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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.24  Caxias do Sul  2019  Epub 31-Jul-2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v24.e019014 

ARTIGOS

Filosofia, tragédia e ensino do homem grego

Philosophy, tragedy and teaching of the greek man

Maria Elizabeth Bueno de Godoy* 
http://orcid.org/0000-0002-7070-2994

Luiz Maurício Bentim da Rocha Menezes** 
http://orcid.org/0000-0003-4925-9876

* Doutora em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Professora de Filosofia Antiga e Medieval do Colegiado de Filosofia da Universidade do Estado do Amapá (UEAP). E-mail: mariebueno70@gmail.com

** Doutor em Filosofia pelo PPGLM/UFRJ. Professor de Filosofia, Ética e Política do Instituto Federal do Triângulo Mineiro (IFTM). E-mail: lmbrmenezes@yahoo.com.br


Resumo

O intuito do presente artigo é problematizar o ensino do homem, na perspectiva da Grécia antiga. Pretendemos, assim, trazer questões que possam auxiliar a investigação para uma solução coerente e satisfatória do ensino do homem grego. Para tal, retomaremos alguns conceitos gregos de educação, dos modelos clássicos da tragédia e da sofística, a fim de demonstrar a influência naquilo que chamamos de educação. Se tomarmos o mestre como o artífice e o discípulo como objeto desse ensino, devemos ter em mente que a arte de ensinar é conveniente ao discípulo e não ao mestre. O mestre, portanto, é instrumento para que se possa ensinar tal arte ao discípulo. O objetivo do trabalho é refletir sobre o ensino, seu instrumento e seu objeto, com o intuito de repensar o caminho do ensino na educação. Para isso, buscaremos apoio nos conceitos paidéuticos na formação do homem grego da Grécia clássica.

Palavras-chave: Educação; Filosofia; Tragédia; Sofística; Homem Grego

Abstract

The aim of the present paper is to question the teaching of Greek man from the Ancient Greek experience perspective. Thus, we intend bringing matters which may help the investigation for a coherent and satisfactory solution, resuming some Greek concepts on education from the classic models of tragedy and sophistic, therefore pointing to their influence over what it is concerned as education itself. If one takes the master as the artist and the disciple as an object of the action of teaching, one shall have in mind that the art of teaching is convenient to the latter and not the first. The master is, then, an instrument of the teaching of a disciple. The work aims at reflecting upon teaching itself, and its instrument and object as a means of rethinking its path within education. For that we will base our arguments on the paideutic concepts of the Greek man’s enhancement in the classic period.

Keywords: Education; Philosophy; Tragedy; Sophistic; Greek Man

Introdução

Com o intuito de problematizar o ensino de maneira geral, utilizarnos-emos de alguns conceitos gregos de educação, focando-nos no séc. V a.C., através da filosofia, da tragédia e da sofística para demonstrar a sua influência naquilo que chamamos educação.

No processo da educação filosófica, um caminho deve ser percorrido. Um caminho que ainda não está pronto nem determinado deve ser ainda construído, pavimentado e lapidado com o preciosismo de um artífice, pois é nisso que consiste a boa formação: uma natureza adequada aliada a um bom aprendizado. Para refletirmos sobre isso, iniciaremos com uma passagem do Livro I da República de Platão, que trata de um diálogo entre Sócrates e Trasímaco falando sobre a arte, que consideramos conveniente para nossa discussão.

- E então, Trasímaco? [...] Diz-me: não afirmamos nós sempre quecada uma das artes (téchnai) se diferencia das outras pelo fato de ter uma potência (dýnamis) específica? [...] - Diferenciam-se por isso, sim.

- E não é verdade que cada uma das artes nos proporciona qualquerutilidade específica, e não comum, como a da medicina, a saúde, a do piloto, a segurança de navegação, e assim por diante?

- Exatamente.

- Portanto, também a arte dos lucros tem o seu salário? Pois é esseo efeito que lhe é peculiar. [...] Acaso não concordamos que há uma utilidade peculiar a cada arte?

- Seja.

- Se há uma utilidade de que gozam todos os artífices em comum,é manifesto que devem empregar alguma faculdade adicional, comum a todos, e daí derivarem a utilidade.

- Assim parece.

- Ora, nós afirmamos que a utilidade dos artífices, quando ganhamum salário, lhes advém de empregarem uma faculdade adicional à arte dos lucros. [...] Por conseguinte, não é da sua própria arte que advém a cada um esta utilidade, que é a obtenção de um salário; mas devemos examinar a questão com rigor: a medicina produz a saúde, a arte dos lucros, o salário, e a do arquiteto, uma casa; ao passo que a arte dos lucros, que a acompanha, dá o salário. E as outras todas, igualmente, produz cada uma o seu efeito e são úteis àquele a quem se aplicam. Se, porém, não se lhe juntar um salário, é possível o artífice auferir alguma utilidade da sua arte?

- Não me parece.

- Mas acaso ele não é útil, quando trabalha de graça?

- Com certeza, assim o creio.1

A passagem demonstra que toda arte tem uma utilidade que é conveniente ao objeto desta arte e não, ao artífice. O mesmo se dá no caso da arte de ensinar: temos o mestre como artífice que irá colocar a utilidade desta arte a favor do discípulo. O mestre, portanto, é instrumento importantíssimo da relação, pois será através dele que a utilidade da arte será transmitida ao discípulo. Ápesar de os salários serem úteis àquele que exerce sua arte, é inegável que o exercício dela continua sendo útil para outros, mesmo que o artífice não receba nada por isto. Podemos dizer, assim, que os salários e a utilidade são referentes a pessoas diferentes: um é o que pratica a arte e recebe a recompensa por sua prática, e o outro é aquele que recebe a conveniência própria da arte em questão. Determinado o processo em que se dá esta arte, devemos agora tratar sobre a formação.

Dissemos que uma boa formação exige duas coisas: a primeira é uma boa natureza e a segunda, um bom aprendizado. Ou seja, trata-se de uma relação entre o que vem da phýsis e da téchne, próprios do homem. Os primeiros a pensarem sobre isso foram os sofistas do século V a.C., ponto de partida histórico necessário do grande movimento educativo que imprime caráter a este e aos demais séculos. É naquela época que se tem a origem da paidéia grega no sentido estrito que podemos dar à palavra educação e, segundo Jaeger,

chegou-se à convicção de que a natureza [ςύδις] é o fundamento de toda a educação possível. A obra educadora realiza-se por meio do ensino [μάθησις], da doutrinação [διδασκαλία] e do exercício [ʼάσκησι], que faz do que foi ensinado uma segunda natureza. (JAEGER, 2003, p. 356).

Temos aqui o conceito de educação atrelado ao conceito de natureza humana, que será posteriormente utilizado pela filosofia, através dos mais variados filósofos. Vamos tentar esclarecer que conceito de natureza é este que, relacionado ao aprendizado, forma uma segunda natureza.

A paidéia clássica

No século V, a observação sobre a phýsis passa a ter um novo foco. Ao invés de voltarem suas investigações para o cosmos natural, como fizeram os primeiros filósofos, os novos pensadores daquele período irão desenvolver seus estudos sobre a phýsis, a partir do homem. Mas que homem é esse? O que significa uma natureza humana? A ideia de natureza humana é uma descoberta essencial do espírito grego e, somente por ela, é possível uma verdadeira teoria da educação. Para entender este significado, não podemos separar o homem de sua relação com a pólis, pois é justamente no âmbito político que todo processo educacional da época iria se desenvolver, já que naquele contexto o homem é pensado em sua relação com a cidade. O conceito de areté, de excelência, perde a sua ligação estrita com a nobreza para visar o desenvolvimento do todo múltiplo que aparece com o advento da democracia; com isso, duas concepções da natureza se formarão: (i) concepção aristocrática, que diz ser o homem diferente por natureza e que as leis formulam uma falsa igualdade entre eles; e (ii) democrática, em que o homem é igual por natureza, seja grego, seja bárbaro, e será a lei aquela que impedirá o homem de agir conforme a sua necessidade natural. Seja como for entendida esta natureza, podemos dizer que, em sua maioria, os sofistas acreditavam na possibilidade de se educar o espírito para melhor desenvolvê-lo. Será no âmbito democrático que o Estado começará a melhor empregar a educação como instrumento para o desenvolvimento do cidadão e crescimento da cultura de um povo. Protágoras irá considerar as leis do Estado como a força educadora da areté política. (JAEGER, 2003, p. 361). Será, portanto, no modelo ético-político que toda a educação, estritamente falando, começará. Não será diferente em Platão, quando, no Livro II da República, faz Sócrates propor-se, junto de seus ouvintes, a educar (παιδεύαͺ) no discurso os futuros guardiões da pólis, como se estivesse contando um mito. (Rep., 376d). Tais guardiões serão fruto da melhor natureza que a cidade pode proporcionar, defensores éticos da integridade política e social do Estado, bem como mantenedores de sua harmonia.

Será, pois, partindo desses novos conceitos em desenvolvimento, que a educação irá expandir-se na cidade, procurando educar na excelência política todos os cidadãos que pertencem àquele corpo político. A filosofia não agirá de forma diferente, mesmo que os métodos aplicados sejam outros; o ponto de partida é a relação do homem com a cidade. Pensar o homem e a sua natureza, envolve o pensamento deste homem relacionado ao local onde vive e que função política e social assume a partir daí. Para tal, estudaremos o papel da tragédia na pólis para a educação do homem grego.

A tragédia, o humano e a história

Em 1961, era encenada e transmitida, na França, uma adaptação de Os Persas, de Ésquilo, cuja repercussão, afirma Loraux (2007, p. 22), “foi classificada de transmissão histórica”. O impacto sobre a audiência não poderia estar simplesmente reduzido à notória beleza e qualidade da produção. Para a autora, produzira-se naquele episódio uma katarsis generalizada, fenômeno que leva a plateia a sentimento comum, experiência coletiva remetida aos sentimentos de compaixão e temor, suscitados pelo gênero trágico. Mas o que poderia estar alhures da mera apreciação estética? O fato de aquela audiência compartilhar um mesmo momento histórico: a Guerra da Argélia caminhava para seu fim, mas ainda sem definições. “Duas semanas antes da transmissão, argelinos manifestavam nas ruas de Paris, e eram, todos os dias, reprimidos com violência”. (LORAUX, 2007, p. 23).

Da pertinência catártica, considerados os deslocamentos em tempo e espaço, a identificação era, no mínimo, delicada, já que a França, de tradição republicana não correspondia àquela Atenas vitoriosa contra a tirania persa. A mensagem consistia, justamente, no malogro e na morte, destinados ao imperialismo, responsável pela peripécia de colocar as esperanças em desastre e ruína. (LORAUX, 2007, p. 23). Deste algo cognoscível e familiar ao humano, dimensão e emoção daquilo que lhe é comum, chama-se o efeito trágico, imanente em suas reatualizações. (LORAUX, 2007, p. 24-25).

Contudo, Gazolla (2011, p. 31), nos alerta para a “impossibilidade” do efeito trágico em tempos atuais, pois “retirando-se o texto trágico do seu habitat, do éthos que lhe diz respeito, muito dele estará perdido”. Não obstante haver, de fato, algo a-histórico numa tragédia, “que fala ao homem sobre seus mais profundos impulsos, sentimentos e decisões” (GAZOLLA, 2011, p. 31), é nisso que a tragédia é universal. Torna-se imperioso, portanto, entender que momento é esse.

O “momento histórico” da tragédia na Grécia, datado e delimitado com muita precisão,2 implica, para Jean-Pierre Vernant, em uma compreensão daquilo que lhe é essencial: “uma forma de expressão específica que traduz aspectos da experiência humana, até então, despercebidos, que marca uma etapa na formação do homem interior, do homem como sujeito responsável”. (VERNANT; NAQUET, 1968, p. 246-250).

Apresenta-se, destarte, o homem grego, partido em dois registros: o do herói homérico, títere dos deuses, e o do modelo cívico, homem do direito grego, cuja responsabilidade é discutida e medida pela lei da comunidade. Para exprimi-lo, contraditório e enigmático, a tragédia aborda o seu presente político e jurídico, ao qual Vernant associa o modelo psicológico do homo politicus, e o passado longínquo guardado na tradição e nos mitos. (VERNANT; NAQUET, 1977, p. 8-9).

A presença de um vocabulário técnico de direito na obra dos trágicos sublinha as afinidades entre os temas prediletos da tragédia e certos sujeitos à competência (deliberativa) dos tribunais; tribunais esses cuja instituição é bastante recente para que seja ainda profundamente sentida a novidade dos valores que comandaram sua fundação e regulam seu funcionamento. Os poetas trágicos utilizam esse vocabulário do direito jogando deliberadamente com suas incertezas, com suas flutuações, com sua falta de acabamento: imprecisão de termos, mudanças de sentido, incoerências e oposições que revelam discordâncias no seio do próprio pensamento. (VERNANT; NAQUET, 1968, p. 248).

O autor nos adverte, contudo, que nenhuma tragédia é um debate jurídico e tampouco o Direito comporta em si algo de trágico. (VERNANT; NAQUET, 1977, p. 9). As palavras e os esquemas de pensamento tornaramse elementos da confrontação de valores, “um questionamento das normas que tem sua base no próprio homem”. (VERNANT; NAQUET, 1977, p. 10). As relações deste homem trágico (herói) com os atos que delibera em cena, a tomada para si da responsabilidade e cujo sentido lhe escapa, enfim, o seu lugar nesse universo social, natural, divino e ambíguo, onde nenhuma regra parece definitiva e onde a justiça “gira sobre si mesma e se transforma em seu contrário” (VERNANT; NAQUET, 1977, 21), exprime-se na questão:

Que ser é esse que a tragédia qualifica de deinós, monstro incompreensível e desnorteante, agente e paciente ao mesmo tempo, culpado e inocente; lúcido e cego, senhor de toda a natureza através de seu espírito industrioso, mas incapaz de governar-se a si mesmo? (VERNANT; NAQUET, 1977, p. 10).

Pires lembra que, não apenas pela semelhança de suas imagens, mas pela similaridade de suas ações, aproximam-se deuses e homens nas concepções helênicas: “Mesmas paixões e sentimentos, análogas ações e comportamentos”. (PIRES, 1995, p. 1). No entanto, se, na perspectiva de suas figuras e ações, assemelham-se homens e deuses, no que diz respeito à essência que os define, opõem-se radicalmente:

Os homens são os mortais. Três denominações assim especialmente os qualificam em Homero: thnetoí, brotoí e méropes. A mortalidade - o fato de que a vida supõe a morte - define a essência da condição humana. A existência humana é estigmatizada pela finitude: um fim, o termo que a morte sela, encerra necessariamente o viver de todo e qualquer indivíduo humano. Assim, a vida humana impõe uma duração demarcada por dois extremos factuais: o nascimento que a principia e a morte que a termina. (PIRES, 1995, p. 1).

Segundo Loraux (2007, p. 21), uma relação estreita e complexa se mantém entre o gênero trágico e a pólis. A autora registra seu “ancoradouro” em três momentos assim definidos: primeiramente, do ponto de vista contemporâneo, a pólis é constituída em uma lógica de exclusão determinantemente política, já que

[...] apenas os cidadãos concebidos como iguais entre si no exercício de seus direitos políticos, aí tomam todas as decisões; essa cidade política é, portanto, numericamente, uma minoria no seio de uma sociedade que contabiliza também as mulheres, as crianças, os escravos e, em uma posição um pouco diferente, os estrangeiros. (LORAUX, 2007, p. 21).

Posição diferente, pois para o meteco3 a exclusão era revelada da seguinte forma: se assassinado, seria por homicídio involuntário, além do imposto que lhe era compulsório, bem como a existência de um patrono ateniense. No entanto, a autora nota que “a pólis dos cidadãos não pode existir sem a presença dos estrangeiros”. (LORAUX, 1981, p. 11).

Em segundo lugar, Loraux lembra que Atenas é a referência cívica par exellence, no que concerne ao gênero em questão, em que a democracia integra, no corpo cívico, o grupo daqueles excluídos nas cidades oligárquicas: o comerciante, ou o grupo dos que trabalhavam para viver, de cuja sobrevivência depende o lucro de seus negócios. (VERNANT, 1977, p. 21). A autora conclui com isso que “a tragédia grega é, na realidade, de ponta a ponta, ateniense” (LORAUX, 2007, p. 22); entenda-se, nascida da democracia. Na atualidade do gênero está sua tendência constitutiva à inatualidade, “faculdade de exceder os limites de sua época”, como define a autora. (LORAUX, 2007, p. 22).

Ainda sobre a questão da inatualidade da tragédia, Silva lembra-nos que são três os elementos do drama grego antigo, que o distinguem de todas as leituras contemporâneas do gênero: (i) o vínculo com a religião; (ii) sua conexão com o “coletivo”; (iii) e sua condição essencial de portador de uma mensagem. Analisemos os três aspectos separadamente.

O primeiro, aborda sua relação com a experiência religiosa grega, ou aquela dos rituais dionisíacos. (ARAÚJO, 2011, p. 2). Vernant argumenta que a corrente dionisíaca, a despeito de fazer parte do calendário religioso, oferecia um quadro de acolhimento aos que se achavam à margem da ordem social reconhecida. O dionisismo é, por predileção, uma religião de mulheres, que, como tais, são excluídas da vida política. Como Bacantes, são qualificadas com a virtude de representarem um papel na ordem religiosa da cidade. Enfim, os termos thíasoi e orgéones, que Vernant define como os colégios de fiéis associados nas orgias, retêm a lembrança de grupos campesinos relacionados ao dêmos primitivo, que tiveram que aderir a certas fratrias quando a religião cívica instaurou uma ordem para os cultos. (VERNANT, 1990, p. 419-421). O autor descreve que, em Atenas, as festas invernais de Dioniso, Oscofórias, Dionísias rurais, Leneanas, Anestérias e Dionísias urbanas não formam, como em Elêusis, um circuito fechado, mas uma série descontínua, distribuída pelo calendário, ao lado dos festivais e cultos de outros deuses. (VERNANT, 2002, p. 76-77).

Outro aspecto fundamental dessa diferença - ou afastamento do teatro antigo - define-se, para a autora, na conexão, tanto da tragédia, quanto da comédia, com o coletivo. Representado pelo coro, seria, nos primórdios do teatro antigo, o único interveniente. Sua eliminação gradativa, nota a autora, acompanha a própria trajetória que a história do teatro grego antigo seguiu, do século VI ao IV a.C. (ARAÚJO, 2011, p. 2).

Aquela noção do teatro como expressão do coletivo, como uma reflexão social, foi reorientada para o individualismo, fazendo com que a personagem ganhasse terreno sobre o coro. Isso quer dizer que essa perda de importância não é uma circunstância moderna, já vem de trás. (ARAÚJO, 2011, p. 2).

Em seu terceiro aspecto, identifica o teatro antigo como portador de uma mensagem de cunho pedagógico e politicamente consciente de sua responsabilidade, pois “projeta Atenas no exterior e, no interior, despertaa para a reflexão coletiva de determinados valores”. (ARAÚJO, 2011, p. 3). Destarte, o teatro se inspira na pólis e está voltado para a experiência concreta dos atenienses em sua vivência coletiva. Rumo à individualidade - traço cada vez mais notório na orientação política após a era de Péricles -, a experiência coletiva (política) vive o tema das paixões na dicotomia que esgarça o tecido social, entre o que diz respeito ao todo e os interesses individuais, que não comportam uma identidade comum.

Se hoje vivemos o colapso das relações sociais sob o império dos excessos da subjetividade e da individualidade, a Atenas clássica não comportava tal (des)ordem. E compreendê-lo torna-se bastante simples se considerados dois aspectos - conceitos, na verdade - nesta realidade histórica antiga: a identidade e a liberdade. Vejamo-los brevemente.

Gazolla recorre ao argumento de Benveniste,4 para traduzir a liberdade grega como aquela condição de um homem que possui raízes e um reconhecimento, portanto, uma identidade que lhe é dada por seu génos:

A explicação filológica de Benveniste aponta para um sentido: de que a liberdade não é “poder de” ser livre para ir e vir, ou ser senhor de seus bens por seu trabalho e seu esforço próprios, como normalmente pensamos, mas diz de um homem bem colocado no mundo pelo fato de suas raízes, de ter uma identidade que lhe é dada por seu génos, ou, quando da emergência das poleis gregas do século VI a.C., por ser de raça grega e ter cidadania exatamente por isso. (GAZOLLA, 2011, p. 99).

Segundo a expressão aristotélica na Poética, os trágicos gregos eram assim referidos: “Ésquilo hierático” (do termo grego hierá, coisas sagradas), “Sófocles, que delineava os homens como eles deveriam ser, e Eurípides que os apresentava como são”. (1460 b, 34). No capítulo IV da referida obra lemos que o gênero trágico teve sua origem nos cantores do ditirambo e, a seguir, mediante um processo de transformação de peças satíricas. (LESKY, 1976). O gênero suscita determinadas paixões que estão intrinsecamente ligadas ao processo de compaixão e temor, neste sentido, conformando a medida do homem. A crise da pólis exige esta reflexão, quando os desejos já estão relegados à esfera do privado.5 A felicidade só se dá quando se comunica a satisfação dentro do universo da política, onde jaz a justa medida da individualidade com o coletivo. No mundo grego não há separação entre o lógos e páthos, neste sentido a finalidade da tragédia é provocar a catarse do público, ligada ao temor e à compaixão, sentimentos de autorreferência e partilha, respectivamente, refletindo nas ações dos heróis elementos como a escolha - aquela que define o erro ou o acerto do indivíduo em ação - e a tyché,6 que incorpora os elementos do mito.

O homem trágico

Para melhor analisarmos a justeza entre a individualidade e o coletivo, propomos o breve estudo de duas tragédias: de Sófocles, a Antígona, datada de 441 a.C., e de Eurípides As Troianas, de 415 a.C. Em ambas, apesar do distanciamento cronológico e estético, a guerra é um fator determinante - aproximando-as. Em As Troianas, a guerra de Troia; na Antígona, uma guerra finda que envolvera os filhos de Édipo e Jocasta, Etéocles e Polinices (esta, abordada na tragédia de Ésquilo, Sete contra Tebas). Segundo Vernant, para os gregos da época clássica a guerra era natural. (VERNANT, 1968, p. 31). A esta concepção agonística do homem, das relações sociais, das forças naturais de raízes profundas podemos encontrar o que o autor refere ser a ‘pré-história’ da política que permeia as cidades no período do “apogeu e crise do espírito Ático”, ou o que compreende, sobretudo, o da Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.).

Jaeger afirma que o monumento perene deste espírito, na época de sua maturidade, era constituído pela tragédia de Sófocles e pela escultura de Fídias. (JAEGER, 2003, p. 320). Enquanto Sófocles caminha sobre “os íngremes píncaros dos tempos, Eurípides é a revelação da tragédia cultural que arruinou sua época”. (JAEGER, 2003, p. 386).

O que em Sófocles é trágico é a impossibilidade de evitar a dor, diz Jaeger (2003. p. 329). É esse o rosto inevitável da moîra no que concerne ao humano.7 É na esteira da maldição familiar da casa dos Labdácidas, que Sófocles leva Antígona e seu opositor Creonte a participarem da realização da moîra pelo vigor de suas ações, na qual o coro repetidamente canta sobre a transgressão de sua medida (hýbris) e o enfrentamento de seu infortúnio. Duas reflexões contemporâneas sobre a obra sofocliana são contempladas neste estudo: a de Arlene W. Saxonhouse e a crítica de Helene Foley à releitura da helenista Christiane Sourvinou-Inwood.

Saxonhouse propõe que, refletindo de maneira crítica sobre o universo da cidade, as peças trágicas apresentavam à audiência a estrutura desta mesma pólis ateniense: o foco e a importância do poder e sua busca, a centralidade da racionalidade - ou da razão - e sua eficácia, e o direcionamento da política rumo ao comum, koinós, em determinadas ações e decretos que estabeleciam certa ordem. Para a pesquisa de Saxonhouse, os líderes do período buscavam no estabelecimento de uma ordem a justeza do meio, ou o justo meio, numa clara negação das diferenças. Em seu estudo, o conceito de autoctonia é abordado e discutido para compreender-se como o debate promovido pelas tragédias abrangia a sociedade em todos os aspectos, em que o social, o político, a religião e o tema do pertencimento estavam em pauta.

A Antígona de Sófocles, suscitando questões como o sepultamento de traidores na dramática Tebas, tem sido objeto de constantes indagações históricas. Tanto o interesse da História Social neste campo de pesquisas e o trabalho de helenistas franceses como Jean-Pierre Vernant, Marcel Detienne, Pierre Vidal-Naquet, Nicole Loraux e seus colegas em Paris firmaram o campo de trabalho deste esforço aliando recursos históricos e literários de maneira sofisticada. Uma das linhas de pesquisa bastante frutíferas, neste sentido, foi o trabalho desenvolvido por Loraux, por exemplo, que envolve a interpretação da tragédia, não em relação direta com personagens históricos ou eventos, mas sob a luz da “ideologia democrática” mediada pela análise da oração fúnebre ateniense.8

Em recente artigo publicado na obra History, tragedy, theory, Helene Foley desenvolve - através de uma análise pertinente da Antígona - um exame que afirma a importância de se interpretar a tragédia grega em seu contexto cultural. Seu estudo está baseado numa série de artigos de Christiane Sourvinou-Inwood e defende uma interpretação da Antígona que recupere o estado de espírito da audiência de 440 a.C., tratada como uma coletividade indiferenciada. (FOLEY, 1995, p. 131-148).

Para Sourvinou-Inwood a primeira impressão da peça é negativa, apresentando duas jovens mulheres que conspiram na escuridão; uma situação perigosa e inapropriada num contexto Ático. Na visão de Sourvinou-Inwood, as atitudes de Antígona são repetidamente subversivas à ideologia da pólis ateniense. (FOLEY, 1995, p. 133). Referindo-se ao discurso da personagem na passagem 904ff., em que Antígona defende o sepultamento de Polinices, mas argumenta contra o de um esposo e filho, Sourvinou-Inwood reforça sua tese de que a heroína sofocliana confirma, assim, a caracterização que Aristóteles lhe atribui: como apiston (aquela que não é persuadida a cumprir suas responsabilidades). A autora argumenta, no entanto, que a defesa que Antígona faz das leis antigas (que primavam pelo valor do génos, acima do valor comum à pólis) é pertinente, mas indica em sua análise que, sob uma perspectiva crítica, os valores da heroína não coincidem com os valores da pólis, já que em Atenas o sepultamento dos traidores era proibido. Foley aponta que certamente a tese de Sourvinou-Inwood reforça que Antígona age como biaí politon (79; 907).

Já a personagem de Creonte figura para a sua análise como o típico strategoí (general) que preza pela unidade, o bem comum e uma ordem, mesmo que para tal seja necessário, em caráter extraordinário, aplicar os kerigmata - decretos. A obediência às leis da pólis, ao nómos era parte intrínseca da ideologia democrática, mesmo que significasse o sacrifício da família. Para Sourvinou-Inwood a hýbris de Creonte não repousa em negar o sepultamento a Polinices, mas na maneira como aplicou seus decretos e punições. Ao sepultar uma viva e manter sem sepultamento o corpo de Polinices - que já pertencia ao mundo dos mortos -, Creonte decreta sua própria ruína, ferindo não só leis que determinavam o sepultamento como parte da purificação da pólis, como também aos deuses por impiedade.

Foley afirma, no entanto, que, de maneira detalhada, a análise de SourvinouInwood acerca da referida tragédia tem complicada aceitação.

Já para Saxonhouse, a perspectiva unívoca da tragédia em questão dá, tanto a Creonte quanto à Antígona, força e claro direcionamento: ambos desconhecem o outro, a multiplicidade, a diferença, seguindo códigos morais diversos. Para Antígona existem as leis do génos que a obrigam a prestar as libações e realizar o sepultamento de seu irmão, Polinices; para Creonte, apenas o nómos, a ordem da pólis, neste caso, tebana. Nota-se que os discursos do coro - de abertura e encerramento - falam justamente desta ambiguidade; da lei que paira acima dos homens, esta a lei do cosmos, e daquela estabelecida como ordem na cidade.

Sófocles reverencia sua audiência com o discurso do coro que evoca o deinos humano. Encerra a peça em outro tom, resignado à máxima de que, no mundo controlado pelos deuses aos quais os homens devem estar submetidos,

o fundamento da felicidade sempre foi e será a sensatez. Jamais se deve ser irreverente com os deuses. A empáfia nas palavras acarreta aos soberbos terríveis castigos e, afinal, na velhice, lhes ensina a ser prudentes, moderados e sensatos.9

Na legenda dos Labdácidas,10 que termina com a história de Antígona, filha de Édipo (referindo-nos especificamente ao chamado ciclo tebano das tragédias), encontra-se continuamente a tensão entre os que são soberanos por direito, ligados às tradições das leis divinas e da família, e os que, exercendo esta soberania, mais se parecem com a estirpe dos Semeados, os nascidos da terra, outrora mencionados como guerreiros dedicados à violência e ao ódio.11 Assim, chegamos ao tema das paixões.

Na esteira dos debates filosóficos acerca da contingência do devir, da pluralidade das opiniões que colocavam nesta arena política sofistas, filósofos, dramaturgos, historiadores, magistrados, soldados e cidadãos comuns, Aristóteles “abre” o mundo para o logos, atribuindo à retórica o enunciado num nível próprio ao âmbito do lógos, ao mesmo tempo em que inclui as paixões que entram em conflito com as opiniões humanas. As paixões não mais são dominadas ou removidas, mas compreendidas para serem estimuladas ou aplacadas pelo discurso do orador. Seu lugar é o lugar natural no enfrentamento do homem entre si e na discórdia do homem consigo mesmo. Nesta luta entre a alteridade e a identidade, o homem se defronta com o “outro de si mesmo”. A experiência do ser como o outro estabelece que o homem não esteja só; há sempre o diálogo, o que implica dizer que o sujeito é privado, uno, mas o predicado é sempre público. Os predicados são as paixões que (res)significam os sujeitos.

Para Aristóteles a imitação é um impulso natural ao homem. Na Arte Poética, o “não ser” do real, ocupa-se da ficção, na medida em que imita o real. Falar-se-á então da mímesis que traz em seu bojo a comunicação de um discurso ou a imitação de ações que vêm para informar, anunciando o que não é como possibilidade de sê-lo. A mímesis aqui realizada repousa na linguagem, ligada à ação humana e à história. Daí a relação entre a Poética e a Retórica, em que a poesia aborda o universal - enquanto a história, o particular - e para a realização deste prazer de “imitar”, o trágico representa a realização de uma justiça (díke). O que torna possível essa articulação é justamente a contingência do lógos. Daí a relação da tragédia com a política e com a felicidade, em que a garantia do bem comum repousaria na felicidade da pólis, submetida à articulação do humano e do lógos.

O que seriam então homens felizes? Aristóteles põe em cena uma reflexão de homens vivendo em sociedade, produzindo a mímesis - ligada à linguagem (comunicação). Neste complexo universo humano, agir e padecer são dois conceitos inseparáveis, mas cada um designa uma potência bem distinta. Segundo Lebrun, padecer é inferior a agir por dois motivos. (LEBRUN, 1987). Ao agente da mudança cabe a atualização desta na ação. Quem padece recebe a comunicação de uma nova forma, torna-se um ser mutável, caracterizado pelo movimento. É reagindo a uma ofensa que sinto raiva. A paixão é sempre provocada pela presença ou pela imagem de algo que me leva a reagir, geralmente de improviso.

O tratado das paixões que Aristóteles dedica como parte da Retórica conota a necessidade que os homens teriam, não de evitar as paixões - já que elas são inerentes ao universo dos homens - mas de tocá-las, aplicá-las ao seu favor, suscitando-as ou acalmando-as em seus ouvintes. “Entendo por paixões”, diz Aristóteles na Retórica, “tudo que faz variar os sentidos, e de que se seguem sofrimento ou prazer”. Como analisa, não seria em razão dos pathé que sentimos que somos julgados bons ou maus, mas pela escolha da ação submetida a estes! Destarte, a excelência ética - a virtude de um anér - seria determinada pelo modo como ele submete as ações às suas paixões. Sobre o caráter do homem este seria apontado pelas escolhas que definem o erro ou o acerto.

A finalidade da tragédia é então provocar a catarse, ligada ao temor e à compaixão, conformando a medida do homem; sua dimensão humana. Assim ela encena a imitação de uma ação importante e completa, pautando o horizonte comum a todos os homens. Na boca das diversas personagens das tragédias aqui estudadas, a mesma palavra ganha sentidos múltiplos e, sendo comunicada, provoca no outro a ação. O páthos é a voz da contingência. Todas as paixões são e estão em potência, mas é na medida da alteridade, é no outro que se tornam ato. A característica humana é a deliberação.

A paixão é o lugar do outro; o outro em nós mesmos, apontando para o que nos é específico. Própria da alteridade, ela é a luta do homem contra si mesmo, remetendo aos conflitos internos, numa escala que se alarga na reflexão política dos conflitos da cidade. A mensagem reside no comprometimento com a ética que faz da paixão uma virtude. Pela virtude o homem imita a forma natural, escolhendo e deliberando em prol do bem comum: o bem da pólis.

Corria o décimo-nono ano da Guerra do Peloponeso, quando um bando de mil e trezentos mercenários trácios foi a Atenas participar da campanha contra Siracusa. Lá chegando atrasado, após a partida da frota, foi mandado de volta (cada guerreiro custava aos cofres da pólis uma dracma por dia). Para aproveitar o dinheiro gasto com os soldados, Atenas deulhes a missão de, em seu percurso de volta, por onde passassem, causarem todo o mal possível ao inimigo - de fato, grego. Assim, alcançando os trácios a cidade de Micalessos, de insignificante presença no mundo grego, a não merecer que dela se falasse integrada à memória histórica, tomaramna facilmente. (PIRES, 2007, p. 13). O que lá ocorreu vem assim narrado por Tucídides:

[...] puseram-se a saquear as casas e os templos, enquanto massacravam os habitantes, sem poupar velhos ou moços, matando todos os que encontravam, mesmo crianças e mulheres, e até animais de carga e quaisquer seres vivos. A raça trácia, com efeito, da mesma forma que os bárbaros da pior espécie, é extremamente ávida de sangue quando crê que nada tem a temer. E foi assim naquela ocasião: na confusão generalizada ocorreram todas as formas de extermínio, especialmente um ataque a uma escola de meninos - a maior da cidade - cujos alunos acabavam de entrar, durante o qual todos foram mortos. Aquele massacre foi uma calamidade pior que qualquer desastre anterior, e a mais imprevista e terrível de quantas eram lembradas pelos habitantes. (THUCYDIDE, 2003).

A importância da campanha da Sicília para a guerra na História da Guerra do Peloponeso de Tucídides, indicada como um dos fatores da derrota ateniense no conflito, aborda a questão dos excessos. Aliados a estes a cegueira dos interesses pessoais dos líderes atenienses, a gradativa desunião da pólis, a ambição e o desejo de expansão do império, indicadores do seu caráter ambíguo, entre a ambição e a liderança; a excelência individual e o bem comum; a hýbris e a moderação.

Através do estudo dos discursos e da política adotada por Péricles - representante da mais nobre conduta -, Cléon e Alcibíades - jovem político de caráter ambíguo e protagonista da expedição à Sicília - revelam-se três momentos significativos da referida guerra, descrita como a maior comoção “para os helenos e para uma parcela dos povos bárbaros e, pode-se mesmo dizer, a maior parte da humanidade” (TUCÍDIDES, I.2), aliados à gradativa transformação do próprio caráter humano da pólis ateniense do século V a.C. Neste sentido, o episódio da guerra na Sicília - o mais desastroso para a política ateniense - figuraria como o ápice desta desmedida.

Para Kitto (1951) o mesmo público ateniense que teria tomado parte no debate entre Cléon e Diódoto (o que precedeu à expedição à Sicília) poderia ter assistido, uma semana mais tarde, à apresentação da peça de Eurípides, As Troianas. Com efeito, a data de sua primeira representação em Atenas, no concurso dramático das Grandes Dionísias de 415 a.C., coincide com a decisão da expedição à Sicília. Episódios como o massacre dos habitantes de Melos e o anteriormente referido em Micalessos, lidos como possíveis referências para o tratamento dado pelo tragediógrafo às vencidas em sua tragédia, em contraste com a arrogância grega.

A ação do drama se desenrola em Troia, fora das muralhas, após a captura da cidade pelos guerreiros aqueus. Ao fundo veem-se tendas onde as mulheres troianas aprisionadas esperam o desfecho de seu destino. Em frente a uma dessas, Hécuba, a viúva de Príamo - rei de Troia - está caída, aniquilada. No prólogo, duas divindades discutem sobre o destino dos gregos Atena e Poseidon - antes inimigos declarados, divididos entre gregos e troianos. É a chegada do arauto dos aqueus, Taltíbio, que anuncia a decisão e a moîra de cada uma das cativas. Entre os funestos destinos da rainha e de suas filhas, Polixena (imolada sobre o túmulo de Aquiles) e Cassandra, dada ao rei de Micenas, Agamêmnon, eram também determinados os destinos de Andrômaca - a viúva de Heitor -, que seria entregue ao filho de Aquiles, Neoptolemo, e o filho dela, Astiânax (herdeiro de Troia) que é, por determinação cruel, jogado do alto das muralhas troianas.

Pertencente ao ciclo troiano das tragédias, que inclui a Oresteia, de Ésquilo e a Electra de Sófocles, nesta ordem de leitura uma sequência lógica estaria estabelecida entre os três trágicos. (KURY, 1991, p. 163). Dentro dos muros da pólis, sob os limites da lei, ação e discurso conformam o espaço comum. Arendt, em capítulo intitulado “A solução grega”, argumentando acerca da condição humana- inegável objeto nas obras de Eurípides -, afirma que é como se os que regressassem de Troia (inclusos às cativas), desejassem tornar permanente o espaço da ação decorrente de seus feitos e sofrimentos. (ARENDT, 2005, p. 210-211).

Em rigor, a pólis não se esgota no espaço físico; é a organização da koiné (espaço comum) que resulta do agir e do falar em conjunto. Assim, seu verdadeiro espaço situa-se entre as pessoas que vivem juntas com tal propósito. “Onde quer que vás, serás uma pólis”: famosas palavras que exprimem não só a senha da colonização grega, mas a convicção de que a ação e o discurso criam entre as partes um espaço capaz de estar situado de forma adequada em qualquer tempo e espaço (ARENDT, 2005, p. 210211) - “espaço da aparência”, referido por Arendt, no sentido mais amplo da palavra, no qual eu apareço aos outros e os outros a mim. (ARENDT, 2005, p. 211).

Nas obras trágicas de Sófocles e Eurípides, aqui modestamente abordadas, identifica-se uma tensão entre a razão e os excessos. Tensão essa resultada da motivação conflitante do homem que é cidadão, soldado e suplicante. Do conjunto das casas, tribos e fratria, o coração da pólis está simbolizado na lareira central do Pritaneu (Hestia-koiné), mas também expresso nos fogos acesos nos altares mais distantes, fora de seu alcance.

Na Tebas trágica de Sófocles, na legendária Troia de Eurípides, sítios onde a desmedida humana figura, sua face aterradora, sua hýbris e infortúnio, a infâmia leva à impureza, à morte e ao exílio na barbárie. Atenas assiste a tudo no teatro. Ali, amplificados na voz do herói trágico e do coro, os sussurros e rumores do que poderia acontecer, caso as escolhas se afastassem do justo meio, são ouvidos por todos. Rumores daquilo que está entre a razão absoluta e imutável, e a cegueira completa da fúria desmedida dos impulsos e dos excessos.

Conclusão

Nosso objetivo neste artigo foi a problematização do ensino, de maneira abrangente, a partir dos conceitos gregos clássicos concernentes à educação (paidéia) propriamente dita. Para tal, tomou-se como base aos referidos argumentos a experiência grega da sofística, da tragédia e da filosofia, entre os séculos V e IV a.C.

Partindo da passagem da República (346a-e), compreendeu-se o sentido estrito da palavra paidéia, a qual, na leitura de Jaeger (2003, p. 356), encontra-se fundamentada na öýóéò, ou natureza. Do conceito referido buscou-se atrelar à toda ação e preeminência humana, no processo educativo, sua relação com a cidade (pólis), pois, entre os gregos, o homem enquanto aner não poderia estar separado de seu estatuto social enquanto polítes (cidadão), ou seja, de sua relação com o político. Neste ínterim, a areté, virtude da excelência, atrela-se aos valores políticos da experiência democrática ateniense do século V a.C., em que duas concepções de öýóéò se formam: (i) a dos aristoi, referente ao valor aristocrático dos melhores; e (ii) a democrática, de cuja experiência a equanimidade (isonomia) entre os homens se dá pelos limites de sua própria necessidade natural face à lei, comum a todos.

Da experiência do teatro antigo, do mesmo período, apreendeu-se que o momento histórico da tragédia clássica comporta a expressão específica da ação humana encenada à vista de todos (cidadãos, metecos, mulheres e escravos), no teatro de Dioniso. Neste sentido, o deinós (herói trágico) representa uma nova consciência do homem enquanto sujeito responsável, atuante e deliberativo. (VERNANT; NAQUET, 1968, p. 246250). Para tal, apresentou-se a justeza entre os valores da individualidade humana e sua responsabilidade perante o coletivo, através do breve estudo de duas peças: a Antígona de Sófocles, e As Troianas, de Eurípides, datadas de 441 e 415 a.C., respectivamente.

Para este fim, contemplou-se o estudo de Saxonhouse e a crítica de Foley a Sorvinou-Inwood acerca da sua leitura sofocliana do ciclo tebano. Já para a análise da obra euripideana, recorreu-se ao tratado aristotélico das paixões, no Livro II da Retórica, e sua relação ao estabelecido na Poética acerca da ação humana do imitar (mimesis). No caso específico da tragédia, intrinsecamente ligada ao agir humano e, portanto, à própria história enquanto registro da associação entre discurso (lógos) e ação (erga). Com a finalidade catártica associada ao temor (phóbos) e à compaixão (aidós), conforma-se a dimensão humana em que as páthe (paixões), voz da contingência, lugar do outro em nós mesmos, delimitam o horizonte do agir humano em sociedade. Fosse na arte ou na história, o horizonte era sempre o político, e seu fundamento, a paidéia.

Destarte, a formação do homem grego se faz em diversas vertentes. A exposição feita em nosso artigo procurou dar uma ampla visão sobre o âmbito da filosofia, da tragédia e da sofística, por se tratarem de tópicos importantes ao desenvolvimento do homem grego. A paidéia, portanto, consiste na preparação desse homem nos aspectos formativo, político e educacional. Dessa forma tal homem está preparado para a vivência dentro da cidade e na melhoria do comum a todos.

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1PLATÃO. República, 346a1-e2. Utilizamos aqui a tradução de Maria Helena da Rocha Pereira. (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001). Tomaremos esta tradução como base para nosso trabalho. Demais referências à República serão abreviadas por Rep. indicando-se em seguida a numeração. As modificações na tradução são nossas.

2Em Atenas, em fins do século VI a.C., florescendo no V e degenerando no espaço de quase um século.

3Meteco era a condição do estrangeiro declarado como tal, residente em território ático por longo tempo.

4Tal “explicação filológica”, na obra Le vocabulaire des instituitions indo-européennes, busca nas raízes da palavra eleuthería (liberdade) o radical indo-europeu que indica crescimento, desenvolvimento e implica destarte a ideia de pertencimento a um grupo. O escravo tendo-as perdido, logo não possui a liberdade. Para o argumento ver GAZOLLA, op. cit., 2011, p. 99.

5Referimo-nos, sobretudo, à crise ocorrida após o término da Guerra do Peloponeso, em 404 a.C.

6Týche, acaso dos acontecimentos; ligada a moîra ou destino dos homens.

7Em seu estudo F. M. Cornford apresenta uma concepção que não a generalizadano destino humano. A moîra então representaria a parte de cada deus em seus domínios e províncias, status e privilégios; por isso, acima dos deuses, anterior a eles, torna-se referência de espaço, mais do que de tempo. Em sua análise da religião grega e do pensamento religioso, parte do pressuposto de que a moîra é moral. (CORNFORD, F. M. From religion to philosophy: a study in the origins of western speculation. New York: Harper & Brothers Publishers, 1957 [1912]. p. 15-21).

8No artigo intitulado “La voix endeuuillée. Essai sur la tragédie grecque”, Lorauxafirma ser a tragédia anti-política, oposta ao discurso cívico. (LORAUX, op. cit., 1999).

9SÓFOCLES. Antígona. Tradução de Domingos Paschoal Cegalla. Rio de Janeiro: Difel, 2001. p. 112. Cf. Saxonhouse: “To have wisdom (to phronein) is by far the most important part of happiness, and it is necessary not to befoul the thinghs that concerns the gods.” (1348-50) (Apud Saxonhouse, A. W. op. cit., 1992, p. 65).

10Geração dos descendentes de Lábdaco, filho de Polidoro (um dos filhos deCadmo) e de Nicteida (filha de um dos semeados, o guerreiro Ctônio). Conhecido como Lábdaco, o manco, viria a ser o pai de Laio e avô de Édipo.

11Cf. Jean-Pierre Vernant, fundamentada no mito de Tebas, a estória tem iníciocom a chegada de Cadmo ao local onde deveria fundar uma cidade. Ao enviar seus companheiros em busca de água na fonte de Ares, descobre-os todos mortos, aniquilados pela serpente do deus que guardava a fonte. O herói, então, mata a serpente, e, a conselho da deusa Atena, semeia os dentes do monstro por toda a planície. Nesse campo, germinam e surgem no mesmo instante homens adultos, completamente armados. São os “Semeados”; guerreiros que, perecendo sob seus próprios golpes, com exceção de cinco sobreviventes, dão origem à aristocracia tebana da qual Creonte seria herdeiro. (VERNANT, J-P. Mito e pensamento entre os gregos. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. p. 43).

Recebido: 11 de Março de 2019; Aceito: 09 de Maio de 2019

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