“O ensino deve ser orientado ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e ao fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais.”
(Assembleia-Geral das Nações Unidas Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948).
“A solução mais oportuna é a de eliminar a gestão pública das escolas.”
(Milton Friedman, Capitalismo e liberdade, 2014).
Considerações sobre o atual mercado neoliberal
Os governos neoliberais tratam o mercado como se fosse uma entidade completamente autônoma, sobre a qual sequer o Estado tem ingerência, como se a única opção que lhes resta seja formular políticas de adaptação à lógica concorrencial. Gramsci, em seus Cadernos do cárcere explicou:
O liberalismo é uma regulamentação de caráter estatal, introduzida e mantida por via legislativa e coercitiva: é um fato de vontade consciente dos próprios fins e não a expressão espontânea, automática do fato econômico. Portanto, o liberalismo é um programa político, destinado a transformar, enquanto triunfa, o pessoal dirigente de um Estado e o programa econômico do próprio Estado, isto é, a transformar a distribuição da renda nacional. (1975, p. 159).
O programa liberal tende a privatizar o Estado, submetê-lo à direção de funcionários que são a expressão direta do capital e, enquanto tal, marcadamente hostil a fórmulas organizativas e democráticas da sociedade, consideradas um obstáculo ao acúmulo privado de funções, poderes e recursos.
Para entender profundamente o fenômeno, é preciso ter presente, constantemente, a premissa capitalista da necessidade de expandir-se para fora de si mesmo: novos mercados, nova mão de obra menos exigente, novas matérias-primas, novas mercadorias. No âmbito das mercadorias, a última onda é a das substâncias e cirurgias cosméticas, o chamado mercado skincare. O Brasil já é o terceiro maior consumidor de cosméticos mundial. No mercado global, os cosméticos ocupam a sexta maior participação de varejo. Mesmo na crise pós 2008, o crescimento permanece em torno de 10% ao ano.
Entretanto, há dois fenômenos recentes no mercado neoliberal, que precisam ser considerados para entendermos melhor as tendências. Tratase de fenômenos sui generis que tornam a atual fase do capitalismo única:
a) a concentração de capital em sociedades multinacionais, em grandes corporações. Não havendo suficiente produção nova, ocorre a canibalização das empresas;
A tendência concorrencial, que pretensamente aumenta a oferta e a qualidade a uma demanda cada vez menor, na verdade promove a canibalização entre as instituições e uma concorrência que não promove a qualidade, mas a deterioração da qualidade e a precarização das relações, em nome do preço.
No âmbito educacional, esta competição é estimulada por políticas governamentais que desregulam e toleram maior “liberdade de movimento” das instituições de educação. Depois da aglomeração mediante a canibalização, começa a ganhar corpo entre nós um outro movimento, o dos convênios com o mundo das empresas. Sob o véu da aparente modernização, esconde-se um processo de desmantelamento da pesquisa no país. Sob a égide do “Future-se!”, abandonamos qualquer pretensão de um desenvolvimento técnico-científico próprio.
São muitas as instituições que, de modo mais ou menos explícito, estipulam acordos com empresas que não têm relação alguma com a educação. A grande vantagem que a escola pode ter, naturalmente, é o dinheiro que as empresas transferem mediante os instrumentos que oferecem gratuitamente ou a baixo custo, permitindo, assim, torná-la mais atraente. Por outro lado, a empresa obviamente tem um importante retorno com estas “doações”: o ensino é em boa parte guiado pelas exigências do capitalismo, formando assim mais trabalhadores úteis às empresas ativas naqueles setores que hoje guiam a economia.
As escolas de Ensino Fundamental e Médio recebem ofertas de patrocínio e de material didático. Isso porque, segundo um estudo realizado na França, 43% das famílias têm o seu consumo influenciado pelas crianças, que, por sua vez, são influenciadas pelo material didático utilizado na escola.
Quais pais analisam cuidadosamente o material didático dos seus filhos? Em Caxias do Sul, por exemplo, o material didático das escolas privadas é controlado por um único fornecedor. Se uma criança, na escola, usa um computador da Microsoft (Microsoft patrocina o laboratório de informática), é difícil que, em casa, passe a usar um Macintosh ou um sistema operacional aberto.
As universidades, por sua vez, inclinam-se a ser institutos politécnicos que formam (“tiram da forma”) jovens trabalhadores, para inserirem-se em determinados setores do mundo do trabalho que, neste período de constante crescimento tecnológico, são mais rentáveis para o mercado. Eles mesmos recebem, portanto, pressões do sistema econômico, de modo que se possa orientar o ensino na direção mais cômoda às necessidades da economia privada.
b) a expansão das empresas multinacionais para o setor público. A crise financeira foi uma espécie de “Papai Noel” para as grandes multinacionais, uma esplêndida oportunidade para obrigar os governos a mercantilizarem enormes espaços do setor público; a criarem um novo campo de acumulação do capital, em nome do corte de gastos e do reenquadramento do orçamento público;
A crise de 2008 obrigou os governos a salvarem os bancos, o que criou um enorme imperativo de corte nos orçamentos do setor público. Isto foi visto pelo novo tipo de multinacionais, que consideram o próprio futuro dependente, especialmente, do crescimento do próprio mercado no setor público, como uma enorme oportunidade, porque entenderam que a pressão sobre os orçamentos públicos seria transferida, em termos políticos, a uma pressão a privatizar, de modo a economizar. Montou-se uma retórica que pressupõe que o setor privado seja mais eficiente, difundindo a ideia de que privatizar será sempre mais econômico. As empresas, então, viram isso como uma nova oportunidade de ouro para fecharem uma quantidade de novos contratos. As empresas miraram sobretudo na saúde e educação, como duas áreas com o máximo potencial de expansão.
Os planos de ajustamento estrutural, impostos pelo Fundo Monetário Internacional e os programas do Banco Mundial nos países em desenvolvimento, produziram maior exclusão social e favoreceram a expansão das agências for profit. Inclusive a linguagem utilizada pelas instituições internacionais, na descrição das famílias e de estudantes como clientes/consumidores e das Instituições de Ensino Superior como fornecedores de “um produto educativo”, é sinal preocupante da difusão de um projeto cultural orientado ao mercado. Considere-se que, já em maio de 2000, em Vancouver, ocorreu o World Educational Market, que reuniu numerosos produtores da “mercadoria saber”: produtores que têm a intenção de abrir à privatização um mercado estimado em 3% das atuais trocas comerciais, cerca de 2.000 bilhões de dólares.
A tendência a abrir espaço ao processo de privatização da educação é garantia de enormes lucros. Nunca aprendemos suficientemente e, de uma vez por todas, a educação pode ser continuamente completada e renovada: em suma, é o business ideal para um capitalismo em sua busca frenética de novas mercadorias, uma vez que conseguiu destruir o monopólio dos Estados na educação pública e gratuita. É preciso, portanto, “eliminar a gestão pública das escolas”, afirma Friedman. (2014, p. 184). O Estado se limitaria a garantir que as escolas incluam um mínimo de conteúdos comuns nos próprios programas, exatamente como hoje as autoridades sanitárias garantem que os restaurantes respeitam padrões mínimos de higiene. Um tal sistema permitiria uma forte concorrência entre as instituições de ensino, e o efeito da concorrência contribuiria também para submeter os salários dos professores à disciplina do mercado. Segundo Friedman (2014), atualmente o problema não é que o salário dos professores seja em média muito baixo, mas que são demasiadamente rígidos e uniformes. Os maus professores, segundo ele, são pagos demais, enquanto os bons ganham pouco. Os aumentos tendem a ser uniformes e a serem determinados por fatores, como o tempo de serviço e os títulos obtidos, em vez do mérito.
O grande risco de um tal sistema é que a humanidade se divida entre uma aristocracia do saber e da inteligência e uma massa cada vez menos informada do valor do conhecimento. Esta disparidade reproduzirá em escala sempre maior a desigualdade das condições econômicas.
O Acordo Geral sobre Comércio de Serviços
O General Agreement on Trade in Services (Gats) permitirá o livrecomércio internacional no setor de serviços, com menos restrições possíveis para seus fornecedores. Menos Estado e mais mercado, ou, como afirma o atual presidente do Brasil, “o Estado não pode atrapalhar quem quer produzir”.
Os princípios deste Acordo Geral sobre Comércio de Serviços são:
a) livre-concorrência: prevê que não haja nações mais favorecidas naconcorrência interna, pois favorecer mais as empresas de um país, em detrimento das de outro, lesaria as regras do livre-mercado. Portanto, por exemplo, os fornecedores de serviços dos países em desenvolvimento deverão ser tratados igualmente, em relação aos fornecedores dos países industrializados. Uma tal situação levará inevitavelmente à paralisação dos serviços dos países pobres. Todos os fornecedores deverão ser tratados como os nacionais, inclusive os benefícios financeiros e os direitos legais. Esta regra impõe, portanto, que não poderão existir financiamentos estatais, considerados como concorrência desleal em relação às empresas privadas e, portanto, prejudiciais ao livre-comércio. Inevitavelmente, os países serão levados a privatizar as instituições de ensino. Países que têm economias fortes poderão expandir sem resistências os próprios mercados, enquanto os países que têm economias fracas não terão possibilidade alguma de reforçar os próprios mercados. Em um país como o Senegal, por exemplo, poderá não haver mais nenhuma escola senegalesa, pois os serviços escolares serão todos progressivamente geridos por empresas
“produtoras de saber” do Ocidente industrializado;
b) acesso ao mercado: um número de fornecedores de serviços em umsetor não pode por princípio ser limitado. Todos os membros da Organização Mundial do Comércio devem ter acesso ao mercado nacional interno. Tendencialmente, os pequenos serão esmagados pelos grandes produtores;
c) acesso limitado à educação: a privatização das instituições escolarese universitárias provoca uma notável limitação do acesso à instrução, leva a um investimento de recursos sempre menor e concentrado na instrução básica por parte do Estado, com um progressivo aumento do abandono e do analfabetismo. É evidente que não será possível aos estudantes escolherem livremente o próprio percurso formativo. Depende e dependerá sobretudo das condições financeiras familiares, da capacidade da família de sustentar as mensalidades, da possibilidade, enfim, de pagar pela aquisição de um direito que deveria ser fundamental. Quem frequenta o ensino público, pouco financiado e de baixa qualidade, não tem o conhecimento adequado para ingressar na universidade pública, nem, evidentemente, o dinheiro para pagar a universidade privada;
d) “antidemocraticidade” do sistema: a desestruturação do sistemapúblico da instrução e da universidade provocará uma consequente eliminação de todos os órgãos colegiados, pois é fato que uma empresa toma decisões de modo muito diferente daquele utilizado pelo sistema público. No nosso contexto, a universidade comunitária defronta-se com um dilema administrativo: gestada como pública, tem uma estrutura colegiada de gestão, favorecendo, em princípio, a “democraticidade”, mas tornando mais lentos os seus processos em relação a um mercado cada vez com tempos mais breves, pedindo tomadas de decisão rápidas. O gestor na universidade comunitária encontra-se entre os interesses da coletividade (comunidade de discentes, comunidade de docentes, comunidade de técnicos) e a necessidade de agilizar os processos em razão da própria sobrevivência da instituição;
e) liberdade de ensino: o que acontece se um professor decide ensinar,por exemplo, teorias contrárias àquelas do livre-mercado, que estão na base do pensamento das multinacionais, que investem na comercialização do ensino? Eu vos digo: ouvidoria apresentada pelos alunos (às vezes filhos do neoliberalismo, às vezes filhos dos próprios investidores), com o aval dos gestores educacionais contaminados pela lógica de mercado;
f) produção dos saberes: o conceito de mercado da instrução carregaconsigo uma ideia da instrução como “produto” e dos estudantes como “consumidores” ou “usuários”. Nesta visão, não existe consideração alguma dos estudantes como potenciais criadores de saber. Este modo de ver as coisas é diametralmente oposto à concepção do saber, como resultado de um empenho cultural coletivo. Quer dizer que o estudante jamais poderá ser um coautor do próprio processo formativo, jamais poderá se sentir protagonista no processo da aprendizagem, será um simples receptor de um produto “pré-confecionado”. Vejamos o que está acontecendo com a padronização dos processos, nas chamadas trilhas de aprendizagem adotadas na Educação a Distância.
Na Educação a Distância, que no Ensino Superior em pouco tempo ultrapassará a presencial e se pretende também no Ensino Médio, a relação pedagógica, que permite a troca e a integração entre os indivíduos, é vivida quase como um entrave, uma perda de tempo, um desperdício de recursos. Por isso, procede-se à construção de uma aprendizagem fundada na não relação, no não espaço, na solidão de um indivíduo fragmentado, instruído por um saber fragmentado, para uma sociedade fragmentada.
A mercantilização da educação comporta a redução do tempo necessário para a aprendizagem; por meio da segmentação do saber, põenos diante de uma espécie de taylorismo da aprendizagem, com base no qual cada um realiza, em breves períodos, uma operação repetitiva e parcial de um processo complexo, do qual não tem conhecimento e consciência. Professor/tutor e estudante são inseridos como engrenagens em um sistema de instrução autômato, ou são “carne que cai no moedor”, como em The Wall, de Pink Floyd.
Paradigmas educacionais e trabalho docente
O paradigma do desenvolvimento humano, devido principalmente aos trabalhos de Sen (2010a; 2010b) e de Nussbaum (2017), est centrado na expansão das liberdades pessoais e v a educação como fator de emancipação individual e de promoção da democracia.
Nussbaum (2017) critica a cultura da competitividade e do progresso pessoal como uma visão que gera indivíduos egocntricos e ensimesmados, de tal forma a incapacit-los para a compreensão e a sensibilidade de valores éticos fundantes da civilidade e para a construção de uma sociedade democrática. De acordo com a filsofa, o paradigma do desenvolvimento humano um projeto de crescimento, em que o importante são as oportunidades dadas ao cidadão. Este deve ter condições para o seu desenvolvimento dentro de um referencial de dignidade humana, e de desenvolvimento dos valores da autonomia individual e social. Mas, para que isto aconteça, fundamental estabelecer uma relação dialogal entre os governos e o povo, e o estabelecimento de um espaço comum de encontro dos cidadãos, para além do recôndito de sua vida privada. Como na democracia ateniense, os cidadãos de hoje também precisam de uma educação ampla, ecumênica, para pensar e, posteriormente, argumentar. necessário capacitar os indivíduos para refletirem sobre temas políticos, sem restringirem-se aos aspectos técnicos dos problemas.
Nussbaum (2017) ressalta a importância da filosofia e da maiêutica para o exercício do pensamento democrático. A autora recorre a Sócrates e ao seu ideal, em que os indivduos aprendem a capacidade e a autonomia para pensar e argumentar por si mesmos, em vez de se submeterem-se passivamente tradição e autoridade, como ferramenta para entender o mundo. democracia interessa sujeitos que tenham um olhar amplo e complexo da sociedade para pensar criticamente as questões mais prementes que surgem em nossa convivência comum; que tenham a capacidade de compreender empaticamente a experincia de vida e o sofrimento dos outros.
Vale recordar um texto de Dewey:
O critério que se deve aplicar para julgar o valor das práticas que existem nas escolas também social. Em um mundo empenhado amplamente em uma corrida louca e muitas vezes brutalmente dura em direção s conquistas materiais mediante uma impiedosa concorrência, tarefa da escola realizar um esforço incessante e inteligentemente organizado para desenvolver a vontade de cooperação e o espírito que v em cada outro indivduo uma pessoa que possui um direito igual de gozar dos produtos materiais e morais das descobertas, da produção, da habilidade e dos conhecimentos coletivos dos homens. (1959, p. 53).
Contrariamente, no paradigma do capital humano, atualmente dominante, a escola vista em função do sistema econômico. A sua tarefa formar produtores competentes, em benefício da competitividade das empresas. Obviamente, a formaão dos produtores uma das tarefas do sistema de instrução, e seria um equívoco não se pôr a questão do nexo entre escola e economia. Entretanto, reduzir a tarefa formativa a isso gravemente unilateral e denuncia uma ntida subalternidade ao economicismo neoliberal. Ao paradigma concorrencial interessa indivíduos repetidores e disciplinados.
O modelo de crescimento econômico, desconectado da igualdade distributiva e social, de uma democracia estável e da boa qualidade nas relações raciais e de gênero, passou a imperar em vários países. Mas, para a efetivação deste modelo, preciso formar profissionais que sejam preparados para atuar neste novo mercado. O que tivemos como consequência nos currículos acadêmicos foi a superação de uma cultura de formação mais ampla e plural para a conformação de um profissional apto a atender às necessidades deste mercado financeiro.
A este propósito importante lembrar o peso crescente do discurso sobre as competências, pressionando as instituições de ensino a reverem os seus planos de ensino, a partir desta lógica. Isoladamente, o conceito de competência pode assumir um valor positivo: saber escrever um artigo, saber ler um gráfico, saber reagir adequadamente a uma situação específica, etc. Certamente são objetivos úteis que todos têm de perseguir. Mas a aquisição das competências se tornou um fetiche, um fim em si, que pode levar desnaturalização do sentido último da educação e, consequentemente, o próprio papel do professor. As pressões para estruturar as atividades educativas em função das competências, são fortes, correndo o risco de colocar em segundo plano os objetivos ligados aos saberes disciplinares.
Vergne, Clément e Dreux indicam que
a promoção da noção de competências e dos dispositivos de avaliação a ela associados opera uma mudança radical da ação pedagógica, dos seus conteúdos e do seu sentido. A transformação dos programas reduz progressivamente os saberes e os conhecimentos a simples suportes do saber fazer como objetivo da ação pedagógica. A atual modificação da escola est sendo operada por meio da perda de sentido das disciplinas. (2011, p. 252)
fcil, seguindo esta abordagem, ser levado a distinguir entre saberes a valorizar, porque mais facilmente utilizáveis para desenvolver uma determinada tarefa e, por outro lado, saberes menos importantes e, portanto, mais dispensáveis. H um desprezo pela formação em disciplinas como as artes e a literatura, pois se considera que elas não conduzem nem ao progresso das pessoas nem ao progresso da economia nacional. Por esse motivo, no mundo inteiro, “os cursos de artes e humanidades estão sendo eliminados de todos os níveis curriculares, em favor do desenvolvimento dos cursos técnicos. (BALDACCI, 2014, p. 23).
O perfil profissional do docente útil a um ensino por competências não pode ser idêntico quele que atua numa aprendizagem dos saberes. Nesta última, a preparação disciplinar: um bom professor deve possuir um bom conhecimento dos principais conteúdos da sua disciplina e padronizar a sua lgica interna, a epistemologia, indispensável bússola que orienta as opções na preparação das aulas. Isso não significa que a instrumentalização pedagógica seja menos necessária e útil.
No ensino por competências, as exigências docentes são outras. Uma competência não pode ser transmitida ou ensinada enquanto tal. Ela resulta do exercício da resolução de problemas. O professor deve, portanto: ser formado na sua capacidade de criar situações problemáticas para envolver os estudantes; aprender a decompor os saberes em tarefas separadas; detalhar com precisão as sequências das aulas e os seus objetivos específicos; compor grades e planos de ensino que ponham em primeiro plano as competências buscadas e as metodologias/estratégicas utilizadas. Às vezes se chega a uma padronização dos procedimentos a serem aplicados e a uma rigidez das regras que chegam a anular paradoxalmente a própria eficácia didática.
Esta espécie de “taylorização da atividade docente, como foi definida por Laval (2004), faz o método prevaricar sobre o conteúdo, tornando-o o ponto cardeal em torno do qual construir a atividade didática. O bom professor ser primeiramente aquele que sabe planejar e animar atividades capazes de pôr os estudantes em atividade. A sua preparação disciplinar concebida como um elemento útil para reforçar estas suas capacidades, estas suas competncias. Na França, por exemplo, entre as competências fundamentais na formação dos professores definidas pelo Haut Conseil de l’Éducation (2006) est o “conhecimento do mundo empresarial, com a obrigação de realizar um estágio de pelo menos um mês em uma empresa.
As implicações são numerosas. No limite deste trabalho, vale a pena acenar para o fato de que a lógica das competências tende primeiramente, como anteriormente dissemos, a responder a uma demanda precisa do mercado. As necessidades da economia modificam-se constantemente. Num contexto de forte instabilidade econômica e de crescentes ritmos de inovação, tornou-se cada vez mais difícil prever a evolução do mercado e, consequentemente, a evolução dos conhecimentos em torno dos quais organizar a formação das futuras gerações. Denuncia-se com maior insistência os limites da formação escolar, incapaz de preparar adequadamente os jovens para a nova realidade do mercado do trabalho. O trabalhador do futuro, segundo Hirtt (2009, p. 9), aquele que demonstra flexibilidade, adaptabilidade e polivalência: no mercado de trabalho […] não se busca trabalhadores que ‘sabem’ e que ‘podem’ muito, mas trabalhadores que são e permanecem competentes - ou seja, reativos e adaptáveis - com o fim de conseguir enfrentar inovação e processos complexos.
Em razão das inovações desejáveis na educação, serão necessárias também profundas mudanças na figura do professor (em termos de formação, de modalidade de exercício das funções e de níveis e critérios de retribuição). Estas características referem-se, sobretudo, às modalidades temporais (horários, “estagionalidade, possibilidade de interrupção, etc.) da atividade laborativa e a formação de um capital humano não altamente especializado, mas sujeito a riscos limitados de esgotamento e obsolescência. A maioria dos atuais professores não está certamente disposta a aceitar um tipo de trabalho radicalmente diferente daquele prestado até hoje. Uma das formas mais óbvias de mudança e de diversificação da atividade docente, certamente, será a distinção entre tempo parcial, tempo integral e também aquele que poderíamos chamar de tempo superintegral. Consideramos possível que, num curto prazo de tempo, o trabalho docente seja contratado sob o mesmo regime de trabalho temporário, de acordo com o tempo de duração do módulo a ser ensinado ou em compensação pelo material didático elaborado. É possível que venham a ser aplicados também critérios distintos na esfera da retribuição, reservando aos professores que têm maior preparação, que desenvolvem tarefas mais complexas ou trabalham mais, retribuições mais elevadas e caracterizadas por um peso dos componentes variáveis e incentivadores maiores do que a retribuição prevista para os professores com menor qualificação, ou que desenvolvem uma gama mais limitada de funções.
No que concerne às funções, pode-se prever maior variabilidade, isto é, a possibilidade de unir mais de uma disciplina; de praticar diversas modalidades de ensino para uma mesma disciplina, e de desenvolver funções interdisciplinares, etc.
Considerações finais
Constata-se que a aplicaão dos princípios neoliberais, no âmbito das organizações educacionais, leva inerentemente precarização das relações e das condições de trabalho dos professores do Ensino Superior. As relações de trabalho tendem a ser profundamente hierarquizadas, caracterizando o papel do professor como meramente tarefeiro.
A submissão da educação às regras do mercado neoliberal leva a uma promoção da competitividade de caráter acrítico e a assunção obrigatria deste discurso inclusive pelo professor que vê progressivamente, as condições do exercício da docência serem precarizadas, em nome da minimização de custos e da sustentabilidade.
Por fim, deve-se ressaltar que o maior prejuízo ser pedagógico, pois a relação professor/aluno ser deficitária, considerando que o aluno ser, na verdade, um cliente e o professor, o fornecedor do produto e garantidor da sua satisfação.