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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.24  Caxias do Sul  2019  Epub 31-Jul-2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v24.e019009 

ARTIGOS

A voz-práxis dos marginalizados entre estética e política: autoafirmação, resistência e luta em tempos de institucionalismo forte, cientificismo e lógica sistêmica

The voice-práxis of the marginalized between aesthetics and politics: self-affirmation, resistance and struggle in times of strong institutionalism, scientism and systemic logic

* Doutor em Filosofia pela PUCRS. Professor de Filosofia e de Sociologia na Fundação Universidade Federal de Rondônia (Unir). E-mail: <leno_danner@yahoo.com.br>

** Doutor em Filosofia pela PUCRS. Professor de Filosofia no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Rondônia (Unir). E-mail: fernando.danner@gmail.com

*** Doutor em Filosofia pela Université de Paris I - Pantheon Sorbonne. Professor de Ética e Filosofia Política no Departamento de Filosofia e no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-mail: abavaresco@pucrs.br

# Doutoranda em Letras, Área de Concentração - Teoria da Literatura - pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-mail: juliedorrico@gmail.com


Resumo

Criticamos, no artigo, duas exigências fundamentais postas pelo paradigma normativo da modernidade como condição da crítica, da reflexividade e da emancipação, a saber, a racionalização epistemológica dos sujeitos, das práticas e dos valores como critério de justificação e de validade, e o procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal como práxis da fundamentação ético-política. Argumentamos que essas duas exigências teórico-práticas levam a dois graves problemas para uma teoria social-crítica e para uma práxis político-emancipatória relativamente à modernidade: primeiro, sujeitos epistemológico-políticos marginalizados pela modernidade (por exemplo, indígenas e negros) teriam de abandonar a carnalidade e a vinculação ao seu contexto e sua situação de vítimas da modernidade como condição de uma perspectiva crítica ante à própria modernidade como universalismo epistemológico-moral autêntico; segundo, uma perspectiva político-metodológica imparcial, neutral, formal e impessoal conduz tanto à apoliticidade e à despolitização dos sujeitos da fundamentação quanto à correlação de institucionalismo forte, cientificismo e lógica sistêmica, já que, nesse segundo caso, apenas as instituições (desde uma dinâmica lógico-técnica) têm condições de assumir uma atuação e um enquadramento sociais nesses requisitos de imparcialidade, impessoalidade, neutralidade e formalismo. Como alternativa, apontamos à necessidade, por parte das vítimas da modernização, de uma voz-práxis político-politizante, carnal e vinculada, que tem como ponto de partida sua condição de marginalização e sua pertença social e antropológica como base da autoafirmação, da resistência e da luta e que se processa sob a forma de um anarquismo estético-político antissistêmico, anti-institucionalista e anticientificista, aberto, inclusivo e participativo.

Palavras-chave: Modernização; Institucionalismo; Lógica sistêmica; Excluídos; Anarquismo estético-político

Abstract

In the paper, we criticize the two requirements of the normative paradigm of modernity as condition of criticism, reflexivity and emancipation, that is, the epistemological rationalization of the subjects, practices and values as criterion for justification and validity, and the impartial, neutral, formal and impersonal proceduralism as praxis of the ethical-political foundation. We will argue that these two theoretical-practical requirements lead to two serious problems for a critical social theory and an emancipatory political praxis regarding modernization: first, the marginalized epistemological-political subjects by modernity (for example, Indians and Blacks) would have to abandon the carnality and linking to their context and their condition as victims of modernity as fundamental step to a critical perspective in relation to the modernity itself as authentic epistemological-moral universalism; second, an impartial, neutral, formal and impersonal political-methodological perspective conducts both to the apoliticity and depoliticization of the subjects of the foundation, and to the correlation of strong institutionalism, scientism and systemic logic, because, in this second case, only institutions and from a logical- technical dynamics have conditions to assume a social performance and framing from these requirements of impartiality, impersonality, neutrality and formalism. As alternative, we will point to the necessity of a political-politicizing, carnal and linked voice-praxis streamlined as aesthetic-political anarchism by the victims of modernization, which has as its starting point their condition of marginalization as their social and anthropological belonging as basis of self-affirmation, resistance and struggle, a kind of aesthetic-political anarchism which is defined for an anti-systemic, anti-institutionalism and anti-scientist, open, inclusive and participative democratic práxis.

Keywords: Modernization; Institutionalism; Systemic logic; Marginalized; Aesthetic-political anarchism

Considerações iniciais

Neste artigo, defendemos que o paradigma normativo da modernidade, construído pelas teorias da modernidade europeia canônicas (em nosso caso, neste texto, o exemplo de teoria da modernidade europeia canônica será Jürgen Habermas), estabelece a correlação de racionalização epistemológica e formalista e de procedimentalismo imparcial, neutro e impessoal como o caminho metodológico-programático de uma teoria social moderna e como o fundamento político-normativo da práxis crítica e emancipatória, o que significa que esse mesmo paradigma normativo da modernidade exige dos sujeitos epistemológico-políticos da fundamentação e da práxis exatamente a apoliticidade, a despolitização, a desvinculação e a ausência de carnalidade como posturas básico-garantidoras, seja do acordo intersubjetivo, seja, a partir daqui, da fundamentação de uma teoria social e de uma práxis político-críticas, normativamente escoradas. Ou seja, uma teoria social crítica e uma práxis política emancipatória somente seriam possíveis, no paradigma normativo da modernidade, por meio de uma perspectiva metodológico-programática e de um sujeito epistemológico- político apolíticos, despolitizados - imparciais, neutros, formais e impessoais. A politicidade, a criticidade e a reflexividade são fundadas desde essa imparcialidade, neutralidade, formalidade e impessoalidade do método, do conteúdo e do sujeito da fundamentação.

Argumentamos que essa perspectiva leva a um duplo problema. Na relação da modernidade com o outro da modernidade (o europeu versus o índio e o negro, ou a cultura da razão versus o tradicionalismo, como exemplos), o paradigma normativo da modernidade, na intersecção da racionalização epistêmica e de procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal, de antemão nega e deslegitima que a crítica social, o diálogo intercultural e a práxis político-normativa do não moderno diante da própria modernização possam se dar exatamente sob a forma de voz-práxis tradicionalista, religiosa, não moderna, isto é, de voz-práxis político- politizante, carnal e vinculada, o que significa que o sujeito epistemológico- político não moderno tem de se modernizar, de assumir o paradigma normativo da modernidade como autêntico universalismo, se quiser falar, fundamentar e agir justificada e validamente. Na relação dos múltiplos sujeitos epistemológico-políticos modernos ante a própria modernização e, em particular, diante das patologias sistêmicas causadas pelas principais instituições modernas (burocratização, monetarização e cientificismo), a despersonalização, a neutralidade e a imparcialidade dos sujeitos epistemológico-políticos da fundamentação - que, depois, são transladadas à ideia de anonimato e individualização das classes sociais - conduzem à centralidade dos sistemas sociais em geral e da política parlamentar e do direito em particular, marcados por uma constituição autorreferencial e autossubsistente, de cunho lógico-técnico, que autonomiza e sobrepõe os sistemas sociais modernos relativamente a uma participação política e a uma crítica social diretas, inclusivas e participativas, de modo que apenas as elites institucionais (partidos políticos, cortes e técnicos sistêmicos) podem, efetivamente, legitimar e conduzir a evolução institucional sem participação social.

Nesse sentido, contra essa correlação de racionalização epistemológica e de procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal, bem como contra sua dupla consequência, a negação do não moderno pela modernidade racionalista-universalista, e a intersecção de institucionalismo forte, cientificismo e lógica sistêmica por parte das instituições modernas e de suas elites, o artigo defende que os problemas do colonialismo e do institucionalismo forte somente podem ser resolvidos no momento em que os sujeitos epistemológico-político-marginalizados assumirem uma práxis política e politizante, carnal e vinculada como condição de sua crítica à modernidade, o que significa a recusa de um modelo apolítico e altamente institucionalista de teoria política e de normatividade social liberais, para os quais o anonimato e a individualização dos sujeitos sociais levam à centralidade da correlação entre procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal e institucionalismo técnico como base da constituição, da dinamização e da evolução societais. Nosso primeiro grande problema, hoje, está na autonomização e na sobreposição das instituições modernas (em particular o mercado, o direito e os partidos políticos) conseguida por meio da correlação dentre institucionalismo, cientificismo e lógica sistêmica, que afasta a democracia das instituições, na medida em que as tornam estruturas-sujeitos-arenas lógico-técnicas. Nosso segundo maior problema consiste em um universalismo-globalismo unidimensional e totalizante dinamizado a partir da associação direta, feita pelo paradigma normativo da modernidade, entre modernidade, racionalização, universalismo e gênero humano, que transforma a modernidade em juiz, guia e estágio final da evolução humana (a partir da ideia de que a evolução humana é um grande processo de modernização, do qual a modernidade europeia é o microcosmo exemplar), com capacidade de enquadrar e de transformar o que está dentro dela e o que ainda - mas por pouco tempo - está fora dela. Argumentaremos, com isso, que os marginalizados em termos de modernização podem superar o institucionalismo forte, apolítico e lógico-técnico por meio de uma práxis estético-política anarquista que se constitui de modo carnal e vinculado, na correlação entre um eu-nós lírico-político que parte de sua condição de vítima e de seu contexto antropológico como forma de autoconsciência e de autoafirmação e, a partir daqui, de resistência e de luta contra a modernização totalizante, tanto dentro quanto fora da modernidade, assumindo uma perspectiva antissistêmica, aberta, inclusiva e participativa em termos de crítica social, de resistência cultural e de luta política.

1 Racionalização como crítica, procedimentalismo como práxis: sobre a interpretação e a utilização liberais das teorias da modernidade europeias

As teorias da modernidade canônicas (utilizamos, para nosso caso exemplar aqui, Jürgen Habermas) e muitas filosofias político-liberais nelas embasadas (pense-se, nesse caso, em John Rawls e novamente no próprio Habermas) assumem o conceito de modernidade e, com isso, o processo de constituição, de desenvolvimento e de evolução da Europa moderna, em primeiro lugar, e o padrão evolutivo e constitutivo das sociedades industrializadas desenvolvidas, em segundo lugar, como o núcleo paradigmático a partir do qual formulam tanto seus diagnósticos sociais e suas proposições políticas relativamente às condições da modernização ocidental quanto seu conceito de normatividade social garantidor de uma ciência sociocrítica e de uma práxis político-emancipatória por parte dos sujeitos epistemológico-políticos basilares dessa mesma modernização ocidental (mas que também serve para o enquadramento de quem está fora dessa mesma modernização central). (HABERMAS, 2012a, p. 9-11; HABERMAS, 2002a, p. 7; HABERMAS, 2002b, p. 1-8; RAWLS, 2000c, p. 32-33, p. 244; SANTOS, 2011, p. 94-106; DUSSEL, 1993, p. 17-115; QUIJANO, 1992, p. 11-20; CHAKRABARTY, 2000, p. 27-45; MIGNOLO, 2007, p. 75-116). Aliás, nesse ponto, Habermas é até mais ambicioso do que Rawls, uma vez que, para ele, o projeto emancipatório da modernidade é uma continuação, adaptada à época pós-metafísica contemporânea, do projeto civilizacional- universalista que a tradição filosófico-ocidental e a teologia cristã, sintetizadas e assumidas depois pelo racionalismo científico moderno, assumiram como sua vocação e seu trabalho fundamentais, legando-o diretamente à própria autocompreensão normativa da cultura europeia moderna como autêntico universalismo, que o assume como o seu núcleo mais essencial, como seu movimento mais consequente (HABERMAS, 2012a, p. 94-119; 2002b, p. 161-162; FORST, 2010, p. 156-181, p. 210-211) - ao contrário de Rawls, para quem a filosofia político-liberal, calcada na noção de modernidade, pode, no máximo servir como guarda-chuva normativo das e para as sociedades democrático-liberais (e apenas sob a forma de teoria política, não como universalismo epistemológico-moral), isto é, das e às próprias sociedades modernas. (RAWLS, 2000b, p. VII-XI; RAWLS; 2000c, p. 45-90; RAWLS, 2003, p. XVIII-XIX; FORST, 2010, p. 68-69). Por outras palavras, o conceito de modernidade e o processo de modernização ocidental representam, respectivamente, o núcleo epistemológico-político e o processo societal-cultural basilares para se pensar a crítica social, o diálogo intercultural e a práxis político-normativo-emancipatórios, vinculantes, exatamente porque a modernidade é universalismo epistemológico-moral em seu sentido mais estrito e próprio à nossa época pós-metafísica. (HABERMAS, 2012a; 1990; 1989). Nesse sentido, se há crítica social, diálogo intercultural e práxis político-normativa emancipatórios, isso se deve à existência da modernidade europeia, do processo de modernização ocidental, isto é, à existência do eurocentrismo como reto, direto, linear e puro universalismo antropológico-ontológico-sociocultural e epistemológico-político, uma vez que apenas a modernidade cultural europeia e a consciência cognitivo-moral dali originada são efetivamente racionais e procedimentais, não egocêntricas e não etnocêntricas, algo que as sociedades não modernas, ou tradicionais, não o são e não geram. (HABERMAS, 2012a, p. 139-148, p. 249; HABERMAS, 2012b, p. 87-115; HABERMAS, 2003a, p. 44; DANNER, 2016, p. 45-72).

Ora, as teorias da modernidade europeias, no contexto do fato do pluralismo ou, o que é o mesmo, da época pós-metafísica contemporânea, leem e utilizam o conceito de modernidade e o processo de modernização ocidental de modo a fundar e a retirar deles dois pressupostos epistemológico- políticos fundamentais como condição, sustento e promoção dessa correlação entre modernidade-modernização, crítica, reflexividade, emancipação e universalismo, a saber: a racionalização dos sujeitos, das práticas e dos valores como critério da justificação e da objetividade; e o procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal como práxis político-normativa da justificação. (HABERMAS, 2003a, p. 83; HABERMAS, 2003b, p. 21; HABERMAS, 1990, p. 11-62; HABERMAS, 1989, p. 61-132; RAWLS, 2000a, §22, p. 136-140; RAWLS, 2003, §§ 24-25, p. 118-125; FORST, 2010, p. 210-211, p. 281; HONNETH, 2003, p. 275-277; HONNETH, 2007, p. 61-65). Nessa leitura e nessa utilização da modernidade, por conseguinte, a crítica social, o diálogo intercultural e a práxis político-normativo-emancipatórias, válidas e vinculantes intersubjetivamente, assumem essa dupla pressuposição: a) de que somente existe crítica, justificação e ativismo universalistas na modernidade e por conta dela, bem como b) de que a crítica, a justificação e o ativismo, isto é, o universalismo epistemológico-moral, necessitam assumir a correlação de racionalização e de procedimentalismo como o método e a práxis da fundamentação. (HABERMAS, 2003a, p. 17-25, p. 290; HABERMAS, 2003b, p. 21-24, p. 104-106; HABERMAS, 2002a; HABERMAS, 2002b, p. 110, p. 468-482; RAWLS, 2000a, p. 20, 117-121; RAWLS, 2000c, p. 134-176). Ora, aqui emergem o sentido e o movimento específicos do paradigma normativo da modernidade, como universalismo epistemológico-moral e como critério por excelência da crítica, da justificação e da emancipação, em sua dupla pressuposição e em sua dupla exigência. Sua dupla pressuposição consiste exatamente na correlação entre modernidade-modernização, racionalização, universalismo e gênero humano, modernidade-modernização como gênero humano, e de modernidade- modernização, racionalização, crítica, reflexividade, emancipação e/como universalismo (HABERMAS, 2012a, p. 355-385; HABERMAS, 2012b, p. 260-263; HABERMAS, 1989, p. 143-222). Sua dupla exigência em termos de crítica, de justificação e de ativismo consiste na racionalização dos sujeitos, das práticas e dos valores e no procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal como o caminho e a dinâmica da fundamentação intersubjetiva ou universalista. (HABERMAS, 2012a, p. 121; HABERMAS, 2002b, p. 17-41; RAWLS, 2003, § 23, p. 113-118).

Antes de entrarmos propriamente nisso, uma pergunta inicial: Como as teorias da modernidade canônicas (lembremos que estamos utilizando Habermas como teórico da modernidade europeia como universalismo epistemológico-moral) leem o processo de constituição, de desenvolvimento e de evolução da Europa moderna de modo a fundar o paradigma normativo da modernidade nessa dupla pressuposição e nessa dupla exigência, ambas ligadas à possibilidade de universalismo epistemológico-moral? É aqui que podemos identificar o preconceito fundante e dinamizador dessas mesmas teorias canônicas da modernidade europeia, assumido e utilizado por elas, a saber, seu ponto de partida metodológico-programático, que é marcado pela separação da Europa moderna como racional e universalista de todo o restante como tradicionalismo em geral, como dogmatismo e particularismo- contextualismo. (WEBER, 1984, p. 11-24; HABERMAS, 2012a, p. 90-142). Com efeito, Habermas (e, antes dele, Max Weber) parte, em sua teoria da modernidade, da diferença que há entre o processo de constituição e de desenvolvimento da Europa moderna, visto como uma forma de sociedade- cultura totalmente singular em relação ao restante das sociedades-culturas, uma vez que, nela, a racionalização cultural-comunicativa daria a tônica de seus movimentos civilizacionais mais básicos e de seus processos evolutivos mais estruturais, levando exatamente à constituição de uma sociedade-cultura e de uma consciência cognitivo-moral-universalistas, descentradas, não egocêntricas e não etnocêntricas, por isso diretamente universalistas em sentido pós-metafísico.1

As sociedades tradicionais seriam marcadas, como acreditam Habermas e grande parte das ciências sociais europeias, pela antropomorfização da natureza, pela naturalização da sociedade e pela consequente anulação da subjetividade reflexiva, o que significa que a natureza tornar-se-ia normativa (e não uma res extensa), a sociedade tornar-se-ia naturalizada e, portanto, despolitizada, e o indivíduo perderia o protagonismo político-normativo como sujeito da mudança social. Nesse sentido, as sociedades tradicionais não são racionais e não geram racionalização social, da mesma forma que, por conta disso, não existe crítica social e nem transformação política nessas mesmas sociedades tradicionais, naturalizadas, despolitizadas, acríticas (de seus próprios fundamentos) e destituídas de uma noção reflexiva de subjetividade. (HABERMAS, 2012, p. 95-119).

Na Europa moderna, ao contrário, a intersecção da racionalização cultural-comunicativa com a secularização cultural-institucional leva à separação entre natureza, sociedade ou cultura e subjetividade, no sentido de que a natureza e a sociedade são desencantadas, e o indivíduo, liberto das amarras próprias às fundamentações essencialistas e naturalizadas. Com isso, a natureza transforma-se em mero objeto, em res extensa (abrindo-se a possibilidade de um conhecimento e de um domínio científico objetivos e técnicos sobre ela), a sociedade seria desnaturalizada e, assim, politizada, podendo ser transformada por meio da ação política dos sujeitos cotidianos, e a subjetividade reflexiva assume um papel fundante em termos epistemológicos, morais, políticos e normativos, constituindo-se no sujeito por excelência da validação dos valores e das práticas socialmente vinculantes.

É por isso que Weber pôde ver, na Europa moderna, a categoria de racionalização como seu núcleo ontogenético fundamental, que teria instaurado a correlação de historicismo e de universalismo como a característica e o movimento mais fundamentais da cultura europeia e do homem moderno. (WEBER, 1984, p. 11). E é por isso que, conforme acredita Habermas, a sociedade moderna é racional e gera racionalização social, permitindo a crítica, a reflexividade e a justificação em sentido universalista. (HABERMAS, 2012a, p. 140-141; HABERMAS, 2012b, p. 141-195; HABERMAS,

2002b, p. 19-25). De todo modo, é por conta da racionalização cultural- comunicativa que ambos, Weber e Habermas, podem afirmar que, de um lado, há a modernidade europeia como singularidade, como que absoluta na sua correlação de racionalização, subjetivação, politização e universalismo e, de outro, todo o resto como tradicionalismo em geral, calcado em e dependente de fundamentações essencialistas e naturalizadas.

Pois bem, é a partir desse pré-conceito político-cultural - que se constitui no ponto de partida metodológico-programático das teorias da modernidade europeia canônicas - que podem ser situadas a dupla correlação assumida pelo paradigma normativo da modernidade, e a dupla exigência epistemológico-política requerida por ele como condição da validade em termos de ativismo e de fundamentação. Dissemos que, para as teorias da modernidade canônicas e, em nosso caso, para a teoria da modernidade de Habermas, a) a modernidade é racional e gera racionalização social, a modernidade possibilita mobilidade social e transformação política, e b) a modernidade gera e sustenta uma forma de universalismo epistemológico- moral própria e adequada à época pós-metafísica que garante o criticismo social, o diálogo intercultural e a emancipação política sem apelo ao fundamentalismo e ao contextualismo. Como isso é possível? Exatamente pela centralidade da racionalização cultural-comunicativa que, em uma situação de desencantamento do mundo ou de queda das fundamentações essencialistas e naturalizadas, se constitui no único médium para a constituição e a dinamização dos processos de socialização e de subjetivação nas sociedades modernas. (HABERMAS, 2012a, p. 227-251; HABERMAS, 2012b, p. 196-

202). Com efeito, as consequências mais básicas da centralidade da racionalização cultural-comunicativa são a desnaturalização e a politização da sociedade, assim como a libertação do indivíduo das cadeias do tradicionalismo (dogmatismo, constituição essencialista e naturalizada, autoritarismo, despolitização, contextualismo estrito), o que significa que, na sociedade moderna, os processos de socialização e de subjetivação já não podem mais lançar mão nem de autoridades centrais e nem de valores e de práticas dogmáticos, essencialistas e naturalizados para fundar e dinamizar valores e práticas intersubjetivamente vinculantes.

Na Europa moderna, marcada pela centralidade da racionalidade cultural- comunicativa, o ponto de vista normativo e intersubjetivamente vinculante é dado a) pela permanente interação entre os sujeitos epistemológico- políticos vários, plurais, na qual a primazia do melhor argumento, do argumento mais racional é o único critério de legitimidade, o que significa b) que os sujeitos epistemológico-político-modernos necessitam argumentar e agir uns em relação aos outros de modo tal que suas proposições possam contar com a justificação e a aceitação dos demais.

Ora, o assentimento intersubjetivo em uma sociedade racionalizada e plural somente é possível no momento em que abandonamos fundamentações essencialistas e naturalizadas e substituímos sujeitos epistemológico-político-autoritários e/ou vinculados por argumentações formais e despersonalizadas e sujeitos epistemológico-político-neutros e imparciais, que se utilizam de conceitos genéricos e de práticas basicamente apolíticas, impessoais e desvinculadas - pelo menos no que diz respeito à esfera público-política e a uma concepção público-política de normatividade social - relativamente às visões de mundo abrangentes. (HABERMAS, 2002a; HABERMAS, 1990; HABERMAS, 1989; RAWLS, 2000b; RAWLS, 2000c; RAWLS, 2003; FORST, 2010). É nesse sentido que a sociedade-cultura moderna, marcada pela centralidade da racionalização cultural-comunicativa, é racional e gera racionalização social: ela obriga os sujeitos epistemológico-políticos a justificarem-se intersubjetivamente a partir de argumentos e de práticas fundamentalmente políticos, sem a ajuda de qualquer paternalismo axiológico; ela fomenta processos de individuação reflexiva como condição e postura basilares do sujeito epistemológico-político moderno, que já não pode mais escorar-se na tutela da tradição essencialista e naturalizada em sua práxis intersubjetiva cotidiana. E é nesse sentido que a sociedade-cultura moderna gera e fomenta mobilidade social e transformação política: ela desnaturaliza e politiza tudo, exigindo justificação racional e procedimental de todas as áreas da existência humana e por parte de todos os sujeitos epistemológico-políticos indistintamente.

Aqui estão, como dizíamos, as duas grandes contribuições do processo de modernização ocidental e, portanto, as duas características fundamentais do paradigma normativo da modernidade, calcado na racionalização cultural- comunicativa, a saber: a racionalização dos sujeitos, dos valores e das práticas como critério da justificação e da validade intersubjetivas; e o procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal como a práxis garantidora dessa justificação e dessa validade intersubjetivas. Esse é o legado do paradigma normativo da modernidade e seu sentido eminentemente atual, como universalismo epistemológico-moral adequado à época pós- metafísica contemporânea. (HABERMAS, 2012b, p. 260; HABERMAS, 2003a, p. 20; HABERMAS, 2003b, p. 72; HABERMAS, 2002a, p. 92-116; HABERMAS, 2002b, p. 122). Essa, como bem o reconheceram Rawls e Habermas, já não permite a fundamentação intersubjetiva de normas e de práticas vinculantes e nem a práxis político-normativa emancipatória, coletivamente falando, enquanto estão calcadas em e determinadas por conteúdos, práticas, valores e sujeitos substantivos, por visões de mundo abrangentes e, em geral, de caráter essencialista e naturalizado.

Na época pós-metafísica, na época do pluralismo, por conseguinte, o universalismo epistemológico-moral adquire um claro sentido procedimental e racionalizador, em que o método da fundamentação e a postura dos sujeitos epistemológico-políticos dessa mesma fundamentação são caracterizados pelo formalismo, pela neutralidade, pela imparcialidade e pela impessoalidade relativamente às vinculações particulares, à carnalidade e à politicidade de cada contexto e de cada posição de mundo.

Na época pós-metafísica, a validade e o sentido vinculante intersubjetivamente das normas e das práticas são dados e fundados exatamente em uma práxis intersubjetiva em que os sujeitos abdicam de sua vinculação e de sua carnalidade ao contexto ou não as utilizam em termos de validação dessas normas intersubjetivas. Ora, isso significa que eles precisam, como única condição do acordo válido em termos intersubjetivos, racionalizar suas pertenças, seus posicionamentos e seus valores, isto é, abstraír e, assim, abandonar sua perspectiva de mundo como condição do próprio diálogo-práxis, despersonalizando-se e se despolitizando, o que significa que somente um ponto de partida apolítico e despolitizado, sem carnalidade e desvinculado permite, paradoxalmente, uma concepção intersubjetiva de normatividade social, um ponto de vista crítico e uma práxis política. Por outras palavras, a crítica, a normatividade e a politicidade são determinadas por um ponto de partida metodológico, programático e axiológico acrítico, apolítico e despolitizado, uma vez que, aqui, a politicidade, a carnalidade e a vinculação dos sujeitos epistemológico- políticos são recusadas ou racionalizadas e formalizadas com vistas à adesão dos participantes e ao seu consequente acordo relativamente à teoria político- normativa crítica dali dinamizada, construída. (RAWLS, 2000a, §§20-26, p. 127-172; RAWLS, 2003, §§23-24, p. 113-125; HABERMAS, 2002a, p. 115-116; 2003a, p. 20; HABERMAS, 2003b, p. 21-24; DANNER, 2017, p. 101-123).

Não por acaso, portanto, Rawls e Habermas (em particular o segundo) consideram que o legado mais fundamental do paradigma normativo da modernidade, calcado na estilização filosófico-sociológica, no discurso filosófico-sociológico acerca do processo de modernização ocidental, consiste em uma estrutura sociocultural e em uma forma de consciência cognitivo- moral descentradas, pós-tradicionais, de sentido e de constituição não egocêntricos e não etnocêntricos, representadas de modo exemplar pela racionalização epistemológica e pelo procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal como princípio, método e práxis da fundamentação teórico-prática. (HABERMAS, 2012a; HABERMAS, 2002a; HABERMAS, 2002b, HABERMAS, 2003a; HABERMAS, 1990; HABERMAS, 1989; RAWLS, 2000a; RAWLS, 2000c; RAWLS, 2003).

Nesse sentido, repetimos, se a crítica social, o diálogo intercultural e a práxis político-normativa são possíveis relativamente à modernidade por parte dos próprios modernos, elas o são apenas e fundamentalmente, por meio dessa correlação entre racionalização epistemológica e procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal, o que significa, conforme estamos argumentando, que o ponto de vista político, normativo e crítico é gerado e sustentado por um ponto de partida metodológico, programático e axiológico apolítico, despolitizado, sem carnalidade e sem vinculação. Nele os sujeitos epistemológico-políticos abstraem ou recusam suas próprias bases antropológicas e socioculturais, ou mesmo suas mais básicas pertenças de classe, em vista do acordo que constrói exatamente a crítica social, o diálogo intercultural e a práxis política. Aqui, os sujeitos epistemológico-políticos são despersonalizados, as contradições, os conflitos e as lutas sociais são silenciados e apagados, e o contexto sociocultural e político-normativo é suprimido em nome do fato do pluralismo determinante da posição original e do véu da ignorância que a encobre, do universalismo epistemológico-moral orientador da e construído pela roda do discurso, ambos definidos a partir dos qualificativos da imparcialidade, da formalidade, da neutralidade e da impessoalidade.

Ora, o que em princípio poderia parecer o grande mérito e a contribuição verdadeiramente explosiva da modernidade europeia, como acredita Habermas, em verdade, pode transformar-se em seu pior pesadelo, em seu grande problema. Com efeito, dos desenvolvimentos realizados acima podemos concluir que o paradigma normativo da modernidade é fundado no e assume o eurocentrismo epistemológico, político e cultural como critério da crítica, da emancipação e da justificação intersubjetivas, isto é, o paradigma normativo da modernidade assume as correlações de modernidade-modernização, racionalização, universalismo e gênero humano (modernidade-modernização como gênero humano) e de modernidade- modernização, crítica, reflexividade, emancipação e universalismo, argumentando, a partir disso, não apenas que a crítica, a reflexividade e a emancipação somente são possíveis por meio de um paradigma epistemológico-moral universalista, senão que, em verdade, apenas são possíveis por meio do paradigma normativo da modernidade e desde uma perspectiva e de um sujeito modernos, modernizantes.

No mesmo sentido, o paradigma normativo da modernidade, dado seu peculiar entendimento seja do critério da justificação e da validade intersubjetivas (a racionalização epistemológica), seja da práxis ético-política fundadora de um conceito vinculante de normatividade social (o procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal), seja, por fim, dos sistemas sociais modernos (e, em particular, do Estado, do direito, do mercado e da política partidário-parlamentar), conduz à intersecção do institucionalismo forte, do cientificismo e da lógica sistêmica como a base, a dinâmica e o sujeito epistemológico-político fundamentais da justificação e da transformação do processo de modernização ocidental, despolitizando e naturalizando esse mesmo processo, despolitizando e tecnicizando as instituições modernas e, por fim, periferizando os sujeitos epistemológico- políticos espontâneos da sociedade civil, como movimentos sociais, iniciativas cidadãs e minorias político-culturais. (DANNER, 2016b, p. 1.107-1.144).

Com efeito, o primeiro problema consiste, exatamente, na correlação entre modernidade, racionalização, universalismo e gênero humano. É importante, aqui, salientar que as teorias da modernidade europeia canônicas partem do pressuposto de que o processo de modernização ocidental, evolutivamente falando, alcançou o ápice em termos de sociedade-cultura e de consciência cognitivo-moral, visto como universalismo pós-metafísico, não fundamentalista. Como dissemos, a correlação entre racionalização cultural- comunicativa e de secularização cultural-institucional consolida uma postura cognitivo-moral não egocêntrica e não etnocêntrica, por parte dos sujeitos epistemológico-políticos modernos, em que o procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal se coloca como o critério e o guia da práxis cotidiana.

No mesmo sentido, a racionalização epistemológica leva a que a sociedade moderna seja caracterizada pela constituição de diferentes esferas de valor social, institucional e científico, não mais subsumidas por um único princípio integrativo, como nas sociedades tradicionais. Na modernidade, a diferenciação das esferas de valor exige argumentações especializadas para cada esfera social, institucional e epistemológica (pense- se, aqui, no surgimento das diferentes ciências, na divisão e na particularização dos sistemas sociais, etc.) (HABERMAS, 2012a, p. 140-141, p. 383-385). Ora, mas em que medida esse processo de modernização pode ser entendido como universalismo epistemológico-moral e correlacionado, associado ao próprio gênero humano? Porque, como dissemos, Habermas é enfático em afirmar que a modernização (como racionalização) é um processo irreversível e superior, evolutivamente falando, em relação ao tradicionalismo, pondo-o por terra, suprassumindo-o, uma vez que ela se constitui em universalismo societal-cultural e cognitivo- moral pós-metafísicos, não fundamentalistas (por isso, aliás, sua invectiva de que somente modernidade reflexiva, cada vez mais modernidade reflexiva pode suprir os deficits, as patologias da modernização). (HABERMAS, 2012a, p. 109-119; HABERMAS, 2002b, p. 122).

No caso da teoria da modernidade de Habermas, a modernidade cultural europeia não é apenas uma forma contextual e particularista de vida pelo fato de que a racionalidade cultural-comunicativa, que é seu núcleo ontogenético fundamental, faz parte, ainda que em menor medida, da constituição, do funcionamento e da evolução de todas as sociedades-culturas humanas. Com efeito, para ele, a linguagem é o que de mais básico constitui todos os grupos humanos, seu ponto fundante e definidor. No mesmo sentido, a prova de que todas as sociedades-culturas são marcadas (ainda que em menor intensidade, frise-se) pela racionalidade cultural-comunicativa é o fato de que todas elas precisam constituir e dinamizar seus processos de socialização e de subjetivação a partir da fundamentação objetiva e intersubjetivamente vinculante de seus valores, de suas práticas e de suas autoridades, o que exige uma postura público-institucional de permanente interação, diálogo e inculcação dos valores herdados. (HABERMAS, 2012a, p. 119-120; FORST, 2010, p. 334-345). Nesse sentido, a diferença mais evidente entre a modernidade europeia e o tradicionalismo em geral consiste em que, naquela, a racionalidade cultural-comunicativa está desenvolvida em toda sua pujança como estrutural-societal-cultural e consciência cognitivo-moral não egocêntricas e não etnocêntricas, dinamizadas por meio do procedimentalismo formal, imparcial, neutro e impessoal de que falamos, no qual a racionalização dos valores e as consequentes abstração do contexto antropológico-sociopolítico e dadespersonalização do sujeito epistemológico-político são atitudes-chave dos sujeitos da fundamentação e da ação, das práticas e dos valores por eles assumidos e construídos.2 Ora, a evolução humana, nesse diapasão, é um grande processo de modernização, um processo de superação do tradicionalismo e de consolidação da moderna perspectiva societal-cultural e cognitivo-moral racionalizadas. Aqui, o mais surpreendente do discurso filosófico-sociológico da modernidade está em que, se inicialmente ele se constituiu e se dinamizou a partir da ideia de que o processo de modernização europeu é autônomo, endógeno e autorreferencial, um processo reto, direto e linear de modernização como superação do tradicionalismo e instauração da razão como critério, fundamento e dinâmica basilares da Europa desde si mesma, por si mesma e para si mesma, por outro esse mesmo discurso da modernidade sobre si mesma descobre o gênero humano, confunde-se com o gênero humano, instituindo a racionalização epistemológica e o procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal como prática, valor e base paradigmática ao enquadramento e à auto-expressão não apenas da modernidade para si mesma, mas também da modernidade diante do outro da modernidade e do outro da modernidade relativamente à modernidade - e, inclusive, entendendo a evolução humana como um todo, como um grande processo de modernização, de instauração da civilização da razão. De uma só tacada, portanto, Habermas pôde idealizar, salvificamente, a modernidade, diagnosticar suas patologias (que dizem respeito apenas ao capitalismo e ao Estado como racionalidade instrumental, não tendo nenhuma ligação com a modernidade cultural pura, santa e universalista), deslegitimar o outro da modernidade por conta da universalidade da razão encarnada na e como Europa, assumida pela Europa para si e em face do não europeu, e, assim, correlacionar modernidade cultural europeia, racionalização e universalismo como o caminho da crítica, da reflexividade e da emancipação, dentro e fora da modernidade, colocando-a como a base paradigmática, o sujeito e o valor por excelência da justificação, da validade, da práxis. Aqui, somente um discurso, um sujeito e uma práxis modernos e modernizantes, racionais e racionalizadores, mas, ao mesmo tempo, impessoais ou despersonalizados, sem carnalidade e sem politicidade, neutros, imparciais e desvinculados, podem, efetivamente, justificar e agir de modo válido intersubjetiva e universalmente.

O segundo problema consiste no fato de que o procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal como método e práxis da fundamentação, conduz a uma forma de institucionalismo forte, autorreferencial e autossubsistente, autônomo e sobreposto aos sujeitos epistemológico-políticos e às lutas sociais contemporâneas, que centraliza, monopoliza e dinamiza como que exclusivamente e desde dentro das instituições, por seu pessoal técnico autorizado e desde uma perspectiva lógico-técnica, o grosso da evolução social e dos processos de construção e de aplicação de decisões intersubjetivamente vinculantes. Em primeiro lugar, é importante mencionar que o procedimentalismo jurídico-político imparcial, neutro, formal e impessoal como método e práxis da fundamentação, não consiste apenas em uma resposta ao fato do pluralismo (Rawls) ou às exigências da época pós-metafísica contemporânea (Habermas), mas também é caudatário, no caso de Habermas: a) da separação entre modernidade cultural e modernização econômico-social; b) da noção de modernização econômico-social como autodiferenciação, autorreferencialidade e autossubsistência de sistemas sociais lógico-técnicos, não políticos e não normativos; c) da noção de sistema social como estrutura, sujeito e arena impessoais, de cunho lógico-técnico, não político e não normativo, que monopoliza e, assim, singulariza campos específicos da vida social, privatizando-os diretamente, bem como, por fim; d) da ideia de anonimato e de individualização dos sujeitos epistemológico-políticos ou das classes sociais modernas, que já não possuiriam mais um sentido estrutural, macropolítico. (HABERMAS, 2012a, p. 588-591; HABERMAS, 2012b, p. 216-217, p. 272-278, p. 316, p. 363; HABERMAS, 2003a, p. 17-18, p. 61; HABERMAS, 2003b, p. 25; HABERMAS, 2002b, p. 501-505). Nesse caso, as sociedades modernas seriam sociedades destituídas de um centro político-institucional, o que significa que, em verdade, elas possuiriam diferentes instituições ou sistemas sociais, cada uma delas em pé de igualdade diante das outras e centralizando e monopolizando seu campo social específico, particular;3 no mesmo sentido; e) as sociedades modernas já não possuiriam mais classes sociais abrangentes, senão que seriam marcadas pelo anonimato e pela individualização intensos e consolidados dos sujeitos epistemológico-políticos, que, em razão disso, já não poderiam mais assumir, em nome da sociedade como um todo, uma práxis político-normativa emancipatória, revolucionária. (HABERMAS, 2003a, p. 83; HABERMAS, 2003b, p. 105-106). Doravante, o institucionalismo seria a base da constituição, da dinamização e da evolução social - daí o fato de que as noções de estrutura básica da sociedade (Rawls) e de sistema social (Habermas) sejam os conceitos-chave das respectivas filosofias políticas, levando Habermas a falar que o direito (enquanto instituição, sistema social), e não a política e os sujeitos epistemológico-políticos cotidianos, seria o médium entre sistema e mundo da vida. (RAWLS, 2000a, §2, p. 7-12; RAWLS, 2003, §4, p. 13-17; HABERMAS, 2003a, p. 82; HABERMAS, 2003b, p. 24-25, p. 72). Na ausência de classes sociais que possam ser colocadas como o efetivo objeto e sujeito das teorias da justiça, são as próprias instituições que passam para o primeiro plano dessas mesmas teorias da justiça e das filosofias políticas dali dinamizadas, mas instituições despersonalizadas e sobrepostas aos sujeitos sociopolíticos, às suas lutas e aos contrapontos.

O segundo problema fundamental da teoria da modernidade de Habermas, entendida como teoria da modernidade canônica, por conseguinte, consiste em que ela concebe o processo de constituição, de desenvolvimento e de evolução da modernidade ocidental desde uma perspectiva altamente institucionalista e despersonalizada, em que os sujeitos epistemológico-políticos desse processo histórico são substituídos por movimentos de sistemas sociais lógico-técnicos que, como estruturas- sujeitos-arenas puras, agem como que por sobre a cabeça das classes sociopolíticas, permanecendo imunes às suas lutas, contrapontos e hegemonias e sendo percebidos em um sentido e em uma dinâmica eminentemente lógico-técnicos, não políticos e não normativos. Aqui, as instituições ou os sistemas sociais ou a estrutura básica da sociedade ganham primazia absoluta em termos de objeto e sujeito da teoria política, e não os sujeitos epistemológico-políticos ou as classes sociais próprias da sociedade civil. No mesmo sentido, dados o anonimato e a individualização desses mesmos sujeitos epistemológico-políticos da sociedade civil, que já não se constituem e nem agem mais como classes sociais abrangentes e nem são capazes de movimentos estruturais em termos políticos, são exatamente as instituições jurídico-políticas que centralizam e monopolizam o grosso da evolução social e da legitimação dos princípios e das práticas intersubjetivamente vinculantes, o que significa que as instituições são o caminho e o sujeito que legitima ou deslegitima a mediação entre os sistemas sociais e o mundo da vida. Note-se, entretanto, que a noção de instituição moderna, já não mais ligada aos sujeitos epistemológico-políticos da sociedade civil ou às classes sociais cotidianas, aparece, nessas teorias da modernidade, como estrutura-sujeito-arena pura, basicamente lógico- técnica, impessoal, imparcial, neutra e formal, que dinamiza a evolução social por sobre a cabeça desses sujeitos cotidianos, como se elas fossem imunes - pelo menos nas descrições que se faz da evolução da modernidade como diferenciação sistêmica ou do fato de que o direito e a política representam o médium entre sistemas sociais e mundo da vida - às lutas, à hegemonia e às contraposições sociais entre os sujeitos cotidianos. Ora, dado esse duplo pressuposto do processo de modernização ocidental, isto é, a noção de sistema social como estrutura e sujeito basicamente lógico- técnicos, marcados por um procedimentalismo neutro, formal, imparcial e impessoal relativamente aos sujeitos epistemológico-políticos cotidianos, e a ideia de anonimato e de individualização desses mesmos sujeitos epistemológico-políticos cotidianos (o que significa o fim do conceito de classes sociais), são as instituições e desde uma compreensão, uma legitimação e um funcionamento lógico-técnicos que centralizam, monopolizam e dinamizam as esferas da reprodução social ao longo do tempo, para além das classes sociais e de suas lutas e contrapontos por hegemonia. É por essa dupla pressuposição, ligada ainda à ideia de que o procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal como método e práxis da fundamentação exige um ponto de partida despersonalizado, apolítico e despolitizador como critério de objetividade e da validade, que Habermas pode afirmar a centralidade das instituições jurídico-políticas ante a espontaneidade dos sujeitos epistemológico-políticos da sociedade civil; 4 é por essa dupla pressuposição e por essa exigência do procedimentalismo como método e práxis da fundamentação que Habermas pode defender que um modelo de ativismo político direto, que não passe pela mediação institucional, é ilegítimo nas sociedades modernas, dados a centralidade, a autorreferencialidade e o sentido lógico-técnico, não político e não normativo dos sistemas sociais.5 No mesmo sentido, também é por esses motivos que Rawls nega a desobediência civil violenta, como se essa fosse separada de situações, confrontos e sujeitos sociais concretos (é preciso um contexto para seu surgimento, pois não se pode impedi-la, de antemão, como se ela fosse um mal pleno - se fosse assim, ainda seríamos colônia), uma vez que a correlação de institucionalismo e de impessoalidade política definem a validade, a atuação e a vinculação da estrutura básica da sociedade - validade, ressalte-se, conseguida por meio exatamente de um véu de ignorância que encobre vinculações, identidades e lutas. (RAWLS, 2000a, §§53-59, p. 388-434; DANNER, 2016b, p. 1.107-1.144).

2 A voz-práxis estético-política dos marginalizados como carnalidade, politicidade e vinculação: sobre os fundamentos da crítica social, da resistência cultural e da emancipação política

Levantamos, no capítulo anterior, dois problemas fundamentais da leitura liberal do processo de modernização ocidental, levada a efeito por teorias canônicas da modernidade européia, e com base nelas, em especial, a teoria de Habermas (mas também o liberalismo político de Rawls). O primeiro deles foi, a partir da contraposição entre a Europa moderna como racionalização versus todo o resto como tradicionalismo em geral, a correlação de modernização, racionalização, universalismo e gênero humano, em que a racionalização é não apenas o núcleo ontogenético fundamental da Europa (e do próprio gênero humano como um todo, em verdade), senão que também a condição da crítica, da justificação, do enquadramento e da orientação da modernidade por si mesma e do outro da modernidade pela modernidade. Aqui, a intersecção e o mútuo sustento de racionalização epistemológica e de procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal são o caminho e a práxis por excelência garantidores de reflexividade e de fundamentação, o que também significa que o universalismo epistemológico- moral moderno, como pura racionalização, é o efetivo paradigma da crítica, da reflexividade e da emancipação, da justificação normativa em geral.

Nesse sentido, se o não moderno deve justificar-se e criticar a modernização, ele deve fazê-lo desde a utilização do próprio paradigma normativo da modernidade. O segundo deles é a noção altamente institucionalista e despersonalizada de práxis político-moderna, uma vez que os sujeitos epistemológico-políticos cotidianos (ou classes sociopolíticas) dão lugar, na explicação do desenvolvimento e da dinâmica da modernização, a movimentos de sistemas sociais lógico-técnicos, não políticos e não normativos que, em sendo estruturas puras, autorreferenciais e autossubsistentes, ficam em grande medida autonomizados e sobrepostos relativamente à sociedade civil - como consequência, os sujeitos epistemológico-político-informais da sociedade civil também devem ceder primazia, em termos de condução da evolução social, a essas mesmas instituições autorreferenciais e autossubsistentes. Ora, aqui aparecem as características fundamentais do paradigma normativo da modernidade, que o despolitizam, a saber: a absoluta centralidade de um modelo de racionalização cientificista e tecnicista que não apenas se coloca como único paradigma epistemológico da justificação e do enquadramento, senão, também, como ápice da evolução humana, deslegitimando e inferiorizando qualquer outra forma de voz-práxis; um modelo metodológico-programático de fundamentação dessa mesma voz-práxis que é imparcial, neutra, formal e impessoal relativamente aos sujeitos e aos contextos cotidianos, que negam a politicidade, a carnalidade e a vinculação como eixos centrais e definidores dos processos de fundamentação normativa; e uma noção de institucionalismo forte, lógico-técnico, autorreferencial e autossubsistente no qual os sistemas sociais, de modo geral, e as instituições jurídico-políticas, em particular, desligados das classes sociopolíticas, de suas lutas e de seus contrapontos, centralizam e monopolizam os processos de evolução social, privatizando e despolitizando fortemente as diferentes esferas da vida humana (como, por exemplo, a economia e a política partidário-parlamentar), bem com periferizando os sujeitos epistemológico-políticos da sociedade civil, minimizando seu ativismo social.

Nós queremos, no restante deste texto, propor uma forma de oposição e de refreamento seja da correlação de racionalização epistemológica e de procedimentalismo impessoal, imparcial e neutro como critério e método da fundamentação, seja da noção de institucionalismo forte e lógico-técnico como a arena e o sujeito da transformação social. Note-se, na verdade, que os problemas da modernização residem, basicamente, nessa intersecção do racionalismo cientificista unidimensional, totalizante e colonialista, práxis procedimental despersonalizada, neutra e imparcial com o institucionalismo lógico-técnico autorreferencial. E esses três polos sustentam-se mutuamente, dando origem a um modelo de funcionamento, de legitimação e de sujeito epistemológico-político sistêmico em que as decisões vinculantes são tomadas por elites e técnicos institucionais a partir de uma perspectiva autorreferencial e justificadas com base em necessidades, especificidades e dinâmicas institucionais que não podem ser acessadas e nem enquadradas pelos sujeitos epistemológico-políticos do cotidiano.

Assim, a modernização ocidental torna-se autonomizada e sobreposta, seja em relação aos sujeitos epistemológico-político-informais da modernidade (pense-se, aqui, nas classes trabalhadoras e mesmo no exercício da cidadania político-cotidiana, etc.), a qual perde sua primazia às próprias instituições técnicas, não políticas e não normativas (mercado, partidos políticos, técnicos institucionais), seja no que diz respeito ao outro da modernidade (pense-se, aqui, nos povos indígenas, nos negros e nos muçulmanos, etc.) que, tachados de fundamentalistas e primitivos, têm de se submeter à modernização econômico-cultural e às intervenções das potências centrais (ou perecer, embora se submeter também equivalha a perecer), uma vez que o processo de modernização - como globalização econômico-cultural - tem de prosseguir permanente e universalmente, nunca parado. Aqui, o paradigma normativo da modernidade, na intersecção de racionalização totalizante, procedimentalismo apolítico, despolitizador, despersonalizado e institucionalismo forte e lógico-técnico serve de suporte às elites sistêmicas ou institucionais esmagarem qualquer possibilidade substantiva de crítica social, de resistência cultural e de práxis política dentro e fora da modernidade, assim como qualquer alternativa civilizacional que não a própria modernidade-modernização, o que é paradoxal a esse mesmo paradigma, uma vez que, se retomarmos Habermas, a intenção era exatamente fundar um modelo de crítica social, de resistência cultural e de práxis política radical e emancipatório. (HABERMAS, 2012a, p. 683; HABERMAS,

2012b, p. 715-720; HABERMAS, 2002b, p. 161-162). Entretanto, como argumentaremos a partir de agora, não é possível crítica social, resistência cultural e práxis política radicais e emancipatórios por meio do cientificismo extremado e da despersonalização, da imparcialidade e da neutralidade políticas, assim como o institucionalismo lógico-técnico não pode substituir as classes sociopolíticas e os grupos culturais em termos de ativismo. Crítica social, resistência cultural e práxis política emancipatórias pressupõem carnalidade, vinculação e politicidade diretas e pungentes, que não podem ser formalizadas, tecnicizadas, despersonalizadas e institucionalizadas, senão que somente podem ser constituídas sob a forma de voz-práxis que se processa na correlação de primeira pessoa do singular e terceira pessoa do plural, como eu-nós lírico-político, como anarquismo estético-político direto.

Aqui, os marginalizados em termos institucionais (ou sistêmicos) e coloniais passam para o primeiro plano, e sua espontaneidade e sua pungência efetivamente possibilitam uma crítica social profunda e a realização de uma práxis político-normativa altamente emancipatória. Com efeito, acreditamos que o núcleo mais fundamental da crítica social, da resistência cultural e da práxis político-normativa consiste exatamente em um modelo de voz-práxis em que as vítimas agem desde suas bases antropológicas, suas vinculações sociais e a partir de sua condição de marginalização, de exclusão e de violência, o que significa que sua voz-práxis, se deve ser dita e ativa, o deve ser por conta dessa condição e dessa vinculação, desde elas. (SPIVAK, 2010, p. 19-126; KRENAK, 2015, p. 98-103, p. 150-157; MBEMBE, 2014, p. 255-297).

É por isso que a voz-práxis dos marginalizados não pode ser despersonalizada e nem assumida de modo genérico, neutro e imparcial por instituições e sujeitos autorizados institucionalmente de caráter lógico- técnico, assim como não pode ficar atrelada, ou subsumida, à constituição autorreferencial, autossubsistente e autônoma dessas mesmas instituições lógico-técnicas, assumidas, legitimadas e dinamizadas por seus peritos. Nesse sentido, instituições e sujeitos autorizados apolíticos e despolitizados não fazem jus nem à representação e à substituição dos marginalizados e nem à crítica social e à emancipação política desses, não podendo falar e nem agir em nome deles, não podendo sequer explicitar sua dor, sua exclusão. Isso significa, portanto, que a voz-práxis das vítimas de uma modernização sistêmica e avassaladora não apenas não pode ser racionalizada em termos epistemológicos (pensemos, aqui, novamente, na autoexpressão dos povos indígenas em sua luta contra a modernização imposta de modo tecnocrático), senão que também não podem ser despersonalizadas, descaracterizadas, desvinculadas e despolitizadas no que diz respeito aos seus emissores, o que também significa que elas não podem ser substituídas pelas instituições, pelos sujeitos epistemológico-políticos autorizados institucionalmente e pelo próprio processo de institucionalização - por isso, as vítimas devem falar-agir desde sua condição e por si mesmas.6

Habermas, ao defender a racionalização epistemológica como critério da justificação e da validade intersubjetivas e ao colocar (como também o fez Rawls, nesse caso) o procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal como o método e a práxis da fundamentação, apontando, ainda e em conseqüência, à centralidade das instituições, para o caráter autorreferencial e lógico-técnico dos sistemas sociais e partindo de um suposto anonimato e de uma individualização das classes sociais, acaba tecnicizando, despolitizando e autonomizando os sistemas sociais modernos (mormente o mercado, a política partidário-parlamentar e o direito) e legitimando, mesmo que queira exatamente o contrário, um modelo de tecnocracia sistêmica que é altamente institucionalista e que, em vista disso, despolitiza o grosso dos processos de constituição, de fundamentação e de evolução institucionais e sua relação com a sociedade civil.

Aqui, portanto, como contraponto a uma modernização conservadora calcada no racionalismo formalista e cientificista, no procedimentalismo apolítico, despersonalizador e despolitizado, em um ativismo social imparcial e neutro e, por fim, em uma forma de institucionalismo forte e lógico- técnico, tem lugar uma crítica à modernização que, como anarquismo estético-político, parte da ideia de que a voz-práxis das vítimas deve ser política-politizante, carnal e vinculada, expressa de modo autobiográfico e realizada de maneira direta, participativa, inclusiva e pungente, sem mediações cientificistas, despersonalizadas e institucionalistas - as vítimas da colonização devem construir o seu discurso filosófico-sociológico da modernidade para além da modernização eurocêntrica;7 os marginalizados pela modernização econômica devem realizar a sua práxis político- emancipatória para além do tecnicismo e da despolitização sistêmicos. Não serão possíveis o refreamento e a correção da modernização e nem alternativas políticas, culturais, institucionais e econômicas sem essa postura epistemológico-política de autoafirmação, crítica, resistência e luta das vítimas da modernidade dentro e fora dessa.

É aqui que o anarquismo estético-político assume o lugar do paradigma normativo da modernidade (correlação de racionalização epistemológica, procedimentalismo imparcial, neutro, formal e impessoal e institucionalismo apolítico e despersonalizado) como o método da crítica e do ativismo, colocando todo o peso da crítica social, da resistência cultural e da práxis político-normativa emancipatória nos marginalizados e em sua voz-práxis direta, pungente, carnal, vinculada e política-politizante, em que a estruturação puramente formal, impessoal e lógico-técnica dos sistemas sociais e a objetividade das elites e dos técnicos institucionais são contrabalançadas e enfrentadas com a crítica social e o ativismo político diretos e pungentes dos marginalizados, que politizam tudo e todos, que vinculam tudo e todos.

Politizar tudo e todos, aliás, é o contraponto ao grande núcleo do conservadorismo hodierno, a saber, a tecnicização, a despersonalização e a despolitização de tudo e de todos, incluindo-se, aqui, quer a globalização econômico-cultural como modernização reta, direta e linear, quer as classes sociais e suas lutas, seja os sistemas sociais, suas elites e seus técnicos, o que inviabiliza qualquer projeto civilizational e desenvolvimentista alternativo e qualquer resistência sociopolítica dirigida desde a sociedade civil, desde as margens contra esses, tornando os sistemas sociais estruturas, arenas e sujeitos autorreferenciais e autossubsistentes, despolitizados, lógico-técnicos, reduzindo sua constituição, sua fundamentação, seu desenvolvimento e sua vinculação a movimentos, decisões e sujeitos internos às próprias instituições, sem qualquer correlação política e normativa com a sociedade civil. (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009; PIKETTY, 2014).

O anarquismo estético-político, portanto, acredita que somente a crítica social, a resistência cultural e o ativismo espontâneos, não técnicos, não institucionalistas, basicamente personalizados, político-politizantes, carnais e vinculados, permitem a autoafirmação, a autoexpressão e a luta dos excluídos, a partir de um duplo e correlato movimento: primeiro, a autoconsciência de sua condição, a autoexpressão e a autoafirmação desde suas bases antropológicas, como sujeitos sociais; segundo, a resistência e a luta a partir de sua condição de vítima, por meio da explicitação de sua situação de marginalização e da tentativa de romper com ela, de superá-la, o que significa, nesse caso, luta aberta, direta e inclusiva contra o conservadorismo sistêmico, fundado na intersecção da racionalização formalista, procedimentalismo apolítico e despersonalizado com o institucionalismo forte e lógico-técnico. Aqui, se recuperar como crítica do presente a voz-práxis das vítimas da modernização, as autobiografias da colonização e os testemunhos dos marginalizados diante da violência sistêmica, assim como se entabular, em consequência, uma práxis crítico- criativa direta, inclusiva e participativa, que politiza tudo e todos, que é marcada e dinamizada por carnalidade, politicidade e vinculação, é, conforme pensamos, o caminho fundamental ao enfrentamento do conservadorismo como lógica sistêmica e institucionalismo forte. Onde eles despolitizam, nós politizamos; onde eles tecnicizam, nós assumimos a carnalidade; onde eles institucionalizam, nós anarquizamos; onde eles falam em nome das instituições e como instituições impessoais, puras, neutras e imparciais, nós falamos como sujeitos excluídos e em nome das margens, desde elas; onde eles falam e agem em nome de necessidades sistêmicas, de suas máquinas, de suas técnicas e análises objetivas e de seus números, nós falamos e agimos sempre em nome de necessidades humanas. Lembrando sempre que a crítica, a transformação e a própria dominação se dão diretamente no nível da política, da normatividade, da cultura, não sendo, portanto, nunca, em nenhum momento, lógico-técnicas, despersonalizadas, despolitizadas, imparciais e neutras. É sempre da carnalidade, da vinculação e da politicidade dos sujeitos sociais que o poder é gestado, produzido e reproduzido, o que significa que a crítica social, a resistência cultural e a práxis político-normativa emancipatórias necessitam assumir, como condição básica de sua viabilidade, essas carnalidade, politicidade e vinculação, constituindo-se como voz-práxis estético-político-anarquista, dita e realizada em termos de eu-nós lírico-político, sem mediações institucionalistas e cientificistas, sem representações lógico-técnicas e despersonalizadas, como voz-práxis antissistêmica, antiformalista e anti-institucionalista, aberta, direta, pungente, carnal, politizada, inclusiva e participativa - se a lógica sistêmica e institucionalista privatiza, despolitiza, tecniciza e exclui - o anarquismo estético-político politiza, democratiza e socializa a práxis.

Referências

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1Veja-se o ponto de partida metodológico-programático e o pré-conceito político-cultural que dinamizam a constituição do discurso filosófico-sociológico da modernidade de Habermas (e de Weber): “À medida que procuramos aclarar o conceito de racionalidade com base no uso da expressão ‘racional’, tivemos de nos apoiar sobre uma pré-compreensão que se encontra ancorada em posicionamentos modernos da consciência. Até o momento, partimos do pressuposto ingênuo de que na compreensão de mundo moderna expressam- se certas estruturas da consciência que pertencem a um mundo da vida racionalizado e por princípio possibilitam uma condução racional da vida. Implicitamente, relacionamos à nossa compreensão de mundo ocidental uma pretensão de universalidade. Para entender o significado dessa pretensão de universalidade, recomenda-se fazer uma comparação com a compreensão de mundo mítica. Em sociedades arcaicas, os mitos cumprem de maneira exemplar a função unificadora própria às imagens de mundo. Ao mesmo tempo, no âmbito das tradições culturais a que temos acesso, eles proporcionam o maior contraste em relação à compreensão de mundo dominante em sociedades modernas. Imagens de mundo míticas estão muito longe de nos possibilitar orientações racionais para a ação, no sentido que as entendemos. No que diz respeito às condições da condução racional da vida no sentido anteriormente apontado, constituem até mesmo uma contraposição à compreensão de mundo moderna. Portanto, na face do pensamento mítico não teriam de se fazer visíveis os pressupostos do pensamento moderno tematizados até o momento”. (Habermas, 2012a, p. 94-95).

2Essa afirmação impressionante de Habermas, isto é, de que a racionalidade cultural- comunicativa não é uma especificidade da modernidade europeia, senão que se faz presente, mesmo que em menor grau, em todas as sociedades-culturas, constituindo-se, por conseguinte, como núcleo ontogenético do gênero humano, pode ser percebida na seguinte passagem de Teoria do agir comunicativo: “Se não delineamos o racionalismo ocidental a partir da perspectiva conceitual da racionalidade propositada e da dominação do mundo e, mais que isso, se tomamos como ponto de partida a racionalização de mundo descentralizada, impõem-se as seguintes perguntas: onde se expressa um acervo formal de estruturas universais da consciência? Não é, afinal, nas esferas de valor culturais desenvolvidas de maneira obstinada sob os parâmetros valorativos abstratos de verdade, correção normativa e autenticidade? O que constitui, afinal, o patrimônio da “comunidade dos homens de cultura”, presente como ideia reguladora? Não são as estruturas do pensamento científico, das noções jurídicas e morais pós-tradicionais e da arte autônoma - tal como formadas no âmbito da cultura ocidental? A posição universalista não precisa negar o pluralismo e a incompatibilidade das marcas históricas da “condição cultural própria ao ser humano”, mas percebe que essa multiplicidade das formas de vida está restrita aos conteúdos culturais e afirma que toda cultura, se fosse o caso de alcançar um certo grau de “conscientização” ou de “sublimação”, teria de compartilhar certas qualidades formais da compreensão de mundo moderna. A assunção universalista refere-se, portanto, a algumas características estruturais e necessárias próprias a mundos da vida modernos. Por outro lado, quando tomamos essa concepção universalista como coerciva somente para nós, o relativismo que se refuta no plano teórico acaba retornando no plano metateórico. Não creio que um relativismo de primeiro ou de segundo grau possa conciliar-se com o âmbito conceitual em que Weber situa a problemática da racionalização. No entanto, Weber faz restrições relativistas. Elas se devem a um motivo que só teria deixado de existir se Weber não tivesse atribuído o que há de especial no racionalismo ocidental a uma peculiaridade cultural, e sim ao modelo seletivo que os processos de racionalização assumiram sob as condições do capitalismo moderno”. (Habermas, 2012a, p. 325-326, destaques de Habermas).

3Diz Habermas, em Direito e Democracia: “A teoria do discurso considera o sistema político como um sistema de ação ao lado de outros, não o centro, nem o ápice, muito menos o modelo estrutural da sociedade”. (HABERMAS, 2003b, p. 25, destaque de Habermas).

4Habermas diz isso de modo totalmente claro: “O jogo que envolve uma esfera pública, baseada na sociedade civil, e a formação da opinião e da vontade institucionalizada no complexo parlamentar (e na prática de decisão dos tribunais) forma um excelente ponto de partida para a tradução sociológica do conceito de política deliberativa. Todavia, a sociedade civil não pode ser tida simplesmente como um ponto de fuga para o qual convergem as linhas de uma auto-organização da sociedade como um todo [...]. Ora, a soberania do povo, diluída comunicativamente, não pode impor-se apenas através dos discurso públicos informais - mesmo que eles tenham se originado de esferas públicas autônomas. Para gerar um poder político, sua influência tem de abranger também as deliberações de instituições democráticas da formação da opinião e da vontade, assumindo uma forma autorizada”. (HABERMAS, 2003b, p. 104-105, destaques de Habermas).

5Diz Habermas: “A política tornou-se, hoje, efetivamente, assunto de um sistema parcial, funcionalmente diferenciado; diante dos sistemas parciais restantes, esse sistema não pode dispor do grau de autonomia que seria exigível para um controle central, isto é, para uma atuação sobre si mesma que parta da sociedade enquanto totalidade e retorne a esta”. (HABERMAS, 2002b, p. 501).

6Sobre essa ideia de uma voz-práxis carnal, política-politizante e vinculada, totalmente oposta à despersonalização, vejamos o que diz o intelectual indígena Ailton Krenak: “Os interesses têm identidade, e só quando essa identidade estiver claramente estabelecida é que poderemos conversar e construir esta nação”. (KRENAK, 2015, p. 29).

7Diz Davi Kopenawa, xamã yanomami: “Hoje, os brancos acham que deveríamos imitá- los em tudo. Mas não é o que queremos. Eu aprendi a conhecer seus costumes desde a minha infância e falo um pouco a sua língua. Mas não quero de modo algum ser um deles. A meu ver, só poderemos nos tornar brancos no dia em que eles mesmos se transformarem em yanomami. Sei também que, se formos viver em suas cidades, seremos infelizes. Então, eles acabarão com a floresta e nunca mais deixarão nenhum lugar onde possamos viver longe deles. Não poderemos mais caçar, nem plantar nada. Nossos filhos vão passar fome. Quando penso em tudo isso, fico tomado de tristeza e de raiva”. (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 75).

Recebido: 12 de Outubro de 2017; Aceito: 22 de Fevereiro de 2019

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