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Conjectura: Filosofia e Educação

versión impresa ISSN 0103-1457versión On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.24  Caxias do Sul  2019  Epub 31-Jul-2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v24.e0190010 

ARTIGOS

O conceito de trabalho em Lukács: implicações no campo da política educacional

The concept of work in Lukács: implications in the field of educational policy

Regina Célia Linhares Hostins* 
http://orcid.org/0000-0001-8676-2804

Olívia Rochadel** 
http://orcid.org/0000-0001-6501-2852

Alessandra Giacomett Melo*** 
http://orcid.org/0000-0003-3502-9084

* Pós-Doutorado em Sociologia da Educaão pela University College of London. Professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Itajaí (Univali). Diretora de Educação na Univali. E-mail: reginalh@univali.br

** Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Univali. Bolsista da Capes. E-mail: olivia.rochadel@gmail.com

*** Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Univali. Funcionária da rede pública do Estado do Paraná (licenciada). Bolsista da Capes. E-mail: alegmello@hotmail.com


Resumo

O artigo é um ensaio teórico com o propósito de discutir as implicações do conceito de trabalho, na perspectiva do filósofo húngaro György Lukács, no campo da política educacional. Em tempos em que a educação brasileira se distancia de um projeto de emancipação do indivíduo, dadas as configurações que vêm assumindo as políticas educacionais nos últimos anos, particularmente as políticas curriculares para o Ensino Médio, parece apropriada a análise do trabalho em sua matriz ontológica, estabelecendo uma estreita correlação entre subjetividade e objetividade. São tratados no decorrer do texto: o conceito de trabalho na ontologia lukacsiana e sua diferenciação do trabalho abstrato - como mantenedor do Capital - e trabalho fundante - como definidor da natureza ontológica do ser social - em correlação com o campo da política educacional, em especial, com alguns princípios que regem a atual reforma do Ensino Médio, elencados para tratar de aspectos da política educacional brasileira que estão a serviço do trabalho abstrato.

Palavras-chave: György Lukács; Trabalho fundante; Política educacional; Reforma do Ensino Médio brasileiro

Resumen

El artículo es un ensayo teórico con el propósito de discutir las implicaciones del concepto de trabajo, en la perspectiva del filósofo húngaro György Lukács, en el campo de la política educativa. En tiempos en que la educación brasileña se aleja de un proyecto de emancipación del individuo, dadas las configuraciones que vienen asumiendo las políticas educativas en los últimos años, particularmente las políticas curriculares para la Escuela Secundaria, parece apropiado el análisis del trabajo en su matriz ontológica, estableciendo una estrecha correlación entre subjetividad y objetividad. Se tratan en el transcurso del texto: el concepto de trabajo en la ontología lukacsiana y su diferenciación del trabajo abstracto - como mantenedor del Capital - y trabajo fundante - como definidor de la naturaleza ontológica del ser social - en correlación con el campo de la política educativa, en especial, con algunos principios que rigen la actual reforma de la Escuela Secundaria enumerados para tratar aspectos de la política educativa brasileña que están al servicio del trabajo abstracto.

Palabras-clave: György Lukács; Trabajo fundador; Política educativa; Reforma de la Escuela Secundaria brasileña

1 Introdução

O filósofo húngaro György Lukács1 (1885-1971) parte de uma investigação ontológico-teórica do ser e o define como ser social. Nos termos desse autor, a sociabilidade, a intelectualidade e, sobretudo, o modo de relação com a natureza em que se produz permanentemente o novo, têm como princípio o trabalho, a categoria fundante. (LUKÁCS, 1979). Sobre a proposição lukacsiana, Lessa comenta que

na investigação ontológica de Lukács o conceito de trabalho comparece em uma acepção muito precisa: é a atividade humana que transforma a natureza nos bens necessários à reprodução social. Nesse sentido, é a categoria fundante do mundo dos homens. É no trabalho que se efetiva o salto ontológico que retira a existência humana das determinações meramente biológicas. Sendo assim, não pode haver existência social sem trabalho. (2012, p. 25, grifos nossos).

O conhecimento da humanidade se constrói devido às relações estabelecidas entre o homem e a natureza - por meio do trabalho - e entre o homem e os demais homens - pela necessidade de articulação do trabalho.

A discussão sobre trabalho é relevante para gerar conhecimento acerca do campo da política educacional, pois, o trabalho é todo ato que compreende uma função social e política - que em Lukács (2010) é primeiramente uma forma específica de ideologia2 - é o segmento pelo qual o ser social interage com os outros e com o meio e se organiza. Assim, os estudos no campo da política permitem conhecer a articulação do ser social e pensar em novas formas de fazê-la.

Visando à particularidade do conceito de trabalho, com foco na ontologia do ser social, Lukács utiliza a definição de Marx (1983) sobre trabalho, cuja ontologia distingue trabalho abstrato de trabalho fundante: o primeiro compreende as atividades assalariadas, próprias do sistema capitalista, em que se define um valor de troca de serviços por dinheiro; o segundo, representa a atividade por meio da qual o homem transforma a natureza e a si mesmo como pressuposto essencial de sua existência no mundo. (LESSA, 2012; LUKÁCS, 2009; MARX, 1983). Logo, o conceito de trabalho, utilizado neste artigo,3 se diferencia do ato de realizar atividades em troca de remuneração, pois se considera que as mesmas resultam em um conceito de trabalho que fora alienado pelo Capital.

Para a escrita do presente artigo, foram basilares alguns questionamentos que definem a estrutura do debate no decorrer do texto: Com que argumentos Lukács defende sua concepção ontológica de trabalho? Nessa concepção, como o trabalho, que é considerado produtor de conhecimento, de formas sadias de sociabilidade e produtor de meios de vida, se expressa no campo educacional? E como este - o trabalho fundante - pode ser pensado em relação às políticas educacionais no âmbito do Ensino Médio? Como tese, pensou-se que o trabalho fundante, embasado na ontologia lukacsiana - que possibilita aos homens se reconhecerem pela atividade humana de relações sociais estabelecidas -, no contexto das políticas educacionais, é posto em detrimento em relação ao trabalho abstrato.

As sessões do artigo decorrem com os seguintes temas: conceito de trabalho em György Lukács; conceito lukacsiano de trabalho no campo da política educacional; articulação do trabalho abstrato no campo da política educacional; considerações finais e, lista de referências.

2 O conceito de trabalho em Lukács

A proposição lukacsiana sobre trabalho, embasada no materialismo histórico-dialético, acontece pelo estudo da ontologia do ser social, pois o homem, de acordo com essa concepção, é um ser dinâmico - produz suas condições materiais de vida -, histórico - os modos de ser são produtos da história das interações sociais, e, sobretudo, social - produz as condições de vida e se produz pela interação em sociedade.

O trabalho, para o ser social, é definido como a atividade que gera o afastamento do homem das barreiras geradas pela condição biológica, pois é a ponte entre o ser e a relação com a natureza, na intenção de modificá-la para atender às suas necessidades e, também, a ponte entre o ser e a sociabilidade em que a interação com os demais homens acontece para a modificação do meio e de si. Assim, o trabalho é a categoria fundante, já que, segundo o filósofo,

somente o trabalho tem, como sua essência ontológica, um claro caráter intermediário: ele é, essencialmente, uma inter-relação entre homem (sociedade) e natureza, tanto inorgânica (utensílio, matéria-prima, objeto do trabalho, etc.) como orgânica, [...], mas antes de mais nada assinala a passagem, no homem que trabalha, do ser meramente biológico ao ser social. (LUKÁCS, 1981, p. 5).

Pelo trabalho, o homem interage com o meio e com os demais homens através de relacionamentos para além da reprodução da espécie, em que há troca de modos de ser, estar e agir.

Essencialmente, o trabalho é estruturador, porque “o animal tornado homem através do trabalho” deixa de estar condicionado a processos fisiológicos e passa a interagir com o meio e com os outros a partir de planos ideados por si. Os planos são fomentados pelo homem por “carecimentos e suas possibilidades de satisfazê-los”, e o asseguram a posição teleológica - quando o ser realiza algo na busca por fins predeterminados pela formulação de ideias e escolhas. (LUKÁCS, 2009, p. 229). O processo de planejamento e execução do plano, através do trabalho, é eminentemente humano e resulta no pôr-teleológico. Ao longo da história da humanidade, o trabalho possibilita reconfigurações na essência do ser, pois cada novo ser humano tem a possibilidade de criar necessidades sobre construções já feitas por outros.

Com o trabalho, portanto, dá-se ao mesmo tempo, no plano ontológico, a possibilidade do desenvolvimento superior dos homens que trabalham. Já por esse motivo - mas, antes de mais nada, porque se altera adaptação passiva meramente reativa do processo de reprodução ao mundo circundante, já que esse mundo circundante é transformado de maneira consciente e ativa -, o trabalho se torna não simplesmente um fato no qual se expressa a nova peculiaridade do ser social, mas, ao contrário, precisamente no plano ontológico, também se converte no modelo de toda a nova forma de ser. (LUKÁCS, 2009, p. 230).

Logo, a teleologia acontece não mais sobre os aspectos naturais unicamente, mas também sobre as construções humanas que foram incorporadas ao longo da história.

A elementaridade do trabalho ao ser social justifica a definição lukacsiana de trabalho como a categoria fundante do mundo dos homens. De acordo com o filósofo, o salto ontológico que marca uma nova esfera do ser, mais complexa que as demais existentes até o momento do salto: os seres inorgânicos que não possuem movimentos próprios - elementos básicos da natureza - e os seres orgânicos - animais que seguem unicamente as determinações biológicas, acontece pelo trabalho. Para além do salto ontológico primeiro, em que o homem se torna um ser social, há sempre, pelo trabalho, a possibilidade de novos saltos - diretamente ligados ao desenvolvimento do ser, pois, segundo Lukács,

todo salto implica uma mudança qualitativa e estrutural do ser, onde a fase inicial certamente contém em si determinadas premissas e possibilidades das fases sucessivas e superiores, mas estas não podem desenvolver-se a partir daquela numa simples e retilínea continuidade. A essência do salto é constituída por esta ruptura com a continuidade normal do desenvolvimento e não pelo nascimento, de forma imediata ou gradual, no tempo, da nova forma de ser. (1979, p. 4, grifos nossos).

De tal modo, o trabalho tem ligação direta com a definição de quem o homem é, pois esse assegura que aconteçam relações materiais e sociais do homem no meio em que está inserido, num processo compreendido pela modificação do homem em suas formas de interação com a natureza e com os demais homens (sociabilidade e comunicação).

Com o trabalho, o ser social passa a valer-se de ferramentas ainda não utilizadas nas outras esferas do ser, como é o caso da intelectualidade e da capacidade projetiva. Isso justifica que, com o processo de trabalho, são criadas necessidades para além de uma “adaptação passiva ao ambiente” e potencializadas as oportunidades de uma “adaptação ativa” que “pode revelar um processo ininterrupto de aperfeiçoamento”. (LUKÁCS, 2010, p. 351). Uma consequência do processo de trabalho, como criador de novas necessidades ao ser, é a divisão social do trabalho.

No contexto de formação de novas necessidades geradas pelos processos de trabalho que nos torna um ser social, Lukács atribui a formação dos complexos sociais. Os complexos, de acordo com o autor, surgem pelas relações sociais estabelecidas através do trabalho e da necessidade de organizá- las. Alguns complexos são: Educação, Arte, Filosofia e Ciência. Para elucidar a relação dos complexos sociais com o trabalho, elaborou-se a Figura 1. Os complexos surgem apenas com o ser social e por sua capacidade de sociabilidade e de fazer planos e executá-los através do trabalho. De tal modo, à medida que as sociedades interagem, os complexos passam a assumir uma autonomia relativa em relação ao trabalho. Para exemplificar essa autonomia, Rossi (2017) cita o fato de que o conhecimento científico acerca dos malefícios dos agrotóxicos, embora seja amplo e comprovado, não é aplicado no dia a dia da indústria alimentícia, visto que atende aos interesses de mercado em produzir mais para vender mais. Assim, a aplicabilidade dos conhecimentos científicos oriundos do trabalho fundante passa a atender a uma nova forma de organização social, que não tem relação ontológica com o trabalho fundante, mas com o trabalho abstrato para atender unicamente às demandas do capitalismo.

Com vistas às formas de organização social, que não têm relação ontológica com o trabalho fundamente e exercem força nos complexos sociais, como é o caso da educação em que as políticas conduzidas por interesses de mercado tornam-se comuns no campo educacional, inicia-se o próximo item na intenção de dialogar sobre os preceitos de trabalho fundante no campo da política educacional.

3 O conceito lukacsiano de trabalho no campo da política educacional

Segundo Lukács (2010), ao executar o trabalho fundante, nos admitimos criativos, seres pensantes, utilizadores de experiências anteriores e da interação com a natureza e com os demais homens para a modificação de coisas e de si. Com isso, deixamos de atender unicamente às necessidades biológicas, para assumir a complexidade de ser evoluciente pela sociabilidade - tornamo-nos um ser social. A educação, nesse contexto, está intrinsecamente ligada ao trabalho, uma vez que se configura como um complexo do ser social (ROSSI, 2017) que, em sua essência, origina-se do trabalho - trabalho fundante - e, a partir de novas objetivações do ser social, passa a relacionar-se com o trabalho de forma independente - podendo ser mantida pelo trabalho abstrato.

A forma de a educação, como um complexo social, atuar na formação do ser social está diretamente ligada à posição teleológica pela qual ela ocorre. De acordo com Lukács (1981), são possíveis dois tipos de posição teleológica, exemplificados na Figura 2. A posição teleológica primária está ligada à intencionalidade inicial do trabalho, que é a “transformação de objetos naturais em valores de uso” (LUKÁCS, 1981, p. 35) e a posição teleológica secundária tem no seu processo a mediação da produção dos valores de uso. (LUKÁCS, 1981). Pela posição teleológica do trabalho, acontece a formação de valores que fundam o ser social, antes mesmo da execução de um trabalho gerado por ele na modificação do meio. Lukács salienta que

o objeto dessa finalidade secundária já não é um elemento da natureza, mas a consciência de um grupo humano; a posição do fim já não visa a transformar diretamente um objeto natural, mas, em vez disso, a fazer surgir uma posição teleológica que tenha, porém, como objetivo alguns objetos naturais; da mesma maneira, os meios já não são intervenções imediatas sobre objetos naturais, mas pretendem provocar estas intervenções por parte de outras pessoas. (1981, p. 26).

Com iss, o ser torna-se um elemento visado pelo trabalho, e o resultado da posição secundária é a modificação dos próprios homens.

As interações, para operacionalizar a prática social e as objetivações do ser social, são, de acordo com Lukács, estabelecidas pela política, que é um complexo do ser social diretamente ligado à realidade em que foi produzido. Para o filósofo, a política é uma forma específica de ideologia que incide sobre a vida humana, ou seja, é um conjunto de proposições elaborado com a finalidade de tornar como interesse coletivo o interesse de poucos (hegemonia da classe dominante), que, consequentemente, atua no âmbito da posição teleológica secundária do trabalho. Desse modo, mesmo quando definida por medidas que visam a atender à sociedade em geral, toda política é produto das estratégias de um grupo e busca incidir diretamente sobre a economia. Assim, o estudo de política requer análise da realidade e não existe estudo de política em sentido universal. (LUKÁCS, 2010).

A política educacional o está imbricada na posição teleológica secundária do trabalho, dão que sua implementação quer a mediação entre os valores de uso e pretensão de provocar intervenções no meio. Ela é um complexo criado pelo ser social, que incide na modificação dos homens pelos homens. Há, nesse movimento, um processo de objetivação do gênero humano fundado por preceitos do trabalho. Mais especificamente, a política educacional, quando observada como uma política estatal, tem a reprodução do sistema capitalista como seu condicionante de atuação. Assim, ela não é somente um complexo do ser social; é também um complexo do Capital.

3.1 Articulação do trabalho abstrato no campo da política educacional

A Reforma do Ensino Médio, promulgada pela Lei 13.415/2017, em 16/2/2017 (BRASIL, 2017), é propícia para que se possa identificar como se configura a posição teleológica secundária do trabalho nas políticas educacionais do País. Segundo o art. 36 da lei

o currículo do Ensino Médio será composto pela Base Nacional Comum Curricular e por itinerários formativos, que deverão ser organizados por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares, conforme a relevância para o contexto local e a possibilidade dos sistemas de ensino. (BRASIL, 2017, p. 3).

Evidencia-se que a reforma institui mudanças na estrutura curricular do Ensino Médio que passam pela carga horária e vão até a oferta do conteúdo a ser ministrado, imbricadas de sentidos (e ideologias) em relação à teleologia do trabalho.

Para além da mudança na estrutura de ensino, percebe-se que a reorganização do currículo, a partir da reforma, em itinerários formativos que acontecem de acordo com a possibilidade de cada sistema de ensino mantido pela parceria entre empresas e instituições privadas de ensino com as instituições de ensino público, dá margem a um ponto crucial à discussão em educação: a escola como um espaço frágil às intencionalidades do mercado. Lê na lei:

[...]

§ 6o - A critério dos sistemas de ensino, a oferta de formação com ênfase técnica e profissional considerará:

I - a inclusão de vivências práticas de trabalho no setor produtivo ou em ambientes de simulação, estabelecendo parcerias e fazendo uso, quando aplicável, de instrumentos estabelecidos pela legislação sobre aprendizagem profissional;

II - a possibilidade de concessão de certificados intermediários de qualificação para o trabalho, quando a formação for estruturada e organizada em etapas com terminalidade. (BRASIL, 2017, p. 4, grifos nossos).

Ao viabilizar que a formação dos jovens aconteça também em espaços de empresas privadas com vistas à formação de mão de obra, verifica-se que a modificação do homem, gerada pela educação em face de sua posição teleológica secundária, está voltada ao atendimento da demanda do mercado de trabalho.

Com a leitura da Lei 13.415/2017, com foco no tipo de transformação gerado pela educação, evidencia-se, também, que a política educacional do Ensino Médio inflexibiliza a possibilidade de ascensão social. (BRASIL, 2017), visto que, concilia a formação básica com a aprendizagem de habilidades voltadas ao mercado de trabalho e permite que parte dessa formação aconteça em espaços fora das instituições de ensino:

[...]

§ 11 - Para efeito de cumprimento das exigências curriculares do ensino médio, os sistemas de ensino poderão reconhecer competências e firmar convênios com instituições de educação a distância com notório reconhecimento, mediante as seguintes formas de comprovação:

I - demonstração prática;

II - experiência de trabalho supervisionado ou outra experiência adquirida fora do ambiente escolar;

III - atividades de educação técnica oferecidas em outras instituições de ensino credenciadas;

IV - cursos oferecidos por centros ou programas ocupacionais;

V - estudos realizados em instituições de ensino nacionais ou estrangeiras;

VI - cursos realizados por meio de educação a distância ou educação presencial mediada por tecnologias. (BRASIL, 2017, p. 4).

A flexibilização dada aos jovens para conciliar a formação básica do Ensino Médio com esferas de sua atuação profissional e convalidação de outros cursos a que tenha acesso, acarreta a diferenciação entre educação que se pretende para a escola pública e a escola privada. Tendo em vista que, nessa proposta, as possibilidades de formação estarão interligadas aos contextos - local e social - em que o aluno estiver inserido. De tal modo, a possibilidade de alunos da classe baixa conciliarem sua formação no Ensino Médio com a realização de trabalhos que possam lhe gerar renda, permite- nos compreender a reforma do Ensino Médio como uma forma de cuidado administrativo para a manutenção da classe trabalhadora, a fim de criar condições para o fortalecimento de formas de trabalho abstrato.

Sobre a participação de empresas privadas assegurada pela Lei 13.415/ 2017, na formação dos alunos do Ensino Médio brasileiro, Bezerra e Araújo comentam que

o alinhamento demonstrado entre empresários e governo não é mera casualidade, mas resultado da interlocução e trânsito que possuem dentro dos centros de poder, o que os coloca (em comparação com outros atores, como associações acadêmicas e profissionais) em situação privilegiada na disputa do campo educacional, resultando na subordinação da agenda educacional ao consenso construído pelos empresários. (2017, p. 614).

Esse cenário permite-nos evidenciar o motivo de a educação (como um princípio emancipatório) não ser foco das políticas de Ensino Médio brasileiro: o fato de os interesses de mercado - otimização de tempo e angariação de massas para obtenção de lucro - terem sido tornados valores comuns no campo da política educacional.

Os preceitos de modernização vincados pela reforma trazem, consigo, o trabalho abstrato e o aluno abstrato, ambos com uma finalidade central: atender às necessidades materiais do mercado. Isso implica, sobretudo, a formação de ideais em que os jovens são pensados por meio dos interesses do setor privado. Bezerra e Araújo complementam:

O teor da reforma do ensino médio já estava sendo sinalizado pelo empresariado nacional, estando claras as convergências entre as diretrizes e proposições dos reformadores empresariais no que tange à flexibilização curricular; instituição de percursos escolares e diminuição no número de disciplinas; formação técnica integrada ao ensino médio; discurso de valorização do projeto de vida dos alunos; expansão dos canais para parcerias com o setor privado; expansão da carga horária e das escolas de ensino integral; ênfase em Português e Matemática. (2017, p. 612).

Identifica-se que a reforma do Ensino Médio põe em vigor preceitos neoliberais,4 tais como: o ajuste da formação de jovens em favor das necessidades do mercado o qual facilita a articulação das políticas educacionais a serviço do trabalho abstrato; o favorecimento do estilo de governo apoiado na governança, em que o Estado deixa de ser provedor de serviços à sociedade e se torna, apenas, o regulador das atividades realizadas por diversos atores, como é o caso das filantropias que, de acordo com a etnografia de rede feita por Avelar e Ball (2017), estão presentes na formação de políticas educacionais brasileiras num movimento que se aproxima de uma despolitização e “desresponsabilização” por parte do Estado ao executar o seu papel.

A formação para o trabalho abstrato, prevista pelas políticas educacionais, atua também sobre a subjetividade do ser e se desvencilha da possibilidade de transformação desses pela formação de valores, pois o produto do trabalho focalizado, nesse contexto, é a mera obtenção de lucro. Nessa perspectiva, o conceito de trabalho em Lukács é importante, para que possamos compreender as contradições presentes na posição teleológica da educação, quando assumida por preceitos neoliberais. De acordo com esse autor,

a matemática, a geometria, a física, a química, etc. eram originariamente partes, momentos desse processo preparatório do trabalho. [...] Quanto mais universais e autônomas se tornam essas ciências, tanto mais universal e perfeito torna-se por sua vez o trabalho; quanto mais elas crescem, se intensificam etc., tanto maior se torna a influência dos conhecimentos assim obtidos sobre as finalidades e os meios de efetivação do trabalho. (2009, p. 234).

O trabalho fundante, nesse sentido, acontece pelo fazer científico e o acesso às ciências, que geram novas necessidades de trabalho, novas formas de ser. Já o trabalho abstrato é focalizado no atendimento de uma demanda de atividades, definida pelo mercado e executada em troca de remuneração.

Entende-se que a possibilidade de uma sociedade estar integralmente ativa ao contexto sócio-histórico-cultural se dá pelo trabalho fundante, já que o mesmo corrobora a interação do homem com os aspectos da estruturação social e dos tratados sociais e culturais de seu tempo. Já o trabalho abstrato possibilita a poucos a interação, a fim de modificar o meio e os próprios homens. No entanto, se evidencia que a política educacional, por ser um complexo do ser social que interage histórica e dialeticamente com o ser social, não pode estar por completo dissociada de interesses do Capital.

A política educacional possui fragilidades, pois a formação social orientada pelas relações de mercado e sua necessidade de gerar somente lucro, impossibilitam-na de se aprofundar na superação da exploração do homem pelo homem. Ela é, então, um complexo do ser social que permite a abertura de caminhos “criar condições materiais necessárias e um campo de possibilidades para a livre-utilização de si” (LUKÁCS, 2009, p. 242), mas que não se desvincula da reprodução do Capital, sendo esse seu limite objetivo intransponível.

Com a leitura da Lei 13.415/2017 (BRASIL, 2017), evidenciam-se dois movimentos que consolidam a política educacional brasileira para o Ensino Médio como um complemento do sistema de Capital: o simples fato de a mesma ser uma política estatal; e a descentralização do poder do Estado brasileiro nas empresas e grupos com interesse privado, presentes na formação da nova lei. Vê-se um cenário em que a educação está aberta a uma atuação de livre-mercado possível de ser executada através de redes de contatos e chancelada por leis. E, se antes era preciso que empresários investissem em uma carreira política no Estado, para que seus interesses tivessem mais voz e se materializassem nas políticas, agora basta ter mais dinheiro e feeling para os negócios educacionais. (BALL, 2014).

Sendo a educação um “processo de autêntica humanização” que nos coloca “em condições de dar um passo à frente com relação à maioria de seus contemporâneos” (LUKÁCS, 2009, p. 243), a leitura acerca da proposição lukacsiana sobre trabalho incita-nos a afirmar a desprivatização da política educacional e a desprivatização do Estado, como estratégias para o desvencilhamento da educação dos preceitos neoliberais formadores de políticas que têm como premissa a obtenção de lucro aos atores envolvidos com as redes de formação de políticas.

Entende-se que a perspectiva de superação do capitalismo está embasada na superação das relações baseadas na alienação que foram comuns ao longo da história do ser social. Mas se vê também, os complexos sociais, dentre eles a educação e a política educacional como fundamentadores do entendimento do homem como indivíduo. Assim, para o momento, crê-se na necessidade de aprimoração do exercício da dialética na educação, para que as relações sociais de dominação não sejam as únicas centralizadores do acesso ao saber produzido.

4 Considerações finais

No campo da política educacional, a investigação sobre o conceito lukacsiano de trabalho, requer conhecimentos sobre a posição teleológica do trabalho na constituição do ser social, pois o homem, na teorização lukacsiana, é um ser social e histórico, determinado por suas capacidades biológicas e, essencialmente, pelo conjunto de objetivações da sociedade na qual está inserido. Conforme o filósofo, são possíveis duas posições teleológicas: a primária, em que o trabalho acontece com a finalidade de modificar a natureza; e a secundária, a qual tem como finalidade a modificação dos próprios homens. A educação, definida por Lukács, como um complexo do ser social, efetiva-se pela posição teleológica secundária, pois visa à modificação do ser social e, consequentemente, não é neutra aos interesses do Capital.

Em Gÿorgy Lukács, o trabalho que é a categoria fundante do mundo dos homens, devido ao seu caráter de sociabilidade e possibilidade de aperfeiçoamento do humano, é o trabalho fundante. (LUKÁCS, 1981; 1979; 2009; 2010). O trabalho fundante é aquele que, segundo o filósofo, eleva a atuação do homem à transformação da natureza e de si. Já a atividade assalariada em que se prioriza a manutenção do Capital, é entendida como o trabalho abstrato.

Em busca de aferir a tese de que o trabalho fundante, embasado na ontologia lukacsiana - que possibilita aos homens que se reconheçam pela atividade humana de relações sociais estabelecidas - no contexto das políticas educacionais, é posto em detrimento em relação ao trabalho abstrato, encontrou-se que o conhecimento científico acerca da educação, embora seja amplo e comprovado, não é focalizado pela reforma do Ensino Médio, tal como o conhecimento acerca dos agrotóxicos não é utilizado por toda a indústria alimentícia. Ambos atendem aos interesses de mercado em produzir mais para vender mais e colocam o trabalho e o ser social gerado por ele, em favor de nova forma de ser, que nos torna resilientes - pelo fato de suportarmos uma carga horária de trabalho extensa e exaustiva - e gratos àquilo que temos - pelo simples fato de sermos mão de obra e de usufruirmos de bens de consumo. Nesse contexto, evidenciou-se, ao longo da pesquisa e escrita do texto, movimentos que consolidam a política educacional brasileira do Ensino Médio como um complemento do sistema de Capital: pelo fato de ela ser uma política estatal - e consequentemente de estar ligada à ideologia de quem está no poder -e, também, por ela viabilizar a descentralização do poder do Estado em prol do exercício de empresas e grupos com interesse privado na formação da nova lei. Esse cenário tem como princípio ativo: jogos de interesse ideológicos negociados por pessoas com feeling para “negócios educacionais”. (BALL, 2014).

A diferenciação entre trabalho fundante e trabalho abstrato colabora para a compreensão da política educacional, promulgada pela Lei 13.415/2017, em 16/2/2017 (BRASIL, 2017), como uma política estatal que tem, em sua organização, um objetivo intransponível: a reprodução do Capital. Pois a participação indiciosa de atores na formação de políticas, no contexto da reforma do Ensino Médio, ancorada pela Lei 13.415/2017, acontece sob a configuração de uma “flexibilização das formas de ensinar” e de “oportunidades novas de os jovens adquirirem conhecimento”, o Estado, com a reforma, passa a estabelecer parcerias, à luz do modelo de governança, para configurar uma política educacional de Ensino Médio no Brasil que atenue os interesses de mercado. Tais medidas conceituam a educação como sendo um complexo social ao atendimento das demandas de atividades de trabalho abstrato geradas pelo Capital - atividades assalariadas presentes em um conjunto de relações e práticas sociais de mercado que mobilizam a intencionalidade no lucro.

Embora toda política estatal esbarre na reprodução do Capital, e todo processo de trabalho implique um processo social, sendo positivo ou não, para a transformação da sociedade que nele atua. (LUKÁCS, 1981). Entende- se que vitalizar o conceito de trabalho fundante como definidor do homem, no campo das políticas educacionais, é necessário, porquanto vê-se a conscientização dos homens sobre os conflitos inerentes à sociabilidade do seu contexto histórico como uma tarefa possível de ser executada pela via da educação.

Evidencia-se que a educação, pelo fato de ser um “processo de autêntica humanização” (LUKÁCS, 2009, p. 243), pode ir além de uma formação conduzida à obtenção de lucro. As políticas educacionais, nesse contexto, fazem sentido quando são aplicadas a uma formação com foco no ser social, na universalização das ciências já conhecidas do homem e na fundamentação de um espaço em que o ser social possa perceber-se dentro dos conflitos de interesses coexistentes em seu tempo. Logo, através da política educacional - entendendo-se a política como um conjunto de proposições com finalidade imbricada de interesses individuais, que se desdobram em ações para mudanças de grupos - pode-se esclarecer o conflito fundamental entre trabalho e Capital: permitir a superação da exploração do homem pelo homem.

Referências

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1Nascido em Budapeste em 1885, o filósofo doutorou-se em Ciências Jurídicas e depois em Filosofia pela Universidade de Budapeste. E, a partir de 1930, passou a dedicar seus estudos, com base analítica, ao pensamento de Karl Marx. Por isso, Lukács é definido como um filósofo marxista e é um dos pensadores mais populares dos estudos marxianos. (LUKÁCS, 2010, p. 11).

2Em Lukács, lê-se ideologia como uma prática imbricada de função social, pois tem seu surgimento em pensamentos do ser que “somente depois de terem se tornado veículos teóricos ou práticos para combater conflitos sociais, quaisquer que sejam esses, grandes ou pequenos, episódicos ou decisivos para o destino da sociedade” tornam-se - independentemente de terem, ou não, intencionalidade falaciosa - ideologia. Assim, o filósofo prevê a ideologia como uma prática social basilar à organização do ser diante de ações e reações com o meio e com os outros. (LUKÁCS, 1987, p. 448-449).

3No presente artigo, referido como trabalho fundante, mas em outras referências encontrado como trabalho associado. (ROSSI, 2017).

4Entende-se o neoliberalismo como um conjunto de valores aplicáveis em prol de interesses de mercado que penetram nos mais variados aspectos do ser social, focalizando sempre o acúmulo de capital e a obtenção de lucro financeiro. (BALL, 2014).

APÊNDICES

Fonte: Os autores (2018) embasados em Rossi (2017, p. 678).

Figura 1 Relação entre trabalho fundante e complexos sociais 

Fonte: Os autores (2018) embasados em Lukács (1981).

Figura 2 Posições teleológicas 

Recebido: 10 de Setembro de 2018; Aceito: 24 de Fevereiro de 2019

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