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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.24  Caxias do Sul  2019  Epub 31-Jul-2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v24.e019004 

ARTIGOS

O ensino de Filosofia como potencializador da experiência interdisciplinar na Educação Básica: interfaces entre Hannah Arendt e Matthew Lipman

The teaching of Philosophy as an potentiator of the interdisciplinary experience in Basic Education: interfaces between Hannah Arendt and Matthew Lipman

Altair Alberto Fávero* 
http://orcid.org/0000-0002-9187-7283

Ana Lúcia Kapczynski** 
http://orcid.org/0000-0003-3046-3885

Júnior Bufon Centenaro*** 
http://orcid.org/0000-0003-0994-1192

* Doutor em Educação pela UFRGS. Professor Titular III na Universidade de Passo Fundo (UPF). E-mail: altairfavero@gmail.com

** Mestra em Educação pela UPF. Professora de Educação Infantil na Rede Municipal de Ensino de Passo Fundo/RS. E-mail: anakapczynski@gmail.com

*** Licenciado em Filosofia pela UPF. Professor de Filosofia na Educação Básica. E-mail: junior.centenaro@bol.com.br


Resumo

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) (9.394/1996) inseriu a Filosofia nos currículos do Ensino Médio com o indicativo de interdisciplinaridade, permanecendo em aberto questões acerca de como fazer com que a Filosofia potencialize a experiência interdisciplinar. Com o objetiv o de correlacionar interdisciplinaridade e Filosofia, o artigo resulta de uma análise hermenêutica que confronta reflexões de Hannah Arendt sobre a crise na educação e a proposta da comunidade de investigação de Lipman. Parte da noção de que, em meados do século XX, a educação tradicional foi substituída pela pedagogia progressista, e a educação passou a ser pensada como ciência do ensino em geral, a fim de atender à dinâmica dos avanços científico e tecnológico. A visão analítica e linear das especialidades não responde, satisfatoriamente, às demandas atuais de uma ciência complexa, articulada e em rápida transformação. Diante do requisito interdisciplinar da ciência, o específico da Filosofia é a problematização e a sistematização do filosofar; de mediação entre as disciplinas, em virtude da dimensão holística de seus conteúdos e de vigilância epistemológica como recurso de revisão e atualização dos saberes.

Palavras-chave: Interdisciplinaridade; Filosofia; Ciência; Crise na educação; Comunidade de investigação

Abstract

The Law of Guidelines and Bases (9.394/1996) inserted the philosophy in the curriculums of the high school with the indicative of interdisciplinary, remaining open questions about how to make the philosophy potentialize the interdisciplinary experience. With the objective of correlating interdisciplinary and philosophy, the article results from a hermeneutics analysis that confronts Hannah Arendt’s reflections on the crisis in education and the proposal of the research community of Lipman. Part of the notion that, in the mid-twentieth century, traditional education was replaced by progressive pedagogy and education began to be thought of as a science of teaching in general, in order to meet the dynamics of scientific and technological advancement. The analytical and linear vision of specialties does not respond satisfactorily to the current demands of a complex, articulate and rapidly changing science. Given the interdisciplinary requirement of science, the specific philosophy is the questioning and the systematization of the philosopher; of mediation between disciplines, due to the holistic dimension of its contents, and epistemological surveillance as a feature of revision and updating of the know-how.

Keywords: interdisciplinary; Philosophy; Science; Crisis in education; Research community

Considerações iniciais

Com a intenção de discutir o indicativo interdisciplinar que as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNs) (BRASIL, 1998) atribuem aos conhecimentos filosóficos, o presente artigo se concentra numa análise hermenêutica a partir da seguinte questão: De que forma o ensino de Filosofia se constitui como ferramenta potencializadora da atividade interdisciplinar na Educação Básica? Para responder a essa questão, revisitamos os indicativos da legislação para entender qual conceito de interdisciplinaridade se refere à Filosofia. Observa-se que as teorias sobre interdisciplinaridade, assim como as orientações advindas das políticas educacionais sobre o tema, não se mostram de fácil entendimento na organização curricular da Educação Básica e na sua aplicação no cotidiano de sala de aula.

A LDB 9.394/1996 (art. 36, inciso III) definiu que os conhecimentos de Filosofia e Sociologia são necessários ao exercício da cidadania (BRASIL, 1996) no Ensino Médio. Em seus desdobramentos, o Parecer 03/1998 sugeriu que os conhecimentos de Filosofia recebessem uma tratativa interdisciplinar em virtude das características próprias do filosofar a partir dos campos da ética, da política e da estética. Tal orientação foi reforçada nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) para o Ensino Médio de 1999 e de 2002 e também nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) de 2012 (BRASIL, 2013), com o diferencial de que as últimas DCNs trazem um viés mais epistemológico à Filosofia, de colaboradora na tarefa da iniciação científica, e menos centrada no específico das humanidades.

Com a finalidade de delimitar o objeto de análise, partimos da hipótese de que a Filosofia e a interdisciplinaridade são mais afeitas às práticas de ensino e à mobilização dos saberes, o que permite romper as fronteiras disciplinares. A atividade interdisciplinar associa conteúdos e métodos de investigação, exigindo amplo conhecimento teórico e capacidade de interpretar de modo contextualizado. Para discutir a temática proposta, este estudo foi dividido em três momentos: o primeiro recompõe as reflexões que Hannah Arendt (2013) apresenta em seu artigo A crise na educação sobre o papel da tradição na tarefa de educar. O conceito de natalidade sintetiza a ideia de que toda ação pedagógica tem um matiz conservador a partir do momento em que a escola ensina algo. Ensinar é transmitir aos recém-chegados saberes preexistentes de um mundo que lhes antecede. O segundo momento explana a proposta da comunidade de investigação, referente ao Programa de Filosofia para Crianças, de Matthew Lipman (1990), por visar ao desenvolvimento de um pensar melhor pela dimensão criativa e cuidadosa do pensamento, em virtude da característica dialógica e da possibilidade de transferência de disposições específicas da filosofia para outras disciplinas. O terceiro momento sintetiza os tópicos anteriores com a contribuição de Pombo (2004) a partir do conceito e da prática de interdisciplinaridade, tendo em vista que o modelo analítico moderno não responde mais, satisfatoriamente, à ciência contemporânea em sua complexidade e teias de relações.

O artigo confronta autores procedentes de bases epistemológicas distintas, visto que Arendt profere ácidas críticas ao pragmatismo que inspirou Limpam, inicialmente por entender que a interdisciplinaridade ultrapassa a atuação de diálogos com disciplinas afins. Nota-se que Arendt (2013) pouco se ocupou em teorizar sobre educação e sequer entrou no mérito do ensino de Filosofia, mas ela traz um elemento importante: a tradição tem muito a ensinar. A filósofa defende a formação docente por especialidades já que entende que a fragilidade da educação progressista, centrada no aprender a fazer e no protagonismo da criança, está no abandono de aprendizados importantes da tradição que resultou na perda significativa da autoridade docente em relação à criança e ao saber, das narrativas históricas que ajudavam a ressignificar os conteúdos das disciplinas. O contraponto dessa teoria educacional é a comunidade de investigação proposta por Lipman (1990) que preconiza a aquisição de habilidades de raciocínio, com o objetivo de desenvolver o pensar de ordem superior por meio do exercício filosófico. Lipman e seus colaboradores salientam que os procedimentos típicos da Filosofia podem ser transferidos para outros contextos e disciplinas, de modo a garantir cientificidade à produção dos saberes.

1 Interdisciplinaridade e tradição: uma releitura a partir de Hannah Arendt

Nesse primeiro momento, discorreremos acerca de três concepções trazidas por Hannah Arendt (2013): a educação como conservação; o conceito de natalidade, e a crítica às teorias educacionais progressistas a partir de uma ideia da ciência do ensino em geral, embasada no aprender a fazer e no abandono dos conteúdos disciplinares. Do ponto de vista de Arendt (2013), a educação tem um matiz conservador pelo simples evento de que as gerações adultas inserem as crianças em um mundo, ensinando-as a partir de referenciais cognitivos, morais, culturais, políticos e simbólicos. Inserir os recém-chegados numa tradição já existente não significa que o mundo seja velho de fato. Ele segue seu curso histórico com a chegada e a partida das pessoas, no sentido biológico de nascer e morrer ou no movimento da imigração. O mundo só é velho em relação às novas gerações. Na concepção de Arendt (2013), somente as crianças podem ser educadas porque ainda não consolidaram seus referenciais cognitivos. As pessoas adultas já são educadas e somente podem atuar na política. O problema das pedagogias progressistas consiste em acreditar que as crianças, que ainda não foram educadas, sejam capazes de se autogovernar e, assim, abandoná- las aos seus próprios recursos.

A educação é uma atividade humana específica para crianças, e a política pertence ao mundo adulto. Define-se como natalidade a inserção dos seres humanos no mundo, uma espécie de segundo nascimento no sentido aproximado da socialização, que acontece na escola, a primeira vivência na esfera pública ainda em sintonia com o privado do lar. Na concepção de Arendt (2013, p. 223), “a essência da educação é a natalidade, o fato de que seres nascem para o mundo”. Ao nascer, a criança é inserida num mundo já existente, mas pelo critério de humanização, a relação que o recém-chegado estabelece com o mundo não se aplica às demais formas de vida animais. Do ponto de vista biológico, a criança nasce de uma mulher de modo semelhante com que gatinhos nascem de uma gata; o que diferencia o nascer de uma criança e o de um gatinho é o fato de que mesmo sendo novo em um mundo em que lhe é estranho, o infante humano é um ser em formação dentro dos princípios de um mundo que é velho em relação a ele, enquanto o gatinho age somente de acordo com os instintos de sua espécie. Ainda que partilhe do vir a ser com todas as coisas vivas, a criança necessita de pais humanos que assumam sua educação, responsabilizem-se por sua vida e seu desenvolvimento e pela continuidade do mundo (ARENDT, 2013, p. 235), tarefa que extrapola o cuidado e a proteção à criança singular e se estende à esfera política, à responsabilidade com o social.

Em seu artigo intitulado A crise na educação, Arendt (2013) descreve que o colapso que atravessa a educação se tornou um problema político de primeira grandeza. A crise, amplamente discutida na sociedade, por meio de entidades governamentais ou da imprensa, explicita o crescente declínio dos padrões elementares de aprendizado e atinge a totalidade do sistema escolar, desafiando as autoridades educacionais a resolver uma questão que transpõe fronteiras territoriais. Trata-se de um problema político porque não se reduz a metodologias mais ou menos eficazes de ensino, incidindo em questões amplas como a imigração, a pobreza e a escravidão há pouco abolida na América. Para Arendt (2013, p. 225), no ideal educacional vigente, impregnado de Rousseau, “a educação tornou-se um instrumento da política, e a própria atividade política foi concebida como uma forma de educação”.

De Arendt deduzimos que educar para a cidadania significa oportunizar que as crianças preparem um mundo novo às futuras gerações. Pela própria natureza da condição humana, cada geração se transforma num mundo antigo. Em termos de políticas educacionais, a contundente crítica de Arendt (2013, p. 226) consiste em partir da concepção de que “o mundo novo está sendo construído [apenas] mediante a educação das crianças”, sem considerar que a situação social das pessoas adultas, como a imigração em larga escala, induz a desfazer o mundo antigo e entrar em nova ordem, normalmente conflitiva com os referenciais culturais que formaram tais gerações. Ignorou- se que as incertezas do não lugar no novo contexto histórico-geográfico impactariam a educação das crianças. A implantação de teorias educacionais modernas ou progressistas nos países americanos, com alto índice de imigração, não foi criteriosamente avaliada quanto aos seus alcances e limites. Negligenciou-se que não somente as crianças foram introduzidas em um mundo preexistente.

Especificamente na escola pública, pensada para atender às exigências da sociedade de massas, prossegue Arendt, a crise na educação resulta da radical revolução na qual alguns experimentos pontuais se transformaram em regras gerais para todo o sistema educacional, derrubando, completamente, as tradições e os métodos de ensino que serviam de referenciais de conduta e aprendizagem. Em consequência, todas as regras e os juízos capazes de dar respostas foram postas à parte, e a escola ficou desprovida de recursos para seus problemas. Ao romper com a tradição, tais teorias colaboraram com a perda de autoridade docente em relação ao saber e à criança. Na escola de massas, a noção de igualdade de direitos perante a lei nivela projetos educacionais, mas desconsidera distinções de ponto de partida.

Existe uma anomalia presente na essência da escola de massas: a suposta “igualdade de oportunidades” encobre o critério de meritocracia, e essa prática contradiz o princípio de equidade que deveria reger a democracia. Do ponto de vista de Arendt (2013, p. 232), a crise resulta das políticas educacionais influenciadas pela Psicologia moderna e pelo pragmatismo que embasam a pedagogia escolar, com orientações importadas e generalizadas, que negligenciam fatores sociais e políticos pontuais que incidem sobre a educação. Essas teorias apresentam três problemas fundamentais: a) acreditar que as crianças têm autonomia suficiente para se autogovernar, que existe um mundo da criança e uma sociedade formada entre crianças; b) transformar a Pedagogia numa ciência geral que rompe com todas as especialidades; e c) reduzir todo o processo formativo ao desenvolvimento de habilidades.

No primeiro caso, o problema é a supressão do papel de autoridade do educador, gerando uma situação em que a pessoa adulta se acha impotente ante a criança em sua singularidade e sem contato com ela. Ao permitir que a criança imponha suas próprias regras, ela permanece egocêntrica e destituída do sentimento de pertença ao mundo. Por outro lado, a autoridade que se materializa num grupo governado por crianças tende a ser tirânica, pois a autoridade que se gesta no grupo, mesmo que seja num grupo de crianças, é sempre mais forte e severa do que a autoridade de um indivíduo isolado. As chances de uma criança individual se rebelar ou entrar numa luta desigual com a autoridade adulta são significativamente menores.

Assim ao emancipar-se da autoridade dos adultos, a criança não foi libertada, e sim sujeita a uma autoridade muito mais terrível e verdadeiramente tirânica, que é a tirania da maioria. [...] A reação das crianças a essa pressão tende a ser ou o conformismo ou a delinquência juvenil, e frequentemente é uma mistura de ambos. (ARENDT, 2013, p. 230-231).

Além da responsabilidade de se colocar como autoridade adulta em relação à criança, faz-se necessário que o educador seja autoridade em sua área de conhecimento. Uma teoria geral, que pretende romper com as fronteiras das especialidades, abre precedentes para que se ensine qualquer coisa, sem o compromisso com a erudição que a formação escolar enseja. A ênfase no desenvolvimento de habilidades, igualmente, traz prejuízos à formação de professores. Quando são negligenciados os conhecimentos específicos, não raro acontece de o docente “encontrar-se apenas um passo à frente de sua classe em conhecimento”. (ARENDT, 2013, p. 231). Assim, não apenas os estudantes são abandonados aos seus próprios recursos, mas também a fonte mais legítima de autoridade do professor não é mais eficaz; para educar é preciso saber mais a fim de poder fazer mais.

Arendt (2013, p. 232) tece duras críticas à atual Pedagogia que encontrou expressão conceitual-sistemática no pragmatismo, por substituir o aprendizado pelo fazer. Ao abolir a transmissão de conhecimentos e priorizar o ensino acerca de saber como o conhecimento é produzido, ao inculcar habilidades, as escolas se transformaram em instituições vocacionais que tiveram tanto êxito em ensinar técnicas de fabricação de objetos quanto na “arte de viver”. Não há mais uma formação geral com os pré-requisitos normais de um currículo padrão. A ênfase na profissionalização pode levar a outro efeito nefasto: substituir o brinquedo pelo trabalho, privando a criança da espontaneidade de sua própria iniciativa lúdica, criatividade, elaboração de hipóteses e construção dos próprios brinquedos. Geralmente os brinquedos prontos estimulam a criança a brincar sozinha em prejuízo da socialização tão necessária em contextos cada vez mais individualistas. Em contrapartida, na escola de massas, a ênfase no brincar tende a retardar o ensino, mantendo a criança mais velha, no maior tempo possível, no nível da primeira infância. “Aquilo que, por excelência, deveria preparar a criança para o mundo dos adultos, o hábito gradualmente adquirido de trabalhar e de não brincar, é extinto em favor da autonomia do mundo da infância”. (ARENDT, 2013, p. 233). A educação deveria ter um final previsível, defende Arendt. Depois de educar o caráter e promover a maturidade intelectual do estudante, a formação escolar deveria centrar-se na aprendizagem.

Seja qual for a conexão adotada entre o fazer e o aprender para validar a aplicação da fórmula pragmática, a educação tende a tornar absoluto o mundo da infância. Sob o pretexto de respeitar a autonomia da criança, ela é excluída do mundo adulto e mantida artificialmente no seu próprio mundo, extinguindo o relacionamento natural entre adultos e crianças tão necessário ao ensino e à aprendizagem. Do ponto de vista de Arendt (2013, p. 234), a difusão do conhecimento é essência na educação formal, e, em algum momento, a brincadeira precisa ser interrompida, para que o trabalho sério da aula seja retomado. Se os professores não forem especialistas no que fazem, se tornarão negligentes para com as crianças. Embora a educação seja uma dentre as atividades mais elementares que se volta inevitavelmente para o passado, também a mera transmissão do “conhecimento petrificado” seria ineficaz numa sociedade que se renova continuamente com a vinda de novos seres humanos.

Algumas noções de interdisciplinaridade podem ser extraídas do pensamento de Arendt: a) o acervo cultural cognitivo ou os clássicos são o ponto de partida do aprendizado, ainda que sejam desconstruídos; b) é temerário excluir todos os referenciais educativos de uma época para implantar um novo modelo de ensino experimental, sem ter subsídios para avaliar os alcances e limites das ações pedagógicas, mesmo que a educação, por ser vida e movimento, force mudanças contínuas; c) tradição não se resume a conteudismos e doutrinas; é recurso de referência e preparação das crianças à vida adulta. A humanidade não fecha um ciclo e abre outro com o nascimento de cada criança. Nas palavras de Arendt (2013, p. 239), a educação precisa ser conservadora em benefício daquilo que é novo e revolucionário em cada criança que se apresenta como novidade ao ser introduzida como algo novo em um mundo velho; d) a interdisciplinaridade não anula os saberes disciplinares; e e) uma robusta formação docente em sua especialidade é necessária em qualquer método de ensino que seja adotado.

2 A comunidade de investigação como experiência interdisciplinar do pensamento

Como observado anteriormente, as DCNs (BRASIL, 1998) instituíram um caráter interdisciplinar aos conhecimentos de Filosofia, tidos como veículos de fortalecimento dos processos educacionais interdisciplinares na Educação Básica. Dez anos mais tarde, a Lei 11.684/2008 tornou a Filosofia uma disciplina obrigatória nos currículos do Ensino Médio. Hoje, imprecisões cercam o indicativo de abordar conhecimentos de Filosofia diluídos no interior das disciplinas, visto que a Lei 13.415/2017 retirou a obrigatoriedade da Filosofia como disciplina, atenuando que serão obrigatórios apenas temas e estudos de filosofia. Em virtude disso, julgamos urgente elencar algumas contribuições da Filosofia na sala de aula e suas interfaces com a interdisciplinaridade, dada a importância da formação filosófica, não somente no Ensino Médio, mas desde a infância.

Matthew Lipman e seus colaboradores (2014), ao construírem o Programa de Filosofia para crianças,1 encontraram, na comunidade de investigação, o espaço primordial ao desenvolvimento de um pensar melhor, que agrege não apenas o pensar crítico, mas também a dimensão criativa e cuidadosa do pensamento. Tradicionalmente, a Filosofia ficou reservada a adultos, pressupondo que crianças e jovens não teriam interesse em lidar com assuntos tão abstratos e técnicos. Para Lipman et al. (2014, p. 50), “os temas filosóficos não são interessantes só para adultos e nem precisam ser formulados de uma maneira tão técnica que as crianças não possam lidar com eles”. É salutar para o futuro da Filosofia que, em qualquer idade, as pessoas possam refletir sobre temas filosóficos e os trabalhar de maneira prazerosa. O Programa de Filosofia para crianças, ao proporcionar o desenvolvimento de habilidades de pensamento filosófico, incentiva os estudantes ao rigor crítico e, consequentemente, a um modo imaginativo, visto que, ao estimular os alunos a discutir sobre como as coisas são e como deveriam ser, se evita de dar às crianças a impressão de que as coisas não poderiam ser diferentes. Se a escola não proporciona aos estudantes pensar sobre o mundo em que vivem e mostrar a possibilidade de que certos fatos podem ser diferentes, ou seja, que é possível que determinado fato ou assunto possa ser analisado a partir de diferentes pontos de vista, isso significa desperdiçar a chance de que as crianças pensem de forma independente e criativa.

Segundo Lipman et al.,

um dos maiores problemas da educação atualmente é a falta de unidade da experiência educacional da criança. O que a criança encontra é uma série de apresentações especializadas sem conexão. Quando tem uma aula de linguagem após uma de matemática, a criança não é capaz de estabelecer nenhuma relação entre elas, e tampouco consegue ver relação entre a aula de linguagem e a de estudos sociais ou ciências naturais. (2014, p. 51).

A vida moderna é caracterizada pela fragmentação geral da experiência, que também se reflete no parcelamento do dia a dia escolar. O modelo educacional que se estabeleceu baseia-se na transmissão de conhecimentos e informações do professor para os alunos e, diante disso, a necessidade de ser simplificado e esquematizado por especialistas. “O resultado é que cada disciplina acaba se tornando algo autossuficiente e perdendo o rastro da sua relação com a totalidade do conhecimento humano, no esforço de apresentar, de modo simplificado, um breve resumo de cada área particular”. (LIPMAN et al., 2014, p. 52). Com a probabilidade de que o modo de especialização perdure ainda por bastante tempo, faz-se necessário que exista algo a estabelecer a continuidade do diálogo entre as várias disciplinas do currículo. Geralmente é atribuída ao professor essa responsabilidade de pensar práticas pedagógicas de integração dos saberes.

Lipman et al. (2014, p. 53) destacam que a principal contribuição da criança à educação é seu caráter questionador. Sendo a filosofia uma disciplina que ergue questões, percebe-se a aliança natural entre as crianças e a Filosofia. Nas palavras de Lipman et al. (2014, p. 53), “[a] filosofia incentiva os recursos intelectuais e a flexibilidade que podem capacitar as crianças e os professores a enfrentarem a descontinuidade e a fragmentação dos currículos existentes”. A comunidade de investigação torna-se o contrapeso da fragmentação imposta pela disciplinarização do sistema educacional, uma vez que a Filosofia estimula e aprimora o pensamento multidimensional.

Um dos objetivos centrais do Programa de Filosofia para crianças é o de transformar a sala de aula em comunidade de investigação, sendo o lugar adequado para o estímulo do pensamento multidimensional, baseado em discussões e no diálogo. Lipman et al. (2014, p. 76), alegam que “quando as crianças são incentivadas a pensar filosoficamente, a sala de aula se transforma numa comunidade de investigação, a qual possui um compromisso com os procedimentos da investigação, com a busca responsável das técnicas que pressupõem uma abertura para evidência e para a razão”. Embasados nisso, destacamos duas questões: a) que características assume uma educação pautada pela tal abordagem? E b) que contribuições os procedimentos e conteúdos típicos do pensamento filosófico podem dar às demais disciplinas? Primeiramente, responderemos sobre os aspectos mobilizados pela comunidade de investigação e, na sequência, sobre a possibilidade de transferência de disposições da Filosofia para outras disciplinas.

Transformar salas de aula em comunidades de investigação é uma das grandes contribuições de Lipman para a educação contemporânea. Uma comunidade que investiga pode ter várias características. Entretanto, não há definição unívoca do que ela representa, pois existem diversas definições acerca da comunidade de investigação que proporcionam a aproximação dos conhecimentos filosóficos com os conteúdos de outras disciplinas. Destacamos algumas, que, em nosso entendimento, se aproximam do objetivo de conectar o filosofar à interdisciplinaridade. Na base de tudo, segundo Splitter e Sharp (2001, p. 30), colaboradores do Programa de Filosofia para Crianças, está a compreensão de que a “comunidade de investigação é ao mesmo tempo imanente e transcendente”, um espaço de vivências diárias entre os participantes que serve como um ideal a ser buscado. Nesse sentido, dois aspectos são marcantes: primeiro, o cuidado que ocorre pela cooperação, confiança, segurança, objetivos comuns e o segundo, a investigação que evoca a autocorreção, “levada pela necessidade de transformar o que é intrigante, problemático, confuso, ambíguo ou fragmentado em algum tipo de todo unificador, que satisfaz os envolvidos e que culmina, embora experimentalmente, em julgamento”. (SPLITTER, SHARP, 2001, p. 31).

A configuração física da disposição da classe em círculo oportuniza a comunicação, e o comportamento democrático constitui-se como outra característica notória. Esse clímax democrático abre caminhos para que os participantes modelem e modifiquem as ideias uns dos outros, ligados a um foco único que, concomitantemente, permite que a discussão os leve a um lugar que transcenda meras direções e intuições pessoais. É nesse interim que brota a principal característica da comunidade de investigação: a própria investigação. “O objetivo da investigação é o entendimento comum ou a concordância; contudo, ao mesmo tempo, ela carrega a tensão que abrange o que é problemático ou contestável”. (SPLITTER, SHARP, 2001, p. 32). A comunidade que investiga certamente buscará consensos, resultados minimamente aceitos por todos, embora lhe sejam muito agradáveis e necessários a dissonância, o debate, a divergência, a busca de solução ao problemático por hipóteses diferentes.

A investigação, na sala de aula, ocorre pelo constante exercício do pensar, não de qualquer maneira, mas compromissado com procedimentos de investigação. Essa característica compromete os participantes com os conteúdos e procedimentos, havendo uma especial atenção a estes últimos. Splitter e Sharp afirmam que, se chegássemos diante de uma comunidade de investigação madura, teríamos grandes chances de encontrar

crianças ouvindo e construindo as ideias umas das outras; dando e analisando razões; apoiando argumentos; ajudando uns aos outros a formular perguntas e ampliar pontos de vista; apoiando a hipótese de alguém com um exemplo, desafiando os outros com um exemplo contrário; criando tempo e espaço para vozes tímidas se expressarem e para vozes agressivas se tornarem mais reflexivas e atenciosas; e mostrando, de várias maneiras, que eles estão preocupados com a estrutura e o procedimento da investigação quanto com seu conteúdo. (SPLITTER, SHARP, 2001, p. 32).

O pensamento dialógico que caracteriza a investigação comunitária pode ser fundamental às diversas formas de aprendizado. Sendo assim, nossa pergunta é: É possível que os procedimentos filosóficos sejam estendidos ou transferidos a outras disciplinas da Educação Básica? Acrescida ou mantida no currículo, a Filosofia não enfraquece outras disciplinas “por serem espremidas em espaços menores de tempo. Essa questão deve ser compreendida do ponto de vista que a Filosofia é uma matéria miscível que permeia as outras disciplinas, enriquecendo-as”. (LIPMAN, 2008, p. 209).

A filosofia oferece uma dupla contribuição: uma é procedimental, e a outra, substantiva. As habilidades, as estratégias e os procedimentos praticados na Filosofia e que melhor conduzem à transferência são os que envolvem o estabelecimento de relações e conexões. Tanto a investigação quanto o dialogo filosófico, na comunidade de investigação, capacitam os alunos a ampliar o leque das interconexões que proporcionam um entendimento mais amplo das coisas. O aperfeiçoamento da capacidade de entender o processo e o procedimento da investigação se aplica às demais disciplinas escolares e “capacitará os alunos a ver além da fragmentação e especialização que caracterizam o aprendizado escolar, em direção a uma concepção mais holística de conhecimento e suas interconexões”. (SPLITTER, SHARP, 2001, p. 144).

Dessa forma, todas as disciplinas escolares ganham na medida em que alunos e professores estejam preparados para estabelecer relações entre parte e todo. Nessa esteira, distinguir uma razão de uma causa, uma premissa de uma conclusão, uma inferência indutiva de uma dedutiva, detectar argumentos falaciosos, dar bons argumentos, autocorrigir-se, construir conceitos e definições, etc., são procedimentos “tão vitais em matemática e ciências quanto em história, literatura, geografia, ensino religioso. A noção de transferência, apontada até aqui, nada mais é que “encontrar os procedimentos da filosofia guardados na estrutura lógica e epistemológica de cada e toda disciplina”. (SPLITTER, SHARP, 2001, p. 144). Em tese, quando há engajamento, questionamento, fala, escrita e raciocínio que caracterizam a investigação filosófica, estudantes e professores tornam-se pensadores mais habilidosos, ampliam o domínio conceitual e procedimental do conhecimento e do pensamento nas diversas partes do currículo.

As contribuições substantivas, ou substâncias, da Filosofia estão no grupo de conceitos que, de modo geral, integram a fundamentação de todas as disciplinas, haja vista que operam em níveis gerais da experiência humana. Splitter e Sharp sustentam que

perguntar o que é número, o que é causa, o que é honestidade, o que é beleza, o que me faz ser eu mesmo, se eu sou realmente livre, se a vida tem algum propósito verdadeiro, como o conhecimento é possível e assim por diante é fazer perguntas que são muito amplas, mas repletas de sentido e significado. (2001, p. 147).

Por meio de procedimentos, a comunidade de investigação conduz ao pensar filosofica, histórica e artisticamente, enfim, qualifica a investigação com aquilo que é próprio de cada disciplina escolar, acrescendo significativamente os aspectos substanciais e conceituais do ambiente comunitário da sala de aula. Em síntese, nosso esforço, nesse tópico, se concentrou em mostrar que o Programa de Filosofia para crianças, ao transformar a sala de aula em comunidade de investigação, pode ser um contributo ímpar para pensar a interdisciplinaridade escolar. Concentramos nossos esforços em elencar, inicialmente, algumas das características do ambiente da comunidade de investigação e, na sequência, analisamos a possibilidade de dimensões e procedimentos (que são típicos da Filosofia) serem transferidos para outros contextos e disciplinas. Lipman (2008) e Splitter e Sharp (2001) defendem solidamente o reconhecimento do lugar da Filosofia no processo de aprender, pensar e ensinar todas as disciplinas eficientemente.

3 A Filosofia como mobilizadora da interdisciplinaridade

Nos momentos anteriores, apresentamos duas perspectivas sobre educação que se referem à temática proposta. Arendt (2013) defende que a formação disciplinar é necessária para garantir cientificidade à educação. Por essa ótica, a Filosofia em nada contribuiria com as atividades interdisciplinares sem haver uma formação filosófica consistente nas escolas e a presença de docentes especialistas na área. Inspirado no pragmatismo, vertente epistemológica oposta à de Arendt (2013), Lipman (1990) elabora a proposta da comunidade de investigação que preza pelo desenvolvimento de um pensar de ordem superior, enfocando o método filosófico para estudar os clássicos e conteúdos da Filosofia e de outras disciplinas.

A obra Interdisciplinaridade e formação docente, organizada por Altair Alberto Fávero, Carina Tonieto e Evandro Consaltér (2018), fruto do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Superior (Gepes/UPF), traz duas concepções-chave ao nosso estudo: a interdisciplinaridade precisa ser pensada como currículo e a ideia de formação de sujeitos interdisciplinares. Nesse sentido, a comunidade de investigação torna-se um recurso importante para detalhar a interdisciplinaridade nos currículos em relação aos saberes específicos das disciplinas entre docentes e não apenas como didática em sala de aula. Na transposição à prática, a comunidade de investigação articula o planejado em conjunto com o imprevisível que surge no diálogo entre estudantes. Por exemplo, ao abordar o tema identidade em uma aula de Filosofia, poderão surgir questões relativas ao processo de renovação das células que acompanham as mudanças do corpo ao longo da vida, desafiando o docente a atualizar os conhecimentos de sua área com colegas de outras disciplinas. As atividades interdisciplinares nem sempre resultam de planejamento coletivo, porque a sala de aula é espaço de vivência do questionamento que, não raras vezes, requer adentrar em outros campos, sensibilidade ao contexto, buscar respostas às dúvidas e inquietações que surgem no grupo.

De Arendt (2013) é possível inferir que tradição não é sinônimo de intervenção autoritária, tampouco se reduz a um acervo de escritos ultrapassados. No entender da filósofa, educar significa oferecer uma base cognitiva e cultural sólida, para que os recém-chegados não sejam abandonados aos seus próprios recursos e, assim, possam renovar o mundo a partir da ressignificação dos saberes. O conceito de natalidade sintetiza a ideia de que a tradição tem muito a ensinar, pois toda ação pedagógica é conservadora na medida em que, ao ensinar, se transmite saberes produzidos pela humanidade e que se constituíram como referenciais importantes às necessidades de formação ao longo da história. Para Arendt, as reformas educacionais que se fizeram necessárias na segunda metade do século XX não responderam às exigências da escola de massas.

Outro sentido atribuído à interdisciplinaridade é a noção de fronteira. Pombo (2004, prefácio) constata que a interdisciplinaridade surgiu com dois objetivos específicos: sancionar a diluição das fronteiras entre as disciplinas e favorecer a transversalidade entre os conhecimentos. Em meados do século XX, o avanço científico-tecnológico reclamou do contributo da interdisciplinaridade e da integração dos saberes em substituição ao modelo analítico das especialidades que não respondia mais ao novo momento da ciência. A interdisciplinaridade se impôs como um passaporte universal, não apenas no campo da educação, mas também no meio empresarial. No entanto, nesses meios, ainda se faz dela uma utilização selvagem, caricatural, a partir de uma mesma ideia: juntar pessoas de diferentes áreas do conhecimento para conversar à volta de uma mesa ou em círculo. Na concepção de Pombo (2004, p. 13), isso tem a ver com “disciplinaridade” e demonstra a incapacidade de ultrapassar os próprios princípios discursivos, as perspectivas teóricas e os modos de funcionamento com os quais fomos formados. As práticas interdisciplinares não anulam as disciplinas. Os conhecimentos disciplinares são necessários para produzir resultados baseados em critérios de cientificidade, de modo que os conteúdos e os métodos de investigação constituam uma teoria geral em benefício das disciplinas. A interdisciplinaridade traz a ideia de criação a partir dos dados disponíveis em contraponto à transmissão de saberes e da produção da ciência na carreira solo em laboratórios de pesquisa.

O currículo interdisciplinar, que preserva as disciplinas, remete à necessidade de delimitar um conceito inicial de interdisciplinaridade. Comumente associa-se à ideia de integração, pluridisciplinaridade, multidisciplinaridade e transdisciplinaridade. Pombo (2004, p. 14) parte da hipótese de que a interdisciplinaridade é um fenômeno decisivo na pesquisa contemporânea porque o modelo analítico da ciência, de dissecar as partes para construir o todo, hoje, se mostra insuficiente. Na especialização, o que um grupo faz desconhece e ignora a produção de outro. Isso acirra a competitividade entre os interesses particulares e retira as benesses da articulação e do cruzamento de outros saberes científicos em benefício da pesquisa. A ciência nasceu na pólis grega, acrescenta Pombo (2004, p. 16), do diálogo na praça pública, visando à racionalidade de seus resultados. A patentificação de áreas de investigação ameaça destruir a própria ideia de ciência como saber democrático e universal, uma vez que as patentes não se restringem a novas aplicações tecnológicas e aos resultados obtidos, mas também a toda área selecionada e sua metodologia de pesquisa.

Constata Pombo (2004, p. 17) que as pesquisas em simultâneo laurearam todos os cientistas em suas descobertas, os quais viram seu nome ligado para sempre à designação de uma lei. A comunidade científico-atual demarca o projeto de investigação antes de haver resultados, o que dificulta e inviabiliza as descobertas simultâneas, o caráter democrático da ciência. Fatores como a prática do plágio e o investimento de altos custos financeiros de uma ciência - dependente de equipamentos de ponta e de financiamentos escassos - motivam os investigadores a garantir lucros de suas descobertas futuras, restringindo a pesquisa científica a espaços ainda inacessíveis à maioria da população e ao professorado da escola pública. A face truncada da pesquisa leva os programas de formação docente e da Educação Básica a continuar com a dinâmica de reprodução do saber compartimentado e distanciado da cultura científica.

A interdisciplinaridade se apresenta como contraponto ao “silêncio do investigador-funcionário” que garante o segredo da investigação, tão necessário às patentes antecipadas, pois “[a ciência] depende da fecundação recíproca de diversas disciplinas, da transferência de conceitos, problemas e métodos [e somente] essa abertura vai permitir aceder a camadas mais profundas da realidade que se quer estudar”. (POMBO, 2004, p. 18). Complementam Fávero, Tonieto e Consaltér (2018, prefácio) que essa nova visão da ciência induz a “qualificar conhecimentos, objetos, métodos, práticas e sujeitos interdisciplinares”. O mundo pós-moderno exige flexibilidade e disposição ao aprendizado contínuo, capacidade de atuar de modo colaborativo e interdisciplinar e perceber o que ainda não foi criado ou possa ser melhorado. O conceito de trabalho foi reformulado, e a noção de aprender técnicas que sejam aplicáveis em uma carreira estável soa como algo ultrapassado. Por essa ótica, a sobrevivência da Filosofia, no contexto interdisciplinar, implica uma constate revisão e atualização permanente do conhecimento que se renova continuamente.

Considerações finais

O contexto histórico nos coloca fatalmente em contato com a interdisciplinaridade pela rapidez com que as informações são veiculadas e pela interferência das tecnologias nas tarefas mais elementares do cotidiano. Na cultura pós-moderna, a educação formal interage com espaços que extrapolam o locus escolar. O excesso de dados que nos atinge diariamente dificulta sua análise, e o que é dito tende a ser aceito como verdadeiro. No mundo regido pelas tecnologias, as humanidades perdem terreno para as ciências naturais e exatas, sobretudo a Filosofia, constituindo um paradoxo quando as habilidades de problematização, análise e sistematização se mostram necessárias tanto na esfera do conhecimento quanto nas relações sociais em que o compartilhado instantaneamente não é verificado em suas fontes.

A ideia de unicidade e visão de conjunto atribuída à Filosofia, que justifica sua conotação com interdisciplinaridade, não é suficiente para transpor sobre o que versa a legislação aos currículos e às práticas em sala de aula. O primeiro obstáculo é de ordem conceitual, de dificuldade de compreensão acerca do que é interdisciplinaridade e Filosofia, tendo em vista que as escolas brasileiras não contaram com a regularidade do ensino filosófico na Educação Básica, e a interdisciplinaridade entrou nos currículos como objeto estranho. O segundo problema é de cunho formativo, ou seja, poucas escolas contam com docentes com formação filosófica em seus quadros, e os programas de formação docente ainda são disciplinares. Por fim, no universo regido por tecnologias, a construção de uma cultura interdisciplinar se mostra necessária para fazer frente ao modelo disciplinar, fragmentado e centrado nas ciências naturais e exatas.

Em meados do século XX, a ciência se refez em múltiplas configurações e arranjos; deixou de ser vista como linear, a partir da noção de que o todo é igual à soma das partes, predominante no pensamento analítico. Perante transformações epistemológicas profundas, a ciência passou a exigir um olhar transversal, a reclamar o contributo da interdisciplinaridade e da integração dos saberes. Nas palavras de Pombo (2004), as relações cognitivas com o mundo já não se aplicam a projetos particulares. Não é possível definir, com precisão, o que é simples e o que é complexo. Observa-se que quanto mais fina for uma análise, maior será a complexidade de elementos implícitos. Os saberes se inserem num movimento que transforma o mundo para além de nossas vontades e projetos. Na era digital, as informações estão disponíveis em toda parte, em diferentes meios e formas de registro, acessados, inclusive, por crianças não alfabetizadas. Desde a Educação Básica, a formação não é mais exclusividade da escola. Através de uma imagem ou cantiga, a criança já entende a mensagem transmitida.

A organização curricular não acompanhou as demandas da ciência e, nesse contexto, a Filosofia potencializa a interdisciplinaridade a partir da dimensão teórico-prática. No retorno aos clássicos filosóficos, é possível estabelecer vínculos com a base das outras disciplinas e recompor o percurso da construção do conhecimento. O filosofar, na comunidade de investigação, contribui com a formação de sujeitos interdisciplinares no desenvolvimento de habilidades raciocínio lógico, problematização, análise e síntese e na transferência dessas habilidades de para o estudo de conteúdos de outras disciplinas. O tema interdisciplinaridade carece de teorias que sirvam de aporte às práticas no cotidiano escolar, sendo relevante na pesquisa educacional. Quando associada à Filosofia, visualiza-se que a interdisciplinaridade será materializada na medida em que haja formação docente na perspectiva interdisciplinar e filosófica, em consonância com os conhecimentos disciplinares específicos, e os currículos sejam planejados de modo a consolidar uma cultura interdisciplinar nas escolas.

Para encerrar, trazemos três indicativos apresentados por Fávero, Tonieto e Consaltér (2018, p. 11-21). Em primeiro lugar, é necessário que os educandários organizem currículos interdisciplinares desde os programas de formação docente; em segundo lugar, é fundamental criar condições para que esses currículos proporcionem a formação de sujeitos interdisciplinares, capazes de estabelecer conexões entre os saberes. Por fim, a interdisciplinaridade é um complexo e potente campo de conhecimento ainda em construção, e, por isso, necessita ser constantemente revisitado, a fim de que se torne cultura escolar.

Referências

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1Lipman e seus colaboradores criaram, no final da década de 60 do século passado, na Universidade de Colúmbia, nos Estados Unidos, um Programa de Filosofia para Crianças. Oliveira explica que “Lipman dava aulas de “Introdução à Lógica” na Universidade de Colúmbia, e esse programa surgiu a partir do mencionado ano de 1969, como fruto de suas reflexões e preocupações como professor: os alunos universitários realmente pensariam melhor se aprendessem lógica? Não seria um pouco tarde demais para isso? Na realidade, não é fato desconhecido que os alunos, em geral, chegam aos estudos universitários com uma deficiência muito grande em habilidades básicas, tais como: ler, escrever e calcular. O que fazer? Pensou que as pessoas deveriam começar a aprender a pensar ainda crianças, mas aprender a pensar bem”. (OLIVEIRA, 2004, p. 45, grifo da autora).

Recebido: 03 de Novembro de 2011; Aceito: 13 de Janeiro de 2019

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