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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.24  Caxias do Sul  2019  Epub 31-Jul-2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v24.e019034 

ARTIGOS

Interdisciplinaridade e ética: uma abordagem para além da perspectiva epistemológica

Interdisciplinarity and ethics: an approach beyond the epistemological perspective

* Professor nos Programas de Pós-Graduação em Educação e em Filosofia da Universidade de Caxias do Sul UCS). Doutor em Educação. Mestre em Filosofia. Licenciado em Filosofia. E-mail: vanderlei.carbonara@ucs.br


Resumo

O presente artigo ocupa-se, em sentido amplo, de um tema já consagrado por pesquisas acadêmicas oriundas de diferentes áreas do conhecimento: a interdisciplinaridade. Já não é mais necessário justificar a relevância sobre tais estudos, uma vez que são preponderantes os discursos que apontam à emergência da superação do isolamento entre disciplinas. Em sentido estrito, este artigo posiciona o tema da interdisciplinaridade numa perspectiva que não é comum entre os debates mais recorrentes sobre o tema: assume-se a primazia da ética sobre a epistemologia na justificação da interdisciplinaridade. Após uma exploração preliminar sobre o que é característico nas definições de disciplina e interdisciplinaridade, o texto segue explorando, sob dois aspectos, a primazia ética: primeiramente, busca evidenciar uma dimensão ética constituinte da interdisciplinaridade; na sequência toma da hermenêutica filosófica a relação entre compreensão e deliberação para posicionar a primazia da ética sobre a epistemologia na justificação da interdisciplinaridade. Trata-se, aqui, de um estudo teórico que, de modo analítico e interpretativo, volta-se a definições preliminares e alcança uma construção conceitual sustentada pelas perspectivas teóricas estudadas. A fim de apoiar as definições preliminares sobre disciplina e interdisciplinaridade, analisa textos de Pombo (2008) e Paviani (2008). A partir de Bombassaro (2014), é indicado o acento ético do debate sobre interdisciplinaridade e, com Rorty (1997), é demarcada a solidariedade como processo de construção dos saberes. O argumento sobre a primazia da ética é especialmente construído com apoio em Gadamer (2004). O percurso conceitual aqui apresentado visa a oferecer subsídios para que os debates sobre interdisciplinaridade em distintos setores da sociedade - desde aqueles em que se desenvolvem os saberes, até aqueles que os divulgam e aplicam - tenham especial atenção às implicações éticas aí presentes.

Palavras-chave: Interdisciplinaridade; Ética; Processos de justificação do conhecimento

Abstract

This article occupies, in a broad sense, a theme already established by academic research from different areas of knowledge: an interdisciplinarity. It is no longer necessary to justify the relevance of such studies, because thediscourses that point to an emergence of overcoming isolation between disciplines are predominant. Strictly speaking, this article places the theme ofinterdisciplinarity in a perspective that is not common among the most recurrent debates on the subject: it assumes the primacy of ethics over epistemology in the justification of interdisciplinarity. After a preliminary exploration of what is characteristic in the definitions of discipline and interdisciplinarity, the text continues to explore the ethical primacy under two aspects: first, it seeks to highlight an ethical dimension that constitutes interdisciplinarity; Then the philosophical hermeneutics takes the relationship between understanding and deliberation to position the primacy of ethics over epistemology in the justification of interdisciplinarity. This is a theoretical study that, in an analytical and interpretative way, returns to preliminary definitions and reaches a conceptual construction supported by the studied theoretical perspectives. In order to support the preliminary definitions of discipline and interdisciplinarity, the texts analyzed are from Pombo (2008) and Paviani (2008). From Bombassaro (2014) is indicated the ethical content in the debate on interdisciplinarity and, with Rorty (1997), solidarity is demarcated as a process of knowledge construction. The argument about the primacy of ethics is especially built with support in Gadamer (2004). The conceptual path presented here aims to offer subsidies so that the debates on interdisciplinarity in different sectors of society pay special attention to the ethical implications present - from those in which knowledge is developed, to those that disseminate and apply it.

Keywords: Interdisciplinarity; Ethic; Knowledge justification processes

1 Introdução

O desenvolvimento das relações com o conhecimento, em diferentes setores da sociedade hodierna, tornou emergente o tema da interdisciplinaridade. Se, há algumas décadas, seria preciso justificar a relevância de abordagens a partir da interdisciplinaridade, o apelo atual faz dos debates sobre esse tema, quase de imediato, justificados. O apelo à interdisciplinaridade se apresenta tanto no desenvolvimento das ciências em geral, como também em segmentos de gestão de políticas públicas e nos setores produtivos, ganhando destaque nos debates educacionais. A relevância do tema tem possibilitado que estudos e proposições de diferentes ordens tenham já sido apresentadas. São numerosos os avanços decorrentes da presença crescente da interdisciplinaridade em distintos setores da sociedade. Porém, também são expressivos os limites com que cada setor da sociedade se depara ao buscar avanços interdisciplinares. Se são relevantes os estudos que fazem o registro das conquistas sociais a partir da interdisciplinaridade, cabe dizer que mais urgentes são as contribuições para a compreensão e, quiçá, superação dos limites ainda enfrentados, para que se possa seguir avançando.

Nesse contexto, o estudo que aqui se apresenta tem a proposição de, sob um aspecto específico, identificar uma das limitações estruturais da sociedade do conhecimento para o avanço da interdisciplinaridade. A limitação que aqui se refere e será explorada diz respeito à exclusividade da matriz epistemológica nos discursos preponderantes sobre interdisciplinaridade. Com a identificação dessa limitação específica, pretende-se contribuir para que novas perspectivas interdisciplinares somem-se a outras já vigentes.

É comum e pertinente que os estudos sobre interdisciplinaridade estejam na esteira dos debates epistemológicos, afinal, trata-se de tema diretamente vinculado à produção, difusão e aplicação do conhecimento. No entanto, a abordagem que este artigo dá ao tema propõe um deslocamento do debate epistemológico para o debate ético. Por isso, diferentemente dos discursos vigentes, aqui se concebe a interdisciplinaridade muito mais a partir da estrutura das análises éticas, em lugar das habituais análises epistemológicas.

Um ponto de partida para esse argumento é tomado do artigo “A dimensão ética da interdisciplinaridade”, de Luiz Carlos Bombassaro (2014, p. 41-42). Posiciona o autor: “Entre os aspectos mais importantes - e ao que parece até o momento pouco tratado pelos estudiosos do assunto - que envolvem a questão da interdisciplinaridade, está certamente sua dimensão ética”. Fazendo uma defesa da abertura ao diálogo como condição para a interdisciplinaridade, o autor acentua: “A interdisciplinaridade somente pode ser pensada em sua radicalidade a partir da consideração de sua dimensão ética”. (p. 42). Essa posição de Bombassaro, justificada ao longo de seu texto, caracterizará o primeiro movimento do que se quer desenvolver neste artigo para justificar o acento em aspectos éticos. Seguirse-á, assim, explorando a dimensão ética da interdisciplinaridade na perspectiva do diálogo. O segundo movimento argumentativo dará ainda maior radicalidade à abordagem: a ética assume primazia ante a epistemologia na justificação da interdisciplinaridade. Para este último argumento serão apontadas algumas pistas preliminares, a partir das análises de Rorty, ao problema da verdade, e se apoiará o argumento, sobretudo, na hermenêutica filosófica de Gadamer. Antes, porém, a título de elucidações elementares, serão feitas algumas considerações que posicionem o entendimento que aqui é assumido sobre o que seja interdisciplinaridade.

2 Elucidações elementares acerca da interdisciplinaridade

Para falar de interdisciplinaridade, tomamos como ponto de partida a ideia de disciplina. Isso porque interdisciplinaridade não se refere a qualquer refutação das disciplinas, mas parte delas para integrá-las. Segundo Olga Pombo (2008, p. 12-13), a palavra disciplina tem, ao menos, três grandes significados: o primeiro é a especificação dos ramos de saber, incluindo subdisciplinas, o que aproxima o conceito de disciplina à classificação das ciências; o segundo significado diz respeito à organização de componentes curriculares para o ensino dos saberes; o terceiro significado reporta a conjuntos normativos que regulam atividades e comportamentos de grupos. Todos esses usos do termo disciplina se articulam e se justificam pela sua etimologia latina. Para a análise que se seguirá ganharão ênfase os dois primeiros significados apresentados, ligados à produção e divulgação do conhecimento, sem, com isso, descartar a relevância do terceiro.

Portanto, em relação ao conhecimento, o termo disciplina, ora é utilizado como forma de indicar as ramificações das ciências, da filosofia e das artes; mas ora, também, é utilizado como sistematização de saberes em áreas de conhecimento com a finalidade de divulgá-los ou ensiná-los a um público específico. Em ambos os casos, atribui-se a categoria de disciplina a áreas de conhecimento, como: Filosofia, Biologia, Sociologia, Artes Visuais, etc. No primeiro caso, o termo disciplina está ligado à produção de conhecimento e à sistematização dos saberes numa determinada área e, por isso, assemelha-se ao conceito de ciência (embora seja importante ressaltar que não somente as ciências constituem-se disciplinas, mas também a filosofia e as artes). No segundo caso, a ênfase é dada ao caráter didático que a sistematização dos saberes toma numa relação de ensino e aprendizagem. Destaque-se, ainda, que ambas as formas de compreensão sobre disciplina têm também alcance como aplicação: muitos dos conhecimentos sistematizados e divulgados efetivam-se em atos e produtos no quotidiano social.

O ponto de partida da organização dos saberes nas universidades, institutos de pesquisa, centros técnicos, nos currículos escolares e outros campos intelectuais no mundo ocidental, é a existência de conhecimentos sistematizados em disciplinas. Isso vem desde o séc. IV a.C., quando Aristóteles sistematizou os saberes então disponíveis e os classificou. Os desenvolvimentos posteriores dos conhecimentos em diferentes áreas acentuaram a importância das disciplinas. Portanto, operar com a distinção das disciplinas está na base da racionalidade ocidental.

Se fizermos um ordenamento cronológico, teremos de colocar a interdisciplinaridade como desdobramento posterior à criação das disciplinas. Ou seja, porque há disciplinas, então, é possível tratar de possíveis conexões entre elas. Essa afirmação relativamente óbvia quer dar destaque a uma visão de que a interdisciplinaridade não pode estar associada a alguma perspectiva de dissolução das disciplinas. Pode-se tanto falar de interdisciplinaridade, considerando-se a manutenção de padrões rígidos das matrizes originais, quanto se pode abordar o tema em defesa de uma ideia mais flexível de disciplina, mas nunca negando aquilo que se deverá articular ou relacionar. Nesse sentido, cabe dizer que a interdisciplinaridade é, em primeiro lugar, uma postura diante do conhecimento que toma os possíveis pontos de interligação entre diferentes saberes como seu foco principal.

Se, do ponto de vista mais elementar, pode-se estabelecer uma definição de interdisciplinaridade a partir da definição preliminar de disciplina - e, então, se fala da integração de disciplinas - isso está longe de resolver a complexidade conceitual que a ideia de interdisciplinaridade vem apresentando nas últimas décadas. Para essa abordagem recorremos ao livro Interdisciplinaridade: conceitos e distinções, de Jayme Paviani. O autor refere a dificuldade de se conceituar interdisciplinaridade de forma precisa:

De fato, a interdisciplinaridade parece consistir num movimento processual, na efetivação de experiências específicas e que surgem da necessidade e da contingência do próprio estatuto do conhecimento. Isso, em parte, explica a ausência de um conceito mais elaborado e aceito pela comunidade dos cientistas. (2008, p. 14).

Os estudos de Olga Pombo (2008) também apontam à difícil definição do que seja interdisciplinaridade, pois há uma diversidade de modos de organização do conhecimento e usos de distintos termos em contextos diversos. No artigo “Epistemologia da interdisciplinaridade” (2008), Pombo explora a articulação dos prefixos pluri, inter e trans para indicar percursos da interdisciplinaridade. Na sua argumentação, a autora posiciona-se por um continuum que se dá desde a versão mais simples - pluridisciplinaridade - até sua versão mais complexa - transdisciplinaridade - tendo a interdisciplinaridade como estágio intermediário. Escreve a autora: “Se juntarmos a esta continuidade de forma um crescendum de intensidade, teremos qualquer coisa deste género: do paralelismo pluridisciplinar ao perspectivismo e convergência interdisciplinar e, desta, ao holismo e unificação transdiciplinar”. (POMBO, 2008, p. 14).

Nessa articulação entre as três dimensões de integração de conhecimentos, a autora posiciona a interdisciplinaridade como perspectivismo e convergência: “A interdisciplinaridade, pelo seu lado, já exigiria uma convergência de pontos de vista”. (2008, p. 14-15). Observese que esse percurso posiciona esclarecimentos importantes sobre a interdisciplinaridade, mas não dissolve a complexidade em que esse conceito está inserido. Ao contrário, entende-se que só se pode construir um entendimento minimamente satisfatório sobre a interdisciplinaridade, quando os esforços compreensivos se voltam à complexidade das relações envolvidas. Paviani aponta a alguns dos motivos dessa complexidade:

A origem da interdisciplinaridade está nas transformações dos modos de produzir a ciência e de perceber a realidade e, igualmente, no desenvolvimento dos aspectos político-administrativos do ensino e da pesquisa nas organizações e instituições científicas. Mas, sem dúvida, entre as causas principais estão a rigidez, a artificialidade e a falsa autonomia das disciplinas, as quais não permitem acompanhar as mudanças no processo pedagógico e a produção de conhecimentos novos. Disso decorre que a interdisciplinaridade, reconhecido o fenômeno, impõe-se, de um lado, como uma necessidade epistemológica e, de outro lado, como uma necessidade política de organização do conhecimento, de institucionalização da ciência. (2008, p. 14-15).

Observe-se que o autor já indica, na citação, além da reflexão epistemológica, também a reflexão política sobre a organização do conhecimento. Assim como vem sendo anunciada, à preocupação com a dimensão ética da interdisciplinaridade, essa menção de Paviani ao que ele chama de “necessidade política”, soma-se o argumento que está sendo aqui perseguido. Na tradição filosófica, a ética e a política fazem parte de um escopo comum de investigação: a filosofia prática, ou seja, a grande área da Filosofia que se ocupa de questões sobre o agir humano e suas justificações. Pois é a partir desse ponto que o debate mais efetivo se seguirá.

3 Exigências éticas para a interdisciplinaridade

Uma vez feitas essas breves elucidações elementares e explicitada a complexidade imbricada na compreensão conceitual mais elaborada da interdisciplinaridade, passa-se ao debate sobre sua dimensão ética (que também poderia ser tratada como ético-política). Nesse ponto, assume-se, com Bombassaro (2014), a posição de que as disciplinas se desenvolvem historicamente, e que a preponderância de determinados conhecimentos, descobertas ou criação de teorias são resultados de processos sociais e culturais. Não necessariamente a preponderância de alguns conhecimentos esteja determinada apenas pela genialidade dos melhores pesquisadores. No jogo social, alguns avanços das ciências, da filosofia e das artes são privilegiados e outros são preteridos, considerando-se também interesses políticos, econômicos e religiosos. Até mesmo idiossincrasias podem determinar quais conhecimentos terão maior ou menor possibilidade de se firmarem.

Portanto, o processo de produção de conhecimento não é puro e natural, mas é o conhecimento histórico e culturalmente possível.

Em seu livro, Ciência e mudança conceitual, Bombassaro já esboça o caráter histórico e coletivo da ciência ao comentar as influências de Fleck na obra de Kuhn: “A ciência moderna é caracterizada pelo desenvolvimento histórico [...] ela não surge da ação solipsista de um cientista, mas é, antes, fruto de um trabalho coletivo”. (1995, p. 41). Se essa interpretação indica uma epistemologia mais histórica e social do que objetivista, não se poderá deixar de atentar também para a dimensão ética implicada nos seus processos. Por isso cabe ressaltar sobre as disciplinas: “Além de uma dimensão ontológica e epistemológica, elas têm uma dimensão ética fundante que as vincula à história e à cultura de determinada época”. (BOMBASSARO, 2014, p. 44).

Interessa entender qual é essa dimensão ética e como ela se expressa historicamente nas comunidades investigativas. Na sequência do texto, Bombassaro comenta a respeito das disciplinas e seus processos de justificação: “Dependem do modo como os próprios pesquisadores e as comunidades de investigação estabelecem as relações entre si, como discutem, como chegam aos acordos e aos desacordos sobre aquilo que investigam”. (2014, p. 44). Nessa leitura histórica sobre o desenvolvimento das disciplinas, é importante frisar que um conhecimento pode se validar tanto como resultado de um processo dialógico entre pares numa comunidade de investigação como também é possível que se valide de modo arbitrário, dogmático ou até mesmo resultante de violência contra pessoas e instituições. Por vezes, até mesmo, são justificados processos contrários ao diálogo investigativo sob o pretexto dos pretendidos benefícios a serem trazidos dos resultados alcançados. Portanto, há um risco de que as disciplinas negligenciem sua dimensão ética em benefício de uma concepção particular de progresso.

Porém, o mais legítimo desenvolvimento das disciplinas é aquele que ocorre como processo de conversação numa comunidade de investigação. A isso é que já foi referido anteriormente como “dimensão ética fundante” das disciplinas e de todo o saber que se queira mostrar socialmente legítimo. O processo de conversação possibilita a exposição do contraditório, a explicitação de conceitos e métodos prévios e o equacionamento de consenso, síntese ou acordo mínimo a partir do que os partícipes, assim, constroem na experiência do diálogo. A diferença entre a dogmatização e a legitimação passa pelo crivo ético do diálogo. Uma produção de conhecimento que não esteja aberta à possibilidade de ser posta em questão, assume uma posição dogmática que a afasta da legitimação social. Por outro lado, aquela produção que, de modo salutar, desconfia de seus próprios resultados, e assume o diálogo como crivo de legitimação, então estará apta a se apresentar à sociedade como relevante.

E ao se falar de interdisciplinaridade, essa dimensão ética dada na conversação assume ainda maior relevância. Isso porque a interdisciplinaridade nasce justamente da intersecção entre disciplinas e, por isso, de algum nível de conversação entre esses saberes. Mas não é só entre os saberes que se dá essa conversação, antes ela se dá entre as pessoas que produzem o conhecimento. Portanto, trata-se do diálogo como condição da origem, da manutenção e do desenvolvimento da interdisciplinaridade. Para que haja interdisciplinaridade, o outro importa.

A esse respeito comenta Bombassaro:

Ainstauração do espírito interdisciplinar de investigação tem uma dimensão ética que se revela na atitude do pesquisador em relação à abertura ao olhar do outro, à aceitação de outra perspectiva e à capacidade de elaboração da crítica, tanto nas relações que se realizam entre as disciplinas quanto naquelas que ocorrem no interior da comunidade de investigação. (2014, p. 44).

Tal dimensão ética da interdisciplinaridade expressa-se como abertura. A abertura está no sentido oposto aos fundamentalismos e dogmatismos. A abertura guarda a possibilidade de que o outro esteja certo. O fundamentalismo e o dogmatismo, ao contrário, negam a possibilidade de que o outro possa estar certo quando sua posição diverge do primeiro. Nesse ponto da argumentação, recorre-se a Hans Georg-Gadamer, um dos grandes filósofos do diálogo do século XX. Para Gadamer, a abertura no diálogo compreensivo está em “deixar o outro viger contra si mesmo”. (2007, p. 23). No caso da reflexão sobre a interdisciplinaridade, a abertura possibilita que se deixem manifestar contradições produtivas a novos conhecimentos e que se percebam equívocos ou erros nos processos ainda limitados às especificidades de métodos e bases conceituais de cada uma das disciplinas.

O fundamentalismo e o dogmatismo tendem a inviabilizar a pesquisa interdisciplinar, porque se assentam sobre a incapacidade de assumir a perspectiva daqueles que se orientam por outras posições e defendem outros pontos de vista. O sentido de abertura para a compreensão da perspectiva do outro se forma, portanto, com a experiência do erro, com a consciência da falibilidade e da relatividade das perspectivas de interpretação. (BOMBASSARO, 2014, p. 45).

Tratar de interdisciplinaridade implica uma perspectiva produtiva de diálogo entre saberes. Essa perspectiva produtiva não é evolutiva, tal como se camadas de conhecimento fossem, simplesmente, sobrepondo-se umas sobre as outras. A produtividade está em se fazer muitas revisões e reconsiderações do conhecimento já anteriormente produzido. Portanto, a crítica é parte constituinte de seu desenvolvimento. E é importante que o tensionamento em face do contraditório esteja continuamente sendo considerado como uma possibilidade para essas revisões e reconsiderações.

No desenvolvimento da interdisciplinaridade, o passo seguinte a ser dado estará condicionado à abertura, que irá prevenir a redução de qualquer modo de fundamentalismo ou dogmatismo. Não sem razão, Bombassaro escreve em tom de sentença: “Aquele que não estiver preparado para modificar seus pontos de vista, seu modo de compreender o mundo, não estará em condições de enfrentar a conversação e a crítica que o diálogo interdisciplinar exige”. (2014, p. 46). Ora, a ética não é simplesmente uma possibilidade dentre outras na produção do conhecimento interdisciplinar, mas é dimensão constituinte da origem, manutenção e desenvolvimento de toda interdisciplinaridade. Dessa dimensão ética depende a articulação entre a legitimação epistemológica dos conhecimentos e a efetivação política de suas potencialidades de alcances sociais.

4 Acerca da primazia da ética sobre a epistemologia e seusdesdobramentos para a interdisciplinaridade

Tendo como referência o argumento de Bombassaro de que a ética é dimensão constituinte da origem, manutenção e desenvolvimento de toda interdisciplinaridade, agora se pretende aprofundá-lo e redimensioná-lo. Observe-se que não é recorrente que os debates sobre interdisciplinaridade se ocupem de seu núcleo ético. Há um ramo da interdisciplinaridade que se expressa em teorias e ações que apenas se ocupam com a operacionalização de processos. Muitas dessas abordagens sobre interdisciplinaridade sequer ultrapassam a efemeridade de aspectos procedimentais, e nem mesmo tratam de forma minimamente adequada suas bases epistemológicas. Nesses casos, tanto menos a ética é compreendida como dimensão constituinte. E desse modo de abordagem resultam constatações sobre insuficiência ou até mesmo ineficiência da interdisciplinaridade. Particularmente, quando da presença curricular de interdisciplinaridade em escolas e universidades, seu dimensionamento limitado a aspectos procedimentais apresenta resultados lastimáveis e, na maior parte das vezes, não ultrapassando relatos de justaposição de tópicos de conteúdos de diferentes disciplinas. Ora, o que se seguirá apresentando não só estará afastado das abordagens primordialmente procedimentais acerca da interdisciplinaridade, como irá aprofundar ainda mais a sua dimensão ética de modo a dar-lhe primazia.

O argumento que se persegue neste artigo assume que a legitimação de qualquer conhecimento, quer seja nas ciências, na filosofia, quer nas artes, toma a estrutura deliberativa da ética para se justificar. Antes, portanto, que estabeleçam critérios epistemológicos de validação do conhecimento, o processo deliberativo - próprio da ética - é que justificará qualquer saber como legítimo. Ao se pensar a interdisciplinaridade, portanto, essa estrutura deliberativa da ética, que é própria a todas as disciplinas em sua origem, será acentuada e afirmada como estruturante a toda integração entre disciplinas. As disciplinas integram-se não apenas por algo que lhes seja posterior aos seus resultados - quando é o caso em que insuficiências ou deficiências nos resultados de uma ciência mostra a necessidade de buscar complemento em outra - mas essa integração já está na origem das disciplinas: e é na origem que se quer afirmar que todo conhecimento justifica-se a partir da mesma estrutura deliberativa com que a ética trabalha. Por isso é que se avança para a ideia de uma primazia da ética sobre a epistemologia. O desenvolvimento desse argumento sobre a estrutura deliberativa da interdisciplinaridade será feito em duas etapas: primeiramente, de modo mais breve, se tomarão algumas ideias do neopragmatismo de Rorty em sua relação entre ciência e solidariedade; na segunda etapa, será analisada a abordagem hermenêutica de Gadamer ao caráter deliberativo de toda compreensão.

Em sua argumentação de afastamento das concepções objetivistas de ciência e verdade, e de afirmação da ciência como solidariedade, Rorty já anuncia que a “investigação humana cooperativa só possui uma base ética, não uma base epistemológica ou metafísica”. (1997, p. 41). Isso porque - no caso de pragmatismo - há uma renúncia em operar com uma teoria da verdade em benefício da concordância alcançada entre pessoas a partir de uma avaliação histórico-social. Ao renunciar às teorias da verdade e a seus confortos objetivistas ou metafísicos, restará ao pesquisador (e também ao professor e a quem mais opere com esses conhecimentos) a solidariedade como única possibilidade de justificação. Desfazem-se, nessa argumentação, as pretensões de domínio e de apreensão dos objetos de conhecimento e, em seu lugar, restará a possibilidade de uma razoabilidade histórica de concordância sobre o que é assumido como legítimo nas disciplinas e em suas interfaces.

Não se sustenta, portanto, o mito da objetividade, pelo qual destacamse alguns conhecimentos que - graças ao rigor do método - produzem verdades, em detrimento de outros que - desprovidos desse rigor - produzem apenas prazeres (seria o caso das artes, mas também de todas as humanidades que não se inclinariam à devoção metódica das ciências). Diferentemente desse mito, as artes e a física, a religião e as engenharias, a filosofia e a medicina têm iguais possibilidades (e dificuldades) de se legitimarem historicamente de modo solidário em suas comunidades investigativas. E o que se quer ainda enfatizar é que tais possibilidades de legitimação, além de suas próprias comunidades investigativas, dependerão, diretamente, da capacidade de diálogo que cada disciplina tiver diante das demais.

Para alcançar tal dimensão, é importante posicionar, de modo adequado - e essa adequação passa por uma postura de razoabilidade - as disciplinas e seus pesquisadores em relação ao conhecimento. “Nós precisamos parar de pensar na ciência como o lugar onde a mente humana enfrenta o mundo, e no cientista como exibindo uma humildade própria em face das forças sobre-humanas”. (RORTY, 1997, p. 56). E a posição mais adequada mostra ser aquela que reconhece determinado conhecimento como verdadeiro por um processo decisório solidário, e não como resultante de qualquer objetividade absoluta. Essa posição reconhece que as disciplinas são resultantes de organizações histórico-sociais de comunidades investigativas e os pesquisadores são partícipes de um contexto cooperativo. Tal postura mantém a ideia de disciplina, mas não mais concebendo-a como demarcação estanque entre as ciências, e sim como fronteira flexível que se move de acordo com os contextos investigativos e que, até mesmo, pode ter zonas de fusão de saberes.

O percurso argumentativo, com que se opera aqui, acentua a exigência de que os conhecimentos se submetam a processos de legitimação. Não só o conhecimento está sendo entendido fora de uma matriz de objetividade, como também se mostra insuficiente quando é submetido ao crivo da subjetividade. A dimensão ética que vem sendo afirmada remete a um plano intersubjetivo: os saberes das disciplinas somente podem justificarse de modo solidário no plano das relações estabelecidas nas comunidades de investigação. E o mesmo se dá entre as disciplinas: não há uma suficiência que possibilite a cada disciplina apenas legitimar-se em si mesma, mas a legitimidade de uma disciplina será maior quanto mais amplo for seu espectro de conversação com outras áreas de conhecimento. Desse modo, a abertura ao diálogo já não mais poderá ser vista apenas como disposição complementar e desejável para o estabelecimento de relações polidas, mas passa a ocupar posição central nos processos de legitimação do conhecimento. Nesse sentido, a abertura ao diálogo é condição de possibilidade para o conhecimento. Tal abertura não ocupa uma posição metodológica e não oferece qualquer segurança metafísica. A abertura ao diálogo é, primeiramente, um critério ético mais do que epistemológico.

Portanto, ao posicionar a abertura ao diálogo no centro dos processos de legitimação do conhecimento, reivindica-se a primazia da ética sobre a epistemologia. Por conseguinte, nessa reivindicação, os modos de operar com o conhecimento que expressam maior abertura ao diálogo, passam a destacar-se dos demais. E é aqui que, mais uma vez, a interdisciplinaridade merece especial atenção: a conversação entre as disciplinas tem maior potencial de expressar conhecimentos legítimos do que os processos apenas internos a cada área de conhecimento.

A fim de justificar essa primazia da ética nos processos de legitimação do conhecimento, recorre-se a Gadamer e à articulação por ele feita entre compreensão, interpretação e aplicação. Por uma questão de foco de debate, não se irá percorrer toda a estrutura hermenêutica dessa tríade, mas serão abordados, pontualmente, alguns elementos que permitam explicitar a referida primazia. Gadamer, em seu Verdade e método, desvincula a verdade da epistemologia, pois não considera que o rigor do método seja suficiente para fazer resultar um conhecimento seguro (refutação da objetividade) e nem reconhece qualquer fundamento metafísico garantidor de universalidade dos conhecimentos (refutação da subjetividade). Até aqui, temos uma posição similar a de Rorty. A posição hermenêutica segue na direção de que toda a compreensão é histórica e se legitima de modo intersubjetivo com a estrutura estética do jogo. Assim como um jogo só existe como acontecimento histórico, e sua realização não está em cada um dos jogadores participantes, mas no próprio jogo que se realiza (GADAMER, 2004, p. 158; 160; 163-164), também a compreensão é um acontecimento em que as relações estabelecidas se destacam sobre cada uma das individualidades constituintes. O que chamamos de verdadeiro, então, nem é o resultado de qualquer constatação objetiva, nem é o entendimento que a consciência elabora do mundo. A compreensão dá-se de outro modo: como equacionamento que ocorre nos processos relacionais estabelecidos.

Gadamer apresenta a compreensão - dimensão intersubjetiva - ao lado da interpretação - dimensão subjetiva - e da aplicação - dimensão ontológica. É com essa tríade compreensiva que o autor retira o debate sobre a verdade de sua posição tradicional na epistemologia e o desloca para a filosofia prática. Poder reconhecer algo como verdadeiro agora tem a dimensão do discernimento e não da constatação ou descoberta. Para isso Gadamer recorre à phronesis aristotélica e toma dela a estrutura da filosofia prática como modo de justificar a compreensão. (GADAMER, 2004, p. 411ss.). É próprio da sabedoria prática saber tomar decisões em face daquilo que não está inteiramente determinado e sobre o qual não se tem garantias dos seus resultados. E o que ocorre em relação ao conhecimento não é distinto: afirmar algo como verdadeiro implica decidir sobre sua veracidade. Assumir um conhecimento como verdadeiro ou legítimo, portanto, tem a estrutura que é própria do agir humano: a escolha deliberada tem muito mais relação com a maturidade desenvolvida por aquele que decide perante o inusitado, do que com um conjunto de procedimentos preestabelecidos para cenários previstos. E, assim como nos debates éticos distingue-se a ação resultante de escolha feita com sabedoria da ação que decorre de escolha intempestiva, também, no plano do conhecimento, ambas as possibilidades se apresentam.

Com isso se chega, a partir da hermenêutica gadameriana, à ideia de que toda a compreensão tem um caráter deliberativo, e os conhecimentos irão mostrar-se mais ou menos legítimos (ou verdadeiros) conforme o discernimento presente no jogo compreensivo das comunidades investigativas que os produzem historicamente. Esses elementos permitem perceber que processos compreensivos, resultantes de conversações mais amplas, com maior disposição de escuta aberta ao diferente, terão maior potencial de construir conhecimentos mais legítimos. Por conseguinte, os processos que não resultam dessas experiências oferecem conhecimentos com menor legitimidade.

Tal jogo compreensivo acontece como diálogo a partir da abertura. Esse diálogo não é metodológico. Ou seja, não é um meio para que se chegue a um fim pretendido, e sequer pode ser administrado. É, ele mesmo - o diálogo -, acontecimento compreensivo sempre original. Assim, a abertura que predispõe ao diálogo está em admitir a possibilidade de que o outro participante da conversação tem algo importante a dizer e que pode estar certo, mesmo quando sua posição for distinta. Isso conduz a uma concepção intersubjetiva de compreensão em que a conversação é maior do que a soma das individualidades de seus participantes. A conversação, como diálogo, é possível quando há abertura suficiente para que o outro esteja fortalecido. Afirma Gadamer (2007, p. 23): “O fortalecimento do outro contra mim mesmo descortina para mim pela primeira vez a possibilidade propriamente dita da compreensão”.

Pois bem, é nessa concepção hermenêutica acerca da compreensão - que se sustenta na possibilidade de conhecimentos legítimos numa estrutura própria da filosofia prática, e que assume o diálogo como condição de justificação - que se quer conduzir aos desdobramentos finais sobre a primazia da ética para a interdisciplinaridade. Vale ressaltar que esse argumento que se está aqui construindo é condicional e não absoluto. Se o conhecimento próprio das disciplinas for assumido como objetivo ou sustentado sob bases metafísico-subjetivas, então a interdisciplinaridade ocorre apenas como uma possibilidade, dentre outras, para operar com os saberes envolvidos; e, inclusive, poderá ser conveniente adequar as ações interdisciplinares a metodologias e procedimentos. Porém, se o conhecimento precisar legitimar-se intersubjetivamente como compreensão resultante de deliberações históricas, então os modos de produção desse conhecimento, que tiverem maior expressividade de abertura ao diálogo, ocuparão posição privilegiada. Ora, a interdisciplinaridade pensada a partir de bases éticas em detrimento de bases metodológicas mostra-se como experiência compreensiva com ampla possibilidade dialógica. E as disciplinas, quando confrontadas umas com as outras, têm maior potencial de experiência compreensiva, do que quando mantidas preservadas desse enfrentamento.

Considerações finais

O que se está propondo neste artigo assume uma perspectiva que vai além das abordagens mais recorrentes sobre interdisciplinaridade. Nesse sentido, convida-se o leitor a refletir sobre o possível alcance do argumento da primazia da ética sobre a epistemologia, na concepção de interdisciplinaridade. Entende-se que esse argumento posiciona o tema numa perspectiva distinta daquela habitualmente tomada e muda os critérios de elaboração do conceito e a condução dos debates que daí se seguem. No entanto, esse deslocamento proposto não tem pretensões de suplantar os debates já existentes. É muito importante explicitar que se trata muito mais de uma proposição de ampliação do debate sobre a interdisciplinaridade do que qualquer movimento de suplantação de uma concepção por outra. Mas, claro, o artigo ousa propor um movimento de deslocamento do foco do debate. De acordo com os referenciais mencionados, esse deslocamento é aquele proposto por Gadamer quando de sua abordagem acerca da compreensão. Trazê-lo, portanto, para esse debate não é propor uma posição inédita, mas aplicar (observando-se o modo próprio como a hermenêutica filosófica vale-se da ideia de aplicação) à interdisciplinaridade o que já foi desenvolvido numa perspectiva de razoável convergência ao que aqui se propõe.

Ora, o que se buscou trazer ao leitor, ao longo do texto, foi demonstrar a relevância da reflexão ética para os debates sobre interdisciplinaridade e, estendendo mais o argumento, demonstrar bases que justifiquem a primazia da ética nesse contexto. Isso posto, cabe explicitar que o artigo tem muito mais a pretensão de proposição de uma abordagem ao debate do que de comprovação de uma tese. E, além de não pretender encerrar o tema no artigo, também cabe enfatizar que, em coerência com o que vem sendo exposto sobre a dimensão ética, assume-se a argumentação proposta como aberta ao diálogo e passível de ser contestada por qualquer dos leitores que venha, assim, a considerar oportuno. Portanto, eis aqui um texto cuja argumentação já supõe a abertura ao contraditório.

Ainda que se opere nesse plano de abertura, sabe-se do compromisso em apresentar ao leitor algum termo de fechamento à argumentação. Seguese, pois, nessa direção. Como dito nos parágrafos anteriores, grande parte dos debates sobre interdisciplinaridade ocorrem no plano epistemológico e alguns (ou até muitos) ficam ainda num enfoque bem mais limitado, apenas se ocupando de aspectos procedimentais. Nesse campo epistemológico, a reflexão interdisciplinar já avançou bastante e alcançou expressivos esclarecimentos, assim como também encontrou significativas limitações que precisam ser compreendidas sob outros modos de interpretação, que não só pela via epistemológica. Para além do debate mais explorado até então, é que se propôs refletir sobre a interdisciplinaridade a partir de um plano ético. E a suspeita que se quer enfatizar é a de que a dimensão ética da interdisciplinaridade tem ficado por demais relegada a um plano secundário ou mesmo ausente dos debates.

De outro modo, compreender a interdisciplinaridade, a partir de sua dimensão ética, permite às comunidades de investigação e aos estabelecimentos de ensino experimentarem o alcance solidário que se manifesta num modo aberto e dialógico de lidar com as interfaces das disciplinas. O afastamento - aqui pontuado a partir de Rorty - das perspectivas objetivistas e metafísicas do conhecimento, e a aproximação - aqui trazida a partir de Gadamer - de uma concepção deliberativa acerca da compreensão, possibilitam pensar a interdisciplinaridade como acontecimento histórico entre pesquisadores, educadores e agentes de diferentes esferas da sociedade, que se efetiva de modo solidário a partir do que uma conversação marcada pela abertura ao outro possa produzir.

Considerando-se o percurso argumentativo aqui analisado, afirmar a primazia da ética sobre a epistemologia nas reflexões sobre a interdisciplinaridade, que não é uma abordagem recorrente nos debates sobre o tema, tem um alcance mais amplo do que apenas lançar uma nova tendência teórica. Não se trata, portanto, de outra possibilidade metodológica ou procedimental, tal como se poderia falar de distintos modos de interdisciplinaridade. Trata-se, sim, de uma reivindicação ética sobre o que se considera mais honesto nas relações com o conhecimento: Diante da ausência de fundamentos objetivos ou metafísicos que sustentem os conhecimentos das disciplinas, a estrutura deliberativa da filosofia prática passa a apresentar-se como via factível de legitimação dos saberes. Não se quer, portanto, substituir um fundamento por outro. O argumento é bem menos pretensioso: admite-se a impossibilidade de se operar com qualquer fundamento e, por isso, propõe-se um modo razoável de buscar legitimidade pela via dialógica. Essa via coloca a abertura ao diálogo como o espectro mais amplo possível a que se possa chegar e, portanto, indica que a conversação também entre as disciplinas faz-se imperativa para que se minimizem os limites do conhecimento humano. Assim é que se entende a ética como exigência ao conhecimento interdisciplinar.

Referências

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Recebido: 04 de Outubro de 2019; Aceito: 13 de Novembro de 2019

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