1 Introdução
A reflexão sobre as intervenções realizadas por palhaços e clowns2 com crianças em hospitais encaminha-se à verificação de finalidades e funções dessa atividade, considerando o olhar para a infância, especialmente quando hospitalizada, ao vivenciar alterações em rotinas, sensações e emoções do cotidiano. Entretanto, a criança em tratamento de saúde apresenta-se também fortalecida e capaz de conviver com os desafios provocados pelo adoecimento em constante processo de desenvolvimento pessoal.
Freire considerou que o problema da humanização assumiu “caráter de preocupação ineludível” (1975, p. 29) ante o reconhecimento da desumanização como realidade histórica. A vocação humana para a humanização, na atualidade, é afirmada pelo anseio de liberdade e de justiça diante das diferentes formas de desumanização ainda presentes no século XXI. O dicionário freireano apresenta o significado de humanização como sendo a “razão de ser da nossa existência e o impulso prático a partir do qual nos humanizamos para sermos capazes de construir novos sentidos e formas de viver no mundo”. (ZITKOSKI, 2010, p. 211).
Cada vez mais, o voluntariado deixa seu caráter religioso e assume ações na direção da cidadania, dos direitos negados, da proteção e inclusão dos indivíduos marginalizados. (MOTTA, 2014). Aproxima-se, assim, da noção de generosidade na sua dimensão libertadora, como prática social baseada no diálogo, diferentemente do sentido utilizado durante longo tempo para atividades voluntárias, no sentido de manterem a ordem social injusta, como critica Freire (1975).
No propósito de verificar a relação entre a proposta de intervenções com palhaços em hospitais e a ludicidade como fator de continuidade no desenvolvimento infantil, durante a internação, o estudo que origina o presente artigo teve por objetivo identificar e refletir sobre os recursos circenses e a atividade voluntária, indicadores de uma relação dialógica entre os participantes (crianças, funcionários, acompanhantes e voluntários) e analisar a finalidade com que a ludicidade é proposta durante a internação de crianças para tratamento de saúde. O material, assim, se desenvolve em três vertentes: o processo de humanização; a afirmação das infâncias: e a discussão de práticas que se referem ao universo circense no hospital.
A pedagogia do oprimido é a pedagogia dos seres humanos empenhados na luta por sua libertação, na busca de restauração da intersubjetividade, que “se anima de generosidade autêntica, humanista”. (FREIRE, 1975, p. 43). As brincadeiras, os sorrisos, a maquiagens dos palhaços ou personagens, e, principalmente, o respeito à disponibilidade e a criatividade revestem-se de amorosas armas contra a dor, o tédio, o medo e o sofrimento presentes durante as internações hospitalares de crianças e seus acompanhantes.
Nas intervenções do Grupo Amor em Gotas (GAG) no hospital, a cultura lúdica e a cultura circense tornam-se ferramentas para o diálogo para a conscientização e a esperança. Brougère (1998) considera a cultura lúdica como produção construída na participação das crianças em brincadeiras, como estrutura de um conjunto vivo e diversificado de experiências, que se constitui dos aparatos biológico e psicológico da criança, agregando elementos exteriores e sociais. Rodrigues e Nunes Filho (2013) explicam queem todas as culturas da humanidade, a figura do palhaço, cuja mais antiga expressão é a sua ação em rituais sagrados têm a função de espantar o medo, destacando o medo da morte. Para os autores o riso é comparado a uma válvula de escape de tensões em momentos dramáticos e expressa uma tentativa de retorno à normalidade.
A cultura é o referencial para aperfeiçoamento e reconstrução do mundo num processo histórico, e a diversidade das culturas e saberes fortalece a participação na sociedade e sua constante reconstrução. (FIORI, 1986). O circo faz parte do imaginário coletivo e da cultura popular. Ele faz parte do patrimônio cultural brasileiro e se manteve historicamente no mundo apesar de todas as revoluções culturais, políticas e sociais. (BONOMI, 2014).
A atuação de palhaços em ambiente hospitalar configura-se, atualmente, como um recurso aliado à terapia convencional, de acordo com Wuo (1999), porque propicia aos pacientes serem e estarem ativos e participativos durante o tratamento de saúde. A autora também destaca que, na atividade de lazer, o palhaço/clown está aliado à dimensão de um tempo que não é cronológico e com uma forma marginal e lúdica de atuar, que representa para o paciente burlar a rigidez e a formalidade que acompanha a doença, propiciando significados criativos e renovadores. A partir da escuta de crianças hospitalizadas em Cuiabá - Brasil, Carrijo (2013) destaca que o hospital é percebido tanto como espaço de desconforto em relação aos procedimentos dolorosos e invasivos, que causam medo e tristeza, como o lugar em que há a chance de melhora e restabelecimento da saúde.
Freire (1975) distingue a concepção mecânica de consciência, utilizada como depósito de informações ou propaganda própria da educação bancária, da práxis, que “implica na ação e na reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo”. (FREIRE, 1975, p. 77). Como a educação problematizadora intenciona a conscientização de si no mundo, a complexidade do jogo e do lúdico no hospital envolve o respeito ao direito da criança de viver a infância durante o tratamento de saúde, em um contexto de humanização, que representa ações no sentido da construção e realização do ser humano.
Rosa (2014) apresenta a contradição presente na dimensão empresarial e na social do hospital, uma vez que, como organização social voltada ao reestabelecimento da saúde das pessoas, os indivíduos que procuram ou são encaminhados para tratamento de saúde encontram-se em situação de fragilidade. Isso reforça o compromisso da instituição com o respeito e o reconhecimento da condição humana, em razão do sofrimento, da dor e da angústia presentes no processo saúde-doença.
O Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH) (BRASIL, 2001) indica que a humanização hospitalar no Brasil deve ser vista como uma das dimensões fundamentais de sua ação, não podendo ser entendida apenas como um programa a mais a ser aplicado aos diversos serviços de saúde. Trata-se de uma política que opera transversalmente em toda a rede do Sistema Único de Saúde (SUS).
Entretanto, é no ideário freireano que o conceito de humanização adquire sua dimensão mais abrangente, pois é expresso como o processo de “ser-mais” do ser humano, vivenciado a partir da atitude de debruçar-se reflexivamente sobre a situação real em que se está imerso, para conhecer, criticamente, as condições concretas e objetivas de sua realidade e para, assim, transformá-la, afirmando-se como um ser de opções. Freire (1997) afirma o sonho da humanização, que impulsiona o motor da história no processo de conscientização.
Nessa perspectiva, considerando o papel libertador que a educação assume, para Freire (1967) é fundamental reconhecer que, mesmo estando na condição de paciente e, assim, fragilizadas em sua condição de saúde, as crianças devem ter seus direitos garantidos, dentre eles o de viver a infância e a educação, por meio de processos de ensino e aprendizagem adequados às suas necessidades, respeitando o modo como essas se relacionam com o mundo (ludicamente), acolhendo a sua condição de sujeito.
As definições de infância e criança “só podem ser compreendidas no plural, abrangendo variados condicionamentos socioculturais, relações de classe, gênero, idade, etnia e o reconhecimento da existência de culturas da infância”. (BARBOSA; DELGADO; TOMÁS, 2016, p. 117).
Criança e infância são conceitos estabelecidos a partir de uma construção social em que a criança, na relação com o outro, tem sido compreendida numa condição de submetimento ao adulto, em virtude de sua insuficiência motora, tamanho e dependência. Essa condição tanto pode significar investimento, que possibilita a vida, quanto uma destituição, que se encaminha à morte física ou simbólica. (MENDONÇA, 2013). Essa condição assimétrica não impossibilita a criação do novo e a dimensão de sujeito na infância.
Em Freire (1997), a condição do ser humano sujeito é assumida pelo desenvolvimento da capacidade crítica e disciplina intelectual que vai constituindo e a relação curiosa ao conhecer o mundo coletivamente, reafirmando a condição de sujeito de crianças e a condição de inconclusão do ser humano, capaz de superar situações-limite.
As significações que compõem o universo das representações da criança e da infância demonstram, por meio do discurso, o lugar da criança de época em época, sociedade em sociedade, porque expressam os aspectos políticos, econômicos religiosos e sociais constituintes da cultura.
Kishimoto (2010) apresenta a criança como um ser ativo e capaz de interagir com pessoas e com o ambiente, que possui o direito de brincar: uma atividade livre e prazerosa como oportunidade de desenvolvimento de habilidades, linguagens, introdução ao mundo imaginário, relaxamento, entre outras possibilidades. O brincar para a criança constitui sua principal atividade no dia a dia, possibilita-lhe o poder de atuar no ambiente e mobilizar significados, representando uma ferramenta para a expressão, aprendizagem e desenvolvimento. (KISHIMOTO, 2010). Dessa forma, a criança elabora e preserva a cultura lúdica, garantindo sua circulação.
A Sociedade Brasileira de Pediatria elaborou e apresentou ao Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente o texto que foi aprovado e transformado na Resolução de n. 41, em 17 de outubro de 1995, garante à criança e ao adolescente o direito à proteção, à vida e à saúde, com absoluta prioridade e sem qualquer forma de discriminação, o direito de ser hospitalizado quando for necessário ao seu tratamento, sem distinção de classe social, condição econômica, raça ou crença religiosa e, entre outros, o direito de desfrutar, de alguma forma, de recreação, programa de educação para a saúde e acompanhamento do currículo escolar durante sua permanência hospitalar.
Entre as atividades realizadas durante a administração de quimioterapia, Motta e Enumo (2004, p. 25) reafirmam a importância da inclusão de brincadeiras, pois as crianças relatam seu interesse e com elas se divertem e se entretêm. “Ao brincar no hospital, a criança altera o ambiente em que se encontra, aproximando-o de sua realidade cotidiana, o que pode ter um efeito bastante positivo em relação à sua hospitalização”. Por isso, tanto a atividade recreativa quanto a presença de palhaço no hospital assumem um caráter terapêutico para as autoras, ao auxiliarem o bem-estar da criança durante o tratamento. Nessa perspectiva, para Rodrigues e Nunes Filho (2013) o palhaço se dirige ao que é saudável no ser da criança que está doente, tendo a intenção de manter vivas suas possibilidades de criar, de sonhar, de rir. O mundo do palhaço é bem diferente das rotinas hospitalares, “mas seu universo está muito próximo ao da criança”. (RODRIGUES; NUNES FILHO, 2013, p. 76).
O estudo realizado por Reis e Bichara (2010) buscou a compreensão dos fenômenos da brincadeira como elemento que contribui para a adaptação das crianças hospitalizadas ao período de estresse provocado pela doença, pelo internamento e por suas consequências. As autoras utilizam o conceito de coping, mantendo o termo original em língua inglesa, para expressar os esforços cognitivos e comportamentais que os indivíduos utilizam em situações de estresse, que extrapolam seus próprios recursos. A tradução do termo como enfrentamento, não representa para as autoras o sentido exato, pois essa não é uma condição que necessariamente ocorra.
Embora, no uso comum, a brincadeira seja considerada atividade prazerosa que possibilita à criança esquecer a dor ou se distanciar de eventos traumáticos, Reis e Bichara identificam duas facetas da brincadeira em pesquisa realizada com crianças e seus pais durante a internação: brincadeira como estratégia de coping e brincadeira como coping. Dessa forma, o estudo ratifica a concepção de brincadeira como atividade mediadora e a apresenta como modus operandi da criança na realidade, de maneira que “surge não apenas como uma forma de a criança enfrentar a realidade, mas também como a própria ação na realidade”. (2010, p. 95).
Há polêmicas e divergências sobre os conceitos de palhaço e clown. Diversas linhas de atuação consideram que palhaço é o artista do circo, formado na tradição familiar, e que clown é o artista, formado em artes cênicas. Porém, Sacchet (2009) apresenta a permeabilidade que há entre essas duas dimensões, considerando a diversidade de atuações e multiplicando os espaços e formas de divertir as pessoas. Para ela, a formação inicial será dada pela imitação, por caretas, trejeitos, identificação para artistas circenses ou para artistas da academia. Será por meio de jogos, de transformações, de experiências práticas que o palhaço será construído. Esses processos também estão presentes nas atividades do GAG, de modo que se aprende - um com o jeito do outro - e a solução de um passa a ser desafio para o outro. Assim, bexigas ficam presas nas paredes, sem fio, sem cola, sem adesivo: quem sabe deixá-las assim ensina seus pares, que ensinarão aos próximos.
O risco, o riso e o temor fazem parte do cotidiano circense. “Não existe circo sem risco”. (WALLON, 2009, p. 15). As contradições e emoções que “convidam o medo para o círculo da lona” (WALLON, 2009, p. 16) aproximam a vivência das crianças e adultos hospitalizados para tratamento de saúde da realidade desafiadora da fantasia sugerida pelo circo e seus artistas.
A condição marginal simbolizada pelo palhaço, em sua independência política e subversiva, que rompe padrões e comodidades em sua liberdade criativa corroboram para a identificação e empatia entre pacientes e palhaços no hospital. (WALLON, 2009).
São características da apresentação circense: a exposição do artista no picadeiro com disposição da plateia em 360 ° (trezentos e sessenta) de visão da cena, a constante performance de superação e presença, a proposta de uma réplica do mundo social como espetáculo heterogêneo e plural. (WALLON, 2009). Os voluntários do GAG, embora se apresentem no pouco espaço disponível dos quartos, enfermarias ou corredores, interagindo com pacientes, acompanhantes ou funcionários, conservam essas características circenses seja pela exposição durante suas brincadeiras, músicas, mágicas, seja pela superação de condições pessoais e disponibilidade para brincar e propor uma possibilidade de alegria num universo múltiplo e diversificado, considerando, principalmente, que a atividade não é profissional, e que a formação é realizada em oficinas mensais e na troca de experiências e conhecimentos entre os participantes.
Sato et al. (2016) realizaram uma revisão bibliográfica a partir de 33 artigos sobre atuação de grupos de palhaços em diferentes hospitais do mundo. Assim, reconheceu que as intervenções que têm como objetivo reduzir os níveis de estresse causado pela doença e suas consequências podem contribuir com o tratamento, diminuindo o surgimento de complicações e patologias associadas, além de favorecer a resposta dos pacientes ao tratamento.
A arte clownesca legitima a configuração de um jogo, sobreposto à realidade hospitalar, no qual o palhaço - a partir das reações percebidas no outro - sofre em demasia, ri em demasia, se emociona em demasia e transita rapidamente entre as mais diversas emoções, mas, sobretudo, se diverte e mobiliza, no outro, elementos como: humor, espanto e encantamento, que o levam a reconstruir simbolicamente o momento vivido. (SATO et al., 2016, p. 131).
O limiar entre a abordagem utilitarista da intervenção de palhaços durante a internação hospitalar para tratamento de saúde e a perspectiva humanizadora e lúdica, possibilita o questionamento acerca do quê e para quê essa prática vem sendo realizada, considerando a participação de voluntários, a equipe clínica e as crianças.
2 Percurso metodológico
De natureza qualitativa, descritiva e exploratória (BOGDAN; BIKLEN, 1994; MINAYO, 2010), o estudo de campo foi realizado no GAG de São Carlos - SP, no ano de 2017. A postura investigativa aproximou e questionou os procedimentos e as finalidades da presença de palhaços e personagens em hospitais, principalmente nas enfermarias pediátricas, considerando o objetivo do estudo.
A interação dos voluntários do GAG com crianças em situações de risco (especialmente as enfermas), com seus acompanhantes e profissionais da saúde constitui uma prática social, compreendida como ação originada nas relações humanas, que desencadeiam processos de ensinar e de aprender em diversos contextos sociais. O ambiente do hospital Santa Casa, identificou o contexto a ser conhecido e investigado e definiu o voluntariado e a formação pessoal como referências para aproximação da cultura do GAG. O estudo de campo junto com esse grupo ocorreu mediante observação participante, dando continuidade às ações como membro voluntário.
As inserções para observação participante ocorreram em quatro eventos (ações do GAG) entre maio e junho de 2017, sendo duas reuniões de formação de voluntários e duas intervenções na enfermaria da Pediatria no hospital Santa Casa do Município de São Carlos - SP. Os registros dos dados foram feitos em Diários de Campo, compreendendo documentos com descrição densa da realidade encontrada e impressões dos pesquisadores. (BOGDAN; BIKLEN, 1994).
As atividades e procedimentos do GAG constituem o campo específico de pesquisa para o estudo de caso, uma vez que marcaram os limites para a investigação. O GAG realiza ações lúdicas com palhaços e personagens que visitam, semanalmente, crianças internadas para tratamento de saúde, seus acompanhantes e profissionais da saúde na Santa Casa. Essa atividade não tem fins lucrativos e é voluntária para seus participantes.
Esse estudo apresentou um sistema limitado com fronteiras referentes ao tempo, aos eventos ou a processos, cuja identificação confere foco e direção à investigação, cujo caráter único, específico e diferente é preservado no ambiente natural do evento que, de acordo com Yin (2001), caracteriza os estudos de caso.
Yin (2001) considera como típica do estudo de caso a investigação de um fenômeno contemporâneo no seu contexto de vida real. A inserção,3entendida como ato ou efeito de inserir(-se); introdução de uma coisa em outra; encaixe; e intercalação permite participação no cotidiano do objeto de estudo, visando a descobrir o significado da atuação de palhaços durante o tratamento de saúde de crianças internadas em hospitais.
As inserções possibilitaram a observação participante e os registros fotográficos, com coleta de narrativas sobre o grupo e acesso a documentos que normatizavam as práticas realizadas. O site do grupo4 e sua página no Facebook5 apresentaram as características e o histórico do trabalho, além de fotos, informação sobre contato e perguntas frequentes e complementaram o acesso a informações para conhecimento do contexto da pesquisa. Neste texto, apresentam-se os resultados originados dos registros de Diários de Campo das observações participantes realizadas. Destaca-se que os mesmos foram analisados qualitativamente, à luz da literatura escolhida.
3 Resultados e discussão
O GAG é administrado pela dupla fundadora da atividade e responsável pela sua gestão, com a colaboração de equipes da tesouraria, da secretaria e do controle de agenda. Essa organização indicou a vivência de relações que envolvem afetividade, compromisso e disponibilidade principalmente. O grupo é mantido por uma contribuição mensal (opcional) de seus integrantes, pela renda de eventos que patrocina ou de que participa e por doações de materiais ou colaboração financeira.
As intervenções (eventos) realizadas pelo grupo consistiram em desenvolver ações lúdicas semanalmente (aos domingos), no horário das 14h às 17h30min, com revezamento dos participantes a cada domingo, porém mantendo a estrutura da composição da equipe com um cuidador para cada grupo de quatro “gotinhas” (designação dada aos voluntários que atuam nas intervenções). Mensalmente, em um dos domingos, é realizado o “Dia do Visitante” para acolhimento e preparação de ingressantes no grupo. Nas reuniões mensais de formação, o aprender e o ensinar fortaleceram as práticas de aproximação, as brincadeiras, as músicas e os diálogos nas intervenções realizadas na enfermaria pediátrica da Santa Casa de São Carlos - SP.
Vivência: OFICINA CLOWNEANDO NO HOSPITAL
Coordenação Grupo de Oficineiros do GAG
Neste momento, o grupo de oficineiros chamou a convidada Jana para iniciar a oficina. Ela pediu para cada um dizer o que era um “Palhaço”.
A figura do palhaço é verdadeira, vive o momento presente, brinca de igual para igual, observa tudo ao seu redor. Ela utiliza muito as expressões corporais e faciais.
Fez uma dinâmica em que todos formaram uma roda, trocaram de lugar uns com os outros apenas dizendo com o “olhar”.Também realizou uma dinâmica onde cada um “imaginou” um objeto, e, através de gestos e mímicas, os outros poderiam saber qual era o objeto, usá-lo e depois criar outro e passar para o próximo.
Ao final foi realizado um bate-papo sobre a importância desta figura alegre, descontraída e animada que é o palhaço. bem como o poder que ele tem de transformar um ambiente, principalmente o hospitalar. (DIÁRIO DE CAMPO DA REUNIÃO DO GAG em 6 /5/2017).
Para Freire (1997) a boniteza da luta está na construção histórica das proposições e ações, está no percurso realizado pelos sujeitos. Quando caracterizados de palhaços, fadas, príncipes, dorminhocos e outros personagens do mundo infantil, os participantes concretizam o objetivo do grupo que é o de expressar e oferecer uma possibilidade de simbolizar e levar a fantasia, a imaginação, o sonho, a curiosidade, a surpresa e a alegria ao ambiente hospitalar.
A partir da observação e dos primeiros contatos feitos pelo cuidador na chegada aos quartos, são indicadas quais ações/atividades são mais interessantes em cada caso e quais são os procedimentos para a visita. Os propósitos das ações do GAG difundem uma postura interativa e dialógica, que busca manter, simbolicamente, as possibilidades criativas e de superação com pessoas em momentos de enfermidade. O trabalho realizado pelos voluntários apresenta repercussão social, na formação para vida e no voluntariado; desse modo, representa uma proposta de mudança na estrutura social, um questionamento e um convite que se destina a proporcionar momentos de humanização diante da doença e das condições de tratamento.
As intervenções são consideradas pelos participantes do grupo como “gotas” de alegria, de sonho, de encantamento pela vida e de mudança no estado de espírito em face dos desafios da internação e do tratamento hospitalar. Na mediação das ações lúdicas, por meio de brincadeiras, músicas e histórias infantis, cada um dos envolvidos tem a possibilidade de viver o mundo, ser mais, conscientizar-se acerca da dimensão humana e interagir ludicamente, levando a imaginação e a fantasia como alimentos da vida infantil, o que é apresentado no excerto:
A criança do primeiro quarto veio no colo da mãe ver os personagens que estavam visitando a enfermaria. Era um bebê de 5 ou 6 meses chamada L. que ganhou muitas bexigas em forma de coração, cachorrinhos e flor. A mãe de L. pareceu entusiasmada com a visita, mostrando as bexigas em forma de coração para a menina, que estava bem agasalhada e reagia à brincadeira participando com sorriso e direcionamento do olhar. A Dra. Sapeca, caracterização de uma das voluntárias tinha um nariz de palhaço com luz piscante, que foi usado várias vezes para brincar com L. (DIÁRIO DE CAMPO em 11/6/2017).
Ao visitar os quartos e as enfermarias, os palhaços e personagens do GAG ofereceram balões coloridos, esculturas de bexiga, cantaram músicas infantis e interagiram usando fantoches, mas, principalmente ao assoprarem bolinhas de sabão, promoveram uma intensa brincadeira de estourar essas bolinhas com bastões feitos de bexiga canudo. As reações das crianças, nessas interações, demonstram a participação, a alegria e o envolvimento na atividade, concretizados com movimentação expressiva do corpo, com sorriso, com olhares e gestos. (CARRIJO, 2013).
O GAG tem rotatividade entre os voluntários que participam das intervenções aos domingos, por isso, na porta dos armários, há figuras com o passo a passo da maquiagem, e cada embalagem de fantasia traz o modelo completo anexado para colaborar na elaboração da vestimenta. Com isso, a criação dos personagens é socializada, e a identidade do grupo, fortalecida, independentemente da alteração dos voluntários que estejam atuando no dia a dia. Para o grupo a manutenção da organização dos materiais representava ganho de tempo, aprendizagem sobre responsabilidade, cuidado com os pertences e identidade com a proposta do trabalho e seus objetivos. A escolha e o uso de fantoches, adereços e roupas expressam a disponibilidade de cada voluntário para realizar intervenções de forma simples, mas autêntica, num constante processo de conscientização e trocas.
A complexidade das atividades no hospital envolve o respeito ao direito da criança de viver sua infância durante o tratamento de saúde, em um contexto de humanização, que representa ações no sentido da construção e realização humanas.
Ao passarem num corredor a caminho do andar superior, onde começaria a visita, os voluntários cruzaram com um grupo de pessoas e uma criança (N.) de um ano e alguns meses que estava fora do quarto. A garotinha correu em direção aos palhaços. Ela ganhou bexigas e ouviu a música infantil “Borboletinha”. A criança olhava para todos os personagens e seus acompanhantes fizeram muita festa. (DIÁRIO DE CAMPO em 11/6/2017).
As reuniões mensais (oficinas de formação) promovidas pelo GAG têm a função de oferecer recursos para que os participantes do grupo conheçam a proposta e tenham condições para administrar a convivência com crianças hospitalizadas.
Em uma das oficinas de formação de voluntários do GAG, a palhaça Pimpinela, que participa também de um grupo de clowns na cidade de São Carlos expressou:
A verdade é um valor muito importante para o palhaço. Outras características dos palhaços que ela (Pimpinela) apresentou foram: viver o presente, aproveitar todos os detalhes, jogar sempre de igual para igual, não ser superior, nem inferior a ninguém e ter o poder da transformação.
A palhaça Pimpinela contou experiências dela e do grupo em que participava sobre o uso do nariz de palhaço, comentando que esse adereço é muito significativo para a identidade do palhaço, para adentrar ao mundo simbólico, livre e verdadeiro onde as palhaçadas acontecem. Por isso, o momento de vestir ou desvestir o nariz é muito resguardado, reservado, íntimo. Concluiu comentando que o palhaço é livre e pode fazer tudo que quiser, que é verdadeiro. (DIÁRIO DE CAMPO em 6/5/2017).
4 Algumas considerações
A análise das atividades do GAG no contexto hospitalar afirma que as intervenções são ações lúdicas que levam a possibilidade de alegria às crianças, aos acompanhantes e aos profissionais da saúde, na Santa Casa de São Carlos - SP. Entretanto, as diferentes finalidades do uso das atividades recreativas, durante o tratamento de saúde, suscitam uma reflexão sobre o processo de humanização como reconhecimento de direitos da criança ante a utilização de práticas ou procedimentos humanizados como instrumentos facilitadores das rotinas durante a hospitalização.
Diante do sofrimento e da irritabilidade das crianças, da mudança nas atividades realizadas, dos riscos da própria doença e da imunização prejudicada, tem sido empregados enfeites sedutores, lúdicos, como o uso da brinquedoteca e a visita de palhaços para amenizar tal situação de estresse (FERREIRA et al., 2014).
Contudo, Reis e Bichara (2010) discutem a brincadeira como sendo um processo e a oportunidade própria para o enfrentamento por parte da criança da dor e do estresse vividos: uma possibilidade humana na vida e não um recurso alegre e divertido para distrair as crianças em tempos de vida difíceis. Brincar deve ser compreendido como a centralidade da vida infantil e como seu modo de agir na realidade estressante do tratamento, aprendendo a lidar com a dor e as limitações da doença ou do tratamento, atribuindo significado a essa realidade e transformando o desprazer do momento em possibilidade de continuar a viver a infância.
Nos estudos da cultura lúdica, as propostas para instrumentalizar ou didatizar o brincar assumiriam a dimensão de um “complexo trabalho de elaboração para chegar a conciliar o inconciliável” (BROUGÈRE, 2003, p. 127), ou seja, o caráter do uso e do direcionamento excessivos do brincar para fins educativos apresenta, historicamente, contradições e ambiguidades. (BROUGÈRE, 2003). Dessa forma, o brincar estaria a serviço de estratégias agradáveis a fim de concretizar objetivos educativos e terapêuticos, gerando o questionamento do olhar enviesado para o brincar como processo de humanização ou instrumentalização da ludicidade, de modo que as crianças vislumbrem a diversão tanto no ensino quanto nas ações terapêuticas.
Brougère (2004) retoma a condição de sujeito das crianças ao expressar que é o prazer da criança que afirma o jogo, sem formato predefinido, sem limites do contexto. É no brincar que a possibilidade de aprender a lidar com o desconhecido, com o surpreendente, com os medos, com o cotidiano do viver a vida ganha concretude, encaminhando-se para um processo de humanização.
A condição de sujeito das crianças assume uma dimensão de autoria na vida. As brincadeiras de palhaços e personagens encarnados pelos voluntários do GAG alavanca oportunidades para que elas atuem diante dos riscos, dos desafios propostos, do estranho encontrado, dos temores vividos, manipulando, na dimensão da ludicidade, essas vivências do humano, de modo a encará-las, aprendendo a desfrutar do prazer de viver a vida durante a infância.