1 Introdução
Com o adensamento, especialmente a partir dos anos 2000, das produções científicas voltadas à Educação Ambiental, emergiram outras bases filosóficas e epistemológicas que compuseram uma diversidade de modos de compreender esse campo de saber. Nesse período, nos deparamos com a emergência de vários eventos científicos e grupos de trabalho voltados à Educação Ambiental: Congresso Mundial de Educação Ambiental (2003), Encontros e Diálogos com a Educação Ambiental (2008), Encontro Nacional de Pesquisa em Educação Ambiental (2001) e criação do GT 22 na Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (2003). É sobre este último que debruçamos nossos esforços. Miramos no Grupo de Trabalho - GT 22, voltado à Educação Ambiental da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), buscando compreender que outras possibilidades filosóficas e epistemológicas as perspectivas pós-críticas1 trazem à formação discursiva do campo de saber da Educação Ambiental.
Selecionamos, como material empírico, 13 trabalhos aprovados pelo Comitê Científico, entre a 26ª e a 37ª reuniões científicas (2003-2015) da ANPEd que partem das perspectivas pós-críticas para pensar e problematizar os fundamentos filosóficos e epistemológicos da Educação Ambiental. A partir de uma pesquisa mais ampla, com 157 produções científicas, percebemos a ampliação dos estudos de Educação Ambiental em nosso país, especialmente dos anos 2000 para cá. Com a análise de teses, dissertações e artigos científicos publicados entre os anos de 2003 e 2015, percebemos a expressiva presença das perspectivas críticas (121) nas abordagens filosóficas e epistemológicas desse campo de saber.2 No GT 22, igualmente nos deparamos com a mesma recorrência discursiva. Desde a 26ª até a 37ª reunião científica, foram aprovados 154 trabalhos pelo Comitê Científico. Mirando os fundamentos filosóficos e epistemológicos da Educação Ambiental, encontramos um total de 44 artigos. Dentre esses 44 trabalhos selecionados, as perspectivas teóricas mais recorrentes são: crítica (26) e pós-crítica (13). Debruçamo-nos sobre os fundamentos filosóficos e epistemológicos desse campo de saber a partir das ferramentas analíticas formação discursiva (FOUCAULT, 2015) e diferença (FOUCAULT, 2013a, 2015), almejando provocar o pensamento sobre as potencialidades que a diferença tem a contribuir para o encontro da multiplicidade na Educação Ambiental.
O conceito formações discursivas é utilizado nos estudos arqueológicos de Michel Foucault (2015a). Trata-se de um conjunto de discursos múltiplos que se debruçam sobre um mesmo objeto. Tal conjunto de discursos, concordantes ou não, produzem um campo de saber.
No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhantes sistemas de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva. (FOUCATL, 2015a, p. 47, acréscimo e grifo do autor).
Para o autor, analisar as formações discursivas não se restringe a voltarse apenas às enunciações concordantes e complementares; faz-se necessário, igualmente, ampliar os horizontes de análise para formas distintas de compreender os fundamentos epistemológicos e filosóficos que caminham para visões distintas entre um mesmo objeto: a Educação Ambiental. Tendo em vista que uma formação discursiva se constitui de regularidades e dispersões sobre um mesmo objeto, compreendemos que “a heterogeneidade nunca é um princípio de exclusão ou, se preferirem, a heterogeneidade nunca impede nem a coexistência, nem a junção, nem a conexão”. (FOUCAULT, 2008a, p. 58). Mediante essa heterogeneidade a que se refere o autor, o conceito de diferença vem, neste artigo, fortalecer a potência do pensamento múltiplo para a Educação Ambiental.
Para libertar a diferença é preciso um pensamento sem contradição, sem dialética, sem negação: um pensamento que diga sim à divergência; um pensamento afirmativo cujo instrumento é a disjunção; um pensamento do múltiplo - da multiplicidade dispersa e nômade que não é limitada nem confinada pelas imposições do mesmo; um pensamento que não obedece ao sistema escolar (que troque a resposta pronta), mas que se dedica a insolúveis problemas: ou seja, a uma multiplicidade de pontos notáveis que se desloca à medida que se distinguem as suas condições e que insiste, subsiste em um jogo de repetições. (FOUCAULT, 2013a, p. 256, acréscimo do autor).
O nosso desejo é pensar no fortalecimento de espaços em que a diferença se apresenta como constituidora de uma formação discursiva. Mostrar as estratégias de análises, conceitos e discussões travadas pelas perspectivas pós-críticas, no campo de saber da Educação Ambiental, é o desafio que nos propomos. Fortalecendo a potencialidade do pensamento múltiplo, é que apresentamos as formas com que esse campo de saber é discutido entre os 13 trabalhos mapeados.
2 Discurso, relações de poder e resistência: possibilidades outras para a Educação Ambiental
As perspectivas pós-críticas aparecem no GT 22 das reuniões científicas da ANPEd ainda no seu primeiro ano, 2003, porém, temos um adensamento maior dessas perspectivas a partir do ano de 2012. Na 35ª reunião científica, os trabalhos aprofundaram, em maior número, um olhar específico para a Educação Ambiental, fundamentada nas bases das perspectivas pós-críticas.
Entre os autores utilizados como fundamentação teórica e metodológica, percebeu-se, nos trabalhos mapeados, uma maior recorrência de Michel Foucault. Entre as treze (13) pesquisas, onze (11) utilizaram suas abordagens, por isso, enfocamos, nas análises, os conceitos desse autor, reativados nessas produções científicas voltadas ao campo de saber da Educação Ambiental. Viu-se a reincidência, também considerável, dos autores Félix Guattari e Gilles Deleuze (6) especificamente nesses trabalhos. Ainda foi possível perceber a presença de autores brasileiros que se debruçam sobre estudos pós-críticos na área da Educação, citamos os mais utilizados: Maria Lúcia Castagna Wortmann (4), Silvio Gallo (3), Alfredo Veiga-Neto (2) e Rosa Fischer (2).
Tendo em vista que, nas produções científicas analisadas, não há uma universalidade que corresponda a uma única concepção de Educação Ambiental, destaca-se a multiplicidade de olhares sobre a Educação Ambiental, a qual mostra diferentes tessituras que esse campo de saber pode ser explorado. Por conseguinte, optamos por dar evidência a essa pluralidade, tomando como critério para a seleção dos trabalhos que se amparam nas perspectivas pós-críticas, tanto a delimitação do/a autor/a quanto o olhar filosófico e epistemológico pelo qual a Educação Ambiental é entendida no decorrer do trabalho sob análise. Tal abertura não exime a existência de uma movimentação entre conceitos, as perspectivas críticas e as pós-críticas em um mesmo trabalho. Tratamos de evidenciar tal situação nos parágrafos que seguem.
Ao discutir, a partir de Gilles Deleuze e Félix Guattari, as possibilidades de fuga da visão de natureza como mercadoria de forte apropriação do sistema mercadológico, Maria Lucia Soares (2003), transita entre conceitos que coadunam as perspectivas críticas - ideologia dominante e poder como uma relação única de dominação - ao passo que, concomitantemente, faz uso de termos que se chocam com os conceitos de ideologia e poder hegemônico utilizados pela autora, como a máquina de guerra deleuzianaguattariana. Ao tratar da questão referente à máquina de guerra, Gilles Deleuze e Félix Guattari (1997) compreendem que há, no tecido social, espaços maiores, como as malhas do Estado e espaços menores como a máquina de guerra. Ao contrário da institucionalização legitimada e estruturada das formas de operação do Estado, a máquina de guerra caracteriza-se por se situar em constantes movimentações, não previsíveis, que dão margem à criação de outros modos de pensar que não rompem com as relações de poder, mas que coexistem. Nesse cerne, é compreensível que
não é em termos de independência, mas de coexistência e de concorrência, num campo perpétuo de interação, que é preciso pensar a exterioridade e a interioridade, as máquinas de guerra de metamorfose e os aparelhos identitários de Estado, os bandos e os reinos, as megamáquinas e os impérios. Um mesmo campo circunscreve sua interioridade em Estados, mas descreve sua exterioridade naquilo que escapa aos Estados ou se erige contra os Estados. (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 18, grifo dos autores).
Ainda que seja evidente no trabalho o uso de conceitos que transitam ora nas perspectivas pós-críticas, ora nas perspectivas críticas, Maria Lúcia Soares deixa explícita sua concepção de Educação Ambiental quando diz que
mesmo exponenciando o semióforo natureza e o motivo edênico que habita o imaginário social brasileiro, a temática Educação Ambiental surge como um dos referenciais de mudança no campo educacional. É na escola, que historicamente tem sido o espaço para o aprendizado de temas urgentes e complexos sob a mediação de um educador, que conceitos científicos podem ser sedimentados. No contraponto, é também na escola que verdade, razão, consciência, conceitos caros ao pensamento moderno, são colocados sob suspeita e o poder da educação em construir indivíduos conscientes, autônomos, esclarecidos passa a ser posto em questão. (2003, p. 11, grifo nosso).
Ao colocar em suspenso a concepção de uma Educação Ambiental capaz de constituir sujeitos conscientes e autônomos, vemos a abertura de uma fissura na concepção de Educação Ambiental. Considerando o contexto histórico-epistemológico em que a autora produziu sua pesquisa, deve-se levar em conta que, no ano de 2003, as perspectivas pós-críticas estavam ainda em processo de fortalecimento na área da Educação. No que diz respeito à Educação Ambiental, buscar embasamento em outros modos de olhar para esse campo de saber ainda era muito recente. Ao escrever sobre a visão de natureza e a relação dessa com a educação, atrevemonos a dizer que presenciamos, na 26ª reunião científica do GT 22, uma configuração epistemológica pouquíssimo explorada.
Ao aprofundar a leitura em cada um dos trabalhos mapeados, é possível perceber a veemência com que os conceitos de discurso, poder e resistência são acionados para compreender as formas com que a Educação Ambiental vem sendo fabricada. Tais conceitos são tratados, no corpus empírico, a partir das obras de Michel Foucault.
Na maioria dos trabalhos mapeados (11), é possível perceber a relevância de pensar sobre os discursos que acionam a relação entre os seres humanos e o meio natural pelo medo, pelo comportamento individualista ou por uma visão romantizada. Nisso, o conceito de poder se torna recorrente, aparecendo em 10 trabalhos dos 13 mapeados, como forma de mostrar as redes de poder que fabricam o campo da Educação Ambiental.
Em 11, é possível perceber a vontade de provocar o pensamento diante dos discursos presentes na sociedade para buscar formas de (re)inventarmos nossa relação como o meio ambiente. É diante desses tensionamentos nos discursos recorrentes da Educação Ambiental que o conceito de resistência é utilizado pelos autores.
As pesquisas se debruçam sobre o conceito de discurso embasado no pensamento foucaultiano, sendo analisado naquilo que está dito, detendose em nível da existência das palavras, compreendendo que não há uma correlação direta entre as palavras e as coisas. (FOUCALT, 2015a). Vemos, nos trabalhos mapeados, a concepção de que o campo de saber da Educação Ambiental é formado de discursos presentes em diferentes artefatos que incidem na subjetivação dos sujeitos em distintos momentos da vida. Não se trata de entender que a Educação Ambiental emerge da conscientização dos sujeitos sobre os desmatamentos, mas de olhar para os discursos que se produzem a partir dessas materialidades como fabricações que alertam para a necessidade de pensar em formas de existência mais sustentáveis, que garantam a sobrevivência do Planeta. A ênfase do trabalho mapeado exemplificado na sequência, está justamente nesta visão:
O que queremos colocar em evidência, no entanto, são os discursos da periculosidade e a política do medo que muitas vezes a mídia ajuda a propagar, intensificando uma atitude individualista, tanto de culpabilização pelo problema (Você é o culpado!), quanto de redenção solitária frente à crise (Salve sua própria pele enquanto há tempo!) (RATTO; HENNING, 2012, p. 6, grifo nosso, acréscimo dos autores).
O que os autores colocam em questão, no excerto acima, não é a materialidade da qual o discurso se debruça. A ênfase está na forma com que a crise ambiental é produzida na mídia, acionando práticas individualistas perante as questões ambientais. Desse modo, quando se referem à produção discursiva, os trabalhos mapeados deixam
de ver a disseminação das questões ambientais na sociedade como uma tomada de consciência dos indivíduos, mas como uma nova discursividade que vem ganhando visibilidade e formando agenciamentos subjetivos que vivem hoje a necessidade da EA. Essa necessidade não é vista como uma vitória do conhecimento que significaria a captação ou aproximação de uma verdade que até há pouco não existia, mas que é comum a todos e cuja conquista se deu através do amadurecimento dos erros e acertos já vividos ao longo da história do homem. (PALHARINI, 2005, p. 6, grifo nosso).
Junto com a emergência de um campo de saber, são produzidos modos de subjetivação possíveis através dos atravessamentos entre as relações de poder e a fabricação de saberes. São construídos a figura dos professores voltada a questões socioambientais, como e igualmente, a representação cultural de natureza, conforme apresentam os trabalhos selecionados nos excertos seguintes:
Há uma multiplicidade de representações de natureza circulantes na cultura implicando em modos diferenciais de estabelecimento de relações dos humanos com a mesma. Contudo, precisamos estar atentos para não pensarmos que cada indivíduo, solitariamente através de sua consciência, seja capaz de construir sua própria idéia de natureza. Tais idéias são definidas cultural e historicamente. (GUIMARÃES, 2006, p. 1, grifo nosso).
Quando falo em “política de identidade em educação ambiental” quero referir-me a arranjos discursivos que acredito exercerem uma influência, não desprezível, sobre a formação de professores/as da rede municipal de ensino de Porto Alegre, sobre os projetos realizados e fomentados nesse âmbito e, enfim, sobre a constituição das identidades desses/as professores/as. (SAMPAIO, 2005, p. 4, grifo nosso).
Contrário à concepção moderna, Michel Foucault (2014) adverte que o sujeito não está no ponto original do surgimento dos saberes, mas é produzido nas relações de poder que organizam, distinguem e selecionam o que pode ser dito, em que momento dizer e quem pode dizer. “Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa”. (FOUCAULT, 2014, p. 9). Os discursos são regulados e, nesse ordenamento dos jogos de verdade, vemos as redes de subjetividade, nunca únicas e atemporais, produzirem modos de perceber nós mesmos, o outro e o mundo. O foco desses trabalhos, que se amparam na noção foucaultiana de discurso, é mapear, compreender e discutir as formas com que vão sendo fabricados modos de entender nossa relação com o meio ambiente, seus desdobramentos, na constituição de saberes outorgados como necessários, e a relação desses no sistema de captura dos sujeitos no limiar dos discursos voltados a questões ambientais.
Ao definir os sistemas de exclusão internos e externos aos discursos, Michel Foucault (2014) mostra a dependência entre as produções de saberes e as relações de poder. A exaltação da vontade de verdade esmaece a vontade de saber, com maior força no século XIX, esse desejo pela verdade que rege nossa vontade de saber, definindo a utilização, legitimação e separação dos saberes.
Creio que essa vontade de verdade assim apoiada sobre um suporte e uma distribuição institucional tende a exercer sobre os outros discursos - estou sempre falando de nossa sociedade - uma espécie de pressão e como que um poder de coerção. Penso na maneira como a literatura ocidental teve de buscar apoio, durante séculos, no natural, no verossímil, na sinceridade, na ciência também - em suma, no discurso verdadeiro. (FOUCAULT, 2014, p. 17).
Dito isso, é verossímil afirmar a relação que o corpus empírico toma entre discurso e poder. Tal relação pode ser exemplificada nas discussões tecidas nos excertos seguintes:
O tenho tomado como um conjunto de saberes atravessados e sustentados por relações de poder que nos educam para o consumo, não apenas para que consumamos mais, mas especialmente para que aprendamos a consumir bem e continuemos consumindo sempre (MUTZ, 2013, p.4). [Grifo nosso]
Compreendemos que ao enunciar a questão ambiental a partir do medo e do terror pelo fim da vida no Planeta, a revista Veja se utiliza dos dados estatísticos para descrever e prever a realidade. Dessa forma, coloca em operação uma relação de poder/saber, pois através dos números vai constituindo o real e direcionando as ações dos indivíduos nessa mesma correnteza. (GARRÉ; HENNING, 2013, p. 11, grifo nosso).
Nos trechos acima, é possível perceber três linhas de temática diferentes que convergem na discussão do vínculo entre a produção de saberes e as relações de poder, quais sejam: os saberes voltados ao ensinamento de modos de consumo sustentável; a legitimação dos ditos sobre a Educação Ambiental; e as enunciações de medo e de terror pelo fim do Planeta. Pesquisas que se debruçam sobre assuntos variados, mas que demonstram a ligação poder-saber discutida por Michel Foucault.
Foucault expressa sua compreensão alternativa - uma compreensão que, para mim, é altamente convincente - de poder e de saber, e de sua relação, através da expressão “poder-saber”. Nessa visão, o poder não é necessariamente repressivo uma vez que incita, induz, seduz, torna mais fácil ou mais difícil, amplia ou limita, torna mais provável ou menos provável (Foucault, 1983b). Além disso, o poder é exercido ou praticado em vez de possuído e, assim, circula, passando através de toda a força a ele relacionada. (GORE, 2008, p. 11, grifo da autora).
Dificilmente encontramos, nas obras de Michel Foucault (2017), o uso da palavra poder sem estar antecedida pela palavra relações, isso porque o filósofo não o vê como um objeto, um conjunto de ações que pode ser capturado por uns para ser utilizado em outros. Para ele, onde há relações humanas, há relações de poder que não restringem a possibilidade de estar ativo no jogo de forças e de disputas.
Nas relações humanas, quaisquer que sejam elas - quer se trate de comunicar verbalmente, como o fazemos agora, ou se trate de relações amorosas, institucionais ou econômicas -, o poder está sempre presente: quero dizer, a relação em que cada um procura dirigir a conduta do outro. São, portanto, relações que se podem encontrar em diferentes níveis, sob diferentes formas; essas relações de poder são móveis, ou seja, podem se modificar, não são dadas de uma vez por todas. (FOUCAULT, 2017, p. 270).
As relações de poder estão presentes na produção de saberes de nossa subjetividade; no gerenciamento de nossas condutas; e no governamento da população. No exercício do poder, nos constituímos sujeitos desse tempo, produzindo nossos modos de pensar, nossos corpos, nossas falas e nossas concepções de mundo.
Nos trabalhos mapeados, as relações de poder são entendidas como fundamentais na fabricação dos ditos ambientais, na seleção dos saberes e na produção da necessidade de educar-se ambientalmente. A legitimidade científica torna-se uma condição importante para alertar sobre os reveses que ocorrem no meio ambiente e que afetam todos os seres vivos que habitam esse planeta. Nos dois excertos do corpus empírico abaixo, é possível perceber a potência das relações de poder na emergência da Educação Ambiental.
Em meados do último século surge um assunto com uma força de “necessidade” que daí em diante não poderia mais deixar de ser enunciado por cientistas, governos, políticos, técnicos, intelectuais, educadores, etc. Um assunto entretecido por uma série de acontecimentos (ele próprio um acontecimento!) que “desordenaria”, de certo modo, os parâmetros do saber moderno ocidental. [...]. Trata-se de um conjunto de conhecimentos e de práticas e, portanto, de discursos, que se organiza em torno da denominada “problemática” ou “questão ambiental”. (FARIAS, 2011, p. 9, grifos da autora, grifo nosso).
Para além do julgamento do bem e do mal, as relações de poder são vistas também por sua positividade, produzem saberes, verdades e nossa vida em sociedade. Sua fluidez está em todo o tecido social, nossa liberdade está atrelada às relações de poder. Não há poder, se não houver resistência, ao ser retirada a liberdade de resistir, estamos lidando com outra coisa que não o poder.
Mesmo quando a relação de poder é completamente desequilibrada, quando verdadeiramente se pode dizer que um tem todo o poder sobre o outro, um poder só pode se exercer sobre o outro à medida que ainda reste a esse último a possibilidade de se matar, de pular pela janela ou de matar o outro. Isso significa que, nas relações de poder, há necessariamente possibilidade de resistência, pois se não houvesse possibilidade de resistência - de resistência violenta, de fuga, de subterfúgios, de estratégias que invertam a situação -, não haveria de forma alguma relações de poder. (FOUCAULT, 2017, p. 270).
A resistência apresenta-se no corpus discursivo como uma possibilidade de respiro, de fissura perante os discursos que estão disseminados em espaços formais, informais e não formais. Tal conceito, no corpus empírico, se concentra em mostrar outras possibilidades de pensar a Educação Ambiental e as formas de nos relacionarmos com o meio ambiente, colocando em suspenso verdades que se destinam a questões ambientais e educacionais.
Para esmiuçar o conceito de resistência, foi preciso separar os trabalhos em dois grupos: o primeiro refere-se às pesquisas que utilizam tal conceito a partir do exercício do pensamento sobre nossa relação com o meio ambiente, circulante em diferentes espaços e artefatos. O segundo grupo versa, especialmente, sobre possibilidades educacionais que criam suspeitas, insurreições e estratégias de resistência. Passemos, inicialmente, para o primeiro grupo.
Que possamos nos instaurar nas fissuras da Educação Ambiental, pensando políticas que possam nos remeter a construção de coletivos de naturezas e culturas, não permeados, somente e derradeiramente, pelas premissas de um mercado volátil e incisivo sobre nossas existências. (GUIMARÃES, 2006, p. 12, grifo nosso).
Onde há exercício do poder, há possibilidade de resistência. E é exatamente aí que vislumbro a desnaturalização do consumo consciente como uma forma de resistência. Implementação de estratégias que se valham desse exercício de desnaturalização em nossas práticas de educação ambiental é algo ao nosso alcance. (MUTZ, 2013, p. 13, grifo nosso).
A intenção dos trabalhos desse primeiro grupo paira sobre o desejo de mostrar a exterioridade de discursos que constituem a Educação Ambiental. Não se trata de uma derradeira necessidade de substituí-los, mas de tensionálos a ponto de possibilitar a criação de fissuras, de problemas, de interrogações que nos movimentem à problematização de nossas condutas. Para Michel Foucault (2008, p. 260 a), “por mais que essas revoltas de conduta possam ser específicas em sua forma e em seu objetivo, nunca são autônomas, nunca permanecem autônomas, qualquer que seja o caráter decifrável de sua especificidade”. Dessa forma, não se trata de desconsiderar a relevância das condutas sustentáveis, mas de efetuar provocações sobre os motivos que nos movem a adotá-las.
As resistências não acontecem contra ou distante das relações de poder; é no exercer do poder que há a possibilidade de resistir. Não resistimos ao poder, e, sim, a seus efeitos, tecnologias, dominações, discursos; resistimos ao que é produzido nas relações de saber e de poder. E, para isso, não há regras ou formas, como salienta Michel Foucault:
Esses pontos de resistência estão presentes em toda a rede de poder. Portanto, não existe, com respeito ao poder, um lugar da grande Recusa - alma da revolta, foco de todas as rebeliões, lei pura do revolucionário. Mas sim resistências, no plural, que são casos únicos: possíveis, necessárias, improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas, arrastadas, violentas, irreconciliáveis, prontas ao compromisso, interessadas ou fadadas ao sacrifício; por definição, não podem existir a não ser no campo estratégico das relações de poder. (1988, p. 91).
Debater, problematizar e provocar os discursos que envolvem as questões ambientais torna-se uma das múltiplas formas de resistir à ideia de uma Educação Ambiental voltada ao fomento de um mercado verde, embasada no medo pela perda do Planeta e acionada unicamente para ensinar comportamentos sustentáveis a serem seguidos. É nesse sentido que o primeiro grupo de trabalhos utiliza o conceito de resistência, enfatizando que problematizar os discursos aceitos e tomados como verdadeiros possibilita repensarmos a relação ser humano-meio ambiente, as representações culturais de natureza intocada ou mesmo a formação de educadores ambientais, embebidas em uma simbologia salvacionista.
O segundo grupo vê na Educação Ambiental e em suas práticas pedagógicas a possibilidade de desafiar uma visão unitária e totalizante, convidando a pensar a educação como ato criativo e contestador. Para discutir o ato de resistência no pensar e agir pedagógico da Educação Ambiental, trouxemos um excerto que demonstra as premissas desse segundo grupo:
Ruptura que libere a potencialidade da ação política da educação ambiental de toda intenção unificadora e totalizante, que ao invés de ditar currículos e normas, promova encontros alegres e forças criativas. Que não se alie as tentativas de conservações e convenções, regimes significantes de legitimidade e corrupção. (BARCHI, 2008, p. 16, grifo nosso).
Na Educação Ambiental, os momentos de resistência se dão através da possibilidade do novo, do diferente. Nesse jogo, a verdade é contestada. Valorizam-se antes os saberes que se produzem no compartilhamento de perspectivas do que os conhecimentos que, de antemão, definem o que e como entender o meio ambiente. Atentam-se às singularidades sem desconsiderar aquilo que a Educação Ambiental já produziu em seu campo de saber. Não se trata de uma negativa, mas da positividade que as diferenças podem irromper nas tramas discursivas e em suas verdades.
A Educação Ambiental, nessa perspectiva, busca envolver-se com práticas que construam relações de cultivo do pensamento, de si e dos outros. Nisso, pensamento e prática, saber e poder, problematização e filosofia caminham juntos. A negação da disciplinarização dos saberes e dos corpos na educação não se coaduna com os movimentos de resistência no contexto educacional, é preciso reconhecê-las, para que seja possível pensar em outras formas de se constituir sujeito. É isso que Michel Foucault (2013b) nos ensina em Vigiar e punir, após toda uma análise minuciosa das regras, dos discursos, das instituições que fabricam o sujeito disciplinar, o filósofo alerta para o compromisso de “ouvir o ronco surdo da batalha”. (FOUCAULT, 2013a, p. 291).
A recorrência dos conceitos de discurso, poder e resistência evidencia a preocupação em problematizar o esvaziamento da Educação Ambiental cada vez mais premente nos âmbitos nacional e internacional. Ao sinalizarem os discursos circulantes na mídia, as singularidades desse campo de saber, as linhas de subjetivação que produzem os modos de entender nossa relação com o meio ambiente, as representações de natureza, os imperativos de uma sustentabilidade, direcionadas à comercialização de produtos, há a preocupação em exercitar o pensamento perante as respostas certas ou conclusões definitivas. É preciso “sacudir a quietude com a qual as aceitamos” (FOUCAULT, 2015a, p. 31), colocando sob suspeita qualquer universalidade que afirme o caminho unívoco, a conduta correta ou a linha de pensamento verdadeira.
Considerações finais
As produções científicas analisadas deixaram evidentes sua maneira singular de pesquisar. A base em conceitos e discussões que convergem entre si são parte de um processo aberto para novas criações. E é sob essa visão que a maioria das pesquisas mapeadas procura lançar à Educação Ambiental.
Os conceitos de discurso, poder e resistência, no conjunto dos trabalhos de fundamentações pós-críticas, são acionados como estratégias analíticas para elucidar as formas com que vão sendo fabricadas as compreensões de Educação Ambiental em diferentes espaços e artefatos culturais. A relação saber-poder é constantemente ativada para discutir a produção de saberes, sua legitimidade e ação nas linhas de subjetivação que nos fazem sujeitos desse tempo. Mediante os alertas de ditos que enfocam o fomento de condutas sustentáveis, que vislumbram, única e exclusivamente, a mudança de comportamento, esses trabalhos trazem à tona a possibilidade de exercitar o pensamento. O desejo é buscar meios de criar fissuras no discurso dominante, que nos façam refletir sobre os objetivos que nos levam a adotar condutas sustentáveis. Nesse cerne, o conceito de resistência apresentou-se como relevante para pensar outras formas de existência ligadas à ética conosco, com o outro e com o meio ambiente, como também, para criar práticas pedagógicas que busquem desvios para espaços de problematização e criação no contexto escolar.
As pesquisas embasadas em perspectivas pós-críticas possibilitam a abertura à multiplicidade de olhares que não esmaecem a potência crítica. O que fica evidente é que não há uma forma única de compreendê-la, o que denota uma concepção mais flexível, que nos permite falar em Educações Ambientais possíveis.