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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.24  Caxias do Sul  2019  Epub 31-Jul-2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v24.e019008 

ARTIGOS

A experiência estética e a formação humana numa perspectiva monista em Dewey

The aesthetic experience and human development from a monistic perspective in Dewey

Angelo Vitório Cenci* 
http://orcid.org/0000-0003-0541-2197

Aline Franciele Morigi** 
http://orcid.org/0000-0001-9067-3716

* Doutor em Filosofia pela Unicamp. Professor no Programa de Pós-Graduação em Educação e no curso de Filosofia da Universidade de Passo Fundo (UPF). E-mail: angelovcenci@gmail.com

** Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Passo Fundo (UPF). E-mail: alinefmorigi@gmail.com


Resumo

O presente artigo trata da relação entre experiência estética e formação humana a partir da abordagem de John Dewey e tem como objetivo demonstrar as contribuições da experiência estética à formação humana, a partir da perspectiva monista desse autor. Para dar conta desse propósito, tomamos como referência principal a sua obra Arte como experiência e, como complementares, Democracia e Educação, experiência; Educação e Vida e educação. O artigo aborda, inicialmente, a relação entre a experiência estética e o papel da imaginação para, em um segundo passo, tematizar a contribuição da experiência estética à educação compreendida como formação em uma perspectiva monista.

Palavras-chave: Experiência estética; Formação humana; Arte; Educação

Abstract

This paper addresses the relation between aesthetic experience and human development from John Dewey’s approach and is aimed at showing the contributions of the aesthetic experience to human development from a monistic perspective by that author. In order to meet such aim, Dewey’s Art as experience was taken as the main reference, and Democracy and education; Experience and education, and Life and education were studied as complementary references. The paper initially addresses the relation between the aesthetic experience and the role of imagination and, next, questions the contribution of the aesthetic experience to education conceived as development from a monistic perspective.

Keywords: Aesthetic experience; Human dev elopment; Ar t; Education

Introdução

No contexto atual, aspectos como: consumismo, competição desenfreada, dificuldade em conviver com a pluralidade e as diferenças, separação entre arte e vida, fragmentação e mercantilização das relações humanas, entre outros, expressam-se como reflexos dos dualismos que afetam, de forma marcante, a vida humana. Soma-se a isso uma perda do refinamento das relações humanas e, por vezes, o avanço, nelas, da frieza e do enfraquecimento do senso de humanidade e, pois, também, do sentido da arte de viver. Embora publicada pela primeira vez em 1934, há quase um século, a obra Arte como experiência tem um alcance extremamente atual para, pelo viés da experiência estética e do postulado da unidade entre arte e vida, pensarmos nessas e em outras questões que afetam a vida do homem contemporâneo. O esforço claro de Dewey é recuperar a continuidade (outrora existente) entre experiência estética e processos normais da vida cotidiana. Nesse rol de questões, podem ser inseridas as educacionais.

A concepção de experiência estética de Dewey possibilita compreender as experiências dos sujeitos - em um contexto ainda marcado por dualismos - na perspectiva de um enriquecimento de tais experiências e, desse modo, sob um prisma formativo. Tal concepção possibilita tematizar uma concepção monista da arte e um produtivo conceito de experiência estética, lançando luzes para romper os obstáculos gerados pelos dualismos ainda tão presentes na vida humana. Tomando por base a concepção deweyana de experiência estética, o presente artigo tem como objetivo indicar as contribuições dessa à formação humana entendida como questão educacional. Com esse intuito, pretendemos mostrar que o monismo estético de Dewey está na base da ideia de experiência estética, enriquecedora da experiência e da formação humanas. O artigo aborda, inicialmente, a relação entre experiência estética e o papel da imaginação para, na sequência, indicar a contribuição da experiência estética à educação compreendida em perspectiva monista e como formação humana.

1 A experiência estética e o papel da imaginação

A experiência estética pode ser definida como o “desenvolvimento esclarecido e intensificado de traços que pertencem a toda experiência normalmente completa” (DEWEY, 2010, p. 125), ou seja, não existe outro fundamento que alicerce tal experiência senão o fato de a arte ser um produto da interação contínua e cumulativa de um eu orgânico com o mundo. Para Dewey, a experiência humana resulta da adaptação do homem ao ambiente em que está inserido. Isso ocorre mediante constantes desequilíbrios e reequilíbrios. Essa dinâmica implica tanto resistências quanto esforços ativos de reestabelecimento de novos equilíbrios, o que leva a novas e mais completas dinâmicas relacionais. É justamente tais dinâmicas que possibilitam experiência estética: “Pelo fato de o mundo real, este em que vivemos, ser uma combinação de movimento e culminação, de rupturas e reencontros, a experiência do ser vivo é passível de uma qualidade estética. O ser vivo perde e restabelece repetidamente o equilíbrio com o meio circundante”. (DEWEY, 2010, p. 80). Dewey compreende que a harmonia interna só pode ser alcançada pelo sujeito quando esse consegue chegar a novas adaptações ou a um novo equilíbrio.

Conforme destaca Duarte, a intenção de Dewey é apelar

à importância de uma recuperação da relação de continuidade entre a obra de arte, perspectivada enquanto forma de experiência intensificada do real, e o conjunto de acontecimentos e vivências que cada um de nós reconhece como constituindo, no seu sentido mais amplo e geral, a experiência humana. (2017, p. 161).

Dewey introduz o conceito de estética ao explicitar o conhecimento das experiências comuns dos sujeitos na interação com aspectos que promovam a integralidade da experiência:

As flores podem ser apreciadas sem que se conheçam as interações entre o solo, o ar, a umidade e as sementes das quais elas resultam. Mas não podem ser compreendidas sem que justamente essas interações sejam levadas em conta - e a teoria é uma questão de compreensão. A teoria interessa-se por descobrir a natureza da produção das obras de arte e do seu deleite para a percepção. (2010, p. 73, grifo do autor).

Dewey (2010) afirma que, dificilmente, é possível direcionar o crescimento das plantas, porém, é preciso entender que a experiência estética é diferente do puro prazer pessoal, pois a compreensão - que é distinta de tal prazer -, no caso do crescimento das plantas, parte do solo, do ar e da luz, depende de um conhecimento vinculado à interação entre tais elementos. A compreensão é o que torna uma experiência completa, ou seja, estética.

Para Dewey

uma experiência estética só pode compactar-se em um momento no sentido de um clímax de processos anteriores de longa duração se chegar em um movimento excepcional que abarque em si todas as outras coisas e o faça a ponto de todo o resto ser esquecido. O que distingue uma experiência como estética é a conversão da resistência e das tensões, de excitações que em si são tentações para a digressão, em um movimento em direção a um desfecho inclusivo e gratificante. (2010, p. 139).

Isso quer dizer que a experiência estética é aquela que, a partir da união dos valores de uma experiência, permite uma sensação plena, conclusiva, de modo que, quando ocorre, chama a atenção, é diferente das outras é, pois, dotada de um valor único. Em outras palavras, é o acontecimento que se dá de forma mais intensa ou até mesmo insignificante, que conduz o sentido da experiência estética. Ela é assim considerada porque possui uma característica singular. Isso quer dizer que a situação que faz com que uma experiência seja única - a ponto de remeter a expressões como “aquela refeição” ou “aquela tempestade” - constitui a unidade formada por uma qualidade particular de toda experiência no sentido integral.

A experiência, em sentido vital, refere-se aos episódios a que nos reportamos de maneira espontânea, como “experiências reais”, as quais, ao recordá-las, afirmamos: “Isso é que foi experiência”, algo a que atribuímos uma “tremenda importância”. (2010, p. 110). Nessas experiências, cada situação que está por vir acontece sem que haja interrupções ou vazios, uma vez que, à medida que uma experiência “leva a outra e que uma parte dá continuidade ao que veio antes, cada uma ganha distinção em si. O todo duradouro se diversifica em fases sucessivas”. (2010, p. 111). Isso significa que, quando existe a continuidade das experiências dos sujeitos, não é possível existir lacunas, ou centros mortos, caracterizando-se, assim, tais experiências como singulares.

A experiência é considerada estética somente quando pode relacionar- se com situações anteriores em um movimento singular. Em tal tipo de experiência, “cada parte sucessiva flui livremente, sem interrupção e sem vazios não preenchidos, para o que vem a seguir”. (2010, p. 111).

Dewey (2010) entende que o que vem a ser o contrário do conceito de estético é o que se refere, por exemplo, às convenções estabelecidas no convívio social ou, ainda, que vive o desperdício e a falta de coerência. Tais aspectos são contrários à unidade com que deve ser nutrida toda experiência. Por essa razão, entende que não poderiam ser considerados como “inimigos do estético” nem a figura do prático, nem a do intelectual. Diferentemente, por inimigos, devemos entender “a monotonia, a desatenção para com as pendências, a submissão às convenções na prática e no procedimento intelectual”. (2010, p. 117). Em síntese, o que é considerado, por Dewey, uma experiência completa, na experiência de sentir e perceber, vem estabelecer a singularidade do belo ou do estético na arte.

Vale salientar que o estético não é automaticamente sinônimo de belo, pois tudo o que é considerado singular ou estético tem qualidades imediatas que se elevam muito acima do limiar da percepção e se torna manifesto por si mesmo, especialmente pela sensação de prazer possibilitada ao sujeito, permitindo que a experiência torne-se significativa ou valiosa. Nesse caso, trata-se da constituição de uma experiência que vale a pena como tal, podendo, também, proporcionar relações permeadas por harmonia e ordem. Tais relações constituem a completude do viver e, pois, a experiência integral do fazer e perceber. Quando dotada de imaginação - com a qual é possível haver uma reflexão sobre os fatos que se apresentam -, tal experiência poderá auxiliar no direcionamento e na transformação dos hábitos que constituem as condutas do sujeito.

Dewey (2010) entende que a imaginação dá-se pelo modo de observar e sentir as coisas, o que vem a compor uma experiência integral, também podendo ser manifestada pelos diferentes interesses do sujeito quando sua mente entra em contado com o meio em que vive. No contexto educacional, a falta de imaginação traz reflexos negativos e se assemelha ao problema do imitador, por isso, o autor argumenta:

O problema do imitador acadêmico não é ele depender das tradições, e sim estas não lhe haverem penetrado na mente, na estrutura de suas maneiras de ver e criar. Elas permanecem na superfície, como truques de técnica ou sugestões e convenções alheias quanto ao que é apropriado fazer. (DEWEY, 2010, p. 459).

Conforme Dewey (2010), quando os sujeitos simplesmente condicionam sua percepção, além de ficarem dependentes de um sistema tradicional, não aumentam a possibilidade de ver e criar, ou seja, nesse caso, há um empobrecimento do uso de sua imaginação.

Dewey entende que uma experiência é considerada imaginativa quando materiais que têm características de qualidade sensorial, emocional e repletos de significados unem-se, marcando, assim, a criação de algo novo no mundo. Nas obras de arte, é possível perceber a união desses materiais, permitindo, desse modo, encontrar a verdadeira natureza da imaginação:

A visão imaginativa é a força que unifica todos os componentes da matéria de uma obra de arte, fazendo deles, em toda a sua variedade, uma totalidade. Mas todos os elementos do nosso ser, exibidos em ênfases especiais e realizações parciais em outras experiências, se fundem na experiência estética. E se fundem tão completamente na totalidade imediata da experiência que cada um deles é obscurecido: não se apresenta na consciência como um elemento distinto. Todavia, [...] a própria imaginação é vista não como aquilo que une todos os outros elementos dispersos, mas como uma faculdade especial. (DEWEY, 2010, p. 472-473).

Para que uma experiência aconteça, é necessário que a imaginação, os sentimentos e as ideias do sujeito estejam relacionados com o objeto. Isso quer dizer que tais aspectos devem estar presentes na qualidade que vem a constituir a experiência do objeto. De acordo com Dewey, “toda experiência direta é qualitativa, e as qualidades são o que torna a própria experiência de vida diretamente preciosa”. (2010, p. 501). No momento em que as experiências de vida vão se desenvolvendo, as ações passam a ser conduzidas por um ideal que deverá ser atingido e, assim, vão se estabelecendo regras, que se transformam em um jogo.

Segundo Dewey (2010), toda a experiência estética é dotada de imaginação, e essa, assim como toda experiência consciente, tem qualidade imaginativa.

Tal situação só ocorre porque, embora

as raízes de toda experiência se encontrem na interação do ser vivo com seu meio, essa experiência só se torna consciente, objeto da percepção, quando nela entram significados derivados de experiências anteriores. A imaginação é a única via pela qual esses significados podem chegar a uma interação atual; ou melhor, como acabamos de ver, o ajuste consciente entre o novo e o velho é a imaginação. (2010, p. 469, grifo do autor).

De acordo com o autor, pode-se afirmar que o sujeito forma novas experiências na interação com o meio e na retomada dos significados observados em experiências anteriores, o que é tornado possível pela presença da imaginação.

Dewey argumenta que

a experiência imaginativa exemplifica, de modo mais pleno que qualquer outro tipo de experiência, o que é a própria experiência em seu movimento e estrutura. [....] Pois a arte é a fusão, em uma mesma experiência, da pressão das condições necessárias sobre o eu e da espontaneidade e ineditismo da individualidade. (2010, p. 484).

De acordo com Dewey (2010), a imaginação não pode ser desassociada da experiência, uma vez que ela faz parte de sua composição. As experiências consideradas singulares, diferentemente daquelas em que há dispersão, interrupção ou inconclusão, são completas, quando “o material vivenciado faz o percurso até sua consumação”. (DEWEY, 2010, p. 109). “Essa experiência é um todo e carrega em si seu caráter individualizador e sua autossuficiência”. (2010, p. 110). Tais experiências são como as evidenciadas na cultura grego- clássica. Nessa, a título de exemplo, a escultura era considerada superior à arquitetura, pois tinha um diferencial que era o trabalho com a figura humana; já a pintura era trabalhada com formas e figuras que se aproximavam da metafísica. Pela literatura, elevava-se à ideia essencial do próprio ser humano, atingindo, assim, o auge dos resultados da vontade, especialmente por se projetar, através das letras, o real ou o imaginário, possibilitando ao sujeito até mesmo o impossível.

As experiências vividas somente são consideradas humanas e conscientes na medida em que são ampliadas por significados que não se encontram na realidade, mas na imaginação dos sujeitos. A arte manifesta-se por meio da mente imaginativa, pois, embora seja a mais direta e integral forma de experiência, proporciona uma regulação das aventuras que envolvem a imaginação, que se constitui em uma condição necessária para que exista significação, desenvolvimento e integralidade nas experiências dos sujeitos.

2 Experiência estética e educação como formação em perspectiva monista

Dewey compreende a experiência estética como base da educação humana, na medida em que vincula aspectos como a imaginação e os princípios da experiência. O autor alega que a arte é considerada um âmbito que propicia valor à educação e traz equilíbrio às experiências realizadas pelos sujeitos, de modo a desenvolver o sentimento de tolerância, liberdade e autonomia, permitindo lapidar sua formação e auxiliar na construção de sua vida. A arte, como apontado, é considerada por Dewey um meio de experimentação, de modo que a experiência é determinada pelas condições que envolvem a formação do ser humano.

Para Dewey a experiência sempre é resultante da interação operada entre uma criatura viva e seu meio. O autor destaca que a “experiência é a arte em estágio germinal”. (2010, p. 84). A interação desses dois aspectos - sujeito e seu meio - constitui a experiência total vivenciada, e o encerramento, quando bem-sucedido, conduz a uma harmonia a ser sentida. (2010, p. 122). Conforme Dewey, a experiência que possui uma percepção plena, com a união de valores, torna-se arte, e a arte integra a experiência na interação do sujeito com o ambiente. Por sua vez, “a harmonia interna só é alcançada quando se chega, de algum modo, a um entendimento com o meio”. (2010, p. 80). Como destacam Reis e Bagoli, em Dewey, “a compreensão da experiência estética verdadeira passa pela consideração de seu (‘estado bruto’) quanto às formas de ver e ouvir como geradoras de atenção e interesse”. (2011, p. 315, grifo dos autores). A arte ocorre por múltiplas formas e modos de percepção que podem ser identificados desde o regar as plantas do jardim por uma dona de casa até a observação das chamas de uma lareira. Nesse sentido, nada mais distante da perspectiva deweyana que a arte segregada da vida humano-cotidiana, elevada em um pedestal como obra de arte. Para Dewey, a separação entre arte (como experiência) e vida, separação que gerou a dessacralização da arte, foi agravada pelo capitalismo. Nesse, o museu converteu-se no “lar adequado” para as obras de arte, e essas foram separadas da vida comum, cotidiana. A ruptura do vínculo das obras de arte com seus respectivos contextos de origem foi o fator que levou à constituição de um “abismo entre a experiência comum e a experiência estética”. (2010, p. 69).

Dewey considera que os “lugares-comuns biológicos” são as raízes da estética na experiência, e essa resulta de um processo de adaptação mediante o qual a vida procura sua expansão. Nesse sentido, a arte vem a ser o resultado da interação do sujeito com seu meio, de modo que se apropria das condições existentes com o objetivo de desenvolver e ampliar a própria vida. Quando há continuidade na experiência, não é possível haver separação entre sujeito e vida, e o sujeito é levado a aperfeiçoar suas experiências tomando como referência o passado para a construção e o desenvolvimento de atitudes posteriores de maneira mais rica.

Como refere Kaplan, para Dewey a arte tem a função de mediar “‘o passado teimoso e um futuro insistente’, ajudando ‘a dar à luz o mundo [...] ainda não nascido’” (2010, p. 46, grifos do autor), pois permite aceitar a vida em todos os seus anseios e surpresas, assim como desvendar os véus que ocultam a expressividade das vivências. A arte possibilita, assim, que os sujeitos descubram o prazer de experimentar o mundo à sua volta, em suas qualidades e diferentes formas, bem como nos processos que estabelecem as relações, sem a presença de dualismos. Aliás, o problema do dualismo é central para Dewey, justamente por afetar diferentes dimensões da vida humana. Os dualismos fragmentam a experiência vivida na forma de oposição entre pensamento e emoção, indivíduo e meio social, arte e vida, etc. Esses dualismos, que constituem o núcleo da metafísica desde Platão, afetam diretamente não só a arte, mas também a própria Pedagogia:

A história da teoria da educação está marcada pela oposição entre a ideia de que a educação é desenvolvimento de dentro para fora e a de que é formação de fora para dentro; a de que se baseia nos dotes naturais e a de que é um processo de vencer as inclinações naturais e substituí-las por hábitos adquiridos sob pressão externa. (DEWEY, 1979, p. 3).

Dewey entende que, de sua parte, a arte pretende romper com os dualismos que são vivenciados pelos sujeitos, que dissociam arte e vida e trazem o empobrecimento da experiência. A intenção de Dewey é “recuperar a continuidade da experiência estética com os processos normais do viver”. (2010, p. 70). Conforme destaca Duarte, comentando essa problemática enfrentada por Dewey,

o objeto artístico (seja um romance, uma pintura, ou um edifício) é habitualmente concebido como um objeto cuja existência se encontra, de algum modo, separada da experiência do homem. Esta concepção será tanto mais notória quanto maior é o prestígio e a admiração construídos em torno da obra de arte que, por via de uma longa história e de discursos estabilizados, adquire o estatuto de obra clássica. A obra clássica torna-se, assim, um produto isolado não só das condições humanas que lhe deram origem, como também da experiência efetiva do sujeito e das implicações no contexto real em que aquele é recebido e considerado. (2017, p. 161).

A arte, em perspectiva monista, ajuda também a desenvolver a individualidade dos sujeitos na maneira de observar o mundo. Ela permite contemplar a qualidade da experiência porque possibilita dar continuidade àquilo que é vivido pelos sujeitos. A unidade das experiências é o que constitui a perspectiva monista de Dewey, que tem o papel de unificar os valores, dentre eles, a imaginação e os princípios da experiência - continuidade e interação -, bem como possibilitar o desenvolvimento de experiências mais significativas. Em outras palavras, a arte viabiliza envolver os aspectos que tornam uma experiência completa, permitindo reunir a significação, a ordem e o equilíbrio, a empatia, o prazer, bem como o sentimento de felicidade nas experiências dos sujeitos.

A criação e o prazer são considerados por Dewey (2010) elementos humanos que permitem ao sujeito perceber a beleza que existe na vida, bem como compreender os sentimentos de outras pessoas. Na perspectiva de Dewey (2010), quando uma experiência é singular ou estética, existe um desenvolvimento muito maior da percepção, o que possibilita ao sujeito vivenciar sensações de prazer, aprimorar a sensibilidade, bem como estabelecer a harmonia consigo mesmo. A estética compreende ver e sentir os acontecimentos na medida em que eles constituem a totalidade que existe em uma experiência. Dewey entende que a experiência, quando é finalizada, transmite uma sensação de completude nos sujeitos, pois envolve a vida e se pode dizer, a própria vida converte-se em experiência.

O filósofo compreende o mundo como algo integrado em um todo e postula que a harmonia só se efetiva quando o sujeito tiver atitudes que demonstrem uma sintonia com o seu meio. Ele considera a arte como característica de um todo que pertence a algo maior, sendo que esse todo compreende o mundo do qual os sujeitos fazem parte. A arte, inserida em tal compreensão, trazia, entre outras contribuições, o refinamento do caráter e pode efetivar-se na medida em que os sujeitos passem a viver experiências mais equilibradas, nas quais o pensamento e os sentimentos estejam unidos de maneira integral. Nesse viés, a arte poderia, no ambiente educacional, promover maior envolvimento dos educandos, bem como a expressão e o aprimoramento dos impulsos e dos conflitos que a vida apresenta, pois ela auxilia na criação da própria vida daqueles.

A arte é entendida por Dewey como um ato de criar, fazer ou produzir; já a estética é tomada como um ato de percepção, apreciação e prazer de modo que as sensações são indissociáveis do ato criativo. A qualidade conferida pela experiência estética ocorre quando o sujeito é capaz de se modificar e de se adaptar às experiências de acordo com seus anseios e desejos ou, ainda, de acordo com a necessidade do contexto em que está inserido o que requer criatividade. A experiência é considerada um processo contínuo em que o sujeito passa a refletir, bem como a modificar a si mesmo.

Dewey lembra que a educação, além de uma qualidade racional, também é estética, podendo ser uma arte que envolve a reorganização e a reformulação de experiências passadas dos sujeitos diante dos problemas presentes e das possibilidades de enfrentar o futuro. A estética, nesse sentido, é considerada relativa, pois depende da percepção e do olhar do sujeito que recebe influência de seu meio e de suas vivências que são singulares a cada um. O sujeito, ao vivenciar a experiência estética, amplia seus sentidos por meio da percepção. Porém, a percepção requer um aprendizado, e esse implica vincular-se com os diversos fatores e circunstâncias da vida. Sem o desejo de continuar a aprender, o sujeito perde a capacidade de apreciar a vida, de perceber o valor das coisas que existem em seu meio, bem como de utilizar o que aprendeu ou de extrair lições às dificuldades que irão se apresentar, entre elas, de relacionamento com os demais.

Dewey (2010) considera que muitas pessoas sofrem por não desenvolver as habilidades de expressão, o que muitas vezes vem desencadear rupturas internas, e isso quer dizer que podem ocorrer cisões entre os sentimentos e os pensamentos. Tais rupturas podem ser evitadas pela presença da imaginação, já que essa tem o papel de unificar a razão e a emoção. Dewey (1959a) entende que as crianças devem utilizar sua imaginação em todas as interações que envolvem a vida e, nesse aspecto, as brincadeiras constituem uma das formas para seu cultivo. O brincar permite desenvolver o interesse e o desejo por algum objeto, explicitando os sentimentos que compõem a experiência estética.

Dewey (1959a) considera que um resultado educativo é um subproduto dos brinquedos e do trabalho. Todavia, o trabalho que se realiza tanto em nível educacional quanto em outras áreas, tende a receber, cada vez menos, o emprego de sentimentos e da imaginação dos sujeitos, perpetuando-se, assim, cada vez mais, atitudes maquinais. Nesse caso, passa a existir uma separação entre experiência e vida. Nessa separação, o sujeito não encontra sentido no que está sendo desenvolvido, o que leva a um empobrecimento da experiência. Porém, assevera o autor, “em qualquer atividade em que o ser humano se empenhe com interesse, há sempre uma expansão de impulsos e tendências, por certo período de tempo, de que resulta algum crescimento”. (DEWEY, 1978, p. 86).

Dewey (1959a) pontua que, quando as crianças podem transformar seus impulsos como se fossem jogos, conduzindo suas ações permeadas de prazer e interesse, sua ida à escola torna-se motivo de alegria, de modo que a aprendizagem faz-se mais fácil, deixando de ser um fardo. Essa integração reduz a separação entre a vida e a escola. Os jogos, nessa concepção, permitem também diminuir a rudeza que se perpetua na vida dos sujeitos, os quais devem ser inseridos na educação, especialmente por auxiliarem no cultivo da imaginação, bem como por trazerem consideráveis progressos aos desenvolvimentos moral e mental dos sujeitos. A atividade artística cumpre essa exigência que está atrelada aos jogos, trazendo também benefícios à saúde e ao caráter dos envolvidos.

O apreço dos sujeitos, ou seja, o interesse, só acontece quando as experiências são significativas e, para que tais experiências proporcionem prazer, devem estar relacionadas com a vida. Uma das contribuições da arte para a formação dos sujeitos é fazer com que eles, além de cultivar a sensibilidade, sintam a si mesmos. A arte permite enriquecer as experiências e entender a vida nas suas situações inesperadas, bem como pode desenvolver o cultivo da expressividade e do prazer por viver a vida com todas as qualidades que ela apresenta.

A experiência, como mencionado, somente pode ser desenvolvida ou ampliada por meio da imaginação. Nesse cenário, a imaginação é considerada por Dewey (1959a) como o meio para que os sujeitos desenvolvam a apreciação de qualidade estética que faz parte de toda experiência integral. A imaginação é considerada a única maneira de deixar que uma atividade deixe de ser mecânica. Ademais, ela permite vivenciar a experiência dos outros sujeitos e é pela comunicação que pode se enriquecer a imaginação, bem como lançar luzes às experiências. A comunicação é considerada por Dewey o meio que permite possuir coisas comuns.

Na visão do autor, a

comunicação é educação. Nada se comunica sem que os dois agentes em comunicação - o que recebe e o que comunica - se mudem ou se transformem de certo modo. Quem recebe a comunicação tem uma nova experiência que lhe transforma a própria natureza. Quem a comunica, por sua vez, se muda e se transforma no esforço para formular a sua própria experiência. Há assim uma troca, um mútuo dar e receber. (1978, p. 19, grifo do autor).

Através da comunicação, o sujeito pode receber uma informação e, depois, transformá-la de acordo com suas próprias vivências, de modo que quem comunica sofre o mesmo processo de maneira recíproca. Pela comunicação também se efetiva o princípio de continuidade entre o passado e o futuro, principalmente por meio da formação de novas gerações, em um contexto em que passa haver remodelação dos antigos hábitos de pensar e agir, viabilizando uma aproximação das relações entre os sujeitos. Nessa perspectiva, a arte é considerada a mais significativa forma de comunicação. Pela arte, na visão de Dewey, “somos levados para além de nós mesmos, a fim de encontrarmos a nós mesmos”. (2010, p. 351). Além disso, ela permite uma clareza e uma sensação maior desse todo indefinido, que Dewey entende ser uma extensão dos próprios sujeitos.

Contradizendo a postura de que não há algo tão inútil quanto a arte, Dewey entende que essa consiste na maior realização intelectual da história da humanidade. A arte é definida, então, como “a prova viva e concreta de que o homem é capaz de restabelecer, conscientemente e, portanto, no plano do significado, a união entre sentido, necessidade, impulso e ação que é característica do ser vivo”. (DEWEY, 2010, p. 93). Já a experiência estética permite conviver com as imperfeições da vida, possibilitando a sensação prazerosa das vivências dos sujeitos, pois integra o pensamento e os sentimentos. Essa integração gera a sensação de harmonia nas condutas, tornando a vida mais valiosa, conferindo, também, a sensação de plenitude aos sujeitos.

O desenvolvimento da experiência estética permite ao indivíduo harmonizar-se com seus próprios anseios, na relação com os demais e com o mundo como um todo. Nessa perspectiva, a estética refere-se à capacidade crítica e criadora do homem, contribuindo para a compreensão da própria vida e o desenvolvimento da vida interior. Nesse sentido, a educação é considerada o meio pelo qual pode efetivar-se a reconstrução da experiência, proporcionando o crescimento e o direcionamento das atitudes dos sujeitos com o objetivo de trazer enriquecimento para sua vida. A educação, através dos valores que integram a experiência estética, também pode desenvolver, nos sujeitos, um pensamento crítico, reflexivo, bem como a liberdade para pensar por si próprio. A arte permite que os sujeitos possam remodelar, além de suas ações, o seu próprio eu em si, e o crescimento implica a construção de uma formação mais humana e, consequentemente, melhor.

O processo educativo seria um aliado importante para garantir a integralidade da experiência. A arte, na perspectiva monista, é elo com a continuidade das experiências, bem como fator de integração dos valores dos sujeitos constituídos de imaginação, percepção e harmonia, os quais envolvem os aspectos de ordem moral, intelectual e estética. A possibilidade de integração desses valores é o que faz uma experiência ser integral, a qual deve ser cultivada, de modo a fazer parte da educabilidade dos sujeitos. A arte, ao integrar valores conduzindo à experiência estética, possibilita que as atitudes dos sujeitos sejam permeadas de significado.

A vida seria, então, uma obra de arte, e os sujeitos, os artistas, levando- se em consideração que, para que essa experiência seja repleta de prazer e interesse, é necessário saber integrar os valores que lhe darão o colorido. A educação permite lapidar e desenvolver a arte em sua plenitude. A arte traz a possibilidade de ajudar a transformar o caos em que vive a sociedade contemporânea, assim como os conflitos do próprio sujeito, na medida em que une os valores que tornam uma experiência mais rica.

Considerações finais

Dewey mostra que os dualismos apresentados pela sociedade contemporânea, que perpassam a arte e a educação, são responsáveis pelo empobrecimento das experiências humanas. Tais dualismos também trouxeram prejuízos aos sujeitos, entre eles, a frieza em suas atitudes e a falta de sentimento de harmonia social. Consoante Dewey, os problemas relacionados ao significado da vida humana estão intimamente ligados à separação da inteligência da emoção, podendo-se acrescentar, entre vida e arte.

A filosofia proposta por Dewey envolve o monismo estético, que, através da arte, permite - ao invés de separar arte e vida - desenvolver atitudes estéticas, intelectuais e morais, consideradas pelo autor como obras de arte, pois permitem que o indivíduo cresça de maneira significativa na medida em que pode realizar experiências singulares. Em outras palavras, a arte confere a ideia de unidade e é definida de forma monista por ser responsável por unificar os valores que permitem a continuidade da experiência, bem como os processos que envolvem a própria vida. Ela constitui, portanto, uma experiência e, se experiência é vida, significa que é possível aprendermos com a arte, ou seja, com a nossa própria vida.

A arte, ao integrar a totalidade dos valores que envolvem a experiência, amplia a qualidade dos sentidos, agregando significado às experiências dos sujeitos, especialmente por permitir superar o abismo existente entre o pensar e a realidade, bem como por possibilitar o cultivo de si, a enriquecer a maneira do sujeito de ver o mundo e de se expressar. Quando os sentidos são qualificados, as experiências acontecem de forma mais rica, já que o desenvolvimento da vida só é possível a partir da superação dos dualismos. A educação, na lição de Dewey, é crescimento, desenvolvimento. O crescimento, ou desenvolvimento de um sujeito, implica o resultado de sua interação com o seu meio e da continuidade dessas interações, que, quando acompanhadas de reflexão, possibilitam ao sujeito “dirigir-se a um fim vivido como a consumação de um processo”.

Dewey defende que o desenvolvimento humano é dado pelo conhecimento, mas também pelo sentir, de modo que as atividades devem estar relacionadas e integradas com a vida dos sujeitos, o que vale, sobretudo, aos educandos. Só assim elas proporcionarão prazer e interesse, aspectos fundamentais para que as experiências tornem-se significativas e singulares. Em outras palavras, para que o ser humano transforme, reconstrua e ressignifique suas experiências, ele necessita adquirir novas formas de agir, as quais, para serem efetivadas, dependem de que ele possa aprender a sentir. A sensibilidade é considerada um agente de harmonia às ações, e essa, juntamente com a imaginação, é imprescindível para desenvolver a empatia pelos demais sujeitos. Isso significa que a arte permite que possamos sentir a nós mesmos e o mundo, bem como unir os valores que constituem uma experiência estética.

Em resumo, a experiência estética, a partir de uma perspectiva monista deweyana, contribui à formação humana, especialmente porque, através da arte, possibilita unificar as relações e os aspectos que trazem enriquecimento às experiências dos sujeitos, havendo a possibilidade de superar os dualismos existentes. Talvez, quando a arte for novamente retomada em consonância com as atividades do dia a dia, poderá ser possível aprimorar a sensibilidade que caracteriza o humano como humano, permitindo, assim, cuidar de si e dos outros, aumentando suas possibilidades de ver, ouvir, perceber, criar e imaginar sua vida como uma obra de arte que precisa ser lapidada, desenvolvida e direcionada pela educação. Através da arte, é possível educar, bem como impulsionar ordem e harmonia para as experiências que envolvem a vida. A arte, em outras palavras, contribui ao desenvolvimento do sujeito em si e da sociedade como um todo, podendo também ser considerada veículo da experiência estética, um recurso ao desenvolvimento do sentimento de plenitude na formação humana.

Referências

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Recebido: 18 de Dezembro de 2018; Aceito: 12 de Fevereiro de 2019

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