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Conjectura: Filosofia e Educação

Print version ISSN 0103-1457On-line version ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.25  Caxias do Sul  2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v25.e020004 

ARTIGOS

Sobre um possível contexto filosófico de descoberta da intuição heurística: uma interpretação a partir de A estrutura das Revoluções Científicas de Thomas Kuhn

About a possible discovery context of heuristics intuition: an interpretation of The Structure of Scientific Revolutions by Thomas Kuhn

Onorato Jonas Fagherazzi* 
http://orcid.org/0000-0003-0422-8136

Paula Correa Henning** 
http://orcid.org/0000-0003-3697-9030

*Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutor em Educação em Ciências pela Fundação Universidade de Rio Grande (FURG). E-mail: onorato.fagherazzi@bento.ifrs.edu.br.

**Professora no PPGEC em Educação em Ciências da FURG. Doutora em Educação pela Unisinos. E-mail: paula.c.henning@gmail.com.


Resumo

Na análise do desenvolvimento da história e filosofia das ciências, deparamo-nos com uma questão: Haveria um contexto favorável à possível emergência de uma intuição ou a mesma seria completamente desprovida de qualquer espaço que pudesse fomentá-la? Deixando de lado antigas teorias que defendiam a intuição ser proveniente dos deuses, ou outras que não exploravam espaços pelos quais ela pudesse ser favorecida, defendemos, com Kuhn (2009), uma possível vinculação a ela favorecedora. Trata-se de uma conjuntura de fatores apresentados como elementos centrais da passagem da ciência normal para a ciência revolucionária. A problematização, a criticidade, o experimento mental e o pensar filosófico são alguns fatores que não garantem um caminho rigorosamente lógico ao alcance da intuição. Embora não hajam passos predeterminados para o alcance duma intuição, não podemos ignorar aquelas vias indiretas que possam fomentá-la a partir de um possível contexto filosófico de descoberta.

Palavras-chave Intuição; Filosofia da Educação; Filosofia da Ciência; Educação; Ciência

Abstract

In the development analysis of history and philosophy of science, we are faced with a question: would there be a favorable context for the possible emergence of intuition or would it be completely devoid of chances of being promoted? Leaving aside old theories which defended intuition came from gods, or others that did not leave room to favor it, we join Kuhn (2009) in the defense of a possible link to it. It is a conjuncture of factors presented as central elements in the transition from normal to revolutionary science. The problematics, criticality, the thought experiment and philosophical thinking are some factors that do not guarantee a strictly logical way to reach intuition. Although there are no pre-determined steps for reaching intuition, we cannot ignore indirect ways that can foster it.

Keywords Intuition; Philosophy of education; Philosophy of science; Education; Science

1 Introdução

É difícil não nos lembrarmos de Arquimedes sem o relacionarmos ao termo “eureka”. Conforme Kuhn (2009), o avanço da própria história da ciência é estabelecido por meio de intuições que resolvem crises de determinados paradigmas. Assumindo a importância de tal ato intuitivo, como elemento-chave da solução de determinados problemas científicos a partir do filósofo da ciência recém-mencionado, convém questionarmos sobre o contexto da descoberta que possa favorecê-lo, ou seja, a psique humana pode contribuir com um contexto filosófico de descoberta de tal iluminação, ou ela é, de fato, completamente desprovida de qualquer fator que possa influenciá-la? Há algo que possa colaborar na procura por novidades científicas?

Relembrando que, se, para alguns filósofos antigos, como Platão, conhecer era recordar e, portanto, não poderíamos inventar ou criar, apenas relembrar o que nossa alma já havia aprendido em vidas passadas, para os medievais, a intuição estava profundamente relacionada ao conhecimento divino que, assim, se revelava aos que o buscassem. Com Descartes, a ela é dada a oposição a qualquer percepção sensível e a exclusividade de ser um elemento apenas da razão pura. Isso nos intriga a inquerir com Kuhn (2009, 2011): Seria a intuição um produto tão isolado de qualquer contexto filosófico de descoberta ou haveria um contexto filosófico favorável à evolução de uma pesquisa que poderia favorecê-la? O que seria a intuição para Kuhn (2009)? Cientes da reconhecida importância dada por Kuhn (2009) à intuição, como ele analisa a mesma? Atentando que há uma reconhecida Filosofia da Ciência que acompanha todo pesquisador inventor/descobridor, no presente artigo, analisamos as possíveis explicações pelas quais melhor poderíamos entender um possível contexto filosófico de descoberta da intuição heurística: uma interpretação a partir da estrutura das Revoluções Científicas de Thomas Kuhn.

2 Do problema em questão

Lemos numa determinada citação (a):

“Intuição” geralmente designa a visão direta e imediata de uma realidade ou a compreensão direta e imediata de uma verdade. Uma condição para que haja intuição nos dois casos é que não existam elementos intermediários que se interponham a essa “visão direta”

(MORA, 2005, p. 1.554, grifo do autor).

Noutra explicação sobre a intuição (b), lemos:

Embora tais intuições dependam das experiências, tanto autônomas como congruentes, obtidas através do antigo paradigma, não estão ligadas, nem lógica nem fragmentariamente a itens específicos dessas experiências, como seria o caso de uma interpretação. Em lugar disso, as intuições reúnem grandes porções dessas experiências [como seria o caso de uma interpretação] e as transformam em um bloco de experiências que, a partir daí, será gradativamente ligado ao novo paradigma e não ao velho

(KUHN, 2009, p. 160-161, grifo nosso).

Cientes dos esforços necessários para analisarmos essa difícil temática, mas de igual modo percebendo a riqueza desse debate sobre essa peçachave dos avanços científicos, questionamo-nos se a intuição, de fato, seria uma visão tão direta quanto alegada na citação “a” ou haveria um contexto que poderia favorecê-la como aclarado em “b”. Para tanto, delimitando essa nossa pesquisa no pensamento de Kuhn (2009), questionamo-nos por meio dele se a intuição seria um produto tão isolado de qualquer contexto de descoberta ou haveria elementos filosóficos num contexto de pesquisa que poderia favorecê-la. Cientes da reconhecida importância dada por Kuhn (2009) à intuição, como ele analisa a mesma? O que é a intuição para Kuhn (2009) e se há algum caminho lógico que pudesse a ela nos conduzir? É o que passamos a analisar.

3 Sobre um possível contexto filosófico de descoberta da intuição heurística: uma interpretação a partir da estrutura das Revoluções Científicas de Thomas Kuhn

Deixando de lado antigas compreensões da intuição como um conceito necessário para a explicação da origem do conhecimento da verdade divina como encontramos em Boécio ou em São Tomás de Aquino, questionamonos pelas intuições científicas. Como introduzimos, é notário o reconhecimento da importância das mesmas na evolução da cientificidade. Como se pode ler no texto de Einstein (1981, p. 46), “não existe nenhum caminho lógico que nos conduza (às grandes leis do universo). Elas só podem ser atingidas por meio de intuições”. Mas seriam essas completamente puras e desencorajadas como vimos na citação “a”, ou haveria um contexto em que elas poderiam ser estimuladas a partir do pensamento de Thomas Kuhn?

De fato, como se leu na citação “a”, havia uma tradição filosófica em que “todo esforço de intuição era desencorajado de antemão; ele quebrava contra negações que se acreditavam científicas” (VERDENAL, 1974, p. 214). Era a defesa de uma intuição imediata e independente de qualquer contexto que pudesse antecedê-la. Contudo, por mais que se possa alegar haver o papel da intuição como um poder imediato descontextualizado de quaisquer outros fatores, como Kuhn (2009) demonstra, essa só se tornou real por um contexto prévio de experimentações e problematizações antecedentes.1 Para o mesmo autor, o saber não está contido apenas em intuições puras ou demonstrações empíricas, mas também em reflexões. Na cientificidade, nada advém do total acaso. “Percebe-se, aliás, que o projeto de ‘pôr pelo avesso’ tanto o senso comum quanto a ciência [...] não se pode limitar a descrever uma intuição impulsiva” (VERDENAL, 1974, p. 216). Lembra-se de que há pesquisas nacionais que vêm destacando a “compreensão da natureza [das ciências] como um componente central da alfabetização científica” (EL-HANI, 2006, p. 3). A própria organização do currículo nacional vigente na Inglaterra prevê que o ensino da cientificidade não seja um resumo da aplicação de fórmulas, mas que o estudante possa entender como, de fato, a ciência é produzida. Para tanto, há nele um claro incentivo à atualização de conhecimentos à contemporaneidade e à formação do pensamento reflexivo e crítico (DES, 2004). A discussão sobre a natureza da ciência também é incentivada pela American Association for the Advancemente of Science (AAAS, 1990, 1993). Em nosso país, a recomendação pela consideração das constantes modificações que ocorrem na cientificidade é explanada mais num contexto externo do que interno à cientificidade:

Mesmo considerando os obstáculos a superar, uma proposta curricular que se pretenda contemporânea, deverá incorporar como um dos seus eixos as tendências apontadas para o século XXI. A crescente presença da ciência e da tecnologia nas atividades produtivas e nas relações sociais, por exemplo, que, como consequência, estabelece um ciclo permanente de mudanças, provocando rupturas rápidas, precisa ser considerada

(BRASIL, 2000, p. 12, grifos nossos).

Portanto, aqui ressaltamos, mais ainda, a importância de estudarmos a estrutura interna de uma cientificidade que não pode ser reduzida a meros insights que alguém, isoladamente, possa alcançá-los. Deixamos claro que, com isso, não queremos dizer que estamos negando a existência de intuições puras. Dos antigos gritos eufóricos de Arquimedes aos escritos contemporâneos de Kuhn (2009) ou Poincaré (1995, p. 22-23), encontramos os registros da importância da intuição para a evolução científica: “A intuição é o instrumento da invenção”. De igual modo, Kant (2001) apontou, a partir de juízos sintéticos a priori da razão humana, a partir de uma dada revolução da mente humana, que a matemática e a física deixaram de tatear para serem ciências.

Pressupondo a importância da intuição no desenvolvimento das ciências, perguntamo-nos pela melhor compreensão filosófica que dela poderíamos ter, ou seja, se poderia haver um contexto pelo qual ela pudesse ser provocada, ou se, de fato, seria algo completamente não vinculada a nada.

Contra a tese de que não haveria um contexto correlato à intuição, defendemos, com Kuhn (2009), que a ciência não é edificada unicamente reproduzindo um antigo regime de verdades. Muito pelo contrário, ela estaria o tempo todo sendo reconstruída por problematizações sem nenhuma garantia de haver um ponto-final. É como o Mito de Sísifo, no qual a mente humana estaria sempre em movimento: o ponto-final já seria o ponto inicial de outra atividade. Em síntese, nos termos do filósofo estadunidense, da Revolução Científica segue-se à ciência normal que, em crise, procura por soluções. Dadas as soluções, segue da ciência extraordinária a nova revolução e assim, sucessivamente, a hegemonia de novo paradigma.

Destarte, como se observa em segundo lugar, a “ciência não é uma busca desinteressada pela verdade, cumulando sucessivamente na direção de uma aproximação maior da verdade enquanto guiada pelo teste observacional inequívoco” (ROSENBERG, 2013, p. 188). Logo, também ressaltamos a importância da crítica heurístico-filosófica a partir das lições de Filosofia da Ciência de Thomas Kuhn (2009). Isso porque toda Revolução Científica tem sua filosofia: sem a mesma, ela se torna nula! Em A tensão essencial,Kuhn (2011, p. 242) vai situar “o que há de melhor em termos de pesquisa científica”. Uma pesquisa desenvolvida por solucionadores de enigmas.

Para desvendar como essas revoluções “são produzidas, teremos, portanto, que examinar não apenas o impacto da natureza e da lógica, mas igualmente as técnicas de argumentação persuasiva que são eficazes no interior dos grupos que constituem a comunidade dos cientistas” (2009, p. 128). As novas descobertas emergem “na medida em que as antecipações sobre a natureza e os instrumentos do cientista demonstrem estar equivocados [...], buscando-se, assim, a destruição dos paradigmas vigentes” (2009, p. 130-131). Daqui resulta a importância do reconhecimento da anomalia. Pelo reconhecimento das anomalias existentes, abre-se um caminho capaz de fazer surgir novas teorias! Exemplifica, para tanto, que “unicamente após a rejeição da teoria calórica é que a conservação da energia pôde tornar-se parte da ciência” (2009, p. 132). Do contrário, se os cientistas ficarem apenas no universo teórico já dominado, a ciência ficaria sempre num mesmo estágio. As crises, as anomalias, as problematizações, as investigações, as buscas incessantes por heurísticos caminhos ainda não trilhados são fundamentais para os avanços da ciência extraordinária (p. 132).

Ciência essa, a extraordinária, respeitável, pois para Kuhn (2009, p. 141) é o momento da cientificidade composta de todo potencial para as mudanças “que governam os problemas, conceitos e explicações admissíveis”. E, assim, demonstrando que a ciência não é cumulativa, há de se admitir uma filosofia que acompanha o cientista ao não apenas observar, mas ao interpretar e selecionar dados. É a ideia de que, paralelamente a uma reconhecida ciência paradigmática, no seu ensino, não haja apenas a exposição duma sacralização dos autores científicos consagrados. Os cientistas não se tornaram referências em suas áreas de saberes sem antes terem passado por fases de problematizações e intuições que os tenham conduzido às novas verdades. Para Kuhn “somente quando os cientistas estão livres de analisar criticamente seus fundamentos teóricos, conceituais, metodológicos e instrumentais que utilizam é que podem concentrar esforços nos problemas de pesquisa enfrentados por sua área” (OSTERMANN, 1996, p. 188).

A interpretação, como ele explanou no Capítulo 2 de A estrutura das Revoluções Científicas, desempenha um papel central para seu próprio desenvolvimento. “Dois homens com as mesmas impressões na retina podem ver coisas diferentes” (2009, p. 165). Há um mundo interior e mental do cientista que lhe é pressuposto.

O mundo do cientista, devido à experiência da raça, da cultura, e finalmente, da profissão contida no paradigma, veio a ser habitado por planetas e pêndulos, condensadores e minerais compostos e outros corpos do mesmo tipo. Comparadas com esses objetos da percepção, tanto as leituras de um medidor como as impressões da retina são construções elaboradas às quais, a experiência somente tem acesso direto quando o cientista, tendo em vista os objetivos especiais de sua investigação, providencia para que isso ocorra

(2009, p. 166, grifo nosso).

Bem lembrados! Se até Copérnico todos viram o céu estrelado e sua relação com o Planeta que habitamos da mesma forma, o que mudou a interpretação dele para com os anteriores foi sua forma diferenciada de pensar, raciocinar e de se posicionar de forma heurística. Analisar diferentes formas do pensar é uma parte essencial do surgimento do paradigma filosófico e da evolução das próprias ciências (2009, p. 158). Não que, para tanto, defendamos o completo anarquismo epistemológico ou a completa ruptura com os antigos saberes, mas que a ciência está situada numa tensão essencial entre ruptura e continuidade de teorias, fatos e métodos.

A pesquisa, em contrapartida, está “baseada em uma ou mais realizações científicas passadas” (OSTERMANN, 1996, p. 29). Porém, ela não se amplia meramente pela acumulação de saberes de antigas gerações, mas também não se dá ao completo acaso. Para Kuhn (2009) há uma perspectiva construtiva e inventiva da ciência sobre um antigo modelo científico e um insistente pedido pela reflexão sobre a natureza da ciência e o abandono de velhos paradigmas. “Se a história fosse vista como um repositório para algo mais do que anedotas ou cronologias, poderia produzir uma transformação decisiva na imagem de ciência que atualmente nos domina” (KUHN, 2009, p. 19).

A filosofia, em sendo assim, pode cumprir o papel de despertar a criticidade na análise da natureza da ciência. Uma criticidade tão necessária, uma vez que para Kuhn (2009, p. 141) “as mudanças nos padrões científicos que governam os problemas, conceitos e explicações admissíveis, podem transformar uma ciência”. Para tanto, a crise é reconhecida por tal autor como o prelúdio do surgimento de novas doutrinas científicas. Ou mesmo, suas pré-condições, as quais estabelecem uma análise da situação real do paradigma em questão e demonstra a necessidade de sua renovação. Logo, para tal pensador, ela antecipa a própria renovação científica. A própria “ciência moderna nasceu em oposição e luta do paradigma aristotélico” (KOYRÉ, 1991, p. 206). Para Kuhn (2009, p. 104) “se a ciência grega tivesse sido menos dedutiva e menos dominada por dogmas, a astronomia heliocêntrica poderia ter iniciado seu desenvolvimento dezoito séculos antes”.

A problematização faz parte não apenas do despertar de uma visão dogmático-paradigmática, mas o elemento que também pode reunir mentes para juntas, pensarem em melhores soluções para uma mesma questão ainda não resolvida. Kepler e Brahe, entre outros astrônomos da época, reuniamse em torno de questões ainda não resolvidas da astronomia da época. Questões, essas, relevantes não apenas à ampliação do reconhecimento das limitações acerca de um conhecimento, mas como movimento na busca de possíveis soluções. Contudo, não há um único método preciso para, criativamente, se poder alcançá-las.

Ao deparar [-se] com o inesperado, ele sempre tem de fazer mais pesquisas a fim de aumentar a explanação de sua teoria na área que acabou, por isso mesmo, de se tornar problemática. Ele pode então rejeitá-la em favor de outra e por uma boa razão. Mas nenhum critério puramente lógico poderá ditar por completo a conclusão que ele deverá assumir

(KUHN, 2011, p. 306).

O novo paradigma, portanto, não é consequência do mero seguimento de um caminho lógico. Entretanto, não há como não reconhecer que momentos provocativos e o aprofundamento de pesquisas heurísticas podem colaborar com o surgimento de novas descobertas ou invenções. Para Kuhn (2009) elas surgem de iluminações intuitivas após tais confrontos mentais. Uma intuição, aqui, não mais é apresentada como um elemento puro da mente humana isolada de tudo, mas associada a outras situações que podem promovê-la (KUHN, 2009). Mas como construir tal conceito de iluminação intuitiva responsável pela criação de novos paradigmas sem pressupor uma criticidade heurística, que faça os pesquisadores repensarem as reais problematizações existentes em suas atuais áreas profissionais? Reconhecendo a importância da intuição heurística em Kuhn (2009) pela qual há o surgimento de novo paradigma, não há como não se reconhecer um contexto que possa favorecer tal empreendimento, como diz a expressão latina: ex nihilo nihil fit.2 Logo, se o motor do avanço científico está na revolução que resolve crises e anomalias ao estabelecer novo paradigma alcançado por meio de uma intuição heurística, há elementos que podem fomentá-la. Não que, com isso, queiramos defender que tal iluminação repentina seja uma consequência lógica de passos rigorosamente calculados, mas que há elementos que podem provocá-la. Assim, o autor (2009, p. 160) reconhece-os mediante as seguintes palavras: “Tais intuições dependem das experiências, tanto autônomas como congruentes, obtidas através do antigo paradigma.” Mas que experiências seriam essas?

Como Kuhn (2009, p. 120) anuncia, há o reconhecimento de um experimento do pensamento útil ao progresso da pesquisa. Não que ele ignore o experimento empírico, mas sua atenção esteve voltada à análise mental que permaneceu acima do mesmo. Seja em experiências realizadas por Galileu Galilei, seja por outros cientistas, foi possível observar isso, é o que nos diz o mesmo autor. Assim, ele referencia, em uma nota de rodapé de A estrutura... um artigo por ele desenvolvido apenas sobre essa temática. Trata-se do texto “Uma função para os experimentos mentais”. Nele, o autor (KUHN, 2011, p. 257) sustenta a importância de tal procedimento, já que, “por mais de uma vez cumpriram um papel crucial no desenvolvimento das ciências físicas. Diz que, ao menos, o historiador deve reconhecê-los como poderosos instrumentos no aprimoramento da compreensão sobre a natureza”, trazendo exemplos de Einstein, que ficava

pensando em situações não possíveis de serem criadas em laboratórios empíricos, ou de Bohr e Heisenberg que, assim, postulavam possíveis velocidades e trajetórias de um choque entre um elétron e um fóton. Esclarece-nos ainda mais, mediante as seguintes palavras:

O experimento mental é um dos instrumentos analíticos essenciais que se utilizam durante a crise e que auxiliam na promoção da reforma conceitual de base. O resultado dos experimentos mentais pode ser o mesmo da revolução científica: permitir ao cientista utilizar como parte integrante de seu conhecimento aquilo que seu próprio conhecimento lhe tornara inacessível. É nesse sentido que ele muda seu conhecimento do mundo. E é por ser capaz de provocar esse efeito que acompanha, de modo tão notável, a obra de figuras como Aristóteles, Galileu, Descartes, Einstein e Bohr, os grandes tecelões de novas tramas conceituais

(2011, p. 281).

Reconhecendo limites nos experimentos mentais, ao não trazerem novos dados científicos por si mesmos, enfatiza a importância dos mesmos ao antecederem possíveis experiências. Mesmo que não tragam novos dados e elementos, são muito úteis na organização lógica de uma teoria ou possíveis hipóteses para novo experimento. Desse modo, seriam eles um auxílio aos “cientistas a chegar a leis e teorias diferentes daquelas que sustentavam antes” (2011, p. 259). Galileu Galilei, antes da realização de experimentos científicos, analisava com seus interlocutores todas as possíveis respostas a que poderia chegar diante de nova questão de investigação. O próprio experimento era modificado antes de sua realização por meio dessa prévia análise entre distintos interlocutores. O “experimento mental, como indica o próprio Galileu, é propedêutico à discussão dos movimentos uniforme e acelerado, o qual ocorre no “Terceiro discurso” de suas Duas novas ciências” (2011, p. 266). Observa-se, contudo, que, para um experimento mental ser eficaz, os mesmos conceitos precisam ser mantidos antes e depois do procedimento.

Importante instrumento à análise de teorias ou à organização de experimentos, a experiência mental é um importante recurso pelo qual as ciências também podem ser beneficiadas. Por meio dele, antigos conceitos problemáticos são purificados ou substituídos a partir de uma função crítica ou analítica, uma vez que leis, conceitos e teorias sempre são pressupostos em conhecimentos científicos. Justificamos, pois, a presente função mental de um ente imaginativo. Esses conceitos apenas reforçam algumas atividades, nas quais mesmo o exercício filosófico torna-se um legítimo instrumento válido ao desenvolvimento científico (2011, p. 280). Embora válidos, tais experimentos não são condições necessariamente vinculadas à origem das intuições. As intuições, de fato, são as responsáveis pela nova descoberta paradigmática, mas não há um rígido caminho a ser seguido para serem alcançadas. Embora o caminho não esteja pronto, aponta-se a um contexto pelo qual as mesmas podem ser provocadas. A problematização será uma dessas indicações imprescindíveis para a evolução dos mesmos. Ela surge a partir do reconhecimento de uma anomalia.

Se a consciência da anomalia desempenha um papel na emergência de novos tipos de fenômenos, ninguém deveria surpreender-se com o fato de que uma consciência semelhante, embora mais profunda, seja um pré-requisito para todas as mudanças de teorias aceitáveis

(KUHN, 2009, p. 94).

Sendo assim, o autor destaca que essas crises não se situam apenas na passagem da ciência normal para a extraordinária. Em virtude das mesmas, as próprias análises filosóficas são retomadas pelos cientistas como meio à solubilidade das questões em voga. É inegável a contribuição da apontada experiência do pensamento crítico-reflexivo, imaginativo e inventivo. As “mudanças nos padrões científicos que governam problemas, conceitos e explicações admissíveis, podem transformar uma ciência” (2009, p. 141). E iniciam na própria forma a priori de se concebê-los.

Eis um espaço que, na própria evolução da cientificidade, precisamos reconhecer, com Kuhn (2009, 2011), uma possibilidade de se desenvolver o exercício do pensamento filosófico por meio de problematizações como potencializador da evolução científica. Evolução que, ao não ser cumulativa, depende de um sujeito com uma mente aberta, reflexiva e crítica. A própria atividade de justificar uma descoberta envolve habilidades argumentativas que pressupõem conceitos e lógica. “Nem é acidental o fato de, em ambos os períodos, a chamada experiência de pensamento ter desempenhado um papel tão crítico no progresso da pesquisa” (2009, p. 119). Há um inegável espaço crítico, heurístico e filosófico que acompanha a trajetória do cientista. Nas palavras de Kuhn, a passagem completa em que ele explana tal convicção, como se lê:

Dado um paradigma, a interpretação dos dados é essencial para o empreendimento que o explora. Esse empreendimento interpretativo [...] pode somente articular um paradigma, mas não corrigi-lo. Paradigmas não podem, de modo algum, ser corrigidos pela ciência normal. Em lugar disso, como já vimos, a ciência normal leva, ao fim e ao cabo, apenas ao reconhecimento de anomalias e crises. Essas terminam não através da deliberação ou interpretação, mas por meio de um evento relativamente abrupto e não estruturado semelhante a uma alteração da forma visual. Nesse caso, os cientistas falam frequentemente de “vendas que caem aos olhos” ou de uma “iluminação repentina” que “inunda” um quebra-cabeça que antes era obscuro, possibilitando que seus componentes sejam vistos de uma nova maneira – a qual, pela primeira vez, permite sua solução. Em outras ocasiões, a iluminação relevante vem durante o sonho. Nenhum dos sentidos habituais do termo “interpretação” ajusta-se a essas iluminações da intuição através das quais nasce um novo paradigma. Embora tais intuições dependam das experiências, tanto autônomas como congruentes, obtidas através do antigo paradigma, não estão ligadas, nem lógica nem fragmentariamente a itens específicos dessas experiências, como seria o caso de uma interpretação. Em lugar disso, as intuições reúnem grandes porções dessas experiências e as transformam em um bloco de experiências que, a partir daí, será gradativamente ligado ao novo paradigma e não ao velho.

(2009, p. 160-161, grifo do autor).

De fato, Kuhn (2009) se refere a uma imagem de ciência distante de uma evolução linear e muito mais próxima de uma imagem dinâmica entre as anomalias, o reconhecimento da crise, das problematizações, da continuidade, da ruptura, da intuição, do experimento e da revolução. Logo, compreendemos que o contexto pelo qual se dá a iluminação da intuição pode ser fomentado e não pode ser nem essencialmente convergente ou divergente. A ciência é uma produção coletiva, cultural e historicamente situada nas atuais problematizações com que ela se defronta e investiga. Para tanto, questionar dogmas e investigar verdades é procurar por respostas que estão por vir, mesmo não sabendo qual é o momento exato em que elas virão: será num despertar do sono? Será na hora do banho? Será na hora da caminhada? Será na hora dos estudos ...? Razão essa, pela qual Ostermann (1996, p. 195) também se posiciona em favor da necessária “problematização do conhecimento e, consequentemente, o questionamento sobre a visão de ciência tão difundida nos livros e nas aulas (o ensino do método científico como uma sequência rígida de passos que começa com uma observação e culmina em uma descoberta)”. A invenção de um conhecimento não pode se resumir apenas ao que já se sabe. Pois, “se as teorias existentes obrigam o cientista somente com relação às aplicações existentes, então não pode haver surpresas, anomalias ou crises. [...] Esses [elementos das anomalias ou crises] são apenas sinais que apontam o caminho para a ciência extraordinária” (KUHN, 2009, p. 135).

A intuição científica, desprovida de seu contexto, não tem hora, dia, mês e ano exatamente predeterminados para que possa ter determinadas evoluções. Ela é dada por uma iluminação repentina e final que acaba resolvendo todo o enigma perseguido há mais tempo. Mas esse insight final não é algo completamente dado ao acaso; precisa de problematizações que provoquem a ocorrência de novas descobertas. El-Hani assim defende o ensino de outros elementos relacionados à cientificidade em prol de seu desenvolvimento: “Não é o caso de enfocar-se somente a participação de alunos e professores em atividades simuladas de investigação científica, sem tratamento explícito e crítico das dimensões históricas e filosóficas envolvidas em tal investigação” (2006, p. 3).

Logo, um contexto que contemple a explanação das atuais limitações e problematizações de cada área científica se justifica por ser um necessário caminho às próprias Revoluções Científicas. Não há revoluções com inovação por meio de iluminações intuitivas sem, antes, haver tido um contexto de procura pelas mesmas. Não concordamos com a tese de que elas poderiam surgir do mero acaso.3 Distantes de uma imagem de ciência eterna e imutável, caminhando de um solo positivo a um pós-positivista, buscamos explicar a intuição a partir de novo contexto filosófico que possa melhor favorecê-la. Há uma inegável

“tradição da discussão crítica [que] representa o único modo praticável de expandir nosso conhecimento” até os filósofos gregos, entre Tales e Platão, homens que ao seu ver, encorajaram a discussão crítica tanto entre as escolas quanto no próprio interior delas. [...] É antes a tradição de argumentos, contra-argumentos e debates sobre questões de fundamentos que desde então com exceção talvez da Idade Média, caracteriza a filosofia e muito da ciência social

(KUHN, 2011, p. 290).

Aqui fica a insistente defesa dum contexto problematizador em prol da investigação de novas verdades. É como um par de lentes que, ao não servirem mais, precisa ser trocado por outro. Entretanto, tal descoberta das lentes ideais pressupõe que o sujeito as busque. É ao próprio sujeito que cabe fazer uso de uma ideia, frase, análise ou conceito para repensar suas próprias vivências. Logo, o diagnosticar, o duvidar e o problematizar as verdades do presente de cada ciência lhe são meios para o exercício que busca chegar a novidades das mais simples às mais complexas, porque ela tematiza, de forma radical, seus fundamentos e pressupostos sem se esquecer de suas já consolidadas linhas diretivas. “O cientista produtivo deve ser um tradicionalista que aprecia jogos intrincados com regras preestabelecidas a fim de se tornar eventualmente um bem-sucedido inovador que descobre novas regras e novas peças com as quais jogá-los” (KUHN, 2011, p. 253).

O conhecimento da fragilidade dos paradigmas é o trampolim às novas descobertas. Essas são fomentadas pelo desejo de inovação encorajado pelas constantes problematizações. Para tanto, como compreendemos a partir de Kuhn (2009), é imprescindível a superação da concepção de intuição como algo completamente isolado de todo um contexto que pode envolvê-la. É claro que ratificamos não haver nenhum passo metódico que, como na aplicação de uma fórmula, possa desencadeá-la, mas a valorização do contexto de um experimento mental antecedente ao contexto da descoberta. É imprescindível a apropriação do saber e a autonomia da problematização e da pesquisa científica em prol de novas intuições. É por meio delas que os cientistas obtêm importantes respostas. “Pode-se supor que em algum momento de sua formação o cientista abstraiu de modo intuitivo as regras do jogo para o seu próprio uso” (p. 72). Para tanto, “ser científico é, entre outras coisas, ser objetivo e ter espírito aberto” (p. 19).

Conclusão

Concluímos, por meio desta pesquisa, que a intuição continua sendo um conceito de análises filosóficas tão atuais e importantes quanto era a exclamação de alegria de Arquimedes ao se referir a ela com o termo eureka após novas descobertas/invenções.

Proclamada por Kuhn (2009) como a peça-chave na solução de problemas que nos conduzem à trilha de novas Revoluções Científicas e novos paradigmas, a intuição não mais é explicada por meio de conceitos teológicos ou desprovidos de todo e qualquer contexto. Embora ainda não haja um consenso universal sobre essa temática, por meio dos escritos desse filósofo da ciência, aqui encontramos mais uma grande importância de suas reflexões. Por mais que a intuição não seja alcançada pelo seguimento de rígidos passos metodológicos e continua sendo dada por uma iluminação repentina da mente humana, há um contexto filosófico de descoberta que pode favorecê-la.

Logo, para Kuhn (2009) a intuição não é um produto do acaso e tão logo uma sequência lógica alcançada pelo rigoroso seguimento de etapas predeterminadas. Entretanto, reconhece tal pensador estadunidense que há uma filosofia da pesquisa que acompanha o pesquisador em todas suas etapas. Dessas, salientamos a importância do trabalho de pesquisa e de problematização ao provocar novas respostas, mesmo que não sejam instantâneas naqueles momentos por elas solicitados. Como se parte da hipótese de que nada se produz ao acaso, tal contexto provocativo pode favorecê-las, não há por que não reconhecê-lo. Como Pasteur (2016) escreveu, apenas as mentes preparadas são favorecidas pelo acaso.

1Ressaltamos que, embora a filosofia de Bergson seja completamente distinta da de Kuhn, ao ter sido um grande estudioso dessa temática, é justo observar que igualmente ao mesmo não há aqui a defesa da intuição impulsiva. Como Bergson demonstra a partir da intuição da duração, ao não recorrer a uma consciência sobre-humana, ele também a relaciona com uma análise teórica dos conceitos envolvidos e anteriores ao “poder do imediato”. (VERDENAL, 1974).

2Nada surge do nada.

3Para essa discussão ver também: Hadamard, 2009.

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Recebido: 25 de Janeiro de 2017; Aceito: 13 de Novembro de 2019

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