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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.24  Caxias do Sul  2019  Epub 31-Jul-2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v24.e019037 

ARTIGOS

Uma breve análise arqueológica foucaultiana da escola integral

Breve análisis arqueológico foucaultiana de la escuela integral

Milton Luiz Torres* 
http://orcid.org/0000-0003-1158-4876

Aimê Heloína Cândido da Silva Santos** 
http://orcid.org/0000-0002-0533-9017

* Professor nos cursos de Letras e Tradutor e Intérprete do Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP-EC). Professor no Programa de Mestrado Profissional em Educação do Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP-EC). E-mail: miltntorres@gmail.com

**Mestre em Educação pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP-EC). E-mail: proaime@hotmail.com


Resumo

O presente estudo analisa a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, o Plano Nacional de Educação e o Programa “Mais Educação São Paulo”, especificamente as partes que tratam da política curricular da ampliação da jornada de aulas na rede pública de ensino de São Paulo, conhecida como escola integral.

Metodologia:

A análise se dá a partir da perspectiva arqueológica de Michel Foucault, sua terminologia e análise discursiva.

Objetivo:

O objetivo da pesquisa é valer-se da contribuição do filósofo e de sua analítica para a leitura crítica e ponderada de documentos educacionais oficiais. Os documentos foram analisados à luz dos pressupostos que alicerçam seus objetivos e concepções, mas principalmente sob a perspectiva da analítica arqueológica. A metodologia contemplou, portanto, a análise das regularidades (homogeneidades, continuidades e identidades), contradições (intrínsecas, extrínsecas e derivadas), comparações (isomorfismos, modelos, isótopos e correlações) e transformações (permanências, repetições e descontinuidades) dos três documentos fundantes da escola integral.

Resultados:

A leitura arqueológica de três documentos da escola integral revelou que a proposta é, de certa forma, totalizante, no sentido de que apresenta a escola integral como supostamente detentora de enorme poder de transformação social, política e educacional. Revelou, além disso, que a proposta tem características paliativas, no sentido de que a escola integral é apresentada como panaceia, quando, de fato, não parece funcionar efetivamente em todos os casos, circunstâncias e objetos, como os documentos presumem. Mostrou, ainda, que a proposta padece, entre outras coisas, de contradições intrínsecas, extrínsecas e derivadas. Finalmente, revelou que a proposta hierarquiza saberes e nem sempre tem aplicação prática e assume, às vezes, contornos demagógicos. O discurso da escola de tempo integral parece trair a ideia de que o tempo proporciona uma espécie de controle regimental sobre os outros. Fala-se de mais tempo na escola como se issto significasse, automaticamente, mais qualidade no ensino.

Conclusão:

Concluímos, portanto, que a proposta de escola em tempo integralesvazia a discussão de uma consideração mais atenta acerca da qualidade das políticas educacionais como um todo, especialmente as curriculares.-

Palavras-chave: Foucault; Arqueologia do saber; Políticas públicas; Escola integral

Resúmen

El presente estudio analiza la Ley de Directrices y Bases, el Plan Nacional de Educación y el Programa “Más Educación São Paulo”, específicamente las partes que tratan de la política curricular de la ampliación de la jornada de clases en la red pública de enseñanza de São Paulo, conocida como escola integral (escuela de tiempo completo).

Metodología:

El análisis se da a partir de la perspectiva arqueológica de Michel Foucault, su terminología y análisis discursivo.

Objetivo:

El objetivo de la investigación é valerse de la contribución del filósofo y de su analítica a la lectura crítica y ponderada de documentos educativos oficiales. Los documentos fueron analizados bajo la luz de los presupuestos que fundamentan sus objetivos y concepciones, peroprincipalmente bajo la perspectiva de la analítica arqueológica. La metodología contempló, por lo tanto, el análisis de las regularidades (homogeneidades, continuidades e identidades), contradicciones (intrínsecas, extrínsecas y derivadas), comparaciones (isomorfismos, modelos, isótopos y correlaciones) y transformaciones (permanencias, repeticiones y discontinuidades) de los tres documentos que fundamentan la escola integral.

Resultados:

La lectura arqueológica de tres documentos de la escola integral reveló que la propuesta es, en cierta forma, totalitaria, en el sentido de que presenta la escola integral como supuestamente detentora de enorme poder de transformación social, política y educativa. Se ha revelado, además, que la propuesta tiene características paliativas, en el sentido de que la escola integral es presentada como panacea, cuando, de hecho, no parece funcionar efectivamente en todos los casos, circunstancias y objetos, como los documentos presumen. También mostró que la propuesta padece, entre otras cosas, de contradicciones intrínsecas, extrínsecas y derivadas. Finalmente, reveló que la propuesta jerarquiza saberes, no siempre tiene aplicación práctica y asume, a veces, contornos demagógicos. El discurso de la escuela de tiempo completo parece traicionar la idea de que el tiempo proporciona una especie de control regimental sobre los demás. Se habla de más tiempo en la escuela como si esto significara automáticamente más calidad en la enseñanza.

Conclusión:

Concluimos, por lo tanto, que la propuesta de la escuela de tiempo completo desvía la discusión de una consideración más atenta a la calidad de las políticas educativas como un todo, especialmente las curriculares.

Palabras-llave: Foucault; Arqueología del saber; Políticas públicas; Escuela de tiempo completo

1 Introdução

O presente estudo analisa, sob o olhar arqueológico foucaultiano, a política pública curricular da escola integral, apresentada em três documentos oficiais: a Lei de Diretrizes e Bases (LDB), o Plano Nacional de Educação (PNE) e o Programa Mais Educação São Paulo (PMESP), que norteiam a distribuição de verbas públicas à educação, servindo de base para projetos de governo e sociedade, bem como fomentando a reflexão e o debate de especialistas da educação e de outras instituições sociais sobre a questão. (CAVALIERE, 2007, p. 1.025).

Há muitas décadas, o sistema educacional brasileiro é cenário de mudanças, avanços e, infelizmente, de retrocessos. A escola integral já foi, outras vezes, objeto de debate, pois é uma política pública curricular que permeia outras instâncias da sociedade e carrega consigo interesses de vários setores, modelos econômicos, políticos e sociais. O que deve ser pensado, porém, é: Para que serve e para quem essa política seria benéfica? Andrade (2016, p. 29) afirma que “o problema da escola pública tornou-se, essencialmente, um problema social”. Entretanto, considerando a complexidade da sociedade atual, essa afirmação não seria contraditória? Os problemas da escola pública não seriam resultado direto do tipo de sociedade que existe no presente? De acordo com Paro (1988, p. 15), a resposta para essas questões está no fato “de que as causas de todos os males econômicos e sociais que provocaram essas novas funções da escola estejam localizadas no nível social mais amplo, onde se dá a dominação de classes e a exploração do trabalho”.

2 Os documentos

A LDB (Lei n. 9.396/1996), art. 34, prevê que “a jornada escolar no Ensino Fundamental incluirá pelo menos quatro horas de trabalho efetivo em sala de aula, sendo progressivamente ampliado o período de permanência na escola”. (BRASIL, 1996, p. 11). No Estado de São Paulo, os alunos passam uma média de cinco horas na escola, que, comumente, transformamse em seis horas/aulas de 45 minutos. A lei não prevê que seja dobrado o número de horas, mas que haja uma ampliação dessas horas.

O PNE estabelece metas que visam à melhoria do campo educacional e à aplicação de leis anteriores que garantam os direitos dos cidadãos brasileiros por meio de uma educação de qualidade. O PNE (BRASIL, 2014, p. 6-7) revela qual deve ser a ampliação da jornada de aulas, a qual deve ocorrer de forma progressiva, com a reestruturação do padrão arquitetônico e mobiliário. Por isso, o documento cita quadras, bibliotecas, cozinhas e exige a formação de recursos humanos e a articulação com teatros, museus e parques públicos. Sugere, além disso, vínculo com entidades privadas e considera as comunidades quilombolas e indígenas. Finalmente, integra as pessoas com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação. A meta n. 6 desse plano prevê que se ofereça “educação em tempo integral em, no mínimo, 50% das escolas públicas, de forma a atender, pelo menos, a 25% dos estudantes da Educação Básica. (BRASIL, 2014, p. 6).

O FUNDEB, Lei n. 11.494/2007, garante recursos adicionais à escolas com esse tipo de matrícula diferenciada, medida legislativa que tem o objetivo de oferecer mais uma forma de cobrir os gastos com a implantação de escola integral. (ANDRADE, 2016, p. 26). Tais recursos financeiros se destinariam, ainda, ao custeio e à manutenção do quadro funcional de profissionais e de toda infraestrutura dentro e fora da escola.

O PMESP foi criado como braço de um programa federal estabelecido em 2007, o Programa “Mais Educação”. Isso se deu porque a Prefeitura paulistana pertencia ao mesmo partido político do governo federal. Essa articulação de planos de governo, além de aproximar os trâmites financiadores dos gastos públicos, envolveu outras áreas, como, por exemplo, o Programa “Bolsa-Família”, programa de transferência direta de renda, que atrela a frequência escolar ao recebimento de verba mensal das famílias cadastradas. (CAVALIERE, 2009, p. 96). Andrade (2016, p. 27) aponta que, em 2013, mais de 65% dos alunos matriculados nas escolas do “Mais Educação” eram beneficiários desse programa social. Formulado como uma “política de ação contra a pobreza, exclusão social e marginalização cultural” (ANDRADE, 2016, p. 27), o PMESP visa a uma reestruturação do currículo, à construção de nova instituição escolar, à valorização diferenciada de saberes e a “expandir o tempo de permanência dos educandos para, no mínimo, sete horas diárias durante todo o período letivo”. (ESTADO DE SÃO PAULO, 2014, p. 2). A ampliação da jornada escolar no PMESP se dá

não obrigatoriamente relacionada à organização própria da escola, mas por meio de atividades que acontecem no contraturno e que, como tal, podem ou não estar vinculadas ao projeto pedagógico da instituição. Neste caso, as atividades enriquecem, muito provavelmente, o universo sociocultural do aluno, mas não necessariamente se constituem como Educação Integral, no sentido da articulação de conhecimento(s) e de saber(es) que fazem parte da constituição mesma do ser humano, que o vinculam ao processo humanizador para o qual a escola precisa lhe abrir a porta. (COELHO, 2012, p. 82).

No PMESP, a criança segue seu turno tradicional de aulas, no sistema por ciclos de aprendizagem, numa jornada de seis horas-aula de 45 minutos e, no turno oposto ao seu, participa de atividades como: xadrez, dança, pintura, teatro, dependendo da oferta de atividades da escola, o que o documento denomina de “experiências pedagógicas” divididas em “territórios do saber”. (ESTADO DE SÃO PAULO, 2013, p. 4).

3 O ângulo político-filosófico

Coelho (2009, p. 83-84) afirma que as discussões sobre a escola integral devem ser vistas “sob o ângulo político-filosófico”. Para a autora, é preciso partir “do pressuposto de que visões sociais de mundo diferentes - como a conservadora, a liberal e a socialista - engendram, também, concepções e práticas diferentes de educação integral”. Entender, portanto, o papel da escola na sociedade, o que dela se espera por parte da população, do Poder Público, das instituições privadas, dos órgãos internacionais e da própria comunidade escolar é de extrema importância para a concepção da escola integral. (CAVALIERE, 2007, p. 1.018). Segundo Gonçalves (2006, p. 131), a escola integral “só poderá ser significativa se dialogar com os interesses do grupo, seus conhecimentos prévios, seus valores e seu cotidiano”, já que, conforme afirma Libâneo (2008, p. 19), “a escola cumpre funções que lhe são dadas pela sociedade concreta que, por sua vez, apresenta-se como constituída por classes sociais com interesses antagônicos”.

Ao tratar da visão da escola integral atualmente, Maurício (2009, p. 22) entende que ela está ligada ao olhar dos filhos, pois os filhos tendem a gostar dela porque consideram bons seus professores, e os pais têm onde deixá-los enquanto trabalham. (2009, p. 22-24). Os professores entrevistados reproduzem ideias semelhantes, argumentando que “o aluno vai para a escola de horário integral porque a mãe trabalha” e não tem “alternativa”. (2009, p. 23). Essa afirmação mostra que os professores entrevistados reduzem a escola à falta de opção e se fixam no aspecto da carência dos alunos. Veem a escola “como um depósito, onde a criança fica guardada enquanto a mãe vai trabalhar”. (2009, p. 23). Semelhantemente, Galian e Sampaio (2012, p. 407-417) apontam que o PNE de 2001 associa a ampliação do tempo escolar a “crianças das camadas mais necessitadas, quando os pais trabalham fora de casa”. A finalidade seria, de fato, retirálas da rua.

Professores e funcionários, de um lado, justificam a escola integral como necessidade e conveniência, ao passo que os pais e alunos têm um entendimento oposto, vendo-a como elemento de satisfação e prazer, o que “mostra que professor e pai têm compreensão conflitante” a esse respeito. (MAURÍCIO, 2009, p. 23).

Segundo Cavaliere,

a visão predominante, de cunho assistencialista, vê a escola de tempo integral como uma escola para os desprivilegiados, que deve suprir deficiências gerais de formação dos alunos; uma escola que substitui a família e onde o mais relevante não é o conhecimento e sim a ocupação do tempo e a socialização primária [...]. A escola não é o lugar do saber, do aprendizado, da cultura, mas um lugar onde as crianças das classes populares serão “atendidas” de forma semelhante aos “doentes” [...], uma espécie de instituição de prevenção ao crime. Estar “preso” na escola é sempre melhor do que estar na rua. (2007, p. 1.031).

Há, ainda, a própria ideia de que a escola deve servir aos interesses econômicos, antes que à formação humana:

O conceito de escola pública de horário integral introduz alguns condicionantes. Em primeiro lugar, a criança precisa gostar da escola. Ela precisa querer estar na escola. A escola precisa ser convidativa e não uma proposta de enclausuramento. O horário integral deve ser para alunos e professores. Só nesta convivência longa e diária serão formuladas as condições coletivas que tornem produtivo o convívio de necessidades e culturas diversas, dos próprios alunos e de professores e alunos [...]. Tempo e espaço aqui tornam-se condições para formular propostas que tenham o encontro, a convivência, como eixo para desenvolver conhecimento. (MAURÍCIO, 2009, p. 27).

Por isso, Cavaliere (2007, p. 1.032) afirma que, “na sociedade brasileira, as justificativas correntes para a ampliação do tempo escolar estão baseadas tanto em concepções autoritárias ou assistencialistas como em concepções democráticas ou que se pretendem emancipatórias”.

4 A análise arqueológica

Volvemos agora a atenção para uma breve análise arqueológica da proposta curricular da escola integral. Apresentam-se, aqui, portanto, as quatro dimensões da perspectiva arqueológica: as regularidades, as contradições, as comparações e as transformações. (FOUCAULT, 2007, p. 151-220). No caso das regularidades, privilegia-se a estruturação do documento como monumento, com atenção especial às semelhanças das formações discursivas sob consideração. Em se tratando das contradições, categorizam-se as formações discursivas como derivadas, intrínsecas e extrínsecas. No âmbito das comparações, concentra-se essencialmente nas regras e nos elementos dessas formações. Finalmente, no caso das transformações, o foco recai sobre as diferenças percebidas nos documentos.

5 As regularidades

A análise arqueológica não se preocupa com a originalidade (FOUCAULT, 2007, p. 162-165); em vez disso, ela se ocupa das regularidades, não para contrapô-las às irregularidades, mas às regularidades de outros enunciados. (2007, p. 163). No nosso caso, o enunciado “ampliação da jornada de aula” aparece nos três documentos: no art. 34 da LDB, na meta 6 do PNE e no art. 4º., § 3º. do PMESP. Estes últimos discutem suas questões técnicas e organizacionais, sendo muito mais extensos e detalhados do que na LDB.

Outra expressão recorrente nos três documentos é progressivo, no sentido de que a escola integral deva ser gradativamente instituída nos sistemas de ensino, o que sugere que os que implantaram essa política pública sabem que ela é custosa e de estruturação complexa, envolvendo gastos com mobiliário, atividades extraescolares, deslocamentos, alimentação, funcionários e professores, currículo, processos de avaliação e espaços e tempos escolares. (ESTADO DE SÃO PAULO, 2013, arts. 3º., 4º., 5º., 15, 18, 21 e 24). Por isso, talvez, os propositores evoquem essa palavra para se eximir da dificuldade e demora da implementação.

Foucault (2007, p. 166) imagina “uma árvore de derivação enunciativa”, em cujas raízes alojam-se os “enunciados-reitores” que definem as estruturas observáveis, em cujo tronco ficam os enunciados com as regras de formação mais amplas, em cuja copa ficam, nas ramificações, os enunciados que empregam a mesma regularidade, enquanto, no alto, alojam-se as regularidades articuladas mais sutilmente. Nascem, desse jeito, alguns enunciados da escola integral, como o discurso da necessidade de a criança ficar mais tempo na escola para se proteger da marginalidade. Nesse caso, a escola integral proveria proteção contra a fome e a privação de saúde, lazer, esporte e bens culturais. É isso o que sugere o PNE (BRASIL, 2014, p. 29) quando relaciona essa política dos “Ministérios da Educação, do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, da Ciência e Tecnologia, do Esporte, do Meio Ambiente, da Cultura, da Defesa e também da Controladoria-Geral da União”.

A análise arqueológica busca tratar das novas dimensões das regularidades enunciativas e dos seus desligamentos, sem se ater ao seu ponto de origem, por compreender que as homogeneidades, continuidades e identidades se entrecruzam (FOUCAULT, 2007, p. 164-165), uma vez que “a ordem arqueológica não é nem a das sistematicidades, nem a das sucessões cronológicas”. (2007, p. 167). O objetivo, tampouco, é propor uma “sincronia maciça”, “amorfa”, “global” e “definitiva” (2007, p. 167), mas inventariar as relações e interdependências dos enunciados. (FOUCAULT, 2007, p. 165). Percebe-se, dessa forma, que os discursos citados constituem formações discursivas que se interligam a áreas distintas, porém relacionadas, da sociedade: as questões econômica, política e social; os requisitos da saúde, do bem-estar social, do lazer, do saneamento básico e da educação. Tais discursos são amplamente repetidos e, num determinado tempo e espaço, estabelecem um regime de verdade. A formação discursiva prevê que, para uma renovação curricular, o tempo escolar tradicional não é suficiente, sendo necessária a ampliação das horas passadas na escola. (ESTADO DE SÃO PAULO, 2013, art. 29, inciso III). Há, ainda, o discurso de que o tempo escolar dessa nova ordem estaria, na realidade, garantindo às classes desfavorecidas direitos e realidades que promovam justiça social e igualdade de direitos. (BRASIL, 2014, p. 28).

Sabendo-se, ainda, que, numa análise arqueológica, as formações discursivas se apresentam sob o olhar vertical do monumento, termos e discursos se mostram ora num nível, ora em outro, sem perder sua relação com outras formações discursivas. Se, para Foucault (2014, p. 144), as formações discursivas são determinadas pelas áreas sociais, econômicas, geográficas e linguísticas e num determinado tempo e espaço, os documentos oficiais da escola integral mostram que há, como diz Gallo (2004, p. 81), uma episteme, isto é, um solo do qual brotam os saberes modernos. No presente caso, essa episteme se constitui pela linguagem. Olhar para a episteme arqueologicamente é descobrir as regras por meio das quais se organizam as formações discursivas citadas. As legislações educacionais não seriam uma clara representação da força da episteme configuradora da linguagem? Por isso, essa proposta curricular brotaria como saber. Por sua vez, a episteme da escola integral produz saberes e visões sociais, curriculares, educacionais e faz nascer a política pública sob análise.

6 As contradições

Na análise arqueológica, as contradições não são nem aparentes, nem fundamentais, pois não são passíveis de ser resolvidas ou transferidas para um nível mais fundamental. (FOUCAULT, 2007, p. 171). Em vez disso, o primeiro objetivo é categorizá-las como “contradições intrínsecas” (que existem na própria formação discursiva); “contradições extrínsecas” (que existem entre formações discursivas distintas) e “contradições derivadas” (que se originam de outras contradições). Em seguida, devem ser identificados seus diferentes níveis (sistema e/ou métodos). Finalmente, identificam-se suas funções: desenvolver, reorganizar ou questionar o campo discursivo. (2007, p. 173-175).

Uma categoria intrínseca de contradições, nos documentos oficiais pertinentes à escola integral, diz respeito ao objetivo precípuo de sua criação.

De acordo com a meta 6 do PNE,

garantir educação integral requer mais que simplesmente a ampliação da jornada escolar diária, exigindo dos sistemas de ensino e seus profissionais, da sociedade em geral e das diferentes esferas de governo não só o compromisso para que a educação seja de tempo integral, mas também um projeto pedagógico diferenciado, a formação de seus agentes, a infraestrutura e os meios para sua implantação.

No entanto, o art. 21 do PMESP, que é uma tentativa de operacionalização da proposta de escola integral, especifica que os objetivos da ampliação da jornada diária dos educandos visam à “melhoria do processo de ensino e aprendizagem”, das “relações de convívio”, do “enriquecimento do currículo” e da “integração entre os diferentes segmentos da escola”. Da mesma forma, a meta 6 do PNE declara que

o programa Mais Educação tem sido uma das principais ações do governo federal para ampliar a oferta de educação em tempo integral, por meio de uma ação intersetorial entre as políticas públicas educacionais e sociais, contribuindo, desse modo, tanto para a diminuição das desigualdades educacionais quanto para a valorização da diversidade cultural brasileira. (Grifo nosso).

Dessa maneira, a escola integral é descrita como uma medida abrangente, capaz de resolver graves problemas sociais como a questão das desigualdades e da valorização da diversidade. Ou seja, embora certos trechos reconheçam que a ampliação da jornada escolar diária não seja a única condição para a melhoria do ensino, outros revelam a ideia de que, de fato, os idealizadores da proposta atribuem a essa ampliação o caráter de panaceia automática.

Uma contradição extrínseca aparece em relação à tarefa de casa. O art. 12 do PMESP especifica que, em todos os ciclos do Ensino Fundamental deve haver tarefa de casa a fim de permitir a participação das famílias no processo de ensino e aprendizagem. A contradição se dá entre formações discursivas distintas, uma vez que pode parecer contraditório que a criança ainda tenha que se ocupar de tarefas de casa após ter passado uma grande parte de seu dia na escola. É como se houvesse uma contaminação da formação discursiva que pleiteia o aumento da jornada escolar diária por elementos oriundos de outra formação, aquela mais tradicional que contempla o modelo de uma permanência de duração menor da criança na escola.

Além disso, pode ser que essa tentativa de envolver a participação das famílias no processo de ensino e aprendizagem acabe sabotando o projeto, uma vez que crianças exauridas pelo aumento de atividades na escola tenderão a ter, provavelmente, um desempenho menos satisfatório na realização de tarefas escolares em casa.

Uma categoria derivada de contradições pode ser vista na afirmação correlata da meta 6 do PNE, segundo a qual,

assim, as orientações do Ministério da Educação para a educação integral apontam que ela será o resultado daquilo que for criado e construído em cada escola, em cada rede de ensino, com a participação dos educadores, educandos e das comunidades, que podem e devem contribuir para ampliar os tempos, as oportunidades e os espaços de formação das crianças, adolescentes e jovens, na perspectiva de que o acesso à educação pública seja complementado pelos processos de permanência e aprendizagem. (Grifo nosso).

Nessa declaração, os propositores da educação integral equacionam permanência com aprendizagem. Isso só é possível porque consideram que o acesso à escola é um fator de suma importância à aprendizagem, e que uma maior aprendizagem fica, automaticamente, predicada na possibilidade de uma maior permanência na escola.

Podemos, portanto, categorizar essas contradições, respectivamente, como a contradição intrínseca da ideia de panaceia, que põe em tensão a possibilidade de que a ampliação da jornada escolar diária seja (ou não) suficiente para proporcionar uma melhoria na educação brasileira, a contradição extrínseca da lição de casa, que põe em tensão a pertinência da participação dos familiares no processo de ensino e aprendizagem; e a contradição derivada da ideia de equivalência, que põe em tensão a possibilidade de que uma mais longa permanência na escola seja (ou não) equivalente a um maior acesso, cuja conseqüência, automaticamente, contribua para a melhora desejada.

As contradições explicitadas na seção anterior remetem a dois níveis distintos de contradição: as contradições da panaceia e da equivalência operam no nível do sistema, enquanto a contradição lição de casa opera em nível dos métodos. As duas primeiras partem do pressuposto de que o sistema é suficientemente poderoso para garantir os resultados desejados. Permanência equivale a sucesso da mesma maneira que acesso proporciona êxito. O aumento da permanência corresponde, portanto, a uma espécie de aumento de acesso. A criança ficaria mais tempo na escola porque isso lhe daria maior acesso às oportunidades. No entanto, o documento não revela, em nenhuma seção, a prova de que o acesso à educação no Brasil esteja conseguindo obter os êxitos que o documento postula que resultariam de um maior acesso e, consequentemente, uma maior permanência na escola. A terceira contradição parte da ideia de que existe um correlato metodológico que cumpre determinada função, quando pode, de fato, prejudicá-la. Nesse terceiro caso, o modo de garantir resultados positivos se constrói metodologicamente.

Nenhuma das três contradições serve para questionar o campo discursivo. Em vez disso, prestam-se, no caso das contradições da panaceia e da lição de casa, para desenvolvê-lo e, no caso da contradição da equivalência, para reorganizá-lo. Essas contradições são andaimes estratégicos que dão sustentação ao discurso, mas suficientemente fora de vista para não permitir sua contestação. Apesar disso, não se ocultam na profundidade, mas aparecem na superfície. Se não são tão facilmente perceptíveis, isso se deve mais à sua camuflagem nas dobras do monumento textual do que na fundura de seu substrato.

7 As comparações

No caso das comparações, a análise arqueológica tenta individualizar e descrever as formas discursivas (FOUCAULT, 2007, p. 177), para explicitar as regras de formação por meio de analogias e diferenças, consideradas como isomorfismos (isto é, quando regras análogas atuam sobre elementos diferentes), modelos (se as regras se aplicam do mesmo modo), isótopos (se conceitos diferentes ocupam posição análoga no sistema), defasagens (se uma noção abrange mais de um elemento) e correlações (se os elementos guardam relações de subordinação ou complementaridade). (2007, p. 181-182).

Os isomorfismos dependem dos arquivos que organizam as regras. Nesse caso específico, lidamos, como foi dito, com regras análogas que atuam sobre elementos diferentes. Um isomorfismo claramente perceptível, na formação discursiva da escola integral, é a totalização, a ideia de que as propostas governamentais têm valor de panaceia. A regra da totalização contempla que a proposta tem capacidades além de questionamentos. Sabese, claramente, onde reside o problema e como fazer para superá-lo. A problematização alcança apenas um nível operacional; ou seja, o cerne da questão é como operar a implementação da escola integral, sem restar nenhuma dúvida de que ela é suficiente para alcançar os objetivos propostos e amplamente divulgados. Nessa concepção, a mesma regra se aplica a todos os elementos por mais distintos que possam ser.

Já a classificação em modelos questiona se as regras se aplicam (ou não) do mesmo modo. No caso da escola integral, há um modelo soberano em que uma regra comanda todos os resultados. A regra é aplicada por atacado e arregimenta o maior número possível de elementos. Dessa forma, a escola integral se vê como catalisadora de inúmeros processos sociais e variados aspectos do convívio humano: esportes, artes, tecnologia, entre outros. Dela provêm também inúmeros benefícios: lazer, igualdade, diversidade, recuperação de conteúdos, aptidões sociais, etc., conforme declara o art. 23 do PMESP.

A identificação dos isótopos depende da discriminação de conceitos e/ou de enunciados diferentes que ocupam posição análoga no sistema. Pelo que se depreende da discussão até aqui, as ideias de acesso e permanência funcionam como dois importantes isótopos, porque remetem à mesma posição no sistema. O PNE (BRASIL, 2014, p. 28) especifica, por exemplo, que “o acesso à educação pública seja complementado pelos processos de permanência e aprendizagem”. Embora dependam de enunciados diferentes, os dois conceitos procuram proximidade com a ideia de aprendizagem. Acesso e permanência buscam isotopia, uma vez que querem se ver confundidos com aprendizagem. Essa relação pode ser descrita pela seguinte fórmula: acesso + permanência = aprendizagem.

A análise das defasagens verifica se uma noção abrange mais de um elemento. O art. 34 da LDB diz que “a jornada escolar no ensino fundamental incluirá pelo menos quatro horas de trabalho efetivo em sala de aula, sendo progressivamente ampliado o período de permanência na escola”. Segundo um trecho do PNE

a ampliação da jornada escolar diária se dará por meio do desenvolvimento de atividades de acompanhamento pedagógico, experimentação e investigação científica, cultura e artes, esporte e lazer, cultura digital, educação econômica, comunicação e uso de mídias, meio ambiente, direitos humanos, práticas de prevenção aos agravos à saúde, promoção da saúde e da alimentação saudável, entre outras atividades. (BRASIL, 2014, p. 28).

Já o art. 21 do PMESP reza que o programa “contemplará, ainda, a ampliação da jornada diária dos educandos”, potencializando “o uso dos recursos e espaços disponíveis, ampliando os ambientes de aprendizagem e possibilitando seu acesso a educandos e professores”, propiciando “a recuperação paralela para educandos com aproveitamento insuficiente”.

Observa-se, portanto, que os enunciados “jornada escolar no ensino fundamental”, “jornada escolar diária” e “jornada diária dos educandos” ocorrem, alternadamente, nos documentos escolhidos. Esses enunciados compõem a noção do saber da escola integral, ou seja, da ampliação da jornada de aulas. Enquanto as formações enunciativas da LDB e do PNE usam, inicialmente, a expressão “jornada de aulas” com diferentes complementos finais, o PMESP usa a expressão “jornada diária”.

Entende-se, então, que o conceito de defasagens arqueológicas mostra que uma “noção (eventualmente designada por uma única e mesma palavra) pode abranger dois elementos arqueologicamente distintos”. (FOUCAULT, 2007, p. 181). Dos três, dois repetem o enunciado “jornada escolar”, enquanto um utiliza “jornada de aulas”. Entretanto, referem-se à mesma noção, com uma variação mínima de sentido.

A análise das correlações, por sua vez, verifica se os elementos guardam relações de subordinação ou complementaridade. No art. 34 da LDB, há apenas três linhas que citam a escola integral. Essa parcimônia estabelece, aí, uma correlação necessária de complementaridade. São necessários outros documentos para complementar a LDB. Portanto, dos documentos escolhidos, o PNE é a legislação mais próxima da LDB cronologicamente falando. Nele, a separação por metas educacionais previstas para o decênio amplia, esclarece e complementa como a política pública da escola integral deve ser colocada em prática nas escolas públicas, detalhando os objetivos e meios para isso. Ao mesmo tempo, estabelece-se, também, uma correlação de subordinação, na medida em que o PMESP cita e explica o direcionamento dos fundos financeiros, originários e destinatários, dizendo que cada área da supervisão escolar deve “suprir as Unidades Educacionais com os recursos necessários para o desenvolvimento das atividades”. Ou seja, a política da escola integral está subordinada à arrecadação de verbas tributárias e, para esse dinheiro chegar à escola, traça um longo e burocrático trajeto.

Outro caso de correlação de subordinação pode ser visto na hierarquização dos saberes. O PMESP cita áreas de conhecimento diversas para complementação por meio da ampliação da jornada de aulas, e o PNE também trata da “oferta de educação básica pública em tempo integral, por meio de atividades de acompanhamento pedagógico e multidisciplinares, inclusive culturais e esportivas”. (BRASIL, 2014, p. 29, grifo nosso). No entanto, há um apelo à priorização das áreas de língua portuguesa e matemática, conforme se percebe no trecho que direciona duas professoras para aulas compartilhadas nessas áreas específicas, em detrimento da regência de apenas uma professora nas demais aulas.

Avaliações em larga escala mostram que a área linguística e a área lógico-matemática são as que representam maior dificuldade para os alunos. Entretanto, as demais atividades artísticas e culturais também mereceriam destaque. Por isso, a crítica de Maurício (2009, p. 26): “A criança desenvolve seus aspectos afetivo, cognitivo, físico, social e outros conjuntamente. Não há hierarquia do aspecto cognitivo, por exemplo, sobre o afetivo ou social”.

8 As transformações

A análise arqueológica também se ocupa das transformações. Para isso, ela abole o que Foucault chama de “figura coautora da sincronia”, estabelecendo o discurso em uma “intemporalidade descontínua” e suspendendo as sequências temporais. (FOUCAULT, 2007, p. 187-188). Não se trata de “imobilizar o tempo”, como esclarece o próprio Foucault. (p. 190-194). Suspendem-se apenas as ideias de que a sucessão é absoluta, de que há um fluxo linear de consciência e de que as velhas metáforas da história (“movimento”, “fluxo” e “evolução”) podem ser úteis. Em vez disso, tentam-se explicar as permanências e as repetições, assim descrevendo a dispersão das próprias descontinuidades ao estabelecer analogias, diferenças, hierarquias, complementaridades, coincidências e defasagens das modificações. (2007, p. 195-197).

Entre as transformações, encontra-se, por exemplo, a disparidade referente ao escopo do esforço preparatório para que haja a referida ampliação da jornada educativa na escola. Enquanto o PMESP fala, em seu art. 21, § II, de “potencializar o uso dos recursos e espaços disponíveis ampliando os ambientes de aprendizagem e possibilitando seu acesso a educandos e professores”, a estratégia 6.3, da meta 6, do PNE explicitamente recomenda a

ampliação e reestruturação das escolas públicas, por meio da instalação de quadras poliesportivas, laboratórios, inclusive de informática, espaços para atividades culturais, bibliotecas, auditórios, cozinhas, refeitórios, banheiros e outros equipamentos, bem como da produção de material didático e da formação de recursos humanos para a educação em tempo integral.

A mesma meta ainda recomenda atividades fora do espaço da escola, mas sob sua orientação pedagógica, “mediante o uso dos equipamentos públicos e o estabelecimento de parcerias com órgãos ou instituições locais”. Embora o PMESP contenha uma longa elaboração acerca das ações necessárias para o cumprimento da meta, sua apresentação do planejamento necessário omite as ações mais onerosas financeiramente e mais custosas do ponto de vista político. Por isso, em vez de pretender uma ampliação do espaço escolar concomitantemente com a ampliação das atividades nele pretendidas e sua extrapolação para o ambiente público, o PMESP se acomoda a um paliativo genérico que não contempla, necessariamente, a construção de novos espaços, nem sua extrapolação.

Outra transformação perceptível, na formação discursiva da educação integral, ocorre quando o PNE estipula um mínimo de sete horas para a permanência total do discente na escola, sendo quatro dessas horas passadas em sala de aula, enquanto o PMESP recomenda um mínimo de seis horas, sendo que até uma dessas seis horas seria dedicada à alimentação e a outras atividades rotineiras, restando apenas uma hora para alguma atividade acadêmica ou cultural fora da sala de aula. Embora se conceda que essas estipulações delimitem um mínimo de horas de atividades e que contemplem a intenção de aumentar gradativamente essa oferta de tempo, a transformação sugere que as estipulações mais gerais do PNE são mais condescendentes e guardam um espírito mais pródigo que idealiza atividades e aloca liberalmente o tempo. No caso do PMESP, uma espécie de tentativa de implementação e operacionalização do idealismo do PNE em São Paulo, o espírito é avaro, e a alocação de tempo, mais mesquinha.

As transformações sugerem, portanto, que a legislação nem sempre corresponde à prática, havendo uma impressionante lacuna que jaz aberta, hiante, entre a proposta demagógica e a execução prática.

Conclusões

A análise arqueológica das regularidades, contradições, comparações e transformações das formações discursivas da proposta da escola integral revela, em primeiro lugar, que sua regularidade principal reside na ideia de ampliação da jornada escolar diária, embora nem sempre essa ampliação venha acompanhada de propostas de esforços comensuráveis com as dificuldades para sua implementação.

Semelhantemente, em termos de contradições, os documentos se esforçam para atribuir importância aos fatores coadjuvantes da proposta, mas sucumbem na consideração de que a escola integral possa ser a cura para todas as dificuldades educacionais dos estudantes brasileiros. De igual modo, os documentos equiparam acesso e permanência à aprendizagem, embora não ofereçam indícios de que essa álgebra produza um resultado objetivo e confiável.

No caso das comparações, percebe-se, principalmente, a presença de um modelo imperante de regras, em que a totalização impõe a aceitação pouco crítica de resultados prometidos, mas não afiançados. Além disso, embora as comparações não revelem defasagens óbvias nos conceitos, sugerem, por outro lado, que a proposta promove uma hierarquização indevida de saberes. Finalmente, as transformações perceptíveis entre os documentos denunciam um possível e provável distanciamento entre a legislação e a prática.

De modo geral, a arqueologia de três documentos da escola integral revelou que a proposta é, de certa forma, totalizante, no sentido de que apresenta a escola integral como detentora de enorme poder de transformação social, política e educacional. Revelou, também, que a proposta tem características paliativas, no sentido de que a escola integral é apresentada como panaceia. Mostrou, ainda, que a proposta padece, entre outras coisas, de contradições intrínsecas, extrínsecas e derivadas. Finalmente, revelou que a proposição hierarquiza saberes, mas nem sempre tem aplicação prática e assume, às vezes, contornos demagógicos. O discurso da escola de tempo integral parece trair a ideia de que o tempo proporciona uma espécie de controle regimental sobre os outros. Fala-se de mais tempo na escola como se isso significasse, automaticamente, mais qualidade no ensino. Concluímos, portanto, que a proposta da escola em tempo integral esvazia a discussão de uma consideração mais atenta à qualidade das políticas educacionais como um todo, especialmente as curriculares.

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Recebido: 28 de Março de 2019; Aceito: 13 de Novembro de 2019

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