1 Um problema com problemas: a leitura do conceito em Categorias e Metafísica
A questão reitora de Aristóteles sempre foi procurar conhecer o ser enquanto ser, o que significava, acima de tudo, que Aristóteles procurava compreender as coisas tal como elas são, quer dizer, procurava compreender não apenas as características, mas as condições para que as coisas sejam (desta ou daquela forma). Ora, esse exercício enferma e arrasta consigo vários problemas. Desde logo, porque seu mestre Platão já se aventurava a criar um sistema metafísico de grande dimensão, instituindo uma série de léxico conceptual-filosófico e os antigos Heráclito e Parménides tinham deixado uma dualidade de conceções em suspensão, relativas à questão do movimento (da mudança) do ser. Envolvido nesse ambiente filosófico, Aristóteles apresenta sua concepção de realidade sensível, isto é, a existência dos seres em concreto, mas sem ignorar a existência que se constata na Physis. Seria, assim, a substância, a resposta, o Lapis Philosophorum da natureza humana que sustentaria tal sistema metafísico? Assim, para empreendermos a resposta a essa questão e para adiantarmos uma compreensão da noção de substância, temos de nos debruçar sobre duas obras fundamentais de Aristóteles: Categorias e Metafísica. Ora, em tal tarefa, descobre-se, a priori, um problema maior, que alguns julgam inultrapassável – no qual não nos podemos deter para o intuito deste ensaio –, a saber, a problemática relativa à extensão e à veracidade do corpus aristotelicum.1
O livro Categorias chegou até nós como um único livro dividido em 15 capítulos. Ora, é precisamente a existência desses 15 capítulos que forma as Categorias e que surgem os problemas: a obra parece estar como que dividida em duas partes: uma primeira, dos Capítulos 1 ao 9, “o tratado original sobre os mais elevados gêneros de ser ou categorias, o qual se encontra incompleto” e uma segunda parte, dos Capítulos 10 a 15, em que se percebe certa divergência, não só no que diz respeito ao estilo como à própria estruturação do texto (SANTOS, 1995, p. 19).2
Com a obra Metafísica, temos uma situação particularmente semelhante, como nos alerta Gonçalves, destacando duas questões importantes que devem ser observadas: “A primeira é suscitada pelo próprio texto aristotélico, que armazena avaramente uma legião de dificuldades; a outra, não totalmente dissociada da anterior, incide sobre a própria noção de metafísica, pouco clara nesse texto, talvez por aí ser plurívoca” (1977, p. 23).3
Suzanne Mansion tem a esse propósito uma posição curiosa. Em um artigo seminal de juventude (“La première doctrine de la substance”, de 1946), assume que vai ignorar, na sua leitura do conceito de substância o debate sobre essa problemática, apesar de reconhecer a dúvida instalada sobre a autenticidade da obra;4 mas, num artigo escrito 30 anos depois, particulariza a análise sobre cada livro, referindo-se assim ao Livro 7: A estrutura não é clara; alguns capítulos não parecem [se] encaixar na linha geral de argumentação [...], os capítulos 7-9 interrompem a linha de pensamento que era aparente nos Capítulos 1-6 e 10-12" (1979, p. 80).
Surge, assim, inevitavelmente ,a questão: É ou não possível fazer uma leitura conjunta do conceito de substância no corpus aristotelicum? Se sim, que resultados podemos esperar?
Rudolf Boehm dedicou-se a esse problema na sua obra A metafísica de Aristóteles... e, coloca a questão nos seguintes termos: poderá haver uma contradição entre Met. VII, 3 e o Capítulo 5 de Categorias, no que diz respeito ao conceito essencial de “jacente-au-fond”, isto é, como substrato? Segundo Rudolf Boehm, Aristóteles em Categorias não teria determinado, suficientemente, o conceito de “jacente-au-fond”, mas realça que existe uma interpretação tradicional da Met. VII, 3 que invoca o testemunho de Categorias, sugerindo mesmo que essa interpretação exige, de fato, uma corroboração com esse testemunho (BOEHM, 1976, p.108-109).5 No entanto, parece-lhe que a “consistência” não é a mais desejável e avança com a hipótese de que o erro pode residir num mal-entendido elaborado, precisamente, em Categorias e que pressupõe (como base) a substância, entendida como sujeito, isto é, a pergunta transitou de “o que é a essência?” para “o que é o sujeito?” (BOEHM, 1976, p. 123). Essa falta de consistência na interpretação tradicional,6 só pode derivar da atribuição de pressuposições metodicamente inadmissíveis.7
Apesar de Hamelin ser um dos primeiros a perceber essa condição e, por isso, ao afirmar que o ponto de interesse e verdadeira introdução a este tema deve ser considerado a partir de Met. V,8 é Jaegger quem considera que o ponto de partida de Aristóteles na Met. VII, 3, é uma pressuposição do conceito-essencial de “jacente-au-fond”, retomada daquilo que, em Categorias se nomeia como “souverainement, premiérement et plus essence” (1955, p. 45).
No seio desses comentadores, Ernst Tugendhat declara sua clareza em relação ao assunto: a substância primeira é a substância propriamente dita, pois é ela que jaz no fundo, que suporta e sustenta (apud BOEHM, 1976, p. 128).9 Cousin sugerira certa forma de desmistificação do problema, apontando por isso que a autenticidade das Categorias constitui um falso problema, pois para “os estudantes de lógica e metafísica, Aristóteles é o Corpus Aristotélico [...] [e por isso] Substância no seu sentido verdadeiro e primeiro e mais definido da palavra é aquele que não é predicado nem presente num sujeito” (COUSIN, 1933, p. 320). Isso parece ser oferecido como uma definição de substância, e a sugestão é corroborada segundo Cousin, em comparação com Met.V, 8.
Andrew Reck faz uma leitura semelhante ao reforçar esta ideia, a de uma leitura a partir do Livro 5 (1978, p. 540),10e Nicholas Lobkowicz, cerca de uma dezena de anos mais tarde, diz-nos exatamente o mesmo: nas “categorias, ele [Aristóteles] sugeriu uma definição de ousia que na Metafísica se volta a repetir várias vezes” (1989, p. 29).11
Percebemos que essa problemática é deveras envolvente e exige um lugar de aprofundamento que não esse. Assim, e para não nos retermos demasiado nessa problemática, assumiremos a existência de uma ligação entre tais obras (que nos possibilite o entendimento do conceito de substância) e tomemos como garantido que a passagem 1017b 13 do Capítulo 8, Livro 5 da Metafísica é concordante com as passagens 2 a 11 e 3 a 7 de Categorias,12 ou a passagem de Met. VII, 1, 1028 a 10 com a passagem de Categorias 3 b 10.13
Duas observações devem ser feitas antes de prosseguirmos: a primeira, na passagem referida da Met. VII, 1 1028 a 10, Aristóteles diz claramente que “o que primeiramente “é”, é a essência, a substância [da coisa]”, o que nos leva a assumir que há uma leitura equivalente à de Categorias quando se fala de “substância primeira”.
Aliás, o mesmo se pode dizer das passagens 1028 a 30; 1028 b 5; 1030 a 29; e 1045 b 25, que citam a substância primeira); segunda, que “um certo isto” (um tode ti) da passagem 3b 10 de Categorias parece estabelecer relação com a expressão “ser significa “o que uma coisa é, ou, uma essência”, pois a essência, a quididade (ser um isto ou um aquilo) é um modo específico de ser (diferença específica), um “certo isto”.14
2 Problematizando a Ousia: essência e quididade
A palavra substância chegou através do latim substantia (do verbo substare que significa estar debaixo de, sustentar, estar sob) que traduzia um vocábulo grego parecido com Hypokeimenon (que significa literalmente o que subjaz). Os latinos traduziriam esse vocábulo por subjectum (de subjacere, jazer sob – que viria a dar em português sujeito) que filosoficamente referiria o ser concreto, individual. Seria um “algo” que revelaria aquilo que uma coisa é; é aquilo que é primeiramente e que é sujeito de todas as determinações, ou dizendo de outra forma, é o que determina o ser a ser aquilo que é.
Um dos ensinamentos maiores de Aristóteles encontra-se logo no início do Livro 1 de Metafísica (1, 980 a), quando refere que os homens desejam naturalmente conhecer. Interrogar é querer conhecer, e conhecer é ver o que as coisas são, é perguntar o que são as coisas. As coisas são (diríamos) realidades substanciais, iniciando-se, assim, a filosofia aristotélica, coisa que ninguém teria observado com essa clareza.15
O ser que para Platão era como um reflexo de uma entidade maior, para Aristóteles é uma realidade: as coisas são substâncias, e o que existe no mundo são substâncias. A substância é o ser individual, por exemplo, certo homem, certo cavalo, do qual se predica algo. Aristóteles considera, evidentemente, que admitir um mundo de ideias como algo de distinto dos seres sensíveis não só é algo de insustentável como é desnecessário. Aliás, Aristóteles considera mesmo que essa transcendência de ideias, retira inteligibilidade do “mundo sensível” (como sabemos Platão não exprimiu corretamente a relação entre as coisas e as ideias) e o Livro 1 é prova constante dessa crítica extensiva a outros filósofos.16
O projeto aristotélico é nobre e original em si mesmo: trazer as ideias do mundo suprassensível à realidade, ou melhor, fazer do objeto real da ciência o indivíduo (e portanto atrevemo-nos a dizer, a acabar com a dualidade mundo sensível-mundo inteligível e fundir através do conceito de substância, a realidade dos seres).
Aristóteles (numa clara alusão crítica a Platão) começa por analisar a diferença que existe entre o nível da linguagem e o nível da realidade, pois uma coisa é aquilo que se diz, e outra, aquilo que é. Por isso, Categorias é como um primeiro tratado de linguagem que desemboca numa ontologia. Aquilo que é de se considerar é que Aristóteles toma a substância como uma entidade, uma realidade; a substância, a ousia é um ser determinado.17
A distinção aristotélica entre substância e as restantes 9 categorias, traduz uma distinção entre o principal gênero de ser e os gêneros secundários; contudo, nessa relação, há como que certa dependência ontológica, isto é, as substâncias segundas só existem se existirem ou se existir a primeira.18
Uma substância distingue-se dos seus acidentes por ser ontologicamente prioritária; ou seja, uma substância é aquilo no qual existem os acidentes. Poder-se-ia, assim, dizer que a substância primeira é a parte mais fundamental que constitui o indivíduo, mas afirmar isso não responde ainda à questão essencial que pergunta pelo ser do ente, ou seja, à pergunta pelo o que é o ser.19
Como sabemos, a pergunta pelo ser passa pelos modos como o ser pode ser afirmado, uma vez que o “ser se diz de várias formas”. A pergunta que se poderia dirigir a Aristóteles seria, nesse caso: O que é o ser do ente? Recorde-se, no entanto, que o autor diz em 1028 a 15, que “embora ‘ser’ tenha todos esses sentidos, é evidente que o que primeiramente é é a essência, a substância da coisa”. A que se deve tal afirmação? Segundo o Estagirita, a substância exprime melhor o modo de ser de algo; é também da substância, da ousia que emana o estatuto de ser para as outras coisas (como visto em 1028 a 20 e ss). Naturalmente, nessa aparente simplicidade de procurar definir e realçar o carácter ontológico do ser dos entes, não está ainda esclarecida a questão da ousia.20
O que primeiramente é é a substância, como é dito em 1028 b 30: “Ora, em vários sentidos se diz que uma coisa é primeira, e em todos eles o é a substância: |1| na definição, |2| na ordem do conhecimento, |3| no tempo”. Depreende-se, assim, que é primeira na definição, uma vez que Aristóteles parece dizer que em cada termo de uma definição, está incluída a de substância. Seguindo essa indicação, David Ross adiante que,
ao definirmos um membro de uma outra qualquer categoria devemos incluir a definição da subtância subjacente. Com efeito, se pretendemos conhecer algo pertencente a uma categoria diferente da substância, temos de perguntar, não pelas suas qualidades, etc., mas pelo que ela é, pela sua quase-substância, pelo que a constitui tal qual como é
(1987, p.172).
Em 1012 b 32, Aristóteles afirma: “A palavra ‘substância’ é aplicada, senão em mais sentidos, pelo menos a quatro objectos principais; pois tanto a essência como o universal e o gênero são considerados como sendo a substância de cada coisa, e em quarto lugar o substrato.” Ora, atentemos, pois, nesses termos. No original grego temos: 1) To Ti Einai (Essência / Quididade); 2) Tó Katholou (Universal); 3) Genus (Gênero); 4) Tó Hypokeimenon (Sujeito / Substrato). Uma rápida análise nesse último, ao substrato, parece ser inadmissível, e o estudo dele é abandonado provisoriamente (só retomando Aristóteles em VII, 13, 1038 b 2-6 e também em 1042 a 26). O problema surge inevitavelmente: saber qual é a constituição da substância ou qual é a essência da substância. Aristóteles responde da seguinte forma, em 1029 a 2: “E num certo sentido se diz que a matéria é da natureza da substância, em outro sentido a forma e, num terceiro, a composição das duas.” Essa é, parece-nos, uma das questões senão mesmo a questão que perturba os comentadores, como Cousin e Robin.21 Boehm adverte acerca da necessidade de se determinar o “jacenteau-fond” (o substrato), pois parece ser ele, primeiramente, mais essência e se percebe, notoriamente, aqui, a ideia transmitida pelas Categorias de que ser sujeito é critério de substancialidade (BOEHM, 1976, p. 129); no entanto, o “jacente-au-fond” não está determinado como em Categorias pelo que surge uma insuficiência explicativa. A questão a colocar é: Faz realmente sentido estabelecer a identificação entre substância e substrato? Repare se que, na Metafisica, é-nos dito que uma tal identificação levaria a uma identificação com a matéria (1028 a 15-20). Ora, Aristóteles abandona a noção de substrato e dá um passo importante como explica David Ross, pois se encaminha para o sentido mais original da substância – a essência,22 como vemos em 1030 a 2: “Porquanto a essência é precisamente o que uma coisa é.”
Suzanne Mansion é uma defensora do conceito de quididade como sendo a substância de cada coisa.23 Façamos, então, a seguinte pergunta: Como entender a quididade? Podemos definir a quididade como um modo específico de ser, ou melhor, de “ser um aquilo”? Essa expressão tem por correlativo no grego o To Ti En Einai, que os latinos traduziram por quod quid erat esse, ou quidditas. A quidditas permite-nos interpretar o que uma coisa é, era e vai sendo (atendendo aos tempos verbais), o que cria uma dimensão de temporalidade própria ao ente – ao Tó Ón – enquanto existente em ato, enquanto ente sujeito às mudanças que ocorrem no mundo, no fundo, ao devir. (TOMÁS de AQUINO, 1995, p. 70).24
Façamos um breve parênteses para chamar ao diálogo São Tomás de Aquino, que é um intérprete privilegiado desse modelo aristotélico, de que a sua obra O ente e a essência (um opúsculo, que tem o intuito didático de ensinar os principais conceitos metafísicos), se torna reveladora. Aí, Tomás de Aquino inscreve o leitor no coração do tema: “o ente e a essência são o que o intelecto concebe em primeiro lugar, como diz Avicena no princípio da sua Metafísica” (TOMÁS de AQUINO, 1995, p.7 2).25 Tomás de Aquino quer nos introduzir no seio das coisas existentes reais (tal é o pressuposto aristotélico no qual o santo se baseia). São Tomás explica a tradução adotada:
E porque aquilo por que uma coisa é constituída no seu próprio gênero ou espécie é aquilo que é significado pela definição indicando o que uma coisa é, por isso é que o nome de essência foi transformado pelos filósofos no nome de quididade: e é isso que o filósofo chama frequentemente aquilo que o ser era (quod quid erat esse), isto é, aquilo por que alguma coisa tem / como / ser aquilo / que é
(TOMÁS de AQUINO, 1995, p. 2, grifo nosso).
Assim, o To Ti En Einai “apontaria, portanto, para essa substância, essa substancialidade do ente que como que o vai expressando naquilo que constitutivamente é (e já era – quod quid erat esse)” (BARATA-MOURA, 1979, p. 459, grifo nosso).
No seguimento dessa interpretação, Vianney Décarie avança com a tese de que o Ti En Einai é qualquer coisa de determinado, um Tode Ti: “Com efeito, o ser significa o Ti Esti e o Tode Ti e depois a qualidade, a quantidade e cada um dos outros predicados acidentais” (DÉCARIE, 1972, p. 143). Essa, aparentemente, simples distinção de nomes a aplicar sobre a essência, mostra o quanto ela está intimamente relacionada com a noção de substância.
3 Dinâmicas da substância ou a abertura da Metafísica Onto-Teo-Lógica
Como bem referiu Aristóteles, à pergunta ontológica – O que uma coisa é? – responde-se pela definição. A definição é uma proposição que exprime uma diferença específica, ou se preferirmos, definir em Aristóteles é estabelecer uma relação entre dois nomes. Problema: Se a definição é composta de dois termos, qual é o estatuto de uma substância composta? Se os termos compostos tivessem uma quididade, teríamos, ao que parece, uma regressão ad infinitum, ou seja, o indivíduo não seria um, mas uma soma de quididades (e se perderia a unidade do indivíduo).26 Então, a questão a colocar é: Qual seria a relação entre a quididade e a coisa que é; a quididade tem uma dimensão universal e sabemos que este universal coincide com cada indivíduo, portanto como pode ser ela universal? A solução ontológica: o indivíduo tem que coincidir com sua quididade e com o seu Ti Estin; caso contrário, se tornaria indefinido.
O importante para Aristóteles é garantir que se conhece o indivíduo, pois, assim, se terá acesso à sua quididade, isto é, ao seu modo específico de ser, conhecer aquilo que ele é, Ti Estin. O indivíduo é conhecido na sua dimensão universal – não seria possível definir um ser individual, uma vez que essa definição estaria sempre sujeita à demolição argumentativa. Dizendo de outra forma, só o indivíduo existe, mas aquilo que é conhecido nele é o universal.27 Assim, porque o nosso espírito pode considerar, abstratamente, não importa o quê como um sujeito, que reconhecemos uma quididade nas categorias secundárias. Todo o conhecimento intelectual de um objeto é certa apreensão do que ele é, aquilo que ele é – Ti Estin: algo que é característico e próprio. Mas Aristóteles vai ainda mais longe e, para resolver o problema do conhecimento e da gênese ontológica, ele aponta ao par conceitual matéria / forma, que acaba por representar o composto de que o indivíduo é formado (e por isso a ciência deve dar conta da substância na qual se encontram reunidas essas características).28
Responder à pergunta: O que é o ser para Aristóteles? Responde-se: a substância, uma vez que é primeira no tempo e na ideia (conceito de acordo com o conhecimento). Ser significa, primeiramente que tudo é uma substância, e tudo aquilo que não é substância existe em virtude de uma e não pode ser concebido sem uma; assim, ser no seu sentido primário, significa ser um individual subsistente (repare-se que temos aqui subjacente o par conceitual matéria/forma). Esse individual subsiste como determinado. Mas como? Aristóteles responde-nos: que a forma é a determinação essencial de alguma coisa, e a matéria é essa alguma coisa que precisa ser determinada, pelo que Mansion sintetiza dizendo: “A substância sensível é, pois, a forma de uma matéria; é unidade, o “conjunto” de forma e matéria…” (1979, p. 87). Inevitavelmente, surgem outras questões coladas a essa definição, por exemplo: Como se determina essa substância sensível? Ou, Qual é o sentido atribuído por Aristóteles à matéria?
Um esclarecimento em fim de linha: na esteira dos pré-socráticos, também Aristóteles atribui um significado indeterminado à matéria; tal indeterminado não é nenhum ser em particular, e porque não é em ato, pode ser em potência qualquer ser ou substância e, ao mudar, adquire uma forma que a faz ser (em ato).29 Estamos perante algo mais elaborado no pensamento aristotélico que devemos esclarecer. Os entes compostos de forma e matéria estão sujeitos e se sujeitam ao devir, à mudança, e, consciente dessa constatação empírica, Aristóteles introduz as noções de potência e ato.
Essa distinção potência/ato é anunciada no Livro 7 e retomada. Posteriormente. no Livro 9 e parece ser uma distinção paralela à matéria/forma, embora queira parecer que Aristóteles concede certa primazia à forma como é dito em 1032 b 30-32: “A geração é impossível se não pré-existir algo”. Somos, naturalmente, levados a pensar que a forma tem de preexistir em face da matéria porque empiricamente, aquilo que encontramos no mundo são matérias com forma, ou, se quisermos dizer de outro modo, não existe matéria sem forma, por isso Mansion refere que, no caso das substâncias sensíveis, há mesmo uma inseparabilidade entre matéria e forma (1979, p. 86).
Assim, com o par conceitual potência/ato aplicado conjuntamente ao par matéria/forma, torna-se inteligível (ess)a mudança nos entes. Essa inteligibilidade explica não só o devir, o movimento, a passagem de não ser a ser, mas a gênese ontológica dos indivíduos, de como algo se transmuta noutra coisa. Por exemplo, um jovem que se torna (com o passar do tempo) velho (o jovem é velho em potência; a velhice encontra-se num número de possibilidades que o jovem poderá vir a atualizar).
A potência designa uma possibilidade (a possibilidade de passar a ser, de se tornar algo diferente daquilo que é) e é, nesse sentido, que ocorre a dunamis inerente a todo processo ontológico.30 Os entes captam as diferenças que ocorrem no devir através de sua consciência relacional, quer dizer, através do modo como as coisas se vão atualizando (a relação entre um antes e um depois como Platão já referira).
Seguindo a lógica argumentativa de Aristóteles, percebe-se que a matéria pode ser, em potência, qualquer coisa e, através da mudança, adquire uma forma que a faz ser em ato. Isso significa que o ato tem uma identificação com a forma, uma vez que a forma é que faz com que a coisa seja aquilo que é, e sendo uma estrutura que afeta a matéria, a forma aproxima-se dos elementos essenciais que fazem com que as coisas sejam o que são (aproxima-se da essência). Esse privilégio da forma compreende-se bem se atentarmos que Deus é considerado, no sistema aristotélico, ato puro, como o motor imóvel,31 o que significa que, privilegiando a forma, a essência, Aristóteles privilegia, também, a forma das formas, ou seja é, reforça a primazia da essência sobre a existência (o privilégio do universal, do lógico sobre o individual). Talvez por isso, fazer ciência para Aristóteles só é possível a partir das determinações do homem, uma vez que a essência tem um primado lógico – o que uma coisa é é a substância.32
Podemos afirmar que Aristóteles, ao identificar o estudo do ser com o estudo da substância e da inteligibilidade da forma, acaba por cair numa certa forma de platonismo. Note-se que Platão havia referido que a forma domina e explica o sensível (embora sem nunca ter explicado como se movia a forma do sensível); ora, para Aristóteles a forma está a realizar-se no sensível, quer dizer, ela aciona a matéria, mas é, ao mesmo tempo, fim, é ordem para que tende ao sensível. No fundo, Aristóteles, ao privilegiar o estudo do real, dos entes concretos, inscreveu, no coração da realidade, uma estrutura metafísica, fazendo da forma o instrumento de realização do mundo.
A filosofia primeira, que se proponha estudar o ente como ente, acaba por inaugurar um modelo de Onto-Teo-Logia (uma redução ôntica como refere Mafalda Blanc), na qual se destaca o plano da forma e do ser supremo na figura do ato primeiro: identificando o estudo do ser ao da substância e da inteligibilidade dessa ao plano da forma, Aristóteles acabaria por cair no platonismo que criticara, consumando a redução ôntica do ser ali esboçada e agora consignada na figura do ente supremo, ato puro e causa primeira. Acabaria, assim, por dar à filosofia primeira o perfil de uma Onto-Teo-Logia, que constituiria, doravante, o modelo metafísico da ontologia subsequente até à crítica kantiana (BLANC, s/d, p. 19).
Nesse sentido, Gonçalves destaca uma dupla interpretação: “Uma de caracter ontológico, segundo a qual a metafísica faria a análise da estrutura do ser; outra, de tendência Metafísico-Teológica, cuja função consistiria na apreensão de uma causa primeira acabando a metafísica por se transformar numa filosofia primeira ou teologia” (GONÇALVES, 1977, p. 125-129).
Podemos, pois, dizer que a filosofia primeira – leia-se, a ciência do ente como ente – culmina em algo que excedeu ao seu projeto. Indo ao coração da realidade, sítio privilegiado da metafísica, Aristóteles abriu as portas para esse pensamento metafísico, que suscita a interrogação e parece indicar o caminho para o quadro conceitual de uma Onto-Teologia racional, onde o mistério da espiritualidade se adensa e ganha sentido. Talvez esta seja uma das mais preciosas lições do pensamento aristotélico: a realidade é metafísica. Talvez por isso o homem que nega a metafísica está a negar a constituição essencial do seu ser e, portanto, a negar a subtância da realidade que se faz fazendo-se. Como refere Severino, a metafísica “é precisamente o processo que conduz a ciência do ente desde a afirmação da existência do ente em devir (identificado com physis) até à afirmação do ente imutável” (p. 110).