SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.24Fundamentos filosóficos e epistemológicos da Educação Ambiental: discurso, poder e resistênciaInterdisciplinaridade e ética: uma abordagem para além da perspectiva epistemológica índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.24  Caxias do Sul  2019  Epub 31-Jul-2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v24.e019033 

ARTIGOS

A formação do si mesmo e a mestria socrática em Pierre Hadot

The formation of the self and socratic mastery in Pierre Hadot

Miguel da Silva Rossetto* 
http://orcid.org/0000-0001-6889-7983

* Doutor em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Professor na UPF. E-mail: miguel.rossetto@icloud.com


Resumo

O objetivo deste ensaio é retomar a importância vital que a formação ética do sujeito tem ante a condição frágil e vulnerável do ser humano. Essa finalidade é, aqui, pensada a partir da leitura que Pierre Hadot faz da filosofia antiga e, especialmente, da figura de Sócrates. Nos propomos a investigar a noção de “diálogo socrático” como um exercício espiritual que o faz ser autor de sua própria formação. Assim, o diálogo pode ser entendido como um princípio pedagógico-formativo suficientemente eficiente para deslocar a preocupação com o conhecimento para a preocupação com o sujeito do conhecimento. Sem esse deslocamento, a formação ética do sujeito mantém-se fragilizada.

Palavras-chave: Formação humana; Diálogo; Exercício espiritual; Formação ética

Abstract

The goal of this essay is to retake the vital importance that the ethical formation of the subject has when facing the fragile and vulnerable condition of the human being. This purpose is here thought from Pierre Hadot’s reading of Ancient Philosophy and, mainly, in the figure of Socrates. We propose to investigate the notion of “Socratic dialogue” as a spiritual exercise that makes oneself the creator of his own formation. Thus, dialogue can be understood as a pedagocial-formative principle sufficiently efficient to shift concern with knowledge to the concern with the subject of knowledge. Without this displacement, the ethical formation of the subject becomes fragile.

Keywords: Human formation; Dialogue; Spiritual exercise; Ethical formation

1 Introdução

O ser e sua formação estão nas origens e no transcorrer histórico de toda a filosofia. Ambas, formação humana e filosofia, têm como sentido propulsor e imprescindível transformar o estado em que o indivíduo se encontra. Pierre Hadot procura demonstrar que o perfeccionismo fez (e ainda faz) sentido atualmente, pois “trata-se de um movimento em direção a um eu superior” (2014a, p. 346), e essa finalidade é sempre contemporânea, vital e estimulante.

A leitura que Hadot faz da filosofia antiga demonstra que para as escolas filosóficas da época “a principal causa de sofrimento, desordem, inconsciência para o homem são as paixões: desejos desordenados, medos exagerados” (2014a, p. 22). Isso evidencia uma noção de sujeito vulnerável e exposto permanentemente ao risco de submissão a seus próprios apetites, condição que o faz viver um vida inautêntica, corrompida, sem consciência de si e do mundo. (HADOT, 2014a).

Na filosofia antiga, contudo, podemos encontrar práticas de si que, sem se deixar absorver por perspectivas metafísicas e deterministas do estado que deve ser atingido pelo indivíduo, são capazes de prepará-lo para lidar com seus próprios desejos e medos. O perfeccionismo, desse modo, não seria um lugar ou estado predefinido a ser alcançado pelo indivíduo, mas um processo de aperfeiçoamento constante em relação ao seu próprio presente.

As paixões viciosas, uma vez entendidas como limitadoras da condição humana, inibem posturas éticas que possibilitariam, por exemplo, considerar o bem comum nos modos de vida individuais. Assim, a questão de fundo a ser enfrentada, aqui, é: Em que medida os processos formativos podem responder positivamente a essa condição humana? Em outras palavras: De que modo a formação humana pode lidar com as paixões e as vulnerabilidades do ser humano? E a partir de que técnicas ou práticas?

Uma possibilidade de tratamento dessas questões decorre das técnicas de si que Hadot chama de exercícios espirituais, que são “práticas destinadas a transformar o eu e a fazê-lo alcançar um nível superior”. (2014a, p. 345). Nesse universo, diante dos distintos exercícios espirituais que podemos encontrar no decorrer da história da filosofia e da humanidade (2014a), pretendemos explorar, nesta pesquisa, a noção de diálogo, nos moldes como Sócrates o desenvolve, visto como um potente exercício de si sobre si capaz de conduzir o si mesmo e o outro a um processo contínuo de aperfeiçoamento.

Diante disso, a linha argumentativa adotada passará, num primeiro momento, pela compreensão da filosofia como modo de vida, pois, sem essa concessão, a filosofia distancia-se cada vez mais do homem, de seus problemas reais e de suas paixões, o que inviabilizaria um diálogo legítimo com vistas a resultados efetivos nos processos formativos. Em um segundo momento, trataremos da dimensão dialógica da perícia socrática como exercício espiritual e estratégia pedagógico-formativa vigorosa para lidar com a vulnerabilidade humana e promover a formação do si mesmo.

2 A filosofia antiga como modo de vida

Há um contexto histórico-conceitual que não consente facilmente que a filosofia seja entendida como um modo de vida. Tal contexto tem raízes ainda na filosofia antiga, momento em que outros preceitos embrionários assumem a paternidade pelo nascedouro da filosofia, como, por exemplo, o esforço pela universalização metafísica dos saberes ou a busca de um logos explicador suprassensorial. Por outro lado, especialmente na filosofia moderna e na filosofia contemporânea, nos deparamos com a mais alta complexidade dos textos filosóficos, com o mais alto grau de conceituação dos filósofos e assimilamos a filosofia como uma instância a que somente alguns poucos filósofos privilegiados têm acesso. Assim como nos diz Hadot (2014a, p. 271), “a filosofia moderna [...] apresenta-se antes de tudo como a construção de uma linguagem técnica reservada a especialistas”.

Esses dois contextos procuram, de modo geral, distanciar o ato filosófico do vínculo com a realidade humana mais pura, passional, vulnerável e viciosa. Isso implica dizer que a filosofia, bem como o filósofo, precisa, essencialmente, para se construir como tal, distanciar-se desses rudimentos. Mas, apesar disso, Hadot entende que a filosofia antiga reserva um lado que, apesar de pouco conhecido, “propõe ao homem uma arte de viver”. (2014a, p. 271).

A indissociabilidade entre a opção por um modo de vida e a sustentação conceitual desse modo de vida - ou desse modo de ver o mundo, e, portanto, de ver a si próprio - era decisiva e profundamente necessária para a existência da filosofia e, por isso, “um filósofo na Antiguidade, é alguém que vive como um filósofo, que leva uma vida filosófica”. (HADOT, 2013, p. 37). Essa compreensão aparentemente ordinária da filosofia antiga assume contornos propositivos à medida que implica que à filosofia e ao filósofo não basta “fazer” teorias ou doutrinas sem elas serem, efetivamente, o reflexo da vida de quem opera a teoria. O discurso filosófico deve ter sua origem e seu sentido em uma opção existencial, na escolha ou na busca por um modo de vida.

Enquanto for apenas um conjunto de teorias, a filosofia não se sustenta por si mesma, segundo Hadot, pois há de se sopesar a relação intrínseca e necessária entre ela e quem a constitui, “não se pode considerar os discursos filosóficos realidades existentes em si e por si mesmas, e estudar a estrutura independentemente do filósofo que as desenvolveu”. (2014b, p. 21). Quando tomamos as teorias filosóficas como realidades em si mesmas, distanciamo-nos da dimensão existencial dos indivíduos, de seus problemas específicos, singulares e distintos.

Se vida e filosofia estão mutuamente invadidas, “não se faz mais então a teoria da lógica, isto é, do falar bem e do pensar bem, mas pensa-se e falase bem; não se faz mais a teoria do mundo físico, mas comtempla-se o cosmos; não se faz mais a teoria da ação moral, mas age-se de uma maneira reta e justa”. (2014a, p. 264). A transformação da vida e do sujeito, portanto, revela bem qual é o interesse fundamental e a peculiaridade mais íntima e própria da filosofia como modo de vida, conforme seus mestres.

A estrutura da filosofia, na Antiguidade, tinha uma organização própria, dividindo-se em escolas de filosofia. Cada escola tinha seu próprio mestre, um fundador que marcava profundamente determinada tradição filosófica. E isso se tornou importante porque eram esses mestres que faziam com que essa filosofia se constituísse em uma escola ou em uma tradição, já que eles viviam credulamente o que postulavam, ou postulavam credulamente o que viviam. O epicurismo, por exemplo, foi fundado por Epicuro; o estoicismo, por Zenão; antes desses, Platão fundou a Academia, e Aristóteles, o Liceu. É no interior dessas escolas que a filosofia melhor se apresenta como modo de vida.

Para ilustrar esse propósito, recordamos que todas as escolas pretendiam que o indivíduo buscasse o que era chamado de “tranquilidade da alma”. Com esse fim comum, cada escola tratava desse objetivo a partir de seus próprios preceitos ou compreensões:

Nessa perspectiva a filosofia parece como uma terapêutica dos cuidados, das angústias e da miséria humana, miséria provocada pelas convenções e obrigações sociais, para os cínicos, pela investigação dos falsos prazeres, para os epicuristas, pela perseguição do prazer e do interesse egoísta, segundo os estoicos, e pelas falsas opiniões segundo os céticos. (HADOT, 2014b, p.154).

É perceptível, portanto, que havia tendências gerais que formavam certa identidade comum ao mesmo tempo que há diferenças marcantes em suas escolhas existenciais. Mas, é importante ressaltar que há uma similitude entre elas: o interesse das escolas em promover filosoficamente um modo de vida.

As escolas filosóficas, então, passavam a existir quando determinada opção de vida deliberava sobre a sabedoria que a sustentava. Esse princípio regia toda escola filosófica, era o que as legitimava, o que lhes certificava identidade, sentido e valor. A filosofia, portanto, “é amor e investigação da sabedoria, e a sabedoria é, precisamente, um modo de vida. A escolha inicial, própria a cada escola, é a escolha de uma sabedoria”. (HADOT, 2014b, p. 154).

Mas o que, de fato, levava os filósofos antigos e as grandes escolas de filosofia da época a ocuparem-se intensamente com o modo de vida dos indivíduos? O que torna o modo de vida um tema, ou um problema filosófico tão atrativo e provocante? A força propulsiva da filosofia e de toda a atividade filosófica das escolas daquele tempo estava voltada a tratar da fragilidade do homem diante de seus próprios desejos e medos, condição capaz de limitar sua liberdade e de provocar sofrimentos e infelicidade. Tal situação tem origem no próprio ser, pois são as suas fraquezas ante suas paixões que o estorvam ou impedem de viver autenticamente. Por isso, “cada escola tem seu método terapêutico próprio, mas todas ligam a terapêutica a uma transformação profunda da maneira de ver e de ser do indivíduo”. (2014a, p. 23).

A filosofia terapêutica requer do indivíduo uma profunda mudança, uma transformação que lhe permita melhor lidar com suas paixões; uma transformação que implique rever a maneira cotidiana com que o indivíduo vê o mundo e a si próprio. É isso que lhe permite refazer seu modo de ser. Porém, “essa mudança de visão é difícil. É precisamente aí que devem intervir os exercícios espirituais, a fim de operar, pouco a pouco, a transformação interior que é indispensável”. (2014a, p. 24). Os exercícios espirituais1 passam a assumir um papel fundamental para entender a filosofia como forma de vida nas escolas helenísticas e romanas, pois são justamente esses exercícios que tomam forma de práticas de vida capazes de ascender existencialmente o indivíduo. Hadot (2014b, p. 21) afirma que esses exercícios são “práticas, que podem ser de ordem física, como o regime alimentar; discursiva, como o diálogo e a meditação; ou intuitiva, como a contemplação, mas que são todas destinadas a operar modificação e transformação no sujeito que as pratica”.

É notável, portanto, no momento de assimilação do conceito de exercícios espirituais, um vínculo forte e determinante entre duas dimensões aparentemente opostas e excludentes que estruturam sua forma de compreender a filosofia antiga como modo de vida: [a] a acepção de exercícios que reporta à ideia de experiência, de atividade, de ação e de movimento do indivíduo; e [b] a acepção de espirituais que abrange o psiquismo (pensamento, sensibilidade, vontade...). Os exercícios espirituais consistem, portanto, em “exercícios que engajam todo o espírito” (2014a, p. 69), são práticas do próprio espírito. Reafirma-se, nesse sentido, que os exercícios espirituais são práticas que operam a transformação do sujeito, ou melhor, práticas que têm, na transformação do sujeito, seu próprio fim. São exercícios praticados pelo próprio indivíduo sobre si mesmo, práticas de si sobre si, ou seja, não são externas a ele, mas têm origem no próprio sujeito e têm, como finalidade, o mesmo sujeito.

O ato filosófico, consequentemente, não deveria dissociar-se do modo de ser do filósofo, nem de sua metamorfose ou de seu processo de transformação. Tratar do conhecimento em si mesmo, por si mesmo, não é o que dá vivacidade nem à filosofia, nem ao filósofo. Como prática de exercícios espirituais, o ato filosófico situa-se no ser e, portanto, pretende garantir que o conhecimento alcançado converta-se sobre o próprio ser. Em razão dessa conversão - e somente em razão dessa conversão - promulgase a autenticidade do saber e a autenticidade do ser. É essa conversão que faz o indivíduo “passar de um estado de vida inautêntico, obscurecido pela inconsciência, corroído pela preocupação, para um estado de vida autêntico, no qual o homem atinge a consciência de si”. (2014a, p. 22). Em tal estado, o indivíduo impede a supremacia das paixões sobre si mesmo, desapossase dos desejos que o desordenam. Na leitura de Hadot,

a conversão filosófica é desenraizamento e ruptura com relação ao cotidiano, ao familiar, à atitude falsamente “natural” do senso comum; ela é retorno ao original e ao originário, ao autêntico, à interioridade, ao essencial; ela é recomeço absoluto, novo ponto de partida que transmuta o passado e o futuro. (2014a, p. 212).

Essa conversão permite, por um lado, o retorno do sujeito sobre si mesmo, fazendo-o perceber sua realidade e sua condição e, por outro, possibilita que ele perceba que não só o passado poderia ter sido diferente, mas que o futuro guarda uma pluralidade de possibilidades. As técnicas de conversão são, sobretudo, um modo de transformar a realidade humana. (2014a, p. 204).

A consciência de si implica consciência de seu lugar em relação ao mundo, não como determinismo, mas como conduta ante o universo, a partir da qual o próprio indivíduo pode exercer sua liberdade interior. Os exercícios espirituais, portanto, revelam-se práticas de si, que estabelecem a relação do ser com o mundo. Por isso mesmo, a teoria - que etimologicamente é theion e estabelece vínculo com o que é divino - deveria permitir que o indivíduo se conecte com o mundo, com o cosmo, já que conhecer a natureza é conhecer a si mesmo. A teoria, ao converter-se sobre o sujeito, possibilita, ao conhecer-se (a si e a realidade), a condição de ruptura com o cotidiano e, por isso mesmo, referimo-nos a “uma mudança de ordem mental, que poderá ir da simples modificação de uma opinião até a transformação total da personalidade”. (2014a, p. 203).

Em síntese, poderíamos dizer que Hadot lê a filosofia antiga apossandose da noção de exercícios espirituais, o que faz compreender a própria filosofia, o filósofo e o ato filosófico como práticas de si sobre si que exigem a conversão do conhecimento sobre o próprio ser que opera o saber, promovendo, assim, a transformação do indivíduo.

3 Sócrates e o diálogo como exercício espiritual

O diálogo como apelo ao ser

Hadot identifica, na figura de Sócrates, o filósofo que vive como um filósofo, aquele cujo saber e cuja mestria operam a transformação de si mesmo. Para Hadot é acerca da mestria de Sócrates - que diz saber que nada sabe e vive propagando sua ignorância, fazendo uso dela para com os demais, suscitando reflexões em si mesmo e de si mesmo à medida que nada sabe e em razão de nada saber - que se fundaram as reflexões sobre o sábio, que é a própria normatividade da vida e a inspiração para as escolas filosóficas antigas.

Bem sabemos que Sócrates não alcunha a si próprio como um sábio (sophos), mas como aquele que deseja a sabedoria (philo-sophos), ou seja, se encontra a caminho da sabedoria, a caminho de um saber que transcende a simples posse de dados sobre o real, a caminho de um saber que se refere a um domínio mais refinado, profundo e fundamentalmente destinado à virtude da alma, ao modo de vida, a caminho, portanto, do saber que se liga à mais alta atividade exercida pelo homem. Sócrates, ao desejar um saber que se demonstra inatingível pelos reles mortais - e não sendo ele um deus, mas um philo-sophos - é, portanto, um mediador “entre o ideal transcendente de sabedoria e a realidade humana concreta”. (2014a, p. 91). Embora consciente desse caráter inatingível da sabedoria, valia-se, diariamente, de todo esforço para ir em direção a ela.

O núcleo da ironia socrática encontra-se na tese de que esse filósofo faz com que o interlocutor descubra que ele próprio não sabe absolutamente nada e, justamente, no domínio daquilo em que ele pensa ser um grande sábio. A ironia socrática consiste, portanto, em revelar ao interlocutor ou conduzi-lo à autoconsciência de que ele ignora precisamente aquilo que, supostamente, mais saiba, naquilo que ele se considerava perito, exímio conhecedor, um especialista. A virtuosidade socrática, assim, não desestabiliza somente o suposto conhecimento verdadeiro e absoluto que o outro supunha saber, mas desestabiliza o próprio ser do indivíduo, em seu orgulho, em sua posição nobre que acreditava ter em face dele mesmo e dos outros. Esse é um movimento de conversão do saber, que retorna sobre o si mesmo no intuito de promover a modificação do ser.

A ironia socrática sustenta, então, o processo de deslocamento do conhecimento para o ser, ou seja, o saber deve permitir problematizar e lidar com o ser. Desse modo, o fim da formação não é o saber. Vimos, assim, que, por meio da crítica ao saber, Sócrates faz um apelo ao ser (HADOT, 2014b). Ele se dirige ao ser não apenas com suas perguntas capazes de deixar seu interlocutor sem mais suas certezas, mas também, e de modo muito especial, com seu modo de ser, com o modo como conduz sua vida inteira. Essa sutileza da mestria socrática se constitui, assim, em um modelo paradigmático forte o suficiente para influenciar nas grandes tradições filosóficas oriundas das escolas helênicas e romanas.

A posição do mestre origina-se de sua experiência transformada em normatividade, porém, uma experiência problematizada e constituidora de sabedoria. Sócrates, que, segundo Hadot, se coloca “entre o ideal transcendente de Sabedoria e a realidade humana concreta” (2014a, p. 91), é mediador entre essas duas dimensões e, por isso, ao desejar tal sabedoria, parte dessa realidade humana concreta.

A realidade humana concreta é, essencialmente, aquilo a que o sujeito pode se referir, aquilo tudo que está ao seu redor, que lhe diz respeito, que lhe é mais próximo, acessível e que se manifesta em suas representações imediatas, que sustentam seus dogmas, suas verdades e suas paixões, pois, desse modo, “o indivíduo é assim posto em questão nos próprios fundamentos de sua ação”. (2014a, p. 104).

Colocar em questionamento essa realidade humana concreta não é apenas colocar em questão aquilo que se sabe, mas, a partir daquilo que se sabe, problematizar o que se é. A realidade humana concreta precisa transformar-se em perturbação: “trata-se de fazer o leitor sentir seu erro, não o refutando diretamente, mas o expondo a ele de tal modo que sua absurdidade lhe apareça claramente”. (2014a, p. 97). Trata-se, portanto, não de uma questão epistêmica, mas de uma questão existencial. Decisivo é observar, nessa definição, de que modo o sujeito precisa se expor a si mesmo para promover a absurdidade de seu ser. Isso é pressuposto de uma formação ética de si mesmo. Tais reflexões nos levam a ponderar: O diálogo pode ser um exercício espiritual capaz de impulsionar a formação do si mesmo?

Sócrates, no entanto, faz críticas incisivas a concepções clássicas de saber e sabedoria. Ele se opõe àqueles que entendem o saber como doutrinas que divergem das opiniões e ignorâncias das multidões, pois elitizam a sabedoria aos chamados “aristocratas do saber”. Opõe-se, também, àqueles que disseminariam o saber em troca de moedas, os chamados “democratas do saber”. (2014b). De outro modo, para Sócrates o saber verdadeiro não estava nas mãos dos homens e, por isso, seu método consistia em interrogar os saberes humanos a ponto de lhes conferir (aos homens) ciência de suas ilusões.

Diante disso, os diálogos socráticos não levam a conclusões definitivas, mas abrem caminho para novos diálogos sobre os mesmos problemas. É como se, no final de cada diálogo, dissessem: “nos encontraremos amanhã, novamente, para continuar dialogando sobre isso”. O interesse de Sócrates, então, não se concentra no saber, mas no sujeito, e, aqui, encontra-se uma questão central da leitura de Hadot sobre a filosofia antiga como modo de vida. O engenho de Sócrates não oferece primazia à busca de um saber universal, que independe do sujeito, mas se refere ao saber do indivíduo, daquele indivíduo, e, assim, suas perguntas e provocações corroboram para que esse indivíduo encontre sua verdade presente em seu saber. Como nos diz Hadot, “no diálogo ‘socrático’, a verdadeira questão que está em jogo não é isso de que se fala, mas aquele que fala”. (2014b, p. 54). O que está em questão é o si mesmo e sua transformação na relação com a verdade e com o saber. Tal perspectiva marca a diferença entre filosofia como sistema e filosofia como forma de vida, dando sentido específico à problemática da formação humana.

Por exemplo, o valor da ação moral em Sócrates tem um sentido profícuo. No tratamento dado por Hadot, Sócrates, na Apologia, diz nada saber sobre a morte, nem que seja um bem, nem que seja um mal. E, não saber sobre a morte não pode levá-lo a temê-la. A morte, portanto, não depende de sua escolha, pois, apesar de ela existir, ele nunca a experienciou e nada sabe sobre ela. Mas, por sua vez, o que ele sabe, como é dito na Apologia, é que fazer o mal é vergonhoso e mau. E esse último saber - esse sim - conduz o indivíduo a se deparar com valores (e não somente com conceitos sobre a vida). O que importa é que o saber o conduz a fazer uma escolha de vida, pois o conceito, em si mesmo, não representa sentido. A ação moral resulta, portanto, do próprio indivíduo e o compromete totalmente.

Tornar-se consciente de si mesmo significa colocar-se em interrogação e nisso consiste a sabedoria de Sócrates. É um exercício espiritual possível àqueles que sabem que nada sabem. A consciência da ignorância permite que o sujeito se permita pensar os caminhos da formação de si mesmo. O dogmatismo e o fechamento do sujeito sustentam somente a rigidez e a paralisia diante do si mesmo.

A filosofia e o filósofo constituem-se em elementos de uma arte de viver para muito além da doutrina como realidade em si mesma. “O ato filosófico não se situa somente na ordem do conhecimento, mas na ordem do ‘eu’ e do ser”. (2014a, p. 22). É um ato ontológico em que o saber tem implicações profundas no modo de ver e de ser do indivíduo. Por isso, a dabedoria socrática, demarcada pelo diálogo, constitui-se em um exercício espiritual por excelência, pois problematiza o ser em sua opção existencial, ampara seu modo de vida e promove a relação de si consigo mesmo. “O diálogo socrático aparece, assim, portanto, como um exercício espiritual praticado em comum que convida ao exercício espiritual interior, isto é, ao exame de consciência, à atenção a si, em síntese, ao famoso ‘conhece-te a ti mesmo’.” (2014a, p. 38).

A opção por um modo de vida não é uma escolha solipsista, e o diálogo, como exercício espiritual, permite que os sujeitos estabeleçam uma relação recíproca entre si e consigo mesmos. O diálogo comporta, então, uma dimensão viva e dinâmica, pois a relação com outrem desenha um caminho intelectual e espiritual que se compõe na relação pergunta e resposta, com vistas a encontrar conclusões não calculadas e contradições impensadas de determinado posicionamento. Mas, sobretudo, o elemento que avoca maior importância e sentido é o próprio exercício do caminho dialógico percorrido. Conforme declara Hadot,

essa íntima ligação entre o diálogo com outrem e o diálogo consigo mesmo tem um significado profundo. Somente aquele que é capaz de ter um verdadeiro encontro com outrem é capaz de um encontro autêntico consigo mesmo, e o inverso é igualmente verdadeiro. O diálogo só é verdadeiramente diálogo na presença de outrem e de si mesmo. Desse ponto de vista, todo exercício espiritual é dialógico na medida em que é exercício de presença autêntica perante si e perante os outros. (2014b, p. 40).

Para que também o interlocutor possa colocar seu si mesmo em questão, e para que se estabeleça um diálogo verdadeiro, capaz de promover a autenticidade de cada sujeito na formação de si mesmo, é preciso que ambos se disponham às exigências do discurso racional; “em outras palavras, o cuidado de si e o pôr-se a si mesmo em questão nascem justamente da superação da individualidade que se eleva em nível da universalidade, representada pelo logos comum aos dois interlocutores”. (2014b, p. 60). É nesse movimento dialógico que a formação do si mesmo inscreve-se como formação dos outros, e fundamenta, nessa dinâmica, o lugar do mestre nos processos formativos.

Separação e duplicação no diálogo socrático

Hadot (2012) publicou uma das suas conferências em forma de livro - no Brasil, sob o título de Elogio de Sócrates - no qual trata, especialmente a partir de Platão, Kierkegaard e Nietzsche, da mestria de Sócrates e sua influência na tradição filosófica ocidental. O texto é oportuno para abordar nossa temática, porém, na impossibilidade de retratá-lo longamente, aqui, detemo-nos em dois aspectos importantes para nossos fins. O primeiro diz respeito ao Sócrates que se desdobra para poder “cortar” o interlocutor em dois; o segundo trata dos limites da linguagem. Ambos se referem, segundo nossa apreciação, explicitamente sobre a posição do mestre na autoformação do si mesmo.

No que se refere ao primeiro aspecto, Hadot (2014a, p. 101-103) resgata do filósofo alemão Otto Appelt uma definição profícua sobre como se desenvolve a ironia socrática, por meio da expressão Spaltung und Verdoppelung, ou seja, separação e duplicação. Primeiramente, Sócrates, durante o diálogo, duplica-se, ele se propõe percorrer com o interlocutor todo o trajeto dialético entre a questão e a resposta. Isso evidencia um profundo comprometimento de Sócrates com seu interlocutor, um comprometimento que chega a ponto de o filósofo se colocar no lugar do outro, assumindo para si as perturbações e angústias do interlocutor. Ele apresenta “aos interlocutores uma projeção do próprio eu deles; os interlocutores podem, assim, transferir a Sócrates sua perturbação pessoal e reencontrar a confiança na pesquisa dialética, no próprio logos”. (2014a, p. 96).

Esse movimento de duplicação ou de desdobramento requer um despojamento de Sócrates para se autodepreciar e se passar, dissimuladamente, pelo interlocutor, por alguém comum e, assim, ao querer falar uma coisa, fala outra para tratar daquilo que se quer a partir de assuntos banais. Esse prazer pela dissimulação, ironia integrante da mestria socrática, permite que o interlocutor tenha a liberdade e a segurança suficientes para se sentir capaz de participar.

O mecanismo de “corte”, ou de separação, apresenta-se à medida que o interlocutor percebe que sua postura inicial, que seus valores previamente dogmatizados se fazem agora contraditórios, incoerentes em face do que o próprio interlocutor é, neste momento da discussão, após percorrer todo o caminho dialético com o mestre. “O interlocutor está então cortado em dois: há o interlocutor tal qual ele era antes da discussão com Sócrates e há o interlocutor que, no constante acordo mútuo, se identificou com Sócrates e, doravante, não é mais o que ele era antes”. (2014a, p. 102). Sócrates, portanto, desdobra-se, num ato de dependência recíproca, de inversão de papéis, de doação, de alteridade, sem os quais raramente convenceria o interlocutor a colocar-se em questão, para que o interlocutor justamente possa, pelo exercício do diálogo, perceber a transformação de si mesmo, entre o que era antes e o que é agora, após percorrer o diálogo mediado pelo mestre.

Como resultado desse esforço metodológico, como constituinte das exigências racionais do discurso sensato - e esse é o segundo aspecto - conforme Hadot (2014a), pensa-se que o interlocutor e o próprio Sócrates passam a saber densamente sobre o tema discutido. Porém, de forma alguma, não é isso que acontece. Ambos não aprendem nada, ao contrário, a dúvida ou a definição parcial e momentânea é o que ocupa lugar nos interlocutores, tanto naquele que dizia nada saber quanto naquele que dizia tudo saber.

Segundo Hadot,

ao final da discussão, então, o interlocutor não aprendeu nada. Ele não sabe mais nada. Durante todo o tempo de discussão, porém, ele experimentou o que é a atividade do espírito, melhor ainda, ele foi o próprio Sócrates, isto é, a interrogação, o pôr em questão, o recuo em relação a si mesmo, isto é, finalmente, a consciência. (2014a, p. 103).

A discussão e a exploração intensas e exaustivas do conceito não conduzem, necessariamente, os interlocutores à sabedoria, já que essa atende a um saber ideal, inatingível pela linguagem que tem origem na realidade humana concreta. Por isso, Sócrates desencadeia suas ressalvas quanto à condição da própria linguagem quando aquele que fala é sobreposto àquilo de que se fala. O próprio diálogo, então, apesar de ser tomado como engrenagem central do método de ensino de Sócrates, não é recebido, aqui, como um exercício explicativo que atende à ou atinge com plenitude a sabedoria ideal. O diálogo, em si mesmo, como exercício espiritual, prática de si sobre si, é, certamente, promotor da transformação do ser. O exercício do diálogo carrega essa particularidade, não o conteúdo da linguagem em si mesmo. Isso firma a relevância e a importância exercidas pelo mestre Sócrates à filosofia como modo de vida acima da filosofia como teoria, como doutrina, ou seja, como linguagem. Assim, a mestria de Sócrates funda e inspira as escolas filosóficas antigas a tratar da filosofia como modo de vida e, “por esse apelo ao ser do indivíduo, a trajetória socrática é existencial”. (2014a, p. 105). A seguir, destacamos uma passagem dos Memoráveis que ilustra essa ideia, quando Sócrates dialoga com Hípias sobre a justiça e revela, além dos limites da linguagem, a relevância de a filosofia ser um modo de vida.

De fato, Hípias, não percebeste que não paro de expressar minhas noções do que é justo?

E como podes classificar isso como uma explicação?

Se não por meio de minhas palavras, eu o expresso por meio de minhas ações. Não achas que ações constituem melhor evidência do que as palavras?

Não há dúvida de que muito melhor, uma vez que muitos declaram o que é justo e fazem o que é injusto, mas ninguém que faz o que é justo pode ser injusto. (XENOFONTE, IV, 4, 10).

A posição atópica da mestria socrática

Esse limite da linguagem revela um limite da sabedoria, como resultado do exercício humano. Se questionássemos Hadot, a partir da postura de Sócrates, a respeito de o sujeito ter condições suficientes para acessar e contemplar um saber suprassensorial, ele diria que não. Isso é visto quando Hadot recupera um enunciado dado no diálogo Teeteto, no qual Sócrates afirma a si mesmo como átopos, “eu sou totalmente esquisito (átopos) e não crio senão aporia (perplexidade)”. (149a). Esse caráter inclassificável de Sócrates, que o revela como homem esquisito, absurdo, extravagante (HADOT, 2014b), também o faz incompreendido, por isso, quem sabe, criticado e elogiado, mas provocador e incitador justamente por ser átopos.

Entretanto, ao mesmo tempo que átopos é a negação de um lugarcomum, de um padrão ou de uma definição, pode-se dizer que esse não lugar é um lugar. Não ter um lugar definido é, ao mesmo tempo, definirse de alguma maneira, não como padrão, conceito universalizado ou, ainda, como essência. Mas, como tópos, domínio de si, sujeito de si mesmo, capaz de assumir um lugar, mas um lugar que tem origem em si mesmo. Por um lado, então, átopos configura-se como a negação de um lugar predeterminado, e, por outro, tópos se consolida como um lugar determinado por si mesmo.

Qual é o lugar do mestre, então, no processo de formação humana entendido como exercício espiritual? Se, a partir da leitura de Hadot sobre a sabedoria socrática, diríamos que um lugar definido por si mesmo, porém, uma perspectiva ética da formação do si mesmo, o mestre precisa dominar a si mesmo e suas próprias paixões. Esse lugar que Sócrates ocupa, ou melhor, que Sócrates, em sua mestria constituiu para si mesmo, é, de fato, uma constituição, um exercício espiritual de si sobre si. Sócrates é conforme aquilo que ele o transforma. Se Sócrates diferencia-se dos outros por um pequeno detalhe de sabedoria, isso é, somente pela ínfima descoberta de que tem consciência de sua ignorância, essa quase insignificante diferença resulta de um exercício espiritual supremo de si sobre si. Uma pequena diferença no quesito sabedoria, mas uma imensa diferença no que diz respeito à prática de si mesmo.

No que se refere ao nível de sabedoria, Sócrates, basicamente, se aproxima de todos os homens, mas, como formação de si mesmo, ele se distancia dos outros a tal ponto de ser promovido ao estatuto de mestre. Isso é visto, por exemplo, quando o Oráculo de Delfos lhe institui, como o homem mais sábio, uma definição, portanto, que lhe vem de outrem, de fora de si mesmo, como uma representação que poderia ser perfeitamente assumida e, doravante, condicioná-lo a emitir juízos seguros para todos seus concidadãos. Sócrates não aceita esse tópos, esse lugar no qual o colocam, não sem antes empenhar-se exaustivamente para que, somente após um exercício realizado por si mesmo (Apologia, 22a), pudesse, então, aceitar e assumir um lugar, um posto (taxe).

Importante é ressaltar, portanto, que o estado de incompreensão ou de não definição oriundo de seu caráter atípico (átopos) a determinações não é o mesmo que um estado de irreflexão. Não é um descaso do sujeito consigo mesmo; pelo contrário, é o mais puro resultado do trabalho de si sobre si mesmo, pois a incompreensão não nega a reflexão, aquele exercício de pensar sobre si mesmo, como o próprio Sócrates faz em diversas passagens do Banquete, por exemplo. Apesar de se aperceber como átopos, Sócrates não cessa de se empenhar consigo mesmo, nunca abandona o hábito de refletir e dialogar com ele próprio, ocupando seu espírito consigo mesmo.

No Banquete, após um longo tempo em pé, imóvel, em frente de um pórtico, Sócrates aproximava-se de Agatão.

“Vem cá Sócrates”, lhe falou; “reclina-te ao meu lado, para que, em contato contigo, eu também flua do pensamento excelso que te ocorreu no pórtico. Sem dúvida encontraste o que procuravas e o seguraste com firmeza, sem o que não te houveras arredado do lugar”. Depois de sentar-se, dissera Sócrates: “Seria bom, Agatão”, lhe falou, “se com a sabedoria acontecesse isso mesmo: pela simples ação de contato, passar de quem tem muito para quem está vazio, tal como se dá com a água, que escorre por um fio de lã, da copa cheia para quem tem menos. Se com a sabedoria acontecer a mesma coisa, para mim será de suma importância ficar junto de ti, pois espero saturar-me às custas de tua abundante e excelente sabedoria. A minha é fraquinha e duvidosa como os sonhos; a tua, pelo contrário, brilhante e promissora, pois, apesar de seres moço, irradiase com tal força, que ainda anteontem luziu na presença de mais de trinta mil helenos.” (174d-175e).

Agatão revela-se confiável de que Sócrates havia encontrado o que procurava e de que havia encontrado o “conhecimento” que procurava, mas Sócrates, ao lhe responder, não se refere, em momento algum, ao que procurava, inclusive sua sabedoria. Dizia ele, era-lhe “fraquinha”. Pelo contrário, situa a resposta a Agatão em sua “atividade de pensar”, ação necessária para colocar-se no caminho da sabedoria, no processo do pensamento, o que é deveras mais fundamental ainda para a formação de si mesmo. E, portanto, o saber a que nos referimos aqui é um saber do qual não há inautenticidade, não há renúncia de si, pois um saber, se assim fosse, perderia seu sentido ao passo que renuncia o si mesmo.

Associemos a essa postura da mestria socrática a segunda parte do enunciado extraído de Teeteto. Retomemos: “Eu sou totalmente esquisito (átopos) e não crio senão aporia (perplexidade)”. (149a). Em razão de ser átopos, não crio outra coisa a não ser perplexidades (aporias). Diz Sócrates, em outras palavras, não sou sophós, o sábio, sou aquele que está em um lugar que não é o do domínio de um saber. Aliás, por ser átopos, não estou em condições de sabedoria verdadeira, única condição a que ainda não tenho provado ao contrário para mim mesmo.

Considerações finais

A formação do si mesmo descrita até agora pela perspectiva de Pierre Hadot demonstra, primeiramente, que o indivíduo, em sua condição humana, é frágil, e, quando colocado em questionamento, “toma consciência do problema vivo que ele mesmo é para si”. (2014a, p. 104). Tal condição, ao invés de ignorada, propõe-se que seja matéria-prima para a formação do si mesmo. Essa é, portanto, a justificativa fundamental para que a formação humana seja pensada como um modo de contribuir para que os indivíduos se aperfeiçoem. Nesse sentido, o diálogo, como exercício espiritual, permite justamente a tomada de consciência da fragilidade humana e, por isso, institui-se como estratégia pedagógico-formativa da mestria socrática. É por meio do diálogo que o sujeito coloca-se diante de si mesmo e se expõe a si mesmo de tal modo a identificar suas paixões e a buscar alternativas para lidar com elas.

A formação ética do si mesmo não pode, entretanto, tomar, como ponto de partida, a doutrina universalizante, mas a realidade humana concreta, na qual se encontram o sujeito e suas vicissitudes. Por isso, a formação do si mesmo deve passar pela experiência própria do indivíduo convertida, por meio da prática dialógica, em saberes que retornam sobre esse mesmo sujeito com o propósito de sanar ou tratar de suas fraquezas. Entretanto, com frequência, o discípulo, por si mesmo, não consegue darse conta de seu estado e, por isso, não o usa como propulsor para sua própria formação. Diante disso, a figura do mestre torna-se imprescindível, uma vez que promove a ação dialógica do outro sobre si mesmo.

Com isso, os indivíduos - mestre e discípulo - tornam-se totalmente responsáveis por si mesmos, uma vez que se tomam vulneráveis, e essa vulnerabilidade torna-se um campo a ser explorado dialogicamente. Esse é o aspecto mais importante da ética formativa, porque incide naquilo que é mais caro ao si mesmo: a liberdade do sujeito em relação às duas próprias paixões limitadoras. “Para aquele que cuida de sua alma, o essencial não se situa nas aparências, no costume ou no conforto, mas na liberdade”. (HADOT, 2014a, p. 113). E não há liberdade quando o indivíduo se condiciona aos seus próprios vícios.

A prática dialógica, apesar de milenar, ainda guarda seus desafios. É um exercício que desafia o praticante, como observamos na interpretação de Hadot sobre o diálogo socrático, tanto o mestre quanto o discípulo. Não é simples, portanto, realizá-lo, pois não é apenas um “falar”, mas um modo bem-específico de se colocar diante de si e do outro; um modo que não aceita dogmatismos nem coloca o conhecimento à frente e em detrimento do sujeito. Esse modelo formativo contrapõe-se à toda formação pensada a partir do conhecimento universalizante, pois, antes de tudo, tem um interesse ético. Ou seja, preocupa-se, impreterivelmente, com a formação do si mesmo como sinônimo de transformação. O sujeito precisa se transformar, e isso exige que todo o saber tenha como ponto de partida a vida do sujeito e, como finalidade, a atuação sobre esse mesmo sujeito. Desse modo, o sujeito lida com suas paixões a partir de si mesmo, sem alienar esse ato a um terceiro.

Em síntese, a prática dialógica, nos moldes socráticos, pode ser entendida como um exercício espiritual à medida em que é uma atividade desenvolvida pelo sujeito em direção ao próprio sujeito. Desse modo, a transformação do si mesmo é a preocupação vital e primária do exercício dialógico, que, justamente por isso, é entendido como um princípio ético dos processos de subjetivação do homem.

Referências

HADOT, P. Elogio de Sócrates. Tradução de Flávio Fontenelle Loque e Loraine Oliveira. São Paulo: Edições Loyola, 2012. [ Links ]

HADOT, P. Exercícios espirituais e filosofia antiga. Tradução de Flávio Fontenelle Loque e Loraine Oliveira. Prefácio de Arnold I. Davidson. São Paulo: É Realizações, 2014a. [ Links ]

HADOT, P. O que é a filosofia antiga? Tradução de Dion Davi Macedo. 6. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014b. [ Links ]

HADOT, P. La ciudadela interior. Tradução de Maria Cucurella Miquel. Prólogo de Arnold I. Davidson. Barcelona: Alpha Decay, 2013. [ Links ]

PLATÃO. Apologia de Sócrates. Críton. Tradução de Carlos Alberto Nunes; editor convidado Plínio Martins Filho; organização de Benedito Nunes e Vitor Sales Pinheiro; texto grego de John Burnet. 3. ed. rev. e bilíngue. Belém: Ed. da UFPA, 2015. [ Links ]

PLATÃO. Banquete. Texto grego de John Burnet. Tradução de Carlos Alberto Nunes. 3. ed. Belém: Ed. da UFPA, 2011. [ Links ]

PLATÃO. Teeteto. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: Ed. da UFPA, 1988. [ Links ]

XENOFONTE. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates. Tradução, textos complementares e notas de Edson Bini. Bauru: Edipro, 2006. [ Links ]

1Não é nossa pretensão explorar com afinco essa concepção de “exercícios espirituais”, por isso, sugerimos a obra Exercícios espirituais e filosofia antiga, na qual Pierre Hadot explana minuciosamente, em diversos artigos, essa compreensão, situando-a nas escolas estoica, cínica, epicurista e, de maneira geral, na Antiguidade greco-latina. Hadot recupera, de Filo de Alexandria, uma lista de exercícios infundidos pelo estoicismo, entre eles, a audição, a atenção, o domínio de si, as meditações... (2014a, p. 25).

Recebido: 12 de Maio de 2019; Aceito: 12 de Novembro de 2019

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons