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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.24  Caxias do Sul  2019  Epub 31-Jul-2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v24.e019035 

ARTIGOS

A “ação educativa” em Hannah Arendt*

The “educational action” on Hannah Arendt

** Doutor em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Professor no Departamento de Teoria e Fundamentos da Educação da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e no Mestrado Profissional em Filosofia, núcleo UFMT. E-mail: cleripetry@hotmail.com


Resumo

No presente artigo apresento uma reflexão acerca do conceito de ação e sua repercussão para a educação escolar, a partir de Hannah Arendt. Considerando a distinção arendtiana entre fabricação, labor e ação, argumento que uma das atividades específicas da escola é a ação educacional, no sentido de que alunos e professores atuam quando aparecem e se relacionam mediados pelos conteúdos e respondendo aos desafios que representam o mundo. Ademais, se a tarefa da educação é, em Arendt, introduzir as novas gerações no mundo, essa introdução se dá, preferencialmente, pela ação. Mas, no que tange aos alunos, a ação não é no sentido político, visto que eles estão em processo de formação e não são responsáveis pelas consequências de seus atos e pelo mundo. Por isso, o cuidado, a proteção, a responsabilidade e a autoridade do adulto são fundamentais para compreender a escola e a educação, bem como a especificidade da ação na escola.

Palavras-chave: Educação; Mundo; Ação educativa; Hannah Arendt

Resumen

En el presente texto hago una reflexión sobre el concepto de acción y su repercusión para la educación escolar a partir de Hannah Arendt. Considerando la distinción arendtiana entre fabricación, labor y acción, argumento que una de las actividades específicas de la escuela es la acción educacional, en el sentido de que los alumnos y profesores actúan cuando aparecen y se relacionan mediados por los contenidos y contestando a los desafíos que presenta el mundo. Además, se la tarea de la educación es, en Arendt, introducir las nuevas generaciones en el mundo, esa introducción ocurre preferencialmente por la acción. Pero, en relación a los alumnos, la acción no lo es en el sentido político, pues ellos están en proceso de formación y no son responsables por las consecuencias de sus actos y por el mundo. Por eso, el cuidado, la protección, la responsabilidad y la autoridad del adulto son fundamentales para comprender la escuela y la educación, así como la especificidad de la acción en la escuela.

Palabras llave: Educación; Mundo; Acción educativa; Hannah Arendt

Abstract

In the present article I introduce a reflection about the concept of action and its repercussion towards scholar education, based on Hannah Arendt. Considering the distinction, for Arendt, between fabrication, labor and action, I defend that one of the specific activities of the school is the educational action, in the sense that the students and teachers take action when they appear and relate among themselves mediated by the subjects and thus answering the challenges that represent the world. Furthermore, if the task of education is, regarding Arendt, to introduce new generations in the world, this introduction is done preferably by the action. However, in reference to the students, the action is not in the political sense, since that they are in formation process and, thus, are not responsible for the consequences of their acts, neither for the world. Therefore, the care, the protection, the responsibility and the authority of the adult are fundamental towards understanding the school and the education, as well as the specificity of action in the school.

Keywords: Education; World; Educative action; Hannah Arendt

1 Introdução

Hannah Arendt é uma pensadora original, cuja teoria política apresenta elementos fundamentais para se pensar a política e o mundo (no que diz respeito aos aspectos instituídos e construídos pelos homens e tornados públicos e de acesso comum). Embora não tenha sido uma educadora no sentido profissional (ARENDT, 2007, p. 222), suas reflexões sobre educação, em geral, e sobre a escola, em particular, nos servem de guia para pensar o que estamos fazendo (se é que é preciso fazer algo) na escola.

O principal conceito que vincula política e educação é natalidade que pressupõe a entrada de novos seres humanos no mundo, já existente, constituído e construído, capazes de iniciar, começar, em suma, de agir. Nesse sentido, é imperioso investigar sobre a possibilidade de se atuar na escola, mesmo que o conceito de ação seja privilegiadamente político, muito embora política e educação não se excluam. Partindo da afirmação arendtiana de que “em educação lidamos sempre com pessoas que não podem ainda ser admitidas na política e na igualdade, por estarem sendo preparadas para elas” (ARENDT, 2007, p. 160), tende-se a excluir a capacidade de ação na educação e na escola, sob uma interpretação restrita de ação. A educação, em Arendt, tem um sentido público, porque possibilita a entrada de crianças e jovens no mundo, nas coisas e em assuntos humanos. Assim, como introduzi-los no mundo? Qual é a atividade específica do escolar? Arendt não chegou a elucidar essas questões. Delas apenas temos registros sobre o que não se deve fazer na escola. O que proponho é pensar o escolar a partir do conceito de ação, visto que, na escola, não pode haver preponderância da fabricação, com sua lógica instrumental (criticada por Arendt no início de “A crise na educação”), muito menos do labor, pois a educação é um fenômeno do mundo e não da vida.

Portanto, distinguirei a ação política (ou ação em termos especificamente políticos, restritos aos adultos e ao âmbito público) da ação educativa realizada por alunos e professores a partir de condições distintas (como, por exemplo, o ideal ético de responsabilidade e autoridade que não deve ser negado ou evitado pelos adultos).

Tal interpretação não está explicitada em Arendt como mencionei. Porém, está inscrito no espírito de pensar da autora, isto é, (a) no seu esforço por compreender o mundo e teorizar sobre a política; (b) na elucidação das especificidades de diversos âmbitos da experiência humana; e (c) no evitar a fusão das esferas de atuação num todo indiscernível. As reflexões que seguem respeitam esses indicadores.

Ademais, a leitura que apresento, neste artigo, não é a tradicional, a corrente ou a consensual para os intérpretes de Arendt. No que se trata deste artigo, penso com e a partir de Hannah Arendt, considerando o problema da atuação dos atores na escola, tomando por base as distinções conceituais da autora em A condição humana. Numa pesquisa, como a que agora se torna pública, cabe ao investigador assumir, em seus ombros, o “fardo da plausibilidade”. (SENNETT, 2014, p. 72). Assim, a busca pela coerência e consistência é dever do pesquisador qualitativo, especialmente, em se tratando de Filosofia da Educação. Não realizo, portanto, a reescritura de Arendt acerca do que fora pensado sobre o fenômeno educativo, mas almejo ir além, explorando as potencialidades (e limites) de suas distinções para aprofundar a ideia de que a escola tem uma especificidade, e essa articula o tempo livre, o tempo presente e a ação educativa, conceitos que permanecem no e vão além do espírito arendtiano.

Portanto, a relação que estabeleço com Hannah Arendt é a de considerar seus estudos, pensamentos e problemas para pensar os meus, pois

não leio os escritores que leio para tomá-los de autoridade, mas para que com seu pensamento me ajudem a pensar [...]. Não sou nenhum advogado que vou buscar nas obras dos grandes pensadores sentenças de nenhum tribunal supremo. E se cito seus pensamentos é para que me ajudem no meu, e ajudem no seu aos meus leitores. (UNAMUNO, 1998, p. 23).1

José Sérgio Fonseca de Carvalho (2017, p. 89), em uma obra publicada recentemente, serve-me de paradigma desse tipo de leitura. Em seu livro Educação uma herança sem testamento, o conceito de ação, repercutido na reflexão sobre a relação entre liberdade e ação, é apenas um atributo da vida pública, ou se assemelha à ação, mas não se confunde com ela (2017, p. 105) - embora aqui restrinja a similaridade apenas à atuação do professor. Ao mesmo tempo, o autor esclarece que a educação não se confunde com a fabricação (2017, p. 105) nem com o labor, visto que se trata de pensar a educação com os problemas de uma sociedade de consumidores, vinculada a necessidades econômicas. (2017, p. 10). Assim, se a educação não diz respeito à fabricação ou ao labor, qual é a atividade que lhe diz respeito? Para Carvalho (2017, p. 106) “o estatuto do ato docente [...] ocupa um lugar híbrido ou intermediário na classificação das atividades humanas proposta por Arendt” o que não esclarece muita coisa.

Na primeira parte do artigo (i) apresento uma reflexão sobre o conceito de ação em Hannah Arendt, buscando compreender sua relação com o mundo e com a educação. Na sequência (ii), enfrento o problema sobre o potencial educativo da ação ou como entender a ação no contexto educativo, especificamente escolar, tomando como referência o conceito de ação educativa e a relevância desse para compreender a educação no marco interpretativo da vita activa.

2 A ação na escola e sua relação com o mundo

Arendt concebe que a ação e o discurso permitem a revelação do agente que atua com os outros em condições de igualdade. Isso é possível, pois a ação diz respeito à condição humana da pluralidade, que tem um duplo caráter de igualdade e de distinção: “Se os homens não fossem iguais, não poderiam entender-se nem planejar e prever para o futuro as necessidades que chegarão depois”. (ARENDT, 2005, p. 205). Por outro lado, “se os homens não fossem distintos, quer dizer, cada ser humano diferenciado de qualquer outro que exista, existiu ou existirá, não necessitariam o discurso nem a ação para entender-se” argumenta Arendt (p. 205). Cada ser humano é único e irrepetível. Os homens não são só exemplares de uma espécie, entretanto, quando laboram, passam a ser mais um, qualquer um ou ninguém. Apesar de a modernidade ter permitido que o animal laborans entrasse na esfera pública e fosse visto, ele não é singular, mas comparte com todos as necessidades imperiosas da vida e de sua manutenção. Aqui poderia introduzir uma distinção muito importante entre igualdade e igualização. A primeira pode tanto ser um atributo do espaço quanto dos indivíduos. Os homens são iguais na medida em que são capazes de se entender e que são constituídos das mesmas faculdades. É essa a esperança que Arendt deposita nos homens no final de seu longo e instigante estudo sobre o totalitarismo:

A solidão organizada [...] ameaça devastar o mundo que conhecemos - um mundo que em toda parte parece ter chegado ao fim - antes que um novo começo, surgindo desse fim, tenha tido tempo de firmar-se. [...] Mas sempre permanece também a verdade de que todo fim na história constitui necessariamente um novo começo; esse começo é a promessa, a única ‘mensagem’ que o fim pode produzir. [...] Initium ut esset homo creatus est - ‘o homem foi criado para que houvesse um início’, disse Agostinho. Cada novo nascimento garante esse novo começo; ele é, na verdade, cada um de nós. (ARENDT, 2011, p. 531, grifos da autora).

Numa perspectiva, podemos pensar que a escola possa estimular a formação de uma solidão organizada, em que as pessoas não estão em contato com outras pessoas, mas com números, com uma massa de indivíduos indivisíveis num todo homogêneo. A solidão, como argumenta Arendt, não é estar só. Estar só é estar desacompanhado. A solidão é a sensação daqueles que estão sós em meio à multidão, completamente abandonados de toda companhia humana. É a sensação daqueles que compartem todo o seu dia com outras pessoas, mas em relações semelhantes a uma superficialidade degradante, porque não têm tempo para aprofundar e se relacionar de maneira mais profunda ou, em termos arendtianos, de aparecer. As pessoas estão num grupo, fazem coisas, estão dispostas temporal e espacialmente de maneira que não há tempo para cultivar relações mais profundas, “ficando na superfície das coisas; a superficialidade partilhada mantém as pessoas juntas evitando questões difíceis, divisas, pessoais”, argumenta Sennett em relação ao novo capitalismo. (2009, p. 129).

Por isso, a solidão ameaça devastar o mundo que conhecemos. A solidão organizada tem intencionalidade. Não é fruto de uma estrutura social. Ela é estimulada na medida em que desestimula, isto é, não facilita as condições de possibilidade dos encontros, das trocas, das respostas e das perguntas que fogem ao padrão estabelecido de comportamento. A solidão se organiza quando se buscam atitudes esperadas dos indivíduos, pois esses aprenderam a adaptar-se. Mesmo a sede de novidade de nossa sociedade nada tem a ver com a possibilidade de que um indivíduo apareça como quem, pois a novidade não surge dele e de sua ação: é externa e mobilizada para atender aos anseios sempre cambiantes, embora cíclicos, da indústria de massa. Ao buscar compreender o espírito das revoluções modernas, Arendt atenta que

é certo que existem muitos para quem a sede de novidade, combinada com a convicção de que esta é desejável em si mesma, constitui uma das características principais do mundo em que vivemos e é também muito corrente identificar este estado de espírito da sociedade moderna com um pretendido espírito revolucionário. Entretanto, se entendemos por espírito revolucionário o que realmente brotou da revolução, então é necessário distingui-lo cuidadosamente desse desejo moderno pela novidade a qualquer preço. (2013, p. 64).

Arendt (2007, p. 225) deixa claro que o espírito revolucionário nada tem a ver com a ansiedade pelo novo, expressada também em seu escrito sobre a educação, na modalidade de um pathos do novo. A indústria de massas perverteu o fator político e humanamente relevante da novidade, transformando-a em elemento imprescindível para o aumento do acúmulo e da descartabilidade de produtos, condutas e pessoas. Diferentemente da sociedade, o significado das revoluções modernas, em especial da americana, foi a liberdade. E destaco: Arendt se pergunta sobre o significado e não sobre a função das revoluções. Isso ocorre porque a liberdade não é um produto, como a paz poderia ser para a guerra ou, por exemplo, na teoria hobbesiana, o fim da sociedade civil e da constituição do Estado. Ademais, Arendt (2007, p. 196) atenta que para Hobbes a liberdade conquistada (ou a que resulta do contrato) não significa mais que a liberação do medo. Não é o medo que conduz às revoluções modernas. O medo se refere a um estado em que a sobrevivência está em perigo, seja de morte, de doença ou de carência. O que os cidadãos hobbesianos conquistam não é a liberdade, mas a liberação. A liberação foi o problema da Revolução Francesa por meio da questão social, ou seja, a existência de pobreza e miséria e o imperativo irresoluto da necessidade.

Em Arendt, a ação está relacionada com a possibilidade de milagre, ou seja, “o fato de que o homem seja capaz de ação significa que cabe esperar-se dele o inesperado, que é capaz de realizar o que é infinitamente improvável”. (ARENDT, 2005, p. 207). Por isso, a escola teme a ação, porque não há controle dos resultados quando se atua. Ninguém é produtor ou autor da história da própria vida, pois a ação adentra numa teia de relações em que há mais agentes atuando, iniciando, começando. Segundo Biesta (2013, p. 114), “sempre começamos nossos inícios [...] num mundo povoado por outros iniciadores”. A escola da produção, nesse sentido, é alimentada por uma ilusão: a de que podemos fazer dos assuntos humanos o que fazemos ao fabricar um objeto, fazer homens melhores ou piores. É, para Arendt (2005, p. 216), “a utópica esperança de que cabe tratar aos homens como se trata a outro ‘material’”. Por isso, os assuntos humanos sempre estão envoltos em uma fragilidade, isto é, tanto em relação às possibilidades de previsibilidade dos resultados quanto às tentativas de “domar” as possibilidades de aparecimento de milagres. Não é demasiado recordar que “as ideologias nunca estão interessadas no milagre do ser” (ARENDT, 2011, p. 521), e a tentativa do totalitarismo foi impedir a capacidade de agir, para, assim, controlar com totalidade a existência.

Franz Kafka ilustra muito bem essa ideia pensando especificamente no contexto de um trabalho burocrático:

Voltamos ao animal. É muito mais simples que a existência humana. Bem abrigados em meio ao rebanho, andamos nas ruas das cidades, para irmos juntos ao trabalho, às manjedouras, aos prazeres. É uma vida precisamente delimitada, como no escritório. Não há mais milagres, só há modos de emprego, formulários e regulamentos. Tememos a liberdade e a responsabilidade. Por isso preferimos sufocar atrás das grades que nós mesmos fabricamos. (ApudJANOUCH, 2008, p. 23-24).

Não é à toa que uma vida assim é morta, sem ação. Apenas trabalho, formulários, regulamentos, consumo: negação da liberdade por medo da responsabilidade. No caso da escola, negação da liberdade por medo da imprevisibilidade da ação tanto dos professores como dos alunos. Não há como ser sujeito num contexto em que o que se deve estudar, muitas vezes. é definido sem a participação dos professores, muito menos que os conteúdos sejam trabalhados, isto é, sem a possibilidade da ação ou do pensamento. Nesse tipo de escola, não há mais milagres, só produção, grades que os seres humanos fabricaram para se autossufocarem como seres que vêm ao mundo, aparecendo como singulares. Segundo Bárcena (2006, p. 186), “o que somos não é resultado de uma ontologia, nem de uma metafísica, mas de uma narração e de uma luta”. Para haver uma narrativa, é necessário um espaço, nesse caso, a escola, e a possibilidade de ação, porque é a ação e o discurso que respondem à pergunta sobre quem somos e não sobre o que somos. Toda identidade é resultado de uma narrativa que inicia com os homens, mas que só se consolida na medida em que eles agem.

O discurso é fundamental para a ação. Ele também, em certo sentido, é ação. Na escola implica que os alunos possam falar e ser ouvidos, assim como ouvir os outros. A revelação de quem somos depende da visibilidade dos demais e da ação em conjunto com eles. A ação refere-se à condição humana da pluralidade, entretanto, “os membros de uma espécie podem viver no plural, mas não são plurais, isto é, embora diferentes uns dos outros, não são singulares e, sobretudo, não agem por conta própria, mas apenas ‘seguem’ as leis da natureza ou deixam que essas leis se realizem neles”. (ALMEIDA, 2011, p. 105). Almeida se refere ao totalitarismo. Embora, penso, as escolas contemporâneas, ao eliminarem a possibilidade de que os alunos possam responder aos desafios dos conteúdos, dos professores e de seus colegas, impedem que eles sejam singulares, aprendam a aparecer e a possibilitar o aparecimento dos demais. Isso ocorre quando os estudantes podem se posicionar diante do mundo apresentado pelo professor, estabelecendo relações mútuas, dirigindo-se aos outros que também estão envolvidos. (2011, p. 109).

Introduzi o tema da ação e sua relação com a escola a partir da retomada, por Arendt, da ideia agostiniana de início (initium). O homem é um iniciador, assim como um início. Nos relatos bíblicos, o começo do mundo é denominado como principium, e o começo dos homens como initium: “não somente criaturas viventes, mas seres humanos. E santo Agostinho indica que ‘nesse começo foi criado o homem antes do qual ninguém havia’. É mais, o homem foi criado no tempo”. (ARENDT, 2009, p. 81). Enquanto existirem homens, existirá a possibilidade de renovação do mundo, da novidade e da liberdade. Os seres humanos são únicos, porque são capazes de romper com o ciclo de sua vida, com a História, e introduzir a novidade no mundo. Podem começar algo novo e inesperado. A criação do homem como começo e como começador no mundo e, por consequência, no tempo, evitou que o tempo e o Universo “criado como um todo girasse eternamente em círculo sobre si mesmo, sem propósito e sem que nada de novo acontecesse nunca”, argumenta Arendt (2009, p. 82). Por isso, os homens são, também, novos no conjunto do mundo criado: é por essa novidade (novitas) que foi criado o homem. Para Carvalho (2017, p. 4) “cada ser novo no mundo é um novo alguém distinto de todos aqueles que nele estiveram antes ou que o sucederão na continuidade desse mundo”.

Todas as atividades humanas - labor, fabricação/obra e ação - estão relacionadas com as condições mais gerais do nascimento e da morte, da natalidade e da mortalidade. Para Arendt essas atividades estão enraizadas na natalidade, pois garantem o surgimento de novos no mundo, seja preservando sua vida ou garantindo a existência de um mundo especificamente humano. Entretanto, é a ação que está mais estreitamente vinculada à condição humana da natalidade, ou seja, o fato de que nascemos no mundo e para o mundo e a ação como um início corresponde ao nascimento, “já que a cada nascimento algo ‘unicamente novo’ vem ao mundo”. (BIESTA, 2013, p. 111). Cada nascimento é uma oportunidade para a novidade (novitas) aparecer no mundo. Os novos garantem a possibilidade de um novo começo que é

inerente ao nascimento e se deixa sentir no mundo somente porque o recém-chegado possui a capacidade de começar algo novo, quer dizer, de atuar. Neste sentido de iniciativa, um elemento de ação, e portanto de natalidade, é inerente a todas as atividades humanas. (ARENDT, 2005, p. 36).

A natalidade é uma categoria central do pensamento de Arendt e, como tal, da política e da educação. Penso que tanto a política quanto a esfera pré-política da educação são fundadas na natalidade. Os novos entram em um mundo mais velho que eles mesmos e que continuará a existir independentemente de sua sorte. Segundo Bárcena (2006, p. 181, grifo do autor), “ao entrar no mundo, saímos de algo e entramos em algo. Entrar no mundo é começar e todo começo é, então, saída: saída do estado de ausência”. De fato, se entramos em algo é porque saímos de algo, a ausência, a não existência. Só o mundo pode garantir que existamos, porque são os outros que garantem nossa existência e visibilidade, assim como nós garantimos a existência do outro e, também, das coisas do mundo. As crianças e jovens são como recém-chegados e desconhecem o mundo, suas possibilidades, estrutura e teias de relações já existentes.

Para Arendt, esse é o principal motivo pelo qual a essência da educação é a natalidade. (2007, p. 223). Por isso, a educação, como argumentei, precisa ser conservativa, isto é, conservar a novidade (novitas) inerente a cada ser humano, nos novos iniciadores e nos novos em relação ao mundo. Contudo, ser conservativa não significa ser conservadora, muito menos adaptadora. A escola e a educação não dizem respeito, apenas, ao comportamento. O comportamento é fundamental porque implica o respeito às regras, normas, estatutos, leis, etc. já existentes no mundo humano. Todavia, a escola não se resume a isso. Ela não é uma instituição em que colocamos as crianças e os jovens para que sejam adestrados: educação não é treinamento.

Assim, creio que a ação é uma atividade central para garantir a especificidade da escola e a esperança na renovação do mundo. Segundo Almeida (2011, p. 92), “a nossa esperança é que, por serem potenciais iniciadores, possam futuramente transformar o mundo e talvez criar novos espaços de interação e formas inéditas de convivência”. A especificidade do escolar reside no fato de que o homem nasce, não se fabrica. Nasce no mundo e quando Arendt sentencia que a escola é a instituição que interpomos entre o lar (a família) e o mundo, é porque somente a escola pode e deve fazê-lo. Nem a família é responsável por essa transição, porque está ocupada com as necessidades da vida, nem a política, pois se trata de uma esfera de assuntos humanos reservados aos adultos. Nas palavras da autora, “em educação lidamos sempre com pessoas que não podem ainda ser admitidas na política e na igualdade, por estarem sendo preparadas para ela”. (ARENDT, 2007, p. 160).

A educação tem a ver com a relação entre gerações, entre os novos e os velhos, isto é, os recém-chegados e os que já estão no mundo. É interessante essa insistência de Arendt, ainda mais num contexto que é pautado pela necessidade da novidade relacionada ao consumo e à descaracterização do velho ou do passado como retrógrado e sinal de atraso. É a responsabilidade dos habitantes do mundo e é a condição de possibilidade da autoridade. Quero, agora, refletir sobre a possibilidade de que os novos possam atuar na escola, ou seja, agir e como a preparação para a vida adulta e a transição para o mundo não são entendidos por Arendt como instrumentalização, isto é, a escola como um meio para atingir determinado fim - lógica do homo faber.

Bárcena destaca que a vinda ao mundo significa três coisas:

o nascimento é, em seu sentido mais forte, aparição, pois cada nascimento inaugura uma linha de vida própria, é pura novidade no mundo [...]. Em segundo lugar, a ação ressoa o eco de um começo, de uma vida disposta a começar e a iniciar o novo. Por último, o nascimento, como matriz de todas as ações, é a liberdade primeira que permite romper com o passado, introduzindo um princípio de descontinuidade no tempo do mundo e da história. (2006, p. 194).

Se o nascimento diz respeito à aparição, ao inédito e à liberdade, pareceme que à escola cabe não só preservá-los, mas garantir aos estudantes a possibilidade de agir em relação ao mundo e a si mesmos, pois se os novos nascem no mundo a escola não é a esfera do comportamento e da adaptação - atitudes esperadas pela sociedade. Ademais, se a escola se refere a uma instituição que recebe os novos para realizar uma transição, para preparálos para o mundo adulto, essas atividades não são produção, mas ação. A proteção da escola em relação às crianças e aos jovens é contrária à tentativa de mera adaptação ou a instrumentalização, pois preservar não é atrofiar ou negar a ação. É, por seu turno, a possibilidade de proteger a novidade (novitas) dos novos contra um mundo que exige responsabilidade e se instaura numa esfera de visibilidade. A educação tem a ver com ação, com proteção e com introdução dos novos no mundo. Esse é o sentido da educação,e não sua finalidade.

A finalidade está relacionada com a lógica do homo faber, ou seja, com a produção. O fim de um objeto é, necessariamente, um novo meio para outra finalidade. Ademais, na educação, lidamos com iniciadores, começadores, novos seres humanos em processo de formação tanto em relação a si mesmos como ao mundo.

Se, por seu turno, a escola é o espaço da ação, no que ele se difere da política? É possível pensar que Arendt planteou um conceito de ação mais amplo do que aquele reservado à esfera política? Ou o contrário: A ação, em sentido pleno, só seria possível na esfera política por ocorrer entre iguais e, pois, as relações serem horizontais? Na esfera da escola, ela seria possível, mas não em sentido pleno por pressupor uma hierarquia necessária.

Para Arendt, uma vida sem ação é uma vida morta para o mundo. A ação garante a constituição e sustentação do mundo. Inserimo-nos no mundo por meio da palavra e dos atos e “dita inserção não nos obriga à necessidade, como o faz o labor, nem nos impulsiona à utilidade, como é o caso da fabricação”. (ARENDT, 2005, p. 206). Atuar é tomar iniciativa, começar, pôr algo em movimento. A ação pode ser estimulada pelos outros, mas nunca é condicionada por eles. Por isso, a ação é livre. Pressupondo a interpretação de Santo Agostinho, à que aludimos, Arendt (2005, p. 207) observa que “o princípio da liberdade se criou ao criar-se o homem, não antes”.

Porém, afirmar que há ação na escola é problemático. Primeiro, porque Arendt não explicita a relação entre educação e ação nos termos que estou tratando. Em segundo lugar, isso legitima a leitura que se faz da autora como uma teórica da política, reservando, exclusivamente, a ação à esfera pública. Desse pressuposto se interpreta a educação nos termos de transmissão, preparação e preservação, fundada na autoridade e na responsabilidade do professor em relação ao mundo. Contudo, não se explicita qual é a especificidade (se há) das atividades escolares no marco de compreensão da vita activa. Schio nesse sentido, argumenta:

A educação autêntica [...] objetiva a cidadania. Ela busca preparar os indivíduos para a preocupação com o grupo, com o planeta, com a vida em comum. Ela exercita, assim, o raciocínio, o uso da linguagem falada e escrita, o convívio com os outros seres humanos como singularidades na pluralidade. Enfim, na educação, a ênfase direciona-se àqueles que adentrarão no mundo público, tratando do manejo da palavra e visando ao discurso, à persuasão, e ao consenso. (2006, p. 232).

De fato, a leitura de Arendt dá margem a uma compreensão nesses termos, pois sua preocupação era com o assédio de novas teorias e de métodos educacionais que invadiam a escola americana. Porém, Schio prioriza o aspecto da transmissão, sem esclarecer como ocorrerá essa educação que objetiva a cidadania. Por outro lado, acertadamente, recorre à distinção arendtiana entre educar e ensinar: a educação diz respeito a tornar o mundo familiar ao educando, e o ensino comporta os conteúdos do passado. O argumento centra-se na transmissão e na preservação do mundo e da novidade da criança. Mas educar, me parece, é uma atividade exclusiva do professor, e não do aluno, isto é, o primeiro educa o segundo. Qual é a atividade do estudante na escola? Ou não se trata de uma atividade, e sim, de passividade? Ademais, em que medida essa educação (que objetiva a cidadania) não é uma instrumentalização?

Schio, portanto, necessita esclarecer o que entende por esse objetivo e como ele se diferencia de outras propostas de educação para a cidadania e se é que se trata de uma novidade. Ressalto isso, pois, na escola fundada na lógica do homo faber, a educação é um meio para atingir um fim externo. Um modelo de cidadão guia a proposta pedagógica e a atuação dos professores, estabelecendo e administrando, de antemão, o futuro das crianças. Tais ideias estão na contramão do que pensa Arendt, na medida em que não temos o direito de administrar o futuro ou antecipar (e projetar!) nossas utopias nos recém-chegados. (BRAYNER, 2008, p. 55).

Consciente desses dilemas, Almeida (2011, p. 93) afirma que, apesar de a educação ter um compromisso com o mundo e que busque possibilitar uma futura participação nos assuntos públicos, não é o espaço da ação política. “Essa compreensão de educação”, comenta,

como uma esfera que não se confunde com o lugar propriamente político destoa da ideia bastante difundida de que uma educação preocupada com o mundo deve proporcionar aos alunos, no âmbito pedagógico, uma espécie de ensaio para a atuação política futura. (2011, p. 93).

Se analisarmos o argumento de Schio, parece ser a sua proposta, pois a escola exercitaria o convívio com outros seres humanos visando à cidadania. A escola não é um faz de conta em que os alunos teatralizam procedimentos democráticos. Ela “não é de modo algum o mundo e não deve fingir sê-lo”, sentencia Arendt (2007, p. 238). Então, tem sentido defender que, na escola, há espaço para a ação se ela não é o mundo, não é a política? Como introduzir os novos na vida adulta, das responsabilidades, da ação política num espaço de igualdade e liberdade sem cair na paradoxal instrumentalização para a ação?

Não se pode fingir que se age. Ou há ação na escola ou não há. Diante do argumentado, é evidente que, na escola, se labora ou que há uma lógica da instrumentalidade. Não há uma separação total das atividades, pois a escola é uma instituição de transição, e as formas puras das atividades da vita activa servem para pensar no que estamos fazendo. Ademais, as necessidades biológicas não ficam do “lado de fora” quando se entra na sala de aula. Por isso, as escolas são climatizadas, há espaço para descanso, brincadeira, alimentação, distração, etc.

3 A configuração escolar da ação

Em Arendt existe a possibilidade de pensarmos uma ação educativa - o que vai além dos limites e das condições que a autora teve para tratar do tema - própria do escolar, no sentido de que os professores compartilham o compromisso com a preservação do mundo comum. “Além disso, o âmbito escolar, assim como o espaço público, é o lugar da reunião, do estar-em-companhia”. (ALMEIDA, 2011, p. 94). Se os alunos estão em conjunto e tratam de um tema que lhes interessa (inter est), isto é, mediados pelo mundo (representado pelos conteúdos), não será a ação a atividade propícia para que as pessoas adentrem no mundo como novidade? Se acreditamos que as escolas são fundamentais para a vida republicana e a existência democrática, não será imprescindível que alunos e professores atuem? Ademais, Arendt explica que estamos perdendo o mundo e, nesse sentido, qual é a tarefa e a responsabilidade da educação?

São cada vez mais os habitantes dos países do mundo ocidental, que desde o declínio do mundo antigo considerou a liberdade em relação à política como uma das suas liberdades fundamentais, a exercer esta liberdade, retirando-se do mundo e de suas obrigações para com ele. Este alheamento do mundo não prejudica necessariamente o indivíduo; até pode permitir-lhe cultivar grandes talentos, elevando-o ao grau de gênio, e por esse desvio o tornando uma vez mais útil ao mundo. Mas com cada um desses alheamentos verifica-se uma perda quase palpável para o mundo; o que se perde é o espaço-entre particular e geralmente insubstituível que deveria ter-se criado entre esse indivíduo e os seus semelhantes. (ARENDT, 1991, p. 13).

Para Arendt (2005, p. 218) “o ato mais pequeno nas circunstâncias mais limitadas leva a semente da mesma ilimitação, já que um ato, e às vezes uma palavra, basta para mudar qualquer constelação”. A ação gera resultados que não podem ser previstos e são ilimitados na medida em que adentram numa teia de relações em que se relacionam com outros agentes e estes respondem às ações mutuamente, mesmo o ato mais pequeno e nas circunstâncias mais limitadas. Diferentemente da política, na escola as relações são hierárquicas, baseadas na responsabilidade dos adultos em relação ao mundo e às crianças. Além disso, os novos e suas novidades estão protegidos pelos muros da escola, isto é, dos olhares e da luz do mundo público, que não brilha com toda a intensidade nesse espaço de desenvolvimento, de educação e de aprendizado. Para Arendt (2007, p. 236) “o mundo não lhe pode dar atenção, e ela deve ser oculta e protegida do mundo”. Almeida (2011, p. 110), por seu turno, defende que “os alunos veem e ouvem os outros e são vistos e ouvidos, mas ainda não são totalmente responsáveis por seus atos e palavras e também não assumem responsabilidade pelo mundo comum, fora da escola”.

No início de A condição humana, a autora abre a possibilidade de se pensar a ação num sentido mais geral que a ação política, podendo repercutir na educação, quando alega que

o novo começo inerente ao nascimento se deixa sentir no mundo só porque o recém-chegado possui a capacidade de começar algo novo, quer dizer, de atuar. Nesse sentido de iniciativa, um elemento de ação, e portanto de natalidade, é inerente a todas as atividades humanas. (ARENDT, 2005, p. 36).

Arendt não se refere à escola, mas evidencia que a natalidade significa o nascimento de um novo ser humano capaz de atuar, de iniciar algo novo. Esse poder de começar é a esperança que o mundo deposita na chegada das novas gerações, em sua potencialidade de renovar, refundar e preservar o mundo e os corpos políticos. Se há um elemento de ação inerente em todas as atividades humanas, por que na educação isso seria distinto? Quer dizer, tem sentido negar a possibilidade de ação na escola? Ademais, se a educação tira o homem de sua condição meramente animal, a ação é uma atividade importante na escola, quiçá a mais fundamental:

Toda realidade humana que não conquista transcender a dimensão do natural adquire, em diversos contextos de sua obra [de Hannah Arendt], uma acepção negativa. Natureza é sinônimo de um incessante transcorrer que não permite que subsista a uma permanência a que poder dar um sentido. Arrastada pelo ciclo do nascimento e da morte, da geração e da corrupção, a natureza se converte no paradigma de uma ordem necessária em que a espontaneidade absoluta, em última instância, coincide com a liberdade, não logra encontrar expressão. (FORTI, 2001, p. 321).

Uma escola que nega a possibilidade de ação é uma escola sem sentido. Como introduzimos os novos no mundo? Arendt argumenta que nos inserimos no mundo com a palavra e a ação. (2005, p. 206). Se a tarefa da escola é realizar a transição entre a esfera privada do lar e o mundo comum, qual é a maneira mais coerente de fazê-lo senão pelo discurso e pela ação? Para Brayner (2008, p. 48) uma das dimensões seminais da educação é sua relação com a ação, entendida “como a constituição provisória de significados humanos para um mundo que partilhamos com outros homens”.

Ocorre na escola, portanto, a ação educativa, em que professores atuam em relação ao mundo quando, por exemplo, escolhem os conteúdos (a parte do mundo) que ensinarão aos alunos. O educador age “na medida em que inicia e interrompe processos, ele surge todos os dias de forma nova, como pessoa” (HERMENAU, 2005, p. 373) que está em evidência, que é vista e ouvida e, também, capaz de ver e ouvir os outros. Por outro lado, esse estar em evidência deve ser entendido de modo restrito, pois “ele não deve permitir ser reconhecido por seus alunos como um igual, faltalhe o espaço público específico”. (2005, p. 373). Por isso, venho insistindo em denominar a ação referente à educação como ação educativa, visto que o espaço da escola e o da sala de aula não são espaços públicos, embora as pessoas apareçam, se comuniquem e atuem considerando as indagações do mundo, dos professores e de seus colegas. Hermenau, nesse sentido, afirma que, na escola, há um espaço de aparência semipúblico, dada a desigualdade de responsabilidade, de idade e de relação com o espaço público e com a política - que eu denominaria, também, como espaço pré-político. Se a escola não é o espaço em que os alunos assumem a responsabilidade pelo mundo, é a educação um processo de progressiva assunção de responsabilidade. (CARVALHO, 2017, p. 24). Dada a imprevisibilidade da ação, Hermenau argumenta ainda em favor de uma ação educativa ou pedagógica:

Trata[se] de uma ação que deixa-se reconhecer no fato de que agir nunca se pode tratar de uma adaptação de um material permanente à disposição para a realização de um fim definido, mas sempre somente da valorização de um desenvolvimento e do aprimoramento dessa oportunidade por parte do educando. (2005, p. 370).

Na educação, lidamos com novos iniciadores, potenciais começadores, capazes de romper com a trama histórica, introduzindo o inédito e o imprevisível no mundo. Assim, educação não é fabricação. A cada conteúdo estudado caberá ao aluno a decisão de aprender aquilo ou não; de tomar como parâmetro para sua ação ou como meio para conhecer novas coisas, novos tesouros. Por isso, os adultos tentam “domar” a novidade de cada criança, ao estabelecer programas de estudo fechados, metodologias predefinidas e provas que provem que o professor trabalhou de acordo com o sistema de ensino, e que os alunos absorveram o necessário para passar de ano, de curso ou de disciplina. E o professor adquire uma profissão (com todas as exigências da lógica instrumental do homo faber): “Os professores foram/são transformados em funcionários civis, prestadores de serviços, empregados/trabalhadores e empresários e, nesse aspecto, tornamse ‘profissionais’ ocupando posições claras e inequívocas na ordem social”. (MASSCHELEIN; SIMONS, 2013, p. 136).

Os estudantes agem quando respondem às indagações dos conteúdos, buscando significados e sentidos inéditos. Não há mais uma tradição que indica os tesouros mais relevantes que devem ser preservados. Cabe aos professores e alunos a oportunidade de olhar o passado com os olhos desobstruídos de toda tradição. (ARENDT, 2007, p. 56). E esse olhar pode se revelar na possibilidade de descobrir tesouros inéditos, esquecidos ou de reler o passado de maneira nova que ilumine o presente e sirva de exemplaridade para a ação. Interagindo em comum, mediados pelo conteúdo, os alunos e professores criam uma teia de relações, com a peculiaridade de que o professor, “principal responsável pela tessitura da teia, traz para ela conteúdos, com os quais os alunos devem se familiarizar e em relação aos quais podem se posicionar”. (ALMEIDA, 2011, p. 109).

A escola que permite ação educativa deve levar a sério as crianças, suas indagações, afirmações, argumentos e sentimentos. Segundo Biesta,

as escolas que não mostram interesse pelo que os estudantes pensam ou sentem, onde não há espaço para os estudantes tomarem iniciativa, onde o currículo só é visto como matérias que precisam ser inseridas nas mentes e nos corpos dos estudantes, e onde nunca se leva em conta a questão do impacto dos inícios de uma pessoa sobre as oportunidades de os outros começarem, são claramente lugares onde é extremamente difícil agir e ser um sujeito democrático. (2013, p. 184, grifo do autor).

A democracia é uma forma de vida que se pratica no cotidiano e se aprende atuando. E se as escolas constituem e constroem espaços de atuação, em que os estudantes podem aparecer, ser vistos e ouvidos, certamente essa será a sustentação da esperança na renovação do mundo, embora a ação e a palavra devessem se referir ao mundo. Por exemplo, o professor escolhe parte do mundo que considera importante para ser apresentada aos novos. O adulto selecionou a parte do mundo mais significativa para si e deve explicitar os motivos dessa escolha e algumas das outras possibilidades que há. De certo modo, é um exemplo para que os alunos possam escolher a parte do mundo que mais lhes interessa, dando razões, comunicando suas escolhas e contribuindo para a descoberta de novos tesouros e sua respectiva preservação. Do mesmo modo, o mundo, na forma de conteúdos, é capaz de provocar re-ações dos estudantes, desde que o professor se interesse pelo que os estudantes pensam ou sentem, como argumenta Biesta. No fundo, os estudantes aprendem com o professor a escolher uma companhia.

Já mencionei a sentença de Arendt de que a escola deve ensinar como o mundo é (2007, p. 246), ou seja, inserir os estudantes na realidade, independentemente de quão dura possa ser. Somente assim, seremos capazes de assumir a responsabilidade pelo mundo, isto é, não fugir para uma interioridade ou uma proteção privada que tende a ser alienante. A autora está pensando no totalitarismo, nas condições da modernidade, nos “tempos sombrios” em que

foi particularmente forte a tentação, perante uma realidade aparentemente intolerável, de trocar o mundo e o seu espaço público por uma vida interior, ou então de ignorar pura e simplesmente esse mundo em proveito de um mundo imaginário “como deveria ser” ou como em tempos remotos havia sido. (ARENDT, 1991, p. 29).

Trata-se de compreender: uma atividade interminável que implica a reconciliação com a realidade, cujo resultado é o significado “que produzimos em nosso próprio processo de vida, à medida que tentamos nos reconciliar com o que fazemos e com o que sofremos”. (ARENDT, 1993, p. 40). A escola, nesse sentido, insere os estudantes na realidade do mundo quando permite que se dialogue sobre ele, se comparta diferentes pontos e vista e se forme uma opinião. Se essa intuição for correta, as relações pedagógicas mediadas pelo mundo e estabelecidas, também, pelo diálogo são relações de amizade, no sentido grego de que a amizade consistia no diálogo. (ARENDT, 1991, p. 35). Para Arendt (p. 36), “o mundo não é humano só por ser feito por seres humanos, e não se torna humano só por nele se fazer ouvir a voz humana, mas sim, e só, quando se torna objeto de diálogo”. É por meio do diálogo que humanizamos o mundo e o que se passa nele e em nós. O diálogo humaniza no sentido da humanitas romana, ou seja, torna os homens cidadãos porque compartem um mesmo espaço, uma mesma realidade e um mesmo mundo.

Considerações finais

A ação educacional é a alternativa para se pensar a especificidade da escola contra as investidas da família, da sociedade, do trabalho ou da política que visam a dominá-la, transformando-a em instrumento para a produção, independentemente da novidade que trazem consigo a nova geração que adentra ao mundo e é do mundo. Numa lógica instrumental ou nos ditames dos interesses econômicos, não há seres que se revelam ou que gradualmente assumem sua responsabilidade pelo mundo. A escola é o espaço do tempo livre, isto é, os estudantes e professores adentram o mundo experimentando a si mesmos e o mundo como novidade, estabelecendo sentidos e formas de relação inéditas. O professor “é alguém que se empolga e trabalha a sua atenção, concentração e dedicação, de modo que possa permanecer encarnado e inspirado na frente de sua classe” (MASSCHELEIN; SIMONS, 2013, p. 79), sem as preocupações com o futuro, no que diz respeito ao que os alunos farão ou aos exames. A escola não ensina para os exames. Os exames são formas de avaliar o aprendizado e o ensino, e não um fim em si mesmo ou um meio de coação.

Se a educação é um fenômeno do mundo, isto é, se diz respeito à inserção das novas gerações em coisas e assuntos públicos e comuns, tal inserção só ocorre por meio da ação (e do discurso), em que os estudantes, diante do mundo convertido em matéria, respondem às indagações e desafios dos conteúdos, dos colegas e dos professores, se posicionando e buscando um sentido. Ao entrar numa teia de relações tecida pelo professor, os atores educacionais, (professores e alunos) garantem a realidade do mundo e a sua própria aparecendo, na medida em que atuam e falam, revelando sua unicidade, seu quem. Se as crianças vêm ao mundo com a capacidade de começar, em suma, de agir, a escola não deve tolhê-las, mas criar as condições para a apropriação do mundo e para o “começar outra vez”, pois o mundo necessita, constantemente, ser renovado, reapropriado e, especialmente, protegido. Assim, a ação educativa não é contraditória ao fato de que, na escola, os adultos precisam proteger e cuidar das crianças e jovens, assumindo sua responsabilidade, como educadores, pelo mundo e pela formação dos novos. Diferentemente do espaço público/político em que cada um assume a responsabilidade dos resultados da ação e do cuidado pelo mundo, na escola as crianças e os jovens ainda não estão aptos para tal tarefa, pois estão se apropriando dessa herança sem testamento. Isso implica dizer que a relação pedagógica é geracional, os adultos educam as crianças e jovens; relação hierárquica baseada na autoridade, que se funda na responsabilidade.

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* Agradeço profundamente as leituras, as críticas, as sugestões e as intervenções do Professor Dr. Angelo Vitório Cenci (UPF/RS), o qual foi fundamental para meu processo formativo e a tessitura do presente artigo.

1Todas as traduções são de minha autoria.

Recebido: 12 de Dezembro de 2017; Aceito: 03 de Maio de 2019

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