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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.24  Caxias do Sul  2019  Epub 31-Jul-2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v24.e019026 

ARTIGOS

Kafka na problematização da docência: o devir-animal como linha de fuga

Kafka in the teaching problematization: becoming-animal as an escaping line

Josimara Wikboldt Schwantz* 
http://orcid.org/0000-0002-8298-0502

Carla Gonçalves Rodrigues** 
http://orcid.org/0000-0001-8642-8005

João Pereira Matos*** 
http://orcid.org/0000-0003-4333-3385

* Pedagoga. Mestra e Doutora em Educação pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Professora substituta na FaE/UFPel. E-mail: josiwikboldt@hotmail.com

**Psicanalista. Doutora em Educação. Professora aposentada pela Faculdade de Educação da UFPel. E-mail: cgrm@ufpel.edu.br

***Advogado. Licenciado em Filosofia. Mestrando em Filosofia Epicurista e Investigador no Centro de Humanidades (CHAM) da Universidade Nova de Lisboa. E-mail: escrevinhices@gmail.com


Resumo

Neste texto, pretende-se explorar a ideia de devir a partir da novela “A metamorfose” de Franz Kafka. Pela leitura, evidencia-se a presença da animalidade na sua escrita, de maneira que chama a atenção a insistência em dar voz às questões emergentes da sociedade e do modo de vida, não somente animal, mas humano: a metamorfose de Gregor Samsa, que acorda numa manhã transformado em um inseto. Parte-se, também, da concepção de devir para os filósofos Deleuze e Guattari como estado de sensação que é capaz de multiplicar as intensidades afetivas, de pensamento e expressão em um corpo. Relaciona-se a docência à problemática da existência por meio da literatura e da filosofia. Tal investigação é impulsionada por experimentações realizadas com professores, atuantes e em formação, na oficina de escrileituras denominada “Conatus”, utilizando-se, dentre outras matérias, da literatura kafkiana para questionar o fazer docente e aquilo que adoece em meio ao cotidiano escolar. Diante das pequenas novelas de rádio escritas e gravadas pelos participantes, os autores se deparam com a interrogação: Quais são as condições para que algo seja criado na prática pedagógica? As novelas deram visibilidade, entre outras questões, aos conflitos enfrentados na profissão. Destaca-se a criação intitulada “A vaca”, na qual os professores acenaram suas inquietações e a desfiguração da sua imagem como uma linha de fuga da identidade depreciativa e sagrada tomada por diferentes circunstâncias e local em que se vive. Como resultado, entende-se que a literatura e a filosofia mostram-se intercessoras potentes ao favorecer a desconstrução de significações e a abertura para pensar sobre as condições de possibilidades de outros modos de existir.

Palavras-chave: Kafka; Devir-animal; Literatura; Filosofia da diferença; Escrileituras

Abstract

In this text we intent to explore the idea of becoming from the novella “The Metamorphoses” by Franz Kafka. By the reading, evidencing the presence of animalism in his writing, in a way that catches our attention the insistence in giving voice to emergent questions from society and way of life, not only animal, but human. The metamorphoses of Gregor Samsa, that wakes up in one morning transformed into an insect. We departure, also, from the conception of becoming from philosophers Deleuze and Guattari,while sensation state is capable of multiplying the affective intensities, of thinking and expression in a body. We relate teaching and the problematic of existence through literature and philosophy. Such investigation is driven by the experimentations done with teachers, acting and in training, in writing - reading workshop called Conatus, using, among other subjects, Kafka’s literature to question teaching and what sickens among school life. Ahead of small radio soap operas written and recorded by the participants, we come across with the question: what are the conditions to something to be created in the pedagogical practice? The soap operas gave visibility, among other issues, to the conflicts faced in the profession. We highlight the creation entitled “The Cow”, where the teachers acted their restlessness and their images disfiguration as an escaping line from secret deprecating identities by different circumstances and local where we live. As a result we understand that literature and philosophy show themselves as potent intercessors, by favoring the deconstruction of meanings and the opening to think about possibilities’ conditions and other ways of existing.

Keywords: Kafka; Becoming-animal; Literature; Philosophy of difference; Writing-reading

1 Introdução

Existem muitas entradas e saídas possíveis no ato de ler a obra e a vida de Franz Kafka. Deleuze e Guattari (2014) consideram os escritos do literato um rizoma, onde se multiplicam as chances de contato e relação com a história e a própria obra. Neste texto, procura-se abordar alguns aspectos referentes à forma animal que aparece na escrita do autor, bem como construir relações com a ideia de devir-animal da filosofia. Essa intenção se justifica desde uma experiência de escrileituras realizada em oficinas com professores atuantes e em formação inicial, que puderam experimentar material artístico da novela “A metamorfose”, como uma das matérias consideradas intercessoras do pensamento na problematização sobre o malestar docente.

Em meio a essas provocações e na construção de pequenas novelas que foram gravadas em áudio, alguns docentes puseram em destaque o modo animal de ser-e-sentir, dando visibilidade aos conflitos enfrentados na profissão. Desde então, surge a intenção de pesquisa na construção de relações com a ideia de devir-animal para a filosofia, a literatura e a educação.

Autor de uma das famosas novelas “A metamorfose”, Kafka nasceu e viveu em Praga, no período entre 1883 e 1924, lugar onde escreveu e publicou, ainda em vida, outros textos. É considerado um cânone, um dos maiores literatos do século XX, segundo o crítico literário Bloom (2001). Em seus escritos, vê-se a construção de um estilo peculiar, uma linguagem múltipla, a qual se conhece hoje como kafkiana, e que foi muito influenciada pelas línguas alemã, tcheca e o ídiche. Suas obras proliferam diferentes maneiras de interpretá-las, podendo ser avaliadas como contendo um caráter ambíguo e indecidível. Desenvolve uma escrita que aparenta resistência aos critérios de verdade estabelecidos em determinados meios sociais e culturais.

A partir da leitura de seu diário, pode-se considerar outras influências na construção de seu estilo, como, por exemplo, os autores que lera: Goethe, Flaubert, Lenz, Kierkegaard. Kafka tinha como referência os clássicos, mas não somente. O meio cultural em que viveu foi importante para sua criação literária. Porém, é fato afirmar que, mais do que ser influenciado, ele foi e ainda é um autor de grande alusão para outros escritores, estudiosos, filósofos e demais contemporâneos que admiram seu trabalho.

Não há uma única via de interpretação de sua obra. Existem diferentes perspectivas para ler Kafka em sua arte criada pela palavra. Pode-se citar alguns exemplos de caminhos que são e podem ser explorados pelo leitor: a perspectiva biográfica (a partir dos diários e cartas onde descreve passagens de seu cotidiano); a perspectiva psicanalítica (na relação entre a família, principalmente com o pai), a perspectiva crítica (da cultura, da sociedade e da política vigentes da época do autor, podendo ser exploradas numa análise da atualidade); e, por fim, pode-se dizer que há uma perspectiva mística (em que os sonhos e o absurdo tomam lugar nos acontecimentos narrados).

Evidencia-se a presença animal em sua escrita,1 de maneira que chama a atenção a insistência em trazê-la para dar voz às questões emergentes da sociedade e do modo de vida, não somente animal, mas humano: a metamorfose de Gregor Samsa, que acorda numa manhã transformado em um inseto. Um diálogo entre chacais e árabes sobre uma esperança absurda e a alienação. O macaco que encontra uma saída, no imitar humano e escreve um relatório a uma academia. Um cruzamento de um animal peculiar que é meio gato e meio cordeiro. Um rato como personagem de uma fábula breve. O cão que faz investigações e reflexões sobre sua natureza. Um animal misterioso que vive numa sinagoga e que somente as mulheres têm medo dele. E outro que vive na toca com mania de perseguição. Temse, também, Josefina, a rata-cantora que é admirada por um povo de ratos. Esses são textos indicadores do interesse de Kafka em trazer animais como personagens que intercedem por si e tratam de expressar, às vezes, com certo humor, outras com certa repugnância, o limiar existente entre os seres, seus modos de viver e pensar.

2 Metamorfose e devir no bestiário kafkiano

O texto se detém na apreciação de “A metamorfose”, relacionando as circunstâncias dos acontecimentos de Gregor com a ideia desenvolvida pelos filósofos da diferença, Deleuze e Guattari, sobre o devir-animal. Na esteira da proposta, agencia-se uma questão que se vem investigando em relação à docência: Quais são as condições para que algo de novo seja criado na prática pedagógica de um docente, de forma a encontrar saídas para aquilo que diminui sua potência de agir?

A novela intitulada “A metamorfose ou A transformação” (KAFKA, 2016) é dividida em três partes. Narrada em primeira pessoa, protagoniza uma situação muito peculiar e um tanto absurda: Gregor Samsa, um caixeiro-viajante, ao acordar numa manhã em seu quarto, se vê transformado em inseto. Essa transformação causa enorme horror à família, tornando-se um acontecimento que mudará a rotina e a vida dos personagens envolvidos na trama.

Gregor descobre um estranho estado em seu corpo (e se pode dizer de mente e espírito?). Diante de tal circunstância, se vê em meio a algumas reflexões sobre o emprego, a firma onde trabalha, a família e até mesmo sobre si próprio. Mas, ainda assim, diante da dificuldade que se apresenta, não perde a esperança de que tudo mude.

Percebe que já passam das 6 horas e meia da manhã e que, pelo horário, havia perdido o comboio das 5 horas para viajar. Seria um sonho, ou uma indisposição do corpo que ia se adoentar? Gregor não achava respostas para o acontecido. Sentia incômodos e dores, principalmente nos movimentos bruscos para tentar sair da cama. Deveria aprender a manejar aquele novo corpo que estava sendo dele naquele momento.

A voz também mudara. Nota esse fato quando a mãe, a irmã e, logo, o pai e o gerente da firma situam-se à porta do quarto para questionar sua ausência no trabalho. Na resposta dada, todos constatam uma diferença e de que algo estranho aconteceu a ele. Sente que perdeu o domínio de si próprio. Preocupava-se com o que todos iriam pensar a seu respeito. De alguma forma, ele acreditava (ainda com certa esperança) que os afetos humanos sentidos por seus entes poderiam contornar aquela situação, e que tudo voltaria ao normal, integrando-se no círculo familiar e social novamente, com segurança e confiança. Mas isso não acontece.

Kafka apresenta um dilema que é próprio do humano, as relações estabelecidas entre as instituições familiar e empregatícia. Destaca o problema do personagem em se tornar estranho a ele mesmo, a se tornar um animal. Ambos os acontecimentos estão ligados entre si. Há o desfazimento de uma identidade, em que foi necessário aprender a viver de um jeito diferente. Um devir-animal (DELEUZE; GUATTARI, 2012) apodera-se do corpo sobrecarregado pelas molaridades de uma vida.

Gregor consegue - com um esforço digno de uma descrição que é capaz de fazer sentir a angústia do corpo - abrir a porta do quarto e ser visto pelos que ali estavam. Todos se assustam de seu novo aspecto e se distanciam dele, que tem a esperança diminuída quanto ao retorno à normalidade do cotidiano. A desconfiança e a insegurança se perpetuam naquele ambiente, a partir do instante em que estão todos diante do animal. O gerente não compreende e foge do local, com repugnância. A mãe desmaia ao ver o filho com aquela forma, e o pai busca, com a bengala deixada pelo gerente, espantá-lo novamente para seu quarto. A capacidade que ele tinha de reter, acalmar, conquistar, convencer as pessoas como caixeiro-viajante, não era mais perceptível desde a desfiguração de um corpo que entrou em metamorfose.

Sabe-se que existem diferentes perspectivas para ler e interpretar essa novela, e uma delas é a do devir. O devir-animal, presente em alguns personagens construídos pelo autor, instala a possibilidade de disposição em um corpo. Haveria Gregor entrado em um estado de sensação que o fez manifestar as características de um inseto? Que forças foram projetadas para se efetivar a transformação das potências do corpo em Gregor?

O devir-animal, na perspectiva filosófica, comporta um estado que não é ser homem nem bicho. É a possibilidade de transitar na experiência que realiza “evoluções não paralelas, que não procedem por diferenciação, mas saltam de uma linha a outra, entre seres totalmente heterogêneos”. (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 22). Essa heterogeneidade refere-se às naturezas diferentes, agenciadas umas com as outras (homem e animal, por exemplo).

Na segunda parte da novela, o homem, transformado em inseto, desperta de um sono pesado. Avista-se ferido em uma das patinhas no instante em que o pai o fez retornar ao quarto com violência e rapidez. Sente fome. Mantém certa relação com a irmã que, rotineiramente, leva comida e faz a arrumação do cômodo. Perde-se em reflexões mais uma vez, ou ruminações, como descreve, notando o quanto se dedicou para que a família pudesse usufruir de uma vida tranquila.

Igualmente, pensa em vão nas estratégias para conseguir reorganizarse novamente, levando em conta sua transformação. Nessa parte da novela, nota-se um momento de relato do cotidiano vivido pelo personagem como inseto, preso no quarto, a divagar em pensamentos e recordações. Teve de criar novos hábitos para si, como o rastejar pelas paredes e pelo teto, e aprender outros domínios que aquele corpo lhe permitia.

O devir-animal não se constitui em séries, mas em blocos, lidando com as matilhas, os bandos, um povoamento numa descontinuidade que é possível se ver nas obras de Kafka. No devir não há interesse pelas características, mas pela propagação e contágio, as multiplicidades de onde o homem extrai agenciamentos para operar seus devires-animais. Gregor cria outras estratégias para lidar com seu estado, buscando e, até mesmo, se surpreendendo com seus outros gostos, jeitos (passa a apreciar queijos, escalar paredes, o som do violino que a irmã toca, a vista da janela de seu quarto). Uma série de singularidades passa a fazer sentido àquela outra configuração em que o homem, que agora não é somente homem, tem de conviver.

Com o passar dos dias, ele revê a mãe e o pai que, diferentemente de sua expectativa (terem se acostumado com sua transformação), ainda permanecem a repugná-lo. O pai, descontrolado, o fere novamente, agora com uma maçã que é atirada contra o corpo aterrorizante. Gregor se constitui numa fronteira que o desintegra da sua identidade humana e das relações vivenciadas junto com sua família. Para Deleuze e Parnet (1998, p. 41), na conjugação entre o homem e o animal, nenhum deles possui semelhança ou imita o outro, mas cada um desterritorializa, traçando linhas de fuga diante do instituído. Esse “sistema de substituição e de mutações pelo meio” passa a ser uma estratégia para fugir daquele estilo de vida oprimido.

Entrar em devir supõe um movimento de desterritorialização, em que são traçadas linhas de fuga. O personagem encontra algumas saídas diante do modelo de ser homem programado àquela existência “Gregor-caixeiroviajante” (um homem que acorda todos os dias para ir trabalhar e manter a vida tranquila da família). Destaca-se como saída não somente a transformação em inseto, mas as tentativas de retirada do quarto movidas pelos novos sentidos apurados (paladar e audição) e a própria morte.

Na última parte, Gregor encontra-se gravemente ferido. Seu estado começa a se deteriorar, conseguindo movimentar-se cada vez menos e com muita dificuldade. A rotina da família mudou desde a transformação e a ausência do único provedor da família. O pai retornou a trabalhar em um banco, assim como a irmã numa loja, e a mãe, a costurar roupas. As despesas da casa foram diminuídas, mas a sensação de que a família fora alvejada por uma desgraça só aumentava. Gregor tinha dificuldades para dormir, sentia raiva de seus familiares por tê-lo abandonado e deixado cair em total descuido e dor. A irmã que, tão incansavelmente, tratava dele, agora se queixava dessa tarefa que lhe causava transtorno e cansaço. Outros três personagens (os hóspedes) aparecem na trama e passam a conviver com a família, ao alugarem um quarto disponível na casa dos Samsa.

Numa dada altura, o inseto se põe a espreitar a porta e, mais uma e última vez, arrisca-se a sair de seu quarto. Dessa vez é atraído pelo som do violino que a irmã tocava na sala para os pais e hóspedes, mas é avistado por um dos homens, causando certa curiosidade e repugnância. Ao perceberem o animal e sem entender os reais acontecimentos daqueles moradores, acusam-nos do pouco cuidado com a higiene da casa. Gregor é espantado para seu quarto, e a irmã, tomada pelo cansaço e decepção das atitudes do animal, convence os pais de que a situação deve mudar em relação à convivência com aquele monstro.

Triste, ele se vê no quarto escuro envolto em pensamentos sobre suas boas intenções não reconhecidas pela família. Sente, cada vez menos, dor e os movimentos de seu corpo paralisados. Solta seu último suspiro e morre. A partir de sua morte, a família muda radicalmente de expressão e atitudes: despejam a empregada e os hóspedes da casa, tomam a liberdade de faltarem ao trabalho por um dia, saem a passear e, por fim, planejam um futuro, agora sem o monstruoso inseto que carregava o peso da desgraça da família.

Vimos que o devir-animal não afeta somente o corpo em transformação, mas existe uma reciprocidade nessa relação, de modo que aquele com quem se faz a aliança sente-se afetado do mesmo jeito. Poderse-ia considerar, para além dessa dualidade (homem-inseto), uma contaminação desse estado em outros corpos? Estaria a irmã, ao final da novela, se metamorfoseando, afetada pela mudança do irmão e pelos desejos dos pais em lhe arranjar um bom marido (outro alvo de molaridades projetado pela família)? “E era como se fosse uma confirmação dos seus novos sonhos e boas intenções quando, no termo da viagem, a filha se levantou em primeiro lugar e distendeu o seu jovem corpo”. (KAFKA, 2016, p. 98).

O devir se efetiva numa relação, e não apenas numa correspondência dualista. Esse fenômeno não trata de uma imitação, transformação física ou identificação. Há um processo de composição de velocidades e afectos num plano que favorece o devir. O devir-animal é um tipo, entre tantos outros possíveis, e nele são criadas potências afetivas, de pensamento e de expressão. Deleuze e Guattari afirmam que:

devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui, ou das funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de devir, e através das quais devimos. (2012, p. 67).

Além de instaurar movimentos e lentidões, o devir coloca-se em relação às latitudes e às longitudes, operando uma dissolução da variação linear. Tem-se uma relação composta por um mapa e seus caminhos - por rizomas

- que acompanham as transformações de uma existência, que não se definem por dois pontos (ponto de partida e de chegada), mas pelos meios com os quais vai-se compondo. Os filósofos contribuem para pensar sobre aquilo que vamos nos tornando. A linearidade da qual a vida de Gregor estava submetida (estudar, trabalhar, sustentar a família) se desfez na medida em que o devir-animal interceptou sua constituição homem, pondo o pensamento em relação com a geografia do próprio mundo experimentado por ele. Essa constituição se faz de variados caminhos, lentidões, movimentos, latitudes e longitudes percorridos, tratando-se de uma cartografia. O devir é algo que não transforma o corpo físico em outra formatação, mas o faz entrar num estado de sensação que permite combinações. É mais uma questão geográfica do que histórica, e, aí, situase a diferença da disposição das linhas de uma vida. (DELEUZE; GUATTARI, 2012).

Considera-se a ação de ler-escrever como um movimento impulsionador para a criação desses caminhos de transformação de uma forma de existir. Por esse viés, oferecemos, juntamente com a obra de Kafka e o conceito de devir-animal para a filosofia deleuze-guattariana, uma experiência realizada com grupos de professores, denominada oficina “Conatus”, na circunstância de um projeto de ensino, pesquisa e extensão realizado pelo grupo de pesquisa “Escrileituras da diferença em filosofiaeducação”. Tal ação pretendia problematizar os discursos referentes ao adoecimento dos professores na rede de ensino do qual investigávamos.

3 Oficinas de escrileituras para problematizar a docência

O propósito era problematizar o fenômeno mal-estar docente que circulava por entre os discursos de professores e professoras da rede de ensino investigada numa cidade do interior do Estado do Rio Grande do Sul - Brasil. Na proposta apresentada, os docentes tiveram a oportunidade de discutir e pensar, filosoficamente, a partir da produção em escrileituras. Trata-se de uma proposta para ler-escrever como via de mão dupla, acionada por matérias da arte, da filosofia e da ciência, interceptoras do pensamento, da ação e da produção literária, poética, fílmica e novelística. Manifesta um texto produzido em coautoria: aquele que lê reivindica uma postura de escritor e vice-versa no texto, podendo ser traduzido de diferentes maneiras. (CORAZZA, 2011). Na oficina “Conatus”, as escrileituras criadas pelos professores participantes deram vida a pequenas novelas gravadas em formato radiofônico. No total, tem-se 15 novelas criadas durante as cinco edições em que aconteceu a oficina. Esse material consta como acervo do projeto “Escrileituras” e está disponibilizado na internet,2 servindo de material analítico para investigações.

No intuito de desenvolver a participação dos professores e fazer pensar a temática discutida na oficina, oferecem-se algumas matérias como experimentação: um vídeo adaptado por Peter Kuper da história em quadrinhos (HQ) de “A metamorfose” de Kafka (2016); Estudo dos conceitos corpo, alma, conatus e potência de vida em Spinoza (2007) e Nietzsche (2006), utilizando fragmentos do programa Café Filosófico: “A existência como doença” com Márcia Tiburi e “A alegria e o trágico em Nietzsche” com Roberto Machado; Apresentação de um fragmento do filme “Quando Nietzsche chorou”, demonstrando a ideia de eterno retorno.

A cada apresentação e conversa iniciada, esses elementos eram acionados para a criação dos personagens das novelas em escrileituras [expressão textual que reivindica outra postura do seu autor e leitor, uma coautoria que produz-traduz significações, sensações, sentidos, conceitos e vidas (CORAZZA, 2011)], junto com um som musical projetado, retirado da trilha sonora do filme “O fabuloso destino de Amélie Poulain” e a projeção do livro Discurso do urso de Cortázar (2009). Diante dessas matérias, eis que surge uma produção em que os professores articularam uma série de acontecimentos do cotidiano para pensar a própria docência.

Na Índia a vaca é um animal sagrado, não pode ser morta ou molestada. No Brasil não poderia ser diferente, claro que de um modo bem Tupiniquim: aquela vaca me rodou (muuuuu), a vaca me botou na rua (muuuuu), a vaca de física me deixou em exame (muuuuu), pô a vaca de história não me deu dois décimos (muuuuu), porcaria da vaca não me deixou entrar (muuuuu). Adolfo, advogado especialista em libertar traficantes e pai do menino atropelado pelos dois décimos da vaca, teve uma ideia vingativa: - Primeiro dia de praia da sôra, vou arremessar um sinalizador. Foi como chegar a um orgasmo: - Aquela vaca me paga! (muuuuu). Não entreguei o trabalho da vaca. A vaca da diretora me suspendeu (muuuuu). Todavia, Zequinha, um bom aluno, quando estava presente e costumava contagiar os mestres com sorrisos, palavras de entusiasmo, pensou em aconselhar o colega delinquente: - Não faça isso, você pode se complicar. Ao ouvir os sábios conselhos, o inimigo das vacas, esbaforido com os próprios pensamentos que se transformavam em outros pensamentos, pesado e cheio de teias concluiu: - Eu vou arremessar o sinalizador naquela vaca (muuuuu). E como estamos em um mundo machista, quem não é vaca é veado. Não, você está enganado, não estamos no campo, bem vindo às escolas brasileiras (muuuuu) (Novela construída por professores na Oficina e intitulada “A vaca”).

Destaca-se, aqui, a matéria literária oferecida como intercessora no pensamento dos participantes, a história em quadrinhos (HQ) de “A metamorfose”. Algumas das escritas construídas na oficina parecem exercer a força de um devir-animal, tornando-se difícil distinguir a zona fronteiriça entre o humano e o animal, por exemplo. Assim, é possível haver, no docente, como Deleuze e Guattari afirmam em relação à criança, um lugar para os devires e outras possibilidades contemporâneas. Não se trata de “regressões, mas involuções criadoras, e que testemunham ‘uma inumanidade vivida imediatamente no corpo enquanto tal’”. (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 68).

“A vaca” foi uma pequena novela radiofônica criada em um turno de trabalho por um grupo de professores participantes da terceira edição da oficina. É disparadora para a investigação, ao buscar captar a circunstância de enfrentamento dos desafios da docência. Nela, se percebe que os docentes manifestam, nas escrileituras construídas por meio de personagens e ativadas pela literatura kafkiana, um pensar sobre aquilo que se passa na sala de aula, na relação com o outro, com a escola. Foi pela escrita e, posteriormente, pela gravação e audição do material, que se notou uma necessidade nas composições: devastar os discursos morais sobre a profissão e anunciar aquilo que se passa e/ou se vivencia no cotidiano dos espaços escolares.

Uma maneira de variar a docência, encontrando no animal, na vaca, nesse caso, a linha de fuga de uma identidade depreciativa posta na profissão, embora reconhecendo outra imagem (o sagrado) desse animal em diferentes circunstâncias e locais em que se vive. Compreende-se essa docência num limite entre o humano e o animal, como Gregor em sua metamorfose, compondo relações entre o espaço (o quarto e a casa da família) e o novo corpo (de inseto), entre o tempo (cronológico) e a profissão.

No livro Kafka: por uma literatura menor, Deleuze e Guattari ocupamse, também, da temática da animalidade que se pode agenciar a uma das ideias destacadas aqui. Os devires não servem como substitutos do sofrimento causado pela convivência familiar ou no trabalho, nem como arquétipos, imagens retratadas como um decalque. Trata-se, bem mais, de “desterritorializações absolutas” (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 27) que percorrem o mundo de Kafka. Diz do possível dentro de um impossível, do encontro de intensidades em que as formas significantes e os significados se desfazem. Por isso, o devir nunca é imitação nem um simbolismo representado, “é um mapa de intensidades. É um conjunto de estados, todos distintos uns dos outros, enxertados sobre o homem enquanto ele busca uma saída. É uma linha de fuga criadora que não quer outra coisa que não a si mesma”. (DELEUZE; GUATTARI, 2014, p. 69).

Existirá condição possível para que algo de novo seja criado na prática pedagógica, que desfaça significantes e significados em relação aos procedimentos de feitura da docência? Não se trata de se transformar em vacas para atestar uma mudança bem-sucedida na profissão, não é sobre isso que a literatura ensina, principalmente “A metamorfose” de Kafka. Mas deseja, bem mais, apostar na multiplicidade de elementos capazes de fazer sair de um lugar comum, de coexistir com outros afetos e até mesmo com outros padecimentos. A literatura e a filosofia são apontadas como intercessoras dessa condição de mudança, dessa possível desfiguração identitária docente, numa improgramável produção de outras formas de existir.

Conclusão em metamorfose

Kafka nos presenteia com uma linguagem própria. Na novela, põe em cena o devir-animal do humano como o estado ou a forma de viver a natureza nefasta, ao buscar uma saída para aquele estilo de vida de caixeiroviajante. Nessa forma de exílio, o personagem Gregor desintegra-se de uma identidade. Algo soa como absurdo, foge do real, mas mostra um possível: os atos e efeitos repugnantes de um ser que é desprezado por outros ao manifestar sensações em seu corpo e mente. Encontra uma saída para aquilo que diminui sua potência de agir: para a vida oprimida, a saída foi a transformação.

Assim como em “A metamorfose”, consideram-se as escrileituras não como uma cura ao adoecimento, mas como máquina que põe em produção e relação um pensamento, podendo ser manifestado em escrita, por devires.

A questão do devir nos interessou nesse aspecto e ao que foi criado na oficina “Conatus”. Nessa experiência, tentou-se mobilizar, estética e politicamente, aquilo que se aprende sobre a docência numa paisagem decomposta pela ordem moderna. Com Kafka, Deleuze e Guattari, entendese que o ato de escrever é atravessado por devires que fazem daquele que escreve não um escritor, mas um feiticeiro que vive o animal como uma via de povoamento, conseguindo transcender e evoluir seus personagens num plano consistente, retendo desse plano as partículas de velocidades e lentidões, movimento e repouso, latitudes e longitudes.

Nessa paisagem geográfica, podem-se ver ascender uma docência e seu cotidiano pelas escrileituras. Na novela radiofônica intitulada “A vaca”, conseguiu-se escutar e realizar, por ora, o mapeamento das linhas compositoras de uma vida docente em devir-vaca, em meio a um sagrado da profissão (sendo cuidada, adorada, amada), mas, igualmente, depreciada pela violência e o ódio sentidos através de atos murmurados por alunos insatisfeitos com sua prática (da reprovação, da não aceitação do trabalho entregue fora do prazo, da quebra das regras escolares instituídas para a boa convivência em sala de aula).

As linhas de vida desenhadas nessa novela radiofônica, realizada por professores na Educação Básica, projetam diferentes caminhos e movimentos daquilo que pode um corpo-professor suportar, até encontrar uma saída para não adoecer, para não morrer. Em oficinas de escrileituras, tentou-se ir mais além do que apenas confirmar o adoecimento dos docentes, mas buscar um subterfúgio para aumentar a potência de vida. E a escritaleitura, como ato de tradução da própria vida em coautoria com o coletivo, foi a aposta para pensar e problematizar a profissão, não somente com ciência, mas com arte e com filosofia.

Aposta-se neste trabalho e, mais especificamente, na oficina “Conatus”, com Kafka, para desencadear devires de modo a romper o assujeitamento do corpo e a diminuição das forças de existir. Com leitura-escritura, pretende-se movimentar o pensamento para impregnar um campo social contaminado pela identidade do próprio homem (racional), que projeta modelos de como ser e exercer nossas atividades vitais e laborais.

Diante das opções para ler e interpretar “A metamorfose”, o deviranimal foi uma delas, que nos faz pensar na nossa impotência de dominar o outro e nós próprios. A literatura de Kafka, bem como as filosofias da diferença, em seu universo de possibilidades, passam a ser uma forma de resistência aos critérios de verdade e aos juízos de valor que são definidos e declarados para a nossa existência e, porque não, a propósito de como tratamos e lidamos com a nossa percepção sobre o ser professor.

Referências

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KAFKA, F. A transformação [A metamorfose]. In: KAFKA, F. Bestiário de Kafka. Antologia de textos selecionados e organizados por Álvaro Gonçalves. Tradução de J. Born et al. Lisboa: Bertrand Editora, 2016. p. 9-98. [ Links ]

NIETZSCHE, F. Assim falava Zaratustra. Tradução de Ciro Mioranza. São Paulo: Escala Educacional, 2006. [ Links ]

SPINOZA, B. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. [ Links ]

1Bestiário de Kafka é um livro que foi publicado em Portugal, no ano de 2016, pela editora Bertrand, onde está organizada uma antologia de textos em que se efetiva a presença de animais na construção da narrativa. O material foi selecionado e organizado por Álvaro Gonçalves.

2Novelas radiofônicas da oficina “Conatus” disponibilizadas em: https://www.youtube.com/ channel/UCkdMyd47V4D4O3urkdMg4PA/videos?disable_polymer=1.

Recebido: 16 de Maio de 2018; Aceito: 02 de Abril de 2019

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