com o autor, a religião constitui um instrumentum regni, e é imprescindível à manutenção da civilidade. (ADVERSE, 2009).
A religião representa um processo importante à constituição dos fundamentos de um república ou principado e serve para garantir sua coesão interna e a durabilidade. Assim, a religião não pode ser negligenciada pelas lideranças políticas. (ADVERSE, 2009). Sua função é primordial na manutenção das instituições políticas e para garantir o respeito dos homens pelas leis formuladas:
A religião “dociliza”, controla a ferocidade dos homens tornando- os obedientes às leis. Essa ferocidade (ferocia) não pode ser dominada apenas pela força, quando se tem em mira a manutenção de um estado e sua sobrevivência após a morte de seu fundador. Em Roma, Numa encontrou um popolo ferocissimo e, para conduzi- lo à obediência civil com as arti della pace, recorreu à religião. E fez de modo tal que durante séculos não houve outra república em que o temor a Deus estivesse tão presente. Por que e como a religião é capaz de realizar a consolidação dos laços sociais e políticos? (ADVERSE, 2009, p. 91).
Na passagem acima, Adverse observa que Maquiavel estava preocupado em vincular a religião à questão da fundação. É por essa razão que o autor florentino demonstra, nos Discorsi, a figura do fundador.
Se a importância do fundador da religião está acima da importância dos fundadores de outras esferas, como a política e a militar, é pelo simples fato de que a ordem que é introduzida pela religião é capaz de garantir a coesão entre os homens e revigora os bons costumes, ou seja, na medida em que sua façanha tenha uma intenção eminentemente política. (ADVERSE, 2009).
É indispensável a uma comunidade política o estabelecimento de boas leis, um bom arsenal bélico e uma religião para durar, o que demonstra que a carência de um desses elementos apressa a ruína da comunidade. Não é possível que a religião se mantenha por si só, ou seja, ela necessita do apoio de boas leis e das armas. E com base nessas afirmações que Maquiavel situa o papel da religião e destaca sua finalidade política:
Em suma, a análise que Maquiavel faz da religião (como também das armas, das leis e das instituições) é sempre levada a cabo a partir do ponto de vista político. Daí a necessidade de reconhecer que a hierarquia dos grandes homens deve ser compreendida sobre o mesmo pano de fundo. Observamos ainda que, quando menciona um fundador da religião, Maquiavel o apresenta como um príncipe, o que é suficientemente bem ilustrado com o exemplo de Moíses em O Príncipe. O fundador de religião apenas interessa a Maquiavel na medida em que é um fundador, ou refundador, político. (ADVERSE, 2009, p. 91).
Nesse excerto, é importante destacar como Maquiavel sublinha a atribuição do fundador da religião e sua relação com a política. Ainda nos Discorsi, o autor utilizará uma abordagem voltada à interpretação do poder da religião em motivar “o juízo dos ‘homens em geral’” (ADVERSE, 2009), ou, como a mesma é capaz de representar um componente ativo, que não pode ser negligenciado na composição da imagem do político.
A justificativa apresentada por Maquiavel sobre o papel desempenhado pelos fundadores da religião evidencia toda a importância que ela tem para os homens. O autor deixa claro que a religião representa uma necessidade premente e, assim, sua influência sobre a conduta dos homens não deve ser menosprezada.
Nos Discorsi, Maquiavel observa que o ator político, na sua tarefa de atingir os homens, deverá buscar apoio na religião. É a partir dessa sentença, que o autor comenta, na sua obra, que “a figura do fundador político deverá se fundir com a do líder religioso”. (ADVERSE, 2009). Contudo, essa imbricação não quer dizer que o Estado precise manter uma postura de resignação ao religioso ou vice versa, mas que
a imagem e a atuação do político devem guardar algo de religioso porque sua eficácia depende em parte de sua inserção na dimensão religiosa, sobretudo para aquele que está prestes a ordenar um estado. A religião é certamente um instrumento para educar os homens e torná-los dispostos a odedecer às leis, isto é, a religião realiza “com perfeição a passagem da vontade particular para a universalidade da lei. (ADVERSE, 2009, p. 92).
Maquiavel identifica a religião como um elemento extremamente importante ao fortalecimento do vivere civile, pelo fato de que a crença liga os homens à sua comunidade e às instituições. Ao mesmo tempo, esse tipo de vínculo estreita as relações entre cidadão e cidade, pois a religião atribui autoridade aos membros que exercem o poder, e, na ausência dessa autoridade, o mando corre o risco de perder sua eficiência. (ADVERSE, 2009).
Nos capítulos dedicados à religião, nos Discorsi, também é possível compreender como a autoridade, para ser efetiva no papel do legislador, precisa sustentar-se sobre a religião devido ao seu poder de convencimento. (ADVERSE, 2009). O incremento de questões de natureza religiosa sobre o ato de legislar é capaz de garantir a solidez da figura do político, que passa a ser entendido como um elo entre o Deus e os homens.
O governante deve ter em mente que ele precisa mobilizar, em qualquer momento, todo o aparato religioso, fazendo funcionar todas as suas instâncias persuasivas. Esse tipo de mobilização requer maestria para não deixar que o espetáculo religioso manifeste sua falsidade e, consequentemente, para manter a credulidade dos homens e a força da fé religiosa. Adverse (2009) observa que Maquiavel dá maior importância à efetividade e ao poder de mobilização dos homens do que à falsidade ou à veracidade da própria religião.
Maquiavel: verità effettuale, a religião e a ordem
A obra de Maquiavel é marcada pelo debate acerca de assuntos relacionados ao Estado, e tais abordagens não contemplam idealizações, como as contidas nas obras de muitos de seus antecessores, a exemplo de Platão e Aristóteles. Maquiavel concedeu destaque a verità effettuale - a verdade efetiva das coisas. “Seu ponto de partida e de chegada é a realidade concreta”. (WEFFORT, 2004, p. 17). Através dessa visão pragmática e realista, Maquiavel investiga Estados reais, que existiram ou ainda existem, com o intuito de gerar conhecimentos úteis aos seus governantes.1 Para o autor é “mais conveniente procurar a verdade pelo efeito das coisas, do que pelo que delas se possa imaginar”. (MAQUIAVEL, 2000, p. 138). O legado da filosofia política de Maquiavel substitui o “deve ser” pelo “o que efetivamente é”. Essa forma de analisar as coisas, que pode ser considerada um método, contemplou, inclusive, os escritos do autor acerca da religião, visto que tais análises são alheias a intenções divinas ou fatores sobrenaturais.
Maquiavel reconhece a função da doutrina religiosa e sua eficiência ao influenciar o vivere civile - vida coletiva. A prática eclesiástica é compreendida pelo autor através dos efeitos causados nos cidadãos, que variam do amor ao medo. Para ele não convém apontar à veracidade, à substância dos preceitos religiosos ou, ao menos, à relevância de seus criadores, o que Maquiavel refere como sendo relevante é a capacidade de ordenamento religioso em prol do cumprimento e do reconhecimento de normas e valores políticos.
Através do método da “verdade efetiva das coisas”, o autor interpreta a importância da religião por sua capacidade de influenciar na vida coletiva, influência, essa, que contempla as decisões dos cidadãos no que diz respeito a questões políticas, propiciando disciplina e, consequentemente, o fortalecimento do Estado. É válido mensurar que para o autor a origem da religião é essencialmente humana, constituindo-se em uma instituição dotada de fundadores e chefes (TOMMASINI, 1999) e, portanto, nesse contexto, não importa mensurar a existência ou não de uma providência divina.
Utilizando como legitimação e fonte de ensinamentos os mandamentos religiosos, a religião é capaz de fazer com que seus seguidores respeitem e sigam regras políticas gerando, portanto, efeitos que auxiliam a manter a estabilidade do Estado. Na obra Discorsi,Maquiavel (1994) ressalta que o Estado não pode depender da virtù de apenas um homem. Para que haja estabilidade, é necessário contar com a virtù do povo, e, nesse contexto, “a fé religiosa, compreendida como a vida profunda do povo expressa nos bons costumes e na educação moral e cívica, constitui-se na razão de ser da virtù política dos membros e no fundamento interno do Estado”. (AMES, 2006, p. 54). A religião, trata-se, portanto, de um instrumento auxiliar gerador da obediência necessária ao vivere civile.
Contudo, conforme lembra Ames (2006), para Maquiavel a religião não se restringe a interesses particulares dos governantes, sendo louvável apenas se trouxer benefícios à coletividade. “Pode ver-se, quem considera bem a história romana, o quanto a religião foi útil para comandar os exércitos, animar o povo, manter os homens bons e envergonhar os maus.” (MAQUIAVEL, 1994).
De acordo com Maquiavel, a religião se fundamenta no temor a Deus, e esse temor, se for devidamente orientado por um legislador, transforma- se em um instrumento de poder político gerador de obediência. “Nunca houve um legislador que tenha dado leis extraordinárias a um povo e não tenha recorrido a Deus, pois, de outro modo, não seriam aceitas”. (MAQUIAVEL, 1994). Conclui-se que, seguindo a verità effettuale, para Maquiavel uma das principais funções da religião é a substituição parcial da força do Estado pela civiltà.
Conclusão
Através da abordagem desse autor clássico, é possível identificar uma preocupação com a questão religiosa acerca dos assuntos provenientes do campo político, mais precisamente, sobre a consolidação do Estado. Maquiavel parte de uma reflexão da realidade de sua época, compreendendo, assim, como se formam os Estados através de uma concepção não mais fundamentada na moral religiosa, mas baseada em preceitos políticos. Segundo Maquiavel, todas as coisas que dizem respeito à política devem ser compreendidas como realmente são e não através de formulações idealizadas.
Maquiavel demonstra uma clara diferença entre o príncipe e o povo quando está em jogo o significado religioso. Para o príncipe, a religião passa a constituir um instrumento meramente político, uma forma eficiente de submeter os súditos às normas e à obediência; para o povo, os dogmas religiosos contêm um temor sagrado que faz com que todos respeitem os mandamentos legais como se fossem regras enviadas por alguma força divina. Maquiavel exalta o uso político da religião apenas naquelas circunstâncias em que ela possa resultar em algum benefício à população e não apenas à glória individual do príncipe.
A religião pode constituir um elemento de grande eficácia ao Estado. Quando ela é utilizada com prudência, pode ser considerada uma forma de assegurar a ordem e a paz internas, ao invés da recorrência à violência e à força para a garantia dessa situação.
Como forma de comando, a religião revela sua importância, pois se trata de um recurso útil quando a argumentação racional torna-se fraca para persuadir os indivíduos, como, por exemplo, naquelas circunstâncias em que as vantagens são reconhecidas por um indivíduo prudente, mas que não apresentam, em si mesmas, razões claras que possam levar os outros a crer. É por isso que os homens considerados sábios por Maquiavel, na tentativa de superar essa dificuldade, acabam recorrendo aos mandamentos divinos.
De acordo com o pensamento político de Maquiavel, pode-se afirmar que os temas que compõem a esfera religiosa penetram em questões relativas à consolidação do Estado moderno. Assim, esses revelam toda sua pertinência quando o assunto é a edificação de uma sociedade política, através de suas regras e valores.