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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.24  Caxias do Sul  2019  Epub 31-Jul-2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v24.e019018 

ARTIGOS

Sócrates e a parrhesía- democrática

Socrates and the democratic Parrhesía-

José Lourenço Pereira da Silva* 
http://orcid.org/0000-0001-8814-919X

* Professor Associado no Departamento de Filosofia da Universdiade Federal de Santa Maria, RS. Doutorado em Filosofia pela UNICAMP (2005). Pós-doutorado/Estágio Sênior na Lewis and Clark College (2016). E-mail: jlourenco38@gmail.com


Resumo

Neste artigo procuro mostrar que, embora Sócrates tenha sido um crítico da democracia ateniense, seu pensamento, como conhecido a partir dos primeiros diálogos de Platão, coaduna-se com os valores fundamentais da cultura democrática de Atenas. Para defender essa interpretação, focalizo um dos princípios mais importantes da democracia grega: a liberdade de expressão. Primeiro, examino o conceito de liberdade de expressão. Esclareço que, no contexto político-democrático, dois termos gregos comunicam dois sentidos conexos mas distintos da liberdade de expressão: isegoría - , que significa a igual oportunidade de todos os cidadãos falarem nas assembleias políticas; e parrhesía - , franqueza, a liberdade para criticar e para uma pessoa dizer a verdade como a vê. Em seguida, trato de três aspectos interligados do pensamento socrático: o método da refutação (elenchos), a noção de “cuidado de si” e o ideal da vida examinada, para evidenciar como eles pressupõem ou se assentam no valor da liberdade de expressão. Destaco que é preciso que a pessoa esteja seriamente comprometida a perseguir e exprimir a verdade, para que seja capaz de avaliar suas crenças e livrar-se daquelas que são falsas. Consequentemente, esta pessoa pode prestar conta da própria vida expondo se seu pensamento, discurso e seus atos estão em acordo, assim como ela é capaz de levar a vida, examinada, pondose sob escrutínio e os outros, praticando o pensamento crítico que é essencial para o aperfeiçoamento moral e a formação de um bom cidadão para uma sociedade democrática. Concluo que, na medida em que promove o dizer a verdade, a atitude crítica socrática não é somente coerente com os preceitos básicos do regime democrático, mas também útil à democracia.

Palavras-chave: Sócrates; Democracia; Parrhesía; Elenchos -; Vida examinada

Abstract

In this paper, I seek to show that, although Socrates was a critic of Athenian democracy, his thought, as we know it from Plato’s early dialogues, is in line with the fundamental values of the democratic culture of Athens. To defend this interpretation, I focus on one of the most important principle of democracy: free speech. Firstly, I go over the concept of freedom of speech. I make it clear that, in the democratic political context, two Greek words convey two connected but distinct meanings of free speech: isegoría, - which means the equal opportunity of all citizens to speak in the political assemblies; and parrhesía - , frank speaking, the freedom to criticize and “telling the truth as one sees it”. Thereafter, I deal with three interconnected aspects of the Socratic thought: the method of refutation (elenchos), the notion of “care of the self”, and the ideal of the examined life in order to display how these three things presuppose or are based on the value of free speech. I highlight that it is necessary that a person is seriously committed to pursuing and expressing the truth so that she is able to evaluate her beliefs and get rid of the false ones. Accordingly, this person can give an account of her own life by exposing if her thought, speech and acts are in agreement, as well as she is able to lead an examined life, putting herself and the others under scrutiny, practicing critical thinking which is essential for the moral improvement and formation of a good citizen for a democratic society. I conclude that to the extent that it fosters truth-telling, Socratic critical attitude is not only consistent with the basic precepts of the democratic regime, but also capable of enhancing democracy.

Keywords: Socrates; Democracy; Parrhesía; Elenchos; - Examined life

Introdução

É opinião corrente a afirmação de que Sócrates era um antidemocrata que desdenhava a soberania popular e duramente criticava os ideais e as instituições da democracia ateniense e também seus próceres. De fato, é atestado por várias fontes antigas que o filósofo era crítico do sistema de governo de sua cidade. Aqui, porém, não me ocuparei em buscar definir a posição política do Sócrates histórico,1 mas em demonstrar que o pensamento de Sócrates que conhecemos, por meio dos diálogos do início da carreira de Platão, embora crítico da democracia, não só foi compatível, mas também proveitoso ao regime político de Atenas. Para defender essa interpretação, focalizarei o princípio da liberdade de expressão, enfatizando a noção de parrhesía, - a fala franca e o exercício da crítica, como valores que condicionaram a filosofia socrática e sobre os quais o pensador fundamentou aspectos centrais de sua investigação filosófica.

Isegoría -e parrhesía -na democracia ateniense

A democracia ateniense se fundamentava em dois valores políticos indissociáveis: igualdade (isonomía) e liberdade (eleuthería). Os cidadãos eram tidos como legal e politicamente iguais, ou seja, dispunham de igual acesso à justiça e igual oportunidade de participar na política, especialmente a oportunidade igual de exercer o discurso público. A liberdade, enquanto ideal democrático, apresentava dois aspectos: liberdade política para participar das instituições do governo democrático e das diversas atividades da vida pública, e a liberdade privada, que permitia o indivíduo viver sua vida particular como desejasse. O aspecto mais importante da liberdade era, porém, a liberdade de expressão, que na esfera pública consistia no direito de cada cidadão dirigir a palavra aos demais nas assembleias políticas, e na esfera privada consistia no direito de cada pessoa dizer o que pensa.

Dois termos gregos exprimem os dois sentidos que, no contexto político-democrático, a frase “liberdade de expressão” comunica: isegoría - e parrhesía. - Isegoría- refere-se à igualdade de oportunidade para todos os cidadãos, independentemente da condição social e econômica, de falar na assembleia. Esse princípio democrático era manifesto nas próprias palavras com que se iniciava uma assembleia: “Quem deseja falar?” Todo membro do corpo político era convidado a tomar parte ativa no processo deliberativo. Isso porque, como explica Ober:

A prática da democracia assumia que os cidadãos tinham a capacidade de pensar juntos, em público (como em privado), por meio do discurso franco, e que os resultados daquelas deliberações conduziriam ao bem comum. Deliberar significava ouvir como também falar; aceitar bons argumentos assim como formulá-los. (2001, p. 176-177).

Ober retoma a sugestão que Aristóteles apresenta na Política (1281a40b10; 1286a24-31), de que julgamentos democráticos são superiores àqueles feitos em oligarquias ou tiranias, já que os julgamentos realizados em assembleias democráticas reúnem pontos de vista e percepções de diversas pessoas.

Assim, não foi apenas o princípio da liberdade de expressão (como uma defesa de liberdades negativas) mas também o exercício constante e positivo do discurso livre (em deliberações sobre o bem comum) por pessoas com ideias diversas que foi essencial para o florescimento da democracia. (2001, p. 177).

Mas a isegoría - tem suas limitações, pois pode dar espaço à retórica manipuladora e enganosa com a qual um orador hábil distorce a verdade para benefício próprio às expensas da cidade. Um testemunho disso é a queixa de Isócrates, no exórdio do Sobre a paz, contra a inclinação dos atenienses a dar ouvidos a demagogos. O autor acrescenta que a dificuldade em convencer seus concidadãos da verdade que contraria suas crenças e desejos praticamente solapa a liberdade de expressão.2 Assim, para que o debate democrático fosse capaz de promover nos cidadãos a virtude da autonomia intelectual crítica em matéria política, cuja prática favorece a tomada de decisões vinculativas melhores, os discursos tinham de ser feitos com parrhesía - . Literalmente, parrhesía - significa “dizer tudo” (pan + rhema - ); a pessoa que usa de parrhesía - fala tudo que tem em mente, diz o que pensa, ou seja, fala francamente.3

Tanto hoje quanto na Grécia antiga, o falar franco pode aplicar-se a várias esferas da vida. E diversas fontes evidenciam que a liberdade para uma pessoa falar o que quisesse caracterizava a cultura ateniense e era uma prática altamente apreciada pela democracia nos séculos V e IV.4 Seja nas relações pessoais, no teatro ou na assembleia, a parrhesía - , destaca Monoson (2000, p. 53), está estritamente associada a duas coisas: crítica e dizer a verdade. “Falar com parrhesía - era confrontar, opor, ou encontrar falta num indivíduo ou numa opinião popular com a preocupação de iluminar o que é correto e melhor. O falar franco implica que o falante possui a autonomia intelectual para avaliar uma situação e pronunciar-se sobre ela”.

Nesse sentido, parrhesía - equivale ao “dizer a verdade como se a ver”, ou seja, à ação de uma pessoa emitir sua opinião verdadeira. A pretensão de verdade do discurso parrhesiástico não implica, Monoson frisa, uma correspondência da opinião com um padrão absoluto e transcendente, mas apenas que o falante sustenta convicta e sinceramente que sua opinião está correta. “O principal trabalho que a pretensão de verdade fazia era asserir a honestidade e integridade do falante e o evidente sentido crítico de seu logos - não a infalibilidade do próprio logos.” (2000, p. 53). Na esfera política, trata-se, pois, não de verdades absolutas, mas daquelas assunções estipuladas corretas, válidas ou verdadeiras performaticamente e que pertenciam ao que Ober (1998, p. 34) chamou de “conhecimento democrático” ou “regime de verdade” construído social e politicamente. Por princípio, todas as opiniões nesse domínio eram suscetíveis de revisão e crítica, e os cidadãos dispunham de liberdade para realizá-las. A liberdade e a parrhesía - vivificavam o sistema de governo democrático. Em contraste com a vida sob uma tirania, na qual o falar livremente não é tolerado, de um cidadão em uma democracia se esperava que tivesse e expressasse suas opiniões político-críticas. “Ser livre significava ser capaz de conter aqueles que exercem o poder controlável, isto é, no mínimo, expor mentiras, apontar abusos e cobrar mudanças”. (MONOSON, 2000, p. 55).5 Como Foucault também observa, a parrhesía - não tem por função demonstrar a verdade para outra pessoa; antes, sua função é de crítica, crítica ao interlocutor ou ao próprio falante: “Isso é o que você faz e isso é o que você pensa; mas isso é o que você não deveria fazer ou não deveria pensar”. “Esta é a maneira que você se comporta, mas esta é a maneira que você deveria se comportar”. “Isto é o que eu tenho feito, e eu estava errado em fazê-lo”. (2001, p. 17).

Sócrates, parrhesía e democracia

A investigação filosófica e a prática da dialética do Sócrates de Platão foram condicionadas e são essencialmente marcadas pela liberdade de pensamento e pela parrhesía - que a cultura democrática ateniense promovia. Para evidenciar isso, tratarei de três aspectos do pensamento socrático assentados no valor e na prática da liberdade de expressão, em vigor na Atenas dos dias de Sócrates, a saber, o método do elenchos, o princípio do “cuidado de si” e o ideal da vida examinada.

Como muitos têm observado, Sócrates foi um cidadão exemplar. Mas se, por um lado, seu comportamento se conformava ao padrão do “bom cidadão” de Atenas, por outro, dele também divergia, especialmente por causa das críticas a certos princípios da democracia, assim como contra certas crenças religiosas e morais. Enquanto bom cidadão ateniense, Sócrates foi um zeloso cumpridor de seus deveres cívicos, seja pela obediência às leis, aos costumes e aos magistrados da polis, seja pela participação nas instituições do governo e frequência das assembleias. A satisfação de Sócrates com as leis e a constituição democrática de Atenas, registrada no Críton (51a-53a), indica que ele acreditou que a formação e educação cívica que recebeu de sua cidade era “consistente com os compromissos éticos e morais que ele subsequentemente desenvolveu no curso de sua conversação e estudos filosóficos”. (OBER, 2011, p. 165). Não obstante, o filósofo também tinha fortes objeções ao regime de governo de sua cidade. A característica mais destacada do pensamento político-socrático é a crítica que endereça contra a ideologia democrática, segundo a qual o povo teria condições intelectuais e morais suficientes para se governar. Sócrates tinha em pouca conta a opinião pública e suspeitava da capacidade dos “muitos” para fazer juízos políticos, pois ele considerava a política um conhecimento especializado da competência de um hipotético especialista moral.6

Contudo, para fazer suas críticas e tentar a reforma política que julgava necessária, o filósofo ateniense evitou a arena da política institucionalizada e falar ao demos na assembleia. Ele deve ter achado mais produtivo engajarse em diálogos filosóficos com seus concidadãos, travando com eles relações pessoais. Destaca Foucault com toda propriedade: “Sócrates é tipicamente um parrhesiástico, pois ele constantemente confronta os atenienses na rua e, como notado na Apologia, aponta a verdade para eles, instigando-os a cuidar da sabedoria, da verdade e da perfeição de suas almas”. (2001, p. 23).

É seguro dizer que a prática da parrhesía, - que Sócrates assistia na assembleia e na vida social ateniense, ele empregou em suas conversas filosóficas. A dialética socrática se realizava pelo método de discussão por questões e respostas, com o qual buscava demonstrar opiniões falsas no sistema de crenças do interlocutor. Se, de uma parte, o método de refutação socrático (elenchos) se assemelhava a certos tipos de argumentos dos sofistas, em particular a antilógica protagórica, de outra parte era substancialmente distinto deles pelo fim que a visava e pelas exigências que fazia. O interesse de Sócrates não era meramente fazer uma opinião prevalecer sobre outra, mas buscar verdades no domínio moral. Uma das exigências para o sucesso do método era o interlocutor “dizer o que pensa”. (Górgias 500b; República I, 346a; Críton 49c-d; Protágoras 331c). Isso pela razão seguinte: o elenchos averigua se o argumento é honesto e, assim, testa a seriedade na inquirição da verdade. Escreve Vlastos: “Uma vez que as pessoas consideram suas opiniões mais descartáveis que sua vida, Sócrates quer que elas liguem suas opiniões a sua vida como uma garantia de que o que elas dizem é o que elas querem dizer”. (1995, p. 9). O elenchos tem uma dimensão existencial, o que ele examina não são apenas proposições, mas vidas (Apologia 29e-30a; Laques 187e-188a). “Assim, o elenchos tem um duplo objetivo: descobrir como cada ser humano deveria viver e testar este ser humano particular que está respondendo - para descobrir se ele está vivendo como se deveria viver”. (1995, p. 10). Ora, para a conversa ser eficaz e o interlocutor prestar conta de sua vida, ele deve expor seu juízo sincero sobre o ponto do debate. A parrhesía é, portanto, essencial à dialética socrática.

Intimamente associado à questão do método, outro aspecto da filosofia socrática que implica a parrhesía é o princípio do “cuidado de si” (epimeleia heautou). Convidado a usar a honestidade, o interlocutor de Sócrates submetia sua alma a escrutínio e se via forçado a prestar conta da própria vida, como acima aludido. Assim Nícias afirma no Laques (187e-188b):

Quem se aproxima de Sócrates para conversar com ele [...], muito embora se trate no começo de assunto diferente, de tal modo ele o arrasta na conversa, que o obriga a prestar-lhe contas de si próprio, de que maneira vive e que vida levou no passado; uma vez chegados a esse ponto, não o solta Sócrates sem o ter examinado a fundo [...] quem não se furta a esse exame, passará necessariamente a tomar mais cuidado consigo mesmo. (Tradução de Carlos Alberto Nunes).~

Comentando essa passagem, Foucault esclarece que “prestar conta da própria vida” não se confunde com a narrativa que uma pessoa pode fazer de eventos passados em sua vida. Trata-se da capacidade de mostrar que há uma relação entre o discurso racional, o logos, que ela é capaz de usar, e a maneira como ela vive. “Sócrates está inquerindo a maneira como o logos dá forma ao estilo de vida de uma pessoa, pois ele está interessado em descobrir se há uma relação harmônica entre os dois”. (2001, p. 97). Sócrates, que é representado como dotado da harmonia entre seus pensamentos, palavras e atos, exerce uma função parrhesiástica como de uma pedra de toque para testar e determinar a natureza da relação entre logos e bios daqueles com quem vem a ter contato. Quem passa pelo exame de Sócrates, explica Nícias, se dispõe a cuidar do modo como vive pelo restante de sua existência, querendo viver a melhor vida possível, esforçandose por aprender e educar-se não importa a idade. Quer dizer, quando as pessoas veem suas ideias com mais clareza e com sua própria responsabilidade, tornam-se mais dispostas a assumir responsabilidade por seus atos e melhorar seu comportamento. (NUSSBAUM, 2015, p. 54).

O ideal da vida examinada propalado por Sócrates, com o desenvolvimento do pensamento autônomo, da autocrítica e do questionamento de opiniões correntes ou padrões estabelecidos, não só é crucial para o aperfeiçoamento moral do indivíduo, como também representa uma inestimável contribuição à democracia e à sociedade aberta. Entre os vários benefícios do exame socrático podemos, com Nussbaum, apontar os três seguintes. Primeiro, quem pratica a inquirição críticosocrática tem maior clareza sobre o que é mais importante na vida e que metas perseguir, sendo capaz de tomar decisões melhor fundamentadas. Segundo, é próprio da pessoa que tem atitude crítica não se permitir facilmente influenciar por um demagogo habilidoso. Já os que carecem dessa qualidade se deixam persuadir pela retórica comovente e prestam pouca ou nenhuma atenção ao argumento; estes mudam de opinião com facilidade, arrastados pelo respeito à autoridade e prestígio do orador ou pela pressão dos iguais. Em contraste, para quem pratica a crítica socrática a única coisa que interessa é a natureza do argumento.

O argumentador socrático é um dissidente inveterado porque sabe que a única coisa que existe é cada um com sua argumentação a lidar com as coisas. O número de pessoas que pensam isso ou aquilo não faz diferença. Em uma democracia, a pessoa adequada para se ter é aquela que está preparada para acompanhar uma argumentação em vez de números, o tipo de pessoa que enfrentaria a pressão para que dissesse algo falso ou precipitado [...]. (NUSSBAUM, 2015, p. 51).

Terceiro, e por fim, enquanto se observa entre aqueles que levam uma vida sem exame a falta de respeito às outras pessoas e uma concepção do debate político como uma competição atlética, em que o “outro lado” é o inimigo a ser derrotado e humilhado, a crítica socrática, ao contrário, busca por consenso. Sócrates considerava o interlocutor como seu semelhante; e ambos (Sócrates e o interlocutor) precisavam do exame, e eram iguais perante o argumento, como iguais eram os cidadãos perante a lei. “Essa postura crítica expõe a estrutura da posição de cada um, revelando, durante o processo, hipóteses compartilhadas e pontos de intersecção que podem ajudar os concidadãos a avançar para uma conclusão comum”. (NUSSBAUM, 2015, p. 51).

O confronto respeitoso das opiniões dos outros na cidade caracteriza a filosofia e o estilo de vida de Sócrates. A parrhesía - que os atenienses praticavam na vida política, Sócrates põe em ação também em suas investigações filosóficas e morais, e, tanto quanto se implicam na sua política. É fato que, embora acostumados com críticas, houve atenienses que, a certa altura, se cansaram do comportamento e das críticas de Sócrates desfavoráveis à democracia, levando o filósofo a julgamento e o sentenciando à morte.7 Mas é um erro de perspectiva, creio eu, tomar Sócrates como um inimigo do povo e hostil à soberania popular. Como já se defendeu, apesar de Sócrates ter sido um crítico da democracia, sua crítica foi expressa de forma democrática, isto é, “aceitando as regras fundamentais da própria democracia, ou seja, o confronto livre de opiniões e, portanto, o livre exercício do pensamento e da fala”. Mais que um defensor da liberdade de expressão, Sócrates foi dela um verdadeiro mártir, “visto ter dado testemunho com sua morte do direito de todo homem de professar livremente seu pensamento.” (BERTI, 2010, p. 400).

Não é preciso esforço para reconhecer que a filosofia e o método socrático são coerentes com os princípios fundamentais de uma democracia antiga ou moderna. Em tempos de “pós-verdade” e em que as fake news põem em risco a democracia no Brasil e mundo afora, ao desprezar a objetividade da verdade em favor de narrativas desonestas e tendenciosas, resultando na negação da própria liberdade de expressão, é realmente oportuno revisitar a parrhesía socrática, pois ela pode iluminar nossa reflexão sobre como proteger e aperfeiçoar o regime político que mais preza a liberdade de expressão.

Conclusão

Busquei apresentar aqui uma defesa de Sócrates contra a acusação de ter sido ele um antidemocrata. Apesar de suas críticas à ideologia democrática da capacidade do povo de se governar, o Sócrates dos primeiros diálogos platônicos não deve ser visto como rival do regime político de Atenas; ao contrário, sua filosofia e seu método são consequentes com os princípios fundamentais da cultura democrática de sua cidade, especialmente com o valor e a prática da liberdade de expressão, que tomei em consideração para desenvolver o meu ponto. Tendo mostrado que, no contexto político democrático, o conceito de liberdade de expressão é duplamente entendido como a igual oportunidade para os cidadãos falarem nas assembleias (isegoría) e a liberdade de uma pessoa para dizer o pensa, ou seja, criticar e exprimir a opinião que lhe parece verdadeira (parrhesía), ocupei-me de três aspectos do pensamento socrático que estão~ evidentemente fundamentados na parrhesía, quais sejam, o elenchos ou método de refutação, que para depurar a alma do interlocutor da ilusão de saber requer que ele emita seu parecer honesto sobre o tema em discussão; a noção de “cuidado de si” e o ideal de vida examina que só se realizam na vida de uma pessoa, se ela estiver disposta a manifestar suas crenças, sentimentos e intenções, assim como a praticar a autocrítica, examinando a si e aos outros, e a questionar as opiniões compartilhadas e o Establishment. A parrhesía democrática fomentava a investigação crítico-socrática; esta, por sua vez, contribuindo para formar cidadãos críticos e autônomos, se apresenta vantajosa para a democracia.

Referências

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1Vlastos (1995) realizou esse trabalho com resultados convincentes, a meu juízo.

2Escreve Isócrates (Sobre la paz, 1980, p. 10-14): “Convendría que vosotros si queréis buscar lo ventajoso para la ciudad, prestárais mayor atención a los que se oponen a vuestra manera de pensar que a los que os dan la razón por agradaros, y que supiérais que de los oradores que aquí vienen, los que hablan de acuerdo con vuestros deseos, pueden engañaros con facilidad - porque lo que se disse para daros gusto os oscurece la visión de lo que es mejor - y en cambio, no os ocurrirá lo mismo con los que no os aconsejan cosas de vuestro agrado. [...] La causa de estas cosas es que vosotros debíais aplicaros por igual a los asuntos públicos y a los privados, pero no tenéis sobre ellos la misma manera de pensar. Por el contrario, cuando tomáis uma resolución sobre vuestros asuntos particulares, buscáis como consejeros a quienes son más inteligentes que vosotros mismos, pero cuando os reunís en asamblea en favor de la ciudad, desconfiáis de tales consejeros y los aborrecéis. Rodeáis de elogios, en cambio, a los peores de cuantos suben a la tribuna y pensáis que son más útiles al pueblo los embriagados que los sobrios, los necios que los inteligentes, los que se reparten los fondos estatales que quienes sostienen un servicio público con sus fortunas particulares. Por eso hay que sorprenderse si alguno espera que la ciudad mejore utilizando tales consejeros. Yo sé que es difícil oponerse a vuestro pensamiento, y que, aunque estemos en una democracia, no existe libertad de expresión salvo aquí, para los insensatos que no piensan en vosotros y, en el teatro, para los autores de comedias”.

3Foucault (2001, p. 14) distingue dois sentidos de parrhesía- : “First, there is a pejorative sense of the word not very far from “chattering” and which consists in saying any - or everything one has in mind without qualification. This pejorative sense occurs in Plato [Republic 577b. cf. also Phaedro, 240e & Laws 649b, 671b.] for example, as a characterization of the bad democratic constitution where everyone has the right to address his fellow citizens and to tell them anything - even the most stupid or dangerous things for the city. [...] Most of the time, however, parrhesía - does not have this pejorative meaning in the classical texts, but rather a positive one. Parrheriazesthai means “to tell the truth”. But does the parrhesiastes say what he thinks is true, or does he say what is really true? To my mind, the parrhesiastes says what is true because he knows that it is true; and he knows that it is true because it is really true. The parrhesiastes is not only sincere and says what is his opinion, but his opinion is also the truth. He says what he knows to be true. The second characteristic of parrhesía, - then, is that there is always an exact coincidence between belief and truth.”

4A literatura sobre a liberdade e expressão na Atenas da época clássica é copiosa. As conferências de Michel Foucault, proferidas na Universidade de Berkeley em 1983 e publicadas em livro em 2001, permanecem uma excelente análise da noção de parrhesíaem diversos contextos reportados pelas fontes antigas. O enfoque político da experiência da liberdade de expressão ateniense é dado pelo estudo de Arlene Saxonhouse (2006); a autora demonstra que os gregos não compreendiam a liberdade de expressão como um direito constitucional (diferentemente do entendimento moderno), a parrhesía - era para eles expressão de sua liberdade, autonomia e sentimento de igualdade política. O leitor pode ainda se beneficiar da breve, mas ilustrativa exposição de Robert W. Wallace (2009).

5Tal é a ideia básica da noção de “cidadania contestatória”, apresentada por Philip Pettit, como a forma de participação política pela qual os cidadãos exercem controle do Estado influenciando e direcionando as decisões de seus representantes. Sobre este assunto, ver Neto (2018).

6Muito tem sido escrito sobre essa crítica de Sócrates à democracia e que conclusões tirar dela. Uma análise primorosa do assunto é feita por Brickhouse e Smith. (1994, p. 155166). Ver também Kraut (1999).

7Saxonhouse (2006, p. 14) lapidarmente coloca: “Athenian democracy becomes a regime that fosters - but also ends up executing - the man who fully expresses the principles of parrhesia ~ ”.

Recebido: 30 de Dezembro de 2018; Aceito: 26 de Junho de 2019

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