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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.25  Caxias do Sul  2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v25.e020002 

ARTIGOS

Entre dois niilismos: uma arte acrobática para repotencializar a invenção na pesquisa sobre infância

Between two nihilisms: an acrobatic art to repotinalize the invention in research on childhood

Luiz Guilherme Augsburger* 
http://orcid.org/0000-0003-3136-9890

Celso Kraemer** 
http://orcid.org/0000-0003-2406-9638

Helena Almeida e Silva Sampaio*** 
http://orcid.org/0000-0001-6639-8670

*Doutorando e Mestre em Educação pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). E-mail: luizg.augs@gmail.com.

**Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Professor na Universidade Regional de Blumenau. E-mail: kraemer250@gmail.com.

***Doutoranda em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). E-mail: helenaalmeidapues@gmail.com.


Resumo

As muitas verdades sobre a infância de nosso tempo, das mais catedráticas às mais inovadoras, encontram-se compiladas em livros e artigos dentro e fora de nossas bibliotecas. Grosso modo, elas constroem dois tipos de niilismo: um niilismo de tipo universalista, que suga a criança para fora da imanência da vida e da histórica e a torna refém de estereótipos universais. Outro niilismo de tipo relativista, que esquece a criança e apenas acusa os estudos da infância como mera invenção. Evitar esses extremos requer uma espécie de arte acrobática de se equilibrar na possibilidade de um entre. Essa via busca retomar a imanência histórica da criança (“ida aos porões”, “suspensão das certezas”, “pesquisar com...”, “verdade-acontecimento”, “objetivação e subjetivação”, “atitude crítica”). Trata-se de uma pesquisa em busca da (re)potencialização da ideia de invenção (da infância) cuja atitude crítica implique não a pergunta pelo governo certo ou pela ausência de governo da infância, mas como não a governar assim, por essas pessoas, em nome desses princípios, em vista de tais objetivos e por meio de tais procedimentos.

Palavras-chave Atitude crítica; Infância; Invenção; Niilismo; Governo

Abstract

The many truths about childhood in our time, from the most academic to the most “innovative”, are compiled in books and articles inside and outside our libraries. Broadly, they construct two types of nihilism. A nihilism, of a universalist type, which sucks the child out of the immanence of life and history and makes it hostage to universal stereotypes. Another nihilism, of the relativistic type, which forgets the child and only accuses the studies of childhood as a mere invention. Avoiding these extremes requires a kind of acrobatic art of to be in balance on the possibility of a “between”. This kind of art seeks to retake the historical immanence of the child (“going down to the basements”, “suspension of certainties”, “research with…”, “truth-happening”, “ojectification and subjectivation”, “critical attitude”). This is about a research looking for (re)potentialization of the idea of invention (of childhood) whose critical attitude implied not the question by the right government or the absence of childhood government, but how not to govern thus, by these people, in the name of these principles, in view of such objectives and by means of such procedures.

Keywords Critical attitude; Childhood; Invention; Nihilism; Government

1 O avesso da invenção infância

“Aprende depressa a chamar-te de realidade Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso...”

(Caetano Veloso)

Do dizer a verdade, a modernidade migrou para o dizer uma verdade. E não são poucas... Vivemos bombardeados por muitas verdades. O acúmulo de verdades sobre a infância oscila entre as mais catedráticas e as mais inovadoras, compiladas em livros e artigos, nos provocando, dentro e fora de nossas bibliotecas (LARROSA, 1998). Elas se derramam das bocas de um rol de especialistas e, seja nas mass medias ou nas salas de aula universitárias, ouve-se professar as mesmas desde o que é até o que quer uma criança. Também, em nosso tempo, se organiza o funcionamento de instituições, determinam-se etapas de desenvolvimento e ritmos de aprendizagem, avaliam-se capacidades e vulnerabilidades, disciplinam-se os corpos e as potências infantis. Essa infância, então, torna-se o ponto focal de novas tecnologias do que Foucault (2008) chamou de governo – condução das condutas dos sujeitos: tecnologias que atuam de múltiplas formas no interior da sociedade como estratégias para conduzir a infância a horizontes desejados. Tal governo inventa infâncias adaptadas a seu uso. Inventa-as não como quem falsifica a realidade, mas como quem, diante de um real que nunca é dado, fora ou antes das práticas, justamente recorta e dá forma à realidade – a realidade da infância inventada em sua historicidade.

Ainda que este texto não pretenda discutir a história da infância, ele é nitidamente atravessado por leituras cuidadosas que, de variadas formas, mencionam a clássica pesquisa do historiador francês, Philippe Ariès (1981), e o sublinham como quem afirmou que “a infância é uma invenção da modernidade”. Essa afirmação de Ariès, embora alvo de variadas críticas, promoveu mudanças na compreensão da infância, uma vez que instalou uma desconfiança em relação à transcendência da infância. Doravante, ainda que os historiadores debatam(-se) sobre uma data de invenção da infância, pensá-la historicamente parece ter se tornado inevitável.

Historicamente, uma sociedade, que até então não diferenciava crianças de adultos em situações de trabalho, de festas, de cerimônias ou de diversões, cede lugar à nossa, em que a infância “passa a ser cuidadosamente segregada, tornando-se objeto específico de atenção no plano social: daí em diante, suas tarefas e brincadeiras terão o único objetivo de contribuir para a própria formação” (SCHÉRER, 2009, p. 17). Enquanto fenômeno social, isto corresponde à ascensão de uma burguesia mais consciente de si mesma; à crescente complexidade de sua indústria e de suas técnicas; e à ambição destas forças e de seus sujeitos sociais. Na invenção da infância, podemos sublinhar o papel significativo desempenhado tanto pelos grandes tratados teóricos para o uso de pais e professores, quanto pelo surgimento, desde 1750, de uma literatura infantil destinada especialmente às crianças. A criança das Luzes passa a ocupar o centro de todas as atenções e por isso,

essa literatura menor que acompanha, em segundo plano, as obras das Luzes, avançando no mesmo sentido, deixa-se penetrar por suas lições e molda as almas. Uma verdadeira filosofia – sensualista, intuitiva, racionalizante e moralizante – é convocada a serviço da população infantil, que forma um novo público e um mercado

(SCHÉRER, 2009, p. 18).

Ao longo do século XVIII, dos Dois Tratados do Governo Civil de Locke (DUARTE, 2011) às “Reflexões sobre a educação” (Réflexions sur l’éducation) de Kant, mais o impulso decisivo com o livro Emílio de Rousseau, instalouse o que Schérer (2009) chamou de um “sistema da infância”. Um sistema que não apenas instituiu a infância como tal, como a constituiu com suas prerrogativas, ditando os deveres e as condutas do adulto em relação à criança. É a infância como um campo social bem delimitado e, por seu intermédio e sua intenção,

a sociedade inteira aprende a se disciplinar, pedagogizando-se; pela infância, explícita ou sub-repticiamente – pois o sistema de infância afeta, em breve, todas as classes, confissões religiosas e convicções – , ela torna-se instruída e é impregnada pelo espírito da Aufklärung

(SCHÉRER, 2009, p. 18).

Para além desse iminente aspecto racionalizante, pedagógico e normativo que dá os contornos dessa invenção da infância, haveria outra perspectiva, igualmente interessante, que se abriria para outros desdobramentos. Para Schérer (2009) há outra faceta da invenção a qual desperta e nutre um sentimento de infância; um sentimento que nasce quando o adulto passa a situar a criança como o seu “Outro promissor”, como aquela que representa quem ele deixou de ser. Esse crescente sentimento de infância delimita certa especificidade à criança, por meio da qual se produz a infância: o sentimento de que a criança era inocente e precisava ser protegida levou à produção de todo um ordenamento novo da Educação (e governo) da criança, colocando sobre ela imperativos ou dispositivos, entre eles o higiênico-pedagógico, o jurídico, o médico, que se juntaram aos dispositivos literários, do brinquedo e de tantos outros que buscaram e buscam normatizar, normalizar e moralizar a criança (ABRAMOWICZ; RODRIGUES; MORUZZI, 2012, p. 86).

De Airès (1981) a Abramowicz, Rodrigues e Moruzzi (2012), a infância é sentenciada como invenção. Essa asserção, não raro, reverbera em abismos niilistas que despontecializam a infância como uma invenção – como se a constatação de que a infância não é senão uma invenção. Em exaurindo-a de qualquer fundamento, ela é esvaziada de qualquer possibilidade de pensar e experienciar a infância: eis a infância transformada em um aparato sufocante de experiência e sentido.1

Essa mesma asserção (e suas reverberações) é também um disparador da necessidade de problematizarmos o modo atual – neoliberal2 – de pensar a infância e, ao mesmo tempo, de retomar quando e em quais contextos, através de quais “jogos da verdade” (FOUCAULT, 2008) tal infância foi inventada. Coloca-se a importância de se pensar sobre “a história das relações que o pensamento mantém com a verdade” (EWALD, 1984 apudMUCHAIL, 2017, p. 18).

Todavia, por um lado, nesse movimento de desconstrução da infância (como um transcendental a-histórico), ela foi sendo despotencializada como mera invenção moderna, oca de sentido e vazia de realidade: A infância é uma invenção! A infância é uma invenção! A infância é uma invenção! A infância é uma invenção! A infância é uma invenção! A infância é uma invenção! – ecoa no oco da cabeça dos que tentam pensar sobre o tema. Por outro lado, os últimos séculos, sub-repticiamente, aproveitando-se desse vazio, inventaram a criança psicopedagogizada, a medicalizada, a biologizada, a mercantilizada, a culturalizada, a assexualizada, a infantilizada, a adultizada – sempre a criança, um modelo mais ou menos invariável que está sujeito a inúmeras exclamações: A infância é...! A infância tem...! A infância precisa...! A infância carece de...! A infância demanda...! A infância é...! A infância é, tem, precisa, carece, demanda...! – repetem agora os que se intitulam especialistas no assunto, os entendedores do ritmo, da rotina, das etapas e do desenvolvimento infantil. Esses que sob o signo de um sujeito transcendental, ainda que histórico, abrem outro abismo niilista a despotencializar a infância: sempre a criança, a infância.

Entrementes, há a invenção da Pedagogia (moderna), e “a escola tornando-se local de elaboração da Pedagogia” (FOUCAULT, 2011, p. 155). Há a condição para a generalização da psiquiatria, de uma conduta psiquiatrizável e a infância como figura do patológico, do anormal – a justificar internações: “Porque ele age e pensa como uma criança” ou “pervertido porque infantil” (FOUCAULT, 2011, p. 383). Há a família ocupando-se (como nunca) em cuidar da saúde dos filhos (KOHAN, 2005).

Há a assexualização e a pedagogização da sexualidade da criança (SCHÉRER, 2006). Há a criança que já não pode mais ser pensada como separada do aluno (KOHAN, 2005). Há a criança tornada sujeito de mercado, consumidora (ROSSI, 2007) e empreendedora (GADELHA, 2010).

Enfim, há dois buracos (negros) a dragar o que pode a infância, ora a cristalizar o “devir-criança” (DELEUZE; GUATTARI, 1980) – seja por meio da verdade absoluta, seja por meio da verdade relativa; seja pela verdade científica, seja pela solipsista –, ora a desterritorializá-lo a ponto de gerar o vazio de um tudo vale em que, por isso, nada tem valor; um vazio da inexistência de qualquer coisa como infância. Na iminência desses abismos, na iminência de nosso esgotamento e na urgência do real que nos convoca: “Não estamos nós todos nesse ponto de sufocamento, que justamente por isso nos impele em outra direção?” (PELBART, 2017, p. 34). Ora, a outra direção, o avesso da invenção (e do niilismo), não é sua negação ou seu fora, mas a ponta extrema “em que [ela] se revira, onde o Não vira Sim” (PELBART, 2017, p. 147). Não se trata, então, de um revide ressentido, reativo e amargurado, trata-se de um alegre Sim “carregado do pólen de novos valores e afetos” (FOGLIANO, 2015, p. 312): pesquisar a infância como quem veste a carapuça de pícaro,3 aprende a dançar sobre a moral e a martelar as verdades, numa espécie de arte acrobática de se equilibrar na possibilidade de um entre-abismos.

Assim, no avesso desses abismos que inventam infâncias nas quais não nos reconhecemos, ensaiamos algumas (re)calibragens de perspectiva (teórico-metodológica) para uma pesquisa em Educação que busque (re)potencializar a ideia de invenção (da infância) e cuja “atitude crítica” implique não a pergunta pelo governo certo ou pela ausência de governo da infância, mas, acrobaticamente, entre piruetas e malabarismos, pergunte: Como não a governar assim, por essas pessoas, em nome destes princípios, em vista de tais objetivos e por meio de tais procedimentos?4

2 Recalibragens em busca da (re)potencialização da ideia de invenção da infância

Este ensaio propõe algumas as (re)calibragens do olhar para uma pesquisa sobre infância que escape a tais niilismos através da noção de “imanência histórica”; “ida aos porões”; “suspensão das certezas”; “pesquisar com...”; “jogo de verdade” e “verdade como acontecimento”; “objetivação” e “subjetivação”; e “atitude crítica”.

2.1 Imanência histórica

A despeito de todas as controvérsias sobre a sentença arièsiana de que a infância é uma invenção (moderna) (ARIÈS, 1981), tal asserção marca um acontecimento no estudo da área: pensar sobre a infância fora da historicidade tornou-se inviável, fundamentalmente quando se quer escapar à infância ou à criança como universal ou transcendental.5 Ciente de que a infância é um relevante objeto da historiografia contemporânea, destacamos que a tônica aqui é menos elaborar uma pesquisa historiográfica e mais grifar a postura de pensar na infância historicamente. Fazê-lo não como quem “parte do universal e passa-o, de certo modo, pelo ralador da história”, mas, como diz Foucault,

o inverso disso. Parto da decisão, ao mesmo tempo teórica e metodológica, que consiste em dizer: suponhamos que os universais não existem, “como escrever historicamente?” Assim, em vez de partir dos universais para deles deduzir fenômenos concretos, ou antes, em vez de partir dos universais como grade de inteligibilidade obrigatória para um certo número de práticas concretas, gostaria de partir dessas práticas concretas e, de certo modo, passar os universais pela grade dessas práticas

(2008, p. 5).

Destarte, a recalibragem da imanência histórica implica mais que a mera historicização da infância; implica pensá-la sem transcendências, sem universais que coordenem ou determinem as práticas, para dar lugar a um olhar (teórico-metodológico) histórico em que as práticas concretas tornem noções como criança, infância, pedagogia (entre outras) pensáveis. Uma imanência que marque também como, em diferentes lugares, tempos e espaços, com diferentes articulações entre saber e poder, com diferentes modos de produção de verdade, inventou-se uma infância.

Quando se pesquisa desde uma imanência histórica, há uma assimetria ou uma diferença de natureza entre o que se poderia chamar de “criança grega”, de “criança das Luzes”, ou mesmo, “criança da contemporaneidade”. Há uma discursividade, um tipo de contexto, uma variante cultural, um fazer-viver (ou até morrer) que dá forma e substância a cada uma delas e a sua infância. Todas estão inseridas em um tipo de sociedade, num regime de verdade com efeitos de poder, em uma forma de pensar e organizar as diferentes etapas da vida humana. Tais crianças, citadas como exemplo, não partilhariam de qualquer atributo transcendente – uma característica unificadora, que estaria acima ou abaixo de todas elas –, de tal modo que todas essas crianças não poderiam ser igualmente guardadas sob a proteção da palavra infância, sem que essa rachasse sob seu peso.

2.2 Ida aos porões

Inspirado na “metáfora da casa”, de Gaston Bachelard, Veiga-Neto (2012) recorre à frase: “É preciso ir aos porões!” como título e fio condutor de um de seus artigos. A frase é um caminho para se compreender as origens, os possíveis desdobramentos e as consequências dos muito atuais e variados fenômenos sociais e educacionais. Nas palavras de Veiga-Neto (2012, p. 268), “as descidas aos porões nos potencializam sobremaneira para enfrentarmos racionalmente tais fenômenos, trabalhando a favor daquilo que nos interessa e contra os constrangimentos e limitações que se nos impõem”. Dessa maneira, a quem trabalha no campo de pesquisa, em especial na Educação, não seria razoável limitar sua vida apenas ao “piso intermediário” ou “superior”, como bem explica Veiga-Neto

É que não considero razoável que alguém limite sua vida apenas ao piso intermediário, autobloqueando os acessos ao porão – onde se enraízam os pensamentos – e ao sótão – de onde se pode voar. Para nós que trabalhamos no campo da educação, qualquer desinteresse pela casa toda revela uma imensa falta de sensibilidade e até mesmo uma não compreensão do papel social que temos em nossas mãos. Penso que é absolutamente necessária a ocupação, do modo mais completo possível, de todas as dependências da casa onde alojamos as origens do nosso pensamento (o porão), onde desenvolvemos nossas práticas pedagógicas cotidianas (o piso intermediário) e de onde podemos nos lançar para tentar construir outros mundos (o sótão)

(2012, p. 272).

A ida aos porões é uma busca por esse nível das práticas em sua imanência história. E seguindo tal calibragem, poderíamos complementar a metáfora bachelardiana da casa e advertir que os vários porões não podem ser guardados sob a proteção da palavra casa, sem também rachá-la. São invenções de infâncias, são invenções de casas, são invenções de verdade, são invenções...

2.3 Suspensão das certezas

Descer aos porões em busca de práticas em torno da infância, em sua imanência histórica, é circunscrever a criança como uma invenção – como invenção, por exemplo, de um sentimento e de um sistema de infância (SCHÉRER, 2009). Todavia, esse movimento metodológico implica, sobretudo, a suspensão das certezas (i.e., a verdade – relativa ou absoluta – como algo estável, estático e em si mesmo) como exercício do não saber. Desse modo, parece-nos profícuo olhar para o saber em seu caráter perspectivo (depende de um ponto de vista), agonístico (implica relações de poder, de luta e de conflito) e múltiplo (não passível de unificação) (SEVERIANO, 2016, p. 267). Isto, posto que, para escapar dos abismos das verdades absolutas e/ou relativas, precisamos que elas sejam, ainda que temporariamente, suspensas para que as idas aos porões não sejam um movimento de leitura desses pelos traços e organizações dos outros níveis da casa. Suspender as certezas, colocar-se numa posição de não saber e exercitar a liberdade do pensamento, então, constituem posturas, intimamente interligadas, muito vigorosas à calibragem de um pesquisar entre niilismos.

2.4 Pesquisar COM...

A suspensão das certezas pressupõe a existência de outras perspectivas, de outros modos de compreender e agir. Assim, importa menos “pesquisar como” um modelo (de autor, de metodologia, de teoria, etc.) e mais “pesquisar com” as diferentes forças-matérias-corpos-expressões de infâncias. O que não quer dizer sair do niilismo da verdade absoluta para cair naquele do relativismo em que todas as perspectivas são igualmente válidas (ou naquele abismo em que pretensamente reina o nada). Tratase, sim, de pesquisar a invenção desde uma multiplicidade de ferramentas metodológico-teóricas, de autores, de fontes, de perspectivas tomando como crivo de seleção a imanência do próprio combate que travamos.

Aqui, em busca de uma arte equilibrista de pesquisa, o “pesquisar com” torna-se uma sorte de malabarismo de estratégias, autores, metodologias, etc., na qual uma errância nos permita o movimento neste entre as multiplicidades, delas fazendo uso. Virar a invenção do avesso é, diante do esgotamento, “pesquisar com” as multiplicidades, a favor de uma potência de um outro – outras infâncias, outras crianças, outras Educações, outras invenções... Não para dizer outra vez “Vale tudo!”, mas como um “esticador de horizontes” (BARROS, 2013, p. 322) do jogo, no mesmo golpe em que, movimentando-nos entre niilismos abissais, lhes damos um contorno, um limite a esgotá-los.

2.5 Jogo de verdade e verdade como acontecimento

Seguindo a recalibragem, um cuidado com a verdade nos parece imprescindível à pesquisa cujo intento é escapar das armadilhas niilistas pivotantes da questão da verdade. No que tange à relação com a verdade, o cuidado implicaria tomarmos a verdade menos como verificação de uma correspondência ou constatação de uma realidade, i.e., a verdade instaurada pelo real dado de antemão e mais o seu avesso, a verdade como acontecimento: um jogo de forças que, feito trama, instaura um dizer verdadeiro; uma prática (ou uma série de práticas) que corta o real dando-lhe uma forma, um ser e constituindo, nesse mesmo movimento, sujeito e objeto.

A verdade como acontecimento instala, pois, uma relação com o real a partir de uma lógica de jogo. E é como “jogo de verdade” que se pode

sublinhar a presença de uma regra que preside e que seria constitutiva do jogo enquanto tal. Porém, enunciar a existência de uma regra é indicar a existência de algo que é da ordem da invenção e do arbitrário, que seria constitutivo de toda e qualquer regra. Se esta é arbitrária, no entanto, não quer dizer que seja marcada pela arbitrariedade no sentido negativo da palavra, pois seria sempre compartilhada pelos possíveis jogadores, naquilo que ao mesmo tempo autoriza e proíbe

(BIRMAN, 2002, p. 307, grifos no original).

Em sua positividade, o jogo de verdade, o arbitrário e a regra produzem como efeito a possibilidade de invenção (de infâncias, por exemplo) e não sua pura proibição – é a partir da regra que se pode ser (jogador), que se pode dizer a verdade (do jogo) e que, inclusive, se pode blefar e burlar as regras... Quiçá, a reinventar o jogo.

Desta feita, no jogo

a regra seria sempre compartilhada, sendo constituída pela convenção e pelo uso, ambos estabelecidos pelos homens no espaço social. A regra seria então uma produção social, que fundaria igualmente tanto os jogos de linguagem quanto os de verdade, inserindo-se no registro do artifício e não da natureza

(BIRMAN, 2002, p. 307, grifos no original).

Assim, é em dado jogo de verdade que acontece a relação em que um sujeito pode (ou tem que) recortar-se e recortar o objeto com o qual se relaciona. Em termos educacionais, temos uma prática pedagógica em que o pedagogo se produz, autorizando-se a disciplinar a criança e, através de um cálculo de utilidade, animar internamente a condução da conduta de uma infância.

2.6. Objetivação e subjetivação

Se é possível enunciar como verdadeira a invenção da infância, isso só não nos torna sufocantes se tomamos tal invenção desde a suspeita que flagra a existência de um jogo de verdades, cujas regras são convencionadas e compartilhadas no social pelos jogadores. Entre jogo e jogador, Educação e educador, Pedagogia e pedagogo, Infância e criança, há, sobretudo, uma relação que lhes dá forma como sujeito e objeto – respectivamente, subjetivação e objetivação.

Pensar a verdade como acontecimento, em um jogo relacional, significa pensar um sujeito e um objeto desde uma relação mútua, de uma experiência ou de uma prática entre eles, que tanto os antecede quanto os modela. Instaura-se, portanto, uma dinâmica relacional de tal modo que se constituem um sujeito, por exemplo, um pedagogo, capaz de se reconhecer como tal e de reconhecer um objeto como a criança, com o qual se relaciona.

Nesse movimento, a pesquisa dotada de uma arte equilibrista não se deixa tombar pela escorregadia e sedutora imagem de uma verdade advinda do sujeito (verdade subjetiva) ou proveniente do objeto (verdade objetiva), mas a compreende em um acontecimento que implica, simultaneamente, um processo de subjetivação e de objetivação.

2.7 Atitude crítica

Diante de tais peripécias estratégicas para que, ainda que titubeante, possamos, em uma pesquisa sobre infância, traçar um entre-abismos e errar para além dos niilismos que despotencializam, simultaneamente e em diferentes graus, a infância, criança e invenção; diante disso, talvez se perguntaria um leitor desassossegado: O que fazer? Diante do esgotamento, talvez se perguntaria, ainda, ele: O que é possível fazer? Ora, mais do que propor direções para uma ação política ou soluções para uma prática em Educação, esse tipo de pesquisa é movido pela desconfiança. A desconfiança em relação aos niilismos que assombram a vida e o pensamento. Uma suspeita que faz da pesquisa em Educação uma estratégia de traçar os limites, os contornos, os funcionamentos e as produções de certo jogo de verdade (e das práticas de governo liadas a ele). Trata-se de desconfiar dos jogos de verdade, delinear seus limites, reconhecer suas regras e tecnologias de governo; de pensar uma pesquisa pautada pela imanência histórica, que vai aos porões, que suspende as certezas, que “pesquisa com” e não como e que toma sujeito e objeto como efeitos da relação (com a verdade), i.e., trata-se de uma pesquisa atravessada por uma “atitude crítica [enquanto] um modo de desconfiar delas, de recuá-las, de limitá-las, de lhes encontrar uma justa medida de transformá-las, de buscar escapar a essas artes de governar, ou, em todo caso, de deslocá-las” (FOUCAULT, 2015, p. 37).6 Uma tal pesquisa, fundamentalmente, não seria conduzida pela (ou conduziria à) pergunta: Como não ser governado de modo algum?, e sim, movida pelo que nos acontece,7 por essas calibragens e recalibragens – e nutrida de desejo por um “devir revolucionário” (DELEUZE; GUATTARI, 1980)8 –, subverteria tal questão em “como não ser governados assim, por essas pessoas, em nome destes princípios, em vista de tais objetivos e por meio de tais procedimentos, não assim, não por isto, não por estes” (FOUCAULT, 2015, p. 37).

É importante, ainda, frisar que a atitude crítica, nessa postura de pesquisa sobre a infância, não teria por função dar uma resposta a tal pergunta. A atitude crítica seria, assim, uma postura de pesquisa cujos resultados, traçando os limites desses jogos de verdade e suas estratégias de governo permitiriam dar ferramentas a práticas cotidianas em relação à infância que poderiam responder a tal pergunta, que poderiam experimentar um “de que outro modo” (LARROSA, 2017, p. 75).

3 Considerações finais

“Escrevemos para transformar o que sabemos e não para transmitir o já sabido. [...] Educamos para transformar o que sabemos e não para transmitir o já sabido.”

(Jorge Larrosa e Walter Omar Kohan)

Recalibrar uma pesquisa em Educação, tendo como estratégia de investigação a inserção da questão da infância (seus sujeitos e objetos) e, fundamentalmente, do pensamento na imanência história, para ir aos porões, com as certezas suspensas e munido de uma abertura à multiplicidade de perspectivas, permite um deslocamento na relação com a verdade. Em sendo a verdade o pivô dos niilismos em questão, tal mudança é crucial para uma pesquisa que, funâmbula, não caia moribunda por conta da cristalização do pensamento – e das demais práticas – em uma verdade (relativa ou absoluta), que diz “isso é”. Isso determinaria o ser da infância, a colocá-la em uma positividade absoluta, transcendental, estática. Tais recalibragens também visam a escapar de um esvaziamento das forças na sentença que diz “isso não é”, a determinar a criança como não ser, como um negativo, uma inexistência. Pensar a verdade, então, desde as noções de jogo de verdade e acontecimento, fazendo do sujeito e do objeto efeitos dessa relação com a verdade, permitem pensar a infância e a criança como invenções historicamente imanentes ligadas às práticas cotidianas e, ontologicamente, pautadas por um “isso e aquilo e...” Em vez de reduzir a criança ao ser/não ser, ou ao ser “isso ou aquilo”, tal postura de pesquisa reabre-a a uma indeterminação, um entre (ser e não ser): pesquisar valendo-se de uma arte equilibrista de traçar e se deslocar por um pensamento entreabismos.

Munidos de tais precauções e movidos por uma atitude crítica, tentamos, aqui, dar ferramentas a uma prática que, não se reconhecendo nessas infâncias niilistas, não se insira na invenção dessa criança governada “por essas pessoas, em nome destes princípios, em vista de tais objetivos e por meio de tais procedimentos, não assim, não por isto, não por estes” (FOUCAULT, 2015, p. 37). O avesso da invenção não é outra coisa que a invenção: é, diante de uma invenção niilista, esgotá-la em prol de uma nova possibilidade de invenção, quiçá, pautada por uma “inservidão voluntária” e por uma “indocilidade refletida” (FOUCAULT, 2015).

1Jorge Larrosa propõe pensar na Educação a partir do par experiência/sentido na contramão da perspectiva de pensá-la como ciência/técnica ou teoria/prática. Segundo o autor, “pensar não é somente ‘raciocinar’ ou ‘calcular’ ou ‘argumentar’, como nos tem sido ensinado algumas vezes; mas é sobretudo dar sentido ao que somos e ao que nos acontece” (2017, p. 21).

2Toma-se o conceito de neoliberalismo desde os estudos de Foucault (2008), no qual o termo é entendido não apenas como um sistema econômico, mas como todo um modo de governar, ligado a um modo de veridicção do social.

3No aforismo 107, intitulado “Nossa última gratidão para com a arte”, do livro A gaia ciência, de Nietzsche (2012, p. 124-125), lê-se: “Temos de descansar temporariamente de nós, olhando-nos de longe e de cima e, de uma distância artística, rindo sobre nós ou chorando sobre nós: temos de descobrir o herói, assim como o parvo, que reside em nossa paixão do conhecimento, temos de alegrar-nos vez por outra com nossa tolice, para podermos continuar alegres com nossa sabedoria! E precisamente porque nós, no último fundamento, somos homens pesados e sérios e somos mais peso do que homens, nada nos faz mais bem do que a carapuça de pícaro: nós precisamos usá-la diante de nós próprios – precisamos usar de toda arte altiva, flutuante, dançante, zombeteria, pueril e bemaventurada, para não perdermos aquela liberdade sobre as coisas que nosso ideal exige de nós. Seria um atraso para nós, precisamente com nossa excitável lealdade, cair inteiramente na moral e, por causa das exigências mais que rigorosas que fazemos a nós quanto a isso, tornar-nos ainda, nós próprios, monstros e espantalhos de virtude. Devemos poder ficar também acima da moral: e não somente ficar, com a amedrontada rigidez de alguém que a cada instante tem medo de escorregar e cair, mas também flutuar e brincar acima dela. Como poderíamos, para isso, prescindir da arte, como do parvo! – E enquanto de algum modo ainda vos envergonhais de vós próprios, ainda não fazeis parte de nós!”

4Questão inspirada em Foucault (2015) e sua pergunta ligada à “atitude crítica”: “Como não ser governado assim, por estas pessoas, em nome destes princípios, em vista de tais objetivos e por meio de tais procedimentos, não assim, não por isto, não por estes” (FOCAULT, 2015, p. 37). Sobre essa discussão (MUCHAIL, 2017).

5Embora Ariès tenha sido alvo de diferentes críticas, ele se tornou uma referência obrigatória aos historiadores da infância – tanto aos acólitos quanto aos profanos – que, no dizer de Kohan (2005, p. 63), “não mais puderam afirmar impunemente uma noção a-história da infância”.

6Sobre uma análise da “atitude crítica”, ver em Foucault (MUCHAIL, 2017).

7Pesquisar com Larrosa (2017, p. 18), pois “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece.”

8É importante diferenciar o “devir revolucionário” da ideia de “a revolução”. Enquanto essa se pautaria, entre outras coisas, em uma meta e/ou num ideal de transformação a ser alcançado, passando-se de uma sociedade menos a uma mais desejada/ideal/humana, etc.; aquele, como devir, é força que desloca do status quo sem que qualquer ideal precise ser alcançado. O devir revolucionário é, como aqui o compreendemos, o movimento em que se é arrastado pela potência revolucionária que impede o real de se estagnar ontológica, ética e politicamente, sem, com isso, ter de constituir um novo plano de estagnação.

Referências

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Recebido: 02 de Fevereiro de 2019; Aceito: 13 de Novembro de 2019

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