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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.25  Caxias do Sul  2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v25.e020005 

ARTIGOS

O conceito de substância na Metafísica e nas Categorias de Aristóteles

The concept of substance in Metaphysics and Categories of Aristotle

Paulo Alexandre e Castro* 
http://orcid.org/0000-0001-8256-1343

*Investigador no Instituto de Estudos Filosóficos da Universidade de Coimbra (Portugal). Colaborador no CEHUM na Universidade do Minho (Braga-Portugal) e no CIAC da Universidade do Algarve (Portugal). Doutorado em Filosofia. Mestre em Fenomenologia. Licenciatura em Filosofia. Foi Professor Convidado na Universidade do Minho (Departamento de Filosofia – áreas: neurofilosofia, estética e cultura contemporânea) e na Universidade Internacional de Lisboa. Diretor da revista bilingue Uncanny – Revista de Filosofia e Estudos Culturais. Autor e coautor de diversas obras ensaísticas e literárias. E-mail: paecastro@gmail.com.


Resumo

Procurar analisar um conceito como o de substância é, por si mesmo, entrar no coração da metafísica. Quando esse conceito se situa no Corpus aristotelicum, a tarefa ganha outra dimensão, pois implica uma leitura conjunta de suas obras principais, a saber: Categorias e Metafísica. Tal leitura conjunta levanta, desde logo, vários problemas: a autenticidade, a articulação entre seus próprios livros e, sobretudo, a questão fundamental: se é possível fazer uma tal leitura. O propósito do nosso ensaio é executar tal tarefa, levando-nos a efetuar uma desmontagem necessária e decisiva do conceito. A terminar, perceberemos como partir dessa análise e o significado de substância abriria para um modelo que persistiria durante séculos.

Palavras-chave Aristóteles; Substância; Ousia; Quididade; Essência

Abstract

Analyzea concept like Substance is, by it self, get into the heart of metaphysics.When this conceptliesin the corpus aristotelicum, the taskgains another dimensionbecause it impliesa combined readingofhis major works, namely: Categories and Metaphysics. This combined readingraises immediately many problems: the authenticity of the works, the articulation between oftheir own books, and above all, the fundamental question: if it is possible to makesuch areading. The purpose ofthis study is todo it, leading us toa necessaryand decisivedisassembly of the concept in such problematic contexts. Finally, as we realize from this analysisit can be seen that the meaning ofsubstancewould open for a model that would persist for centuries.

Keywords Aristotle; Substance; Ousia; Quiddity; Essence

1 Um problema com problemas: a leitura do conceito em Categorias e Metafísica

A questão reitora de Aristóteles sempre foi procurar conhecer o ser enquanto ser, o que significava, acima de tudo, que Aristóteles procurava compreender as coisas tal como elas são, quer dizer, procurava compreender não apenas as características, mas as condições para que as coisas sejam (desta ou daquela forma). Ora, esse exercício enferma e arrasta consigo vários problemas. Desde logo, porque seu mestre Platão já se aventurava a criar um sistema metafísico de grande dimensão, instituindo uma série de léxico conceptual-filosófico e os antigos Heráclito e Parménides tinham deixado uma dualidade de conceções em suspensão, relativas à questão do movimento (da mudança) do ser. Envolvido nesse ambiente filosófico, Aristóteles apresenta sua concepção de realidade sensível, isto é, a existência dos seres em concreto, mas sem ignorar a existência que se constata na Physis. Seria, assim, a substância, a resposta, o Lapis Philosophorum da natureza humana que sustentaria tal sistema metafísico? Assim, para empreendermos a resposta a essa questão e para adiantarmos uma compreensão da noção de substância, temos de nos debruçar sobre duas obras fundamentais de Aristóteles: Categorias e Metafísica. Ora, em tal tarefa, descobre-se, a priori, um problema maior, que alguns julgam inultrapassável – no qual não nos podemos deter para o intuito deste ensaio –, a saber, a problemática relativa à extensão e à veracidade do corpus aristotelicum.1

O livro Categorias chegou até nós como um único livro dividido em 15 capítulos. Ora, é precisamente a existência desses 15 capítulos que forma as Categorias e que surgem os problemas: a obra parece estar como que dividida em duas partes: uma primeira, dos Capítulos 1 ao 9, “o tratado original sobre os mais elevados gêneros de ser ou categorias, o qual se encontra incompleto” e uma segunda parte, dos Capítulos 10 a 15, em que se percebe certa divergência, não só no que diz respeito ao estilo como à própria estruturação do texto (SANTOS, 1995, p. 19).2

Com a obra Metafísica, temos uma situação particularmente semelhante, como nos alerta Gonçalves, destacando duas questões importantes que devem ser observadas: “A primeira é suscitada pelo próprio texto aristotélico, que armazena avaramente uma legião de dificuldades; a outra, não totalmente dissociada da anterior, incide sobre a própria noção de metafísica, pouco clara nesse texto, talvez por aí ser plurívoca” (1977, p. 23).3

Suzanne Mansion tem a esse propósito uma posição curiosa. Em um artigo seminal de juventude (“La première doctrine de la substance”, de 1946), assume que vai ignorar, na sua leitura do conceito de substância o debate sobre essa problemática, apesar de reconhecer a dúvida instalada sobre a autenticidade da obra;4 mas, num artigo escrito 30 anos depois, particulariza a análise sobre cada livro, referindo-se assim ao Livro 7: A estrutura não é clara; alguns capítulos não parecem [se] encaixar na linha geral de argumentação [...], os capítulos 7-9 interrompem a linha de pensamento que era aparente nos Capítulos 1-6 e 10-12" (1979, p. 80).

Surge, assim, inevitavelmente ,a questão: É ou não possível fazer uma leitura conjunta do conceito de substância no corpus aristotelicum? Se sim, que resultados podemos esperar?

Rudolf Boehm dedicou-se a esse problema na sua obra A metafísica de Aristóteles... e, coloca a questão nos seguintes termos: poderá haver uma contradição entre Met. VII, 3 e o Capítulo 5 de Categorias, no que diz respeito ao conceito essencial de “jacente-au-fond”, isto é, como substrato? Segundo Rudolf Boehm, Aristóteles em Categorias não teria determinado, suficientemente, o conceito de “jacente-au-fond”, mas realça que existe uma interpretação tradicional da Met. VII, 3 que invoca o testemunho de Categorias, sugerindo mesmo que essa interpretação exige, de fato, uma corroboração com esse testemunho (BOEHM, 1976, p.108-109).5 No entanto, parece-lhe que a “consistência” não é a mais desejável e avança com a hipótese de que o erro pode residir num mal-entendido elaborado, precisamente, em Categorias e que pressupõe (como base) a substância, entendida como sujeito, isto é, a pergunta transitou de “o que é a essência?” para “o que é o sujeito?” (BOEHM, 1976, p. 123). Essa falta de consistência na interpretação tradicional,6 só pode derivar da atribuição de pressuposições metodicamente inadmissíveis.7

Apesar de Hamelin ser um dos primeiros a perceber essa condição e, por isso, ao afirmar que o ponto de interesse e verdadeira introdução a este tema deve ser considerado a partir de Met. V,8 é Jaegger quem considera que o ponto de partida de Aristóteles na Met. VII, 3, é uma pressuposição do conceito-essencial de “jacente-au-fond”, retomada daquilo que, em Categorias se nomeia como “souverainement, premiérement et plus essence” (1955, p. 45).

No seio desses comentadores, Ernst Tugendhat declara sua clareza em relação ao assunto: a substância primeira é a substância propriamente dita, pois é ela que jaz no fundo, que suporta e sustenta (apud BOEHM, 1976, p. 128).9 Cousin sugerira certa forma de desmistificação do problema, apontando por isso que a autenticidade das Categorias constitui um falso problema, pois para “os estudantes de lógica e metafísica, Aristóteles é o Corpus Aristotélico [...] [e por isso] Substância no seu sentido verdadeiro e primeiro e mais definido da palavra é aquele que não é predicado nem presente num sujeito” (COUSIN, 1933, p. 320). Isso parece ser oferecido como uma definição de substância, e a sugestão é corroborada segundo Cousin, em comparação com Met.V, 8.

Andrew Reck faz uma leitura semelhante ao reforçar esta ideia, a de uma leitura a partir do Livro 5 (1978, p. 540),10e Nicholas Lobkowicz, cerca de uma dezena de anos mais tarde, diz-nos exatamente o mesmo: nas “categorias, ele [Aristóteles] sugeriu uma definição de ousia que na Metafísica se volta a repetir várias vezes” (1989, p. 29).11

Percebemos que essa problemática é deveras envolvente e exige um lugar de aprofundamento que não esse. Assim, e para não nos retermos demasiado nessa problemática, assumiremos a existência de uma ligação entre tais obras (que nos possibilite o entendimento do conceito de substância) e tomemos como garantido que a passagem 1017b 13 do Capítulo 8, Livro 5 da Metafísica é concordante com as passagens 2 a 11 e 3 a 7 de Categorias,12 ou a passagem de Met. VII, 1, 1028 a 10 com a passagem de Categorias 3 b 10.13

Duas observações devem ser feitas antes de prosseguirmos: a primeira, na passagem referida da Met. VII, 1 1028 a 10, Aristóteles diz claramente que “o que primeiramente “é”, é a essência, a substância [da coisa]”, o que nos leva a assumir que há uma leitura equivalente à de Categorias quando se fala de “substância primeira”.

Aliás, o mesmo se pode dizer das passagens 1028 a 30; 1028 b 5; 1030 a 29; e 1045 b 25, que citam a substância primeira); segunda, que “um certo isto” (um tode ti) da passagem 3b 10 de Categorias parece estabelecer relação com a expressão “ser significa “o que uma coisa é, ou, uma essência”, pois a essência, a quididade (ser um isto ou um aquilo) é um modo específico de ser (diferença específica), um “certo isto”.14

2 Problematizando a Ousia: essência e quididade

A palavra substância chegou através do latim substantia (do verbo substare que significa estar debaixo de, sustentar, estar sob) que traduzia um vocábulo grego parecido com Hypokeimenon (que significa literalmente o que subjaz). Os latinos traduziriam esse vocábulo por subjectum (de subjacere, jazer sob – que viria a dar em português sujeito) que filosoficamente referiria o ser concreto, individual. Seria um “algo” que revelaria aquilo que uma coisa é; é aquilo que é primeiramente e que é sujeito de todas as determinações, ou dizendo de outra forma, é o que determina o ser a ser aquilo que é.

Um dos ensinamentos maiores de Aristóteles encontra-se logo no início do Livro 1 de Metafísica (1, 980 a), quando refere que os homens desejam naturalmente conhecer. Interrogar é querer conhecer, e conhecer é ver o que as coisas são, é perguntar o que são as coisas. As coisas são (diríamos) realidades substanciais, iniciando-se, assim, a filosofia aristotélica, coisa que ninguém teria observado com essa clareza.15

O ser que para Platão era como um reflexo de uma entidade maior, para Aristóteles é uma realidade: as coisas são substâncias, e o que existe no mundo são substâncias. A substância é o ser individual, por exemplo, certo homem, certo cavalo, do qual se predica algo. Aristóteles considera, evidentemente, que admitir um mundo de ideias como algo de distinto dos seres sensíveis não só é algo de insustentável como é desnecessário. Aliás, Aristóteles considera mesmo que essa transcendência de ideias, retira inteligibilidade do “mundo sensível” (como sabemos Platão não exprimiu corretamente a relação entre as coisas e as ideias) e o Livro 1 é prova constante dessa crítica extensiva a outros filósofos.16

O projeto aristotélico é nobre e original em si mesmo: trazer as ideias do mundo suprassensível à realidade, ou melhor, fazer do objeto real da ciência o indivíduo (e portanto atrevemo-nos a dizer, a acabar com a dualidade mundo sensível-mundo inteligível e fundir através do conceito de substância, a realidade dos seres).

Aristóteles (numa clara alusão crítica a Platão) começa por analisar a diferença que existe entre o nível da linguagem e o nível da realidade, pois uma coisa é aquilo que se diz, e outra, aquilo que é. Por isso, Categorias é como um primeiro tratado de linguagem que desemboca numa ontologia. Aquilo que é de se considerar é que Aristóteles toma a substância como uma entidade, uma realidade; a substância, a ousia é um ser determinado.17

A distinção aristotélica entre substância e as restantes 9 categorias, traduz uma distinção entre o principal gênero de ser e os gêneros secundários; contudo, nessa relação, há como que certa dependência ontológica, isto é, as substâncias segundas só existem se existirem ou se existir a primeira.18

Uma substância distingue-se dos seus acidentes por ser ontologicamente prioritária; ou seja, uma substância é aquilo no qual existem os acidentes. Poder-se-ia, assim, dizer que a substância primeira é a parte mais fundamental que constitui o indivíduo, mas afirmar isso não responde ainda à questão essencial que pergunta pelo ser do ente, ou seja, à pergunta pelo o que é o ser.19

Como sabemos, a pergunta pelo ser passa pelos modos como o ser pode ser afirmado, uma vez que o “ser se diz de várias formas”. A pergunta que se poderia dirigir a Aristóteles seria, nesse caso: O que é o ser do ente? Recorde-se, no entanto, que o autor diz em 1028 a 15, que “embora ‘ser’ tenha todos esses sentidos, é evidente que o que primeiramente é é a essência, a substância da coisa”. A que se deve tal afirmação? Segundo o Estagirita, a substância exprime melhor o modo de ser de algo; é também da substância, da ousia que emana o estatuto de ser para as outras coisas (como visto em 1028 a 20 e ss). Naturalmente, nessa aparente simplicidade de procurar definir e realçar o carácter ontológico do ser dos entes, não está ainda esclarecida a questão da ousia.20

O que primeiramente é é a substância, como é dito em 1028 b 30: “Ora, em vários sentidos se diz que uma coisa é primeira, e em todos eles o é a substância: |1| na definição, |2| na ordem do conhecimento, |3| no tempo”. Depreende-se, assim, que é primeira na definição, uma vez que Aristóteles parece dizer que em cada termo de uma definição, está incluída a de substância. Seguindo essa indicação, David Ross adiante que,

ao definirmos um membro de uma outra qualquer categoria devemos incluir a definição da subtância subjacente. Com efeito, se pretendemos conhecer algo pertencente a uma categoria diferente da substância, temos de perguntar, não pelas suas qualidades, etc., mas pelo que ela é, pela sua quase-substância, pelo que a constitui tal qual como é

(1987, p.172).

Em 1012 b 32, Aristóteles afirma: “A palavra ‘substância’ é aplicada, senão em mais sentidos, pelo menos a quatro objectos principais; pois tanto a essência como o universal e o gênero são considerados como sendo a substância de cada coisa, e em quarto lugar o substrato.” Ora, atentemos, pois, nesses termos. No original grego temos: 1) To Ti Einai (Essência / Quididade); 2) Tó Katholou (Universal); 3) Genus (Gênero); 4) Tó Hypokeimenon (Sujeito / Substrato). Uma rápida análise nesse último, ao substrato, parece ser inadmissível, e o estudo dele é abandonado provisoriamente (só retomando Aristóteles em VII, 13, 1038 b 2-6 e também em 1042 a 26). O problema surge inevitavelmente: saber qual é a constituição da substância ou qual é a essência da substância. Aristóteles responde da seguinte forma, em 1029 a 2: “E num certo sentido se diz que a matéria é da natureza da substância, em outro sentido a forma e, num terceiro, a composição das duas.” Essa é, parece-nos, uma das questões senão mesmo a questão que perturba os comentadores, como Cousin e Robin.21 Boehm adverte acerca da necessidade de se determinar o “jacenteau-fond” (o substrato), pois parece ser ele, primeiramente, mais essência e se percebe, notoriamente, aqui, a ideia transmitida pelas Categorias de que ser sujeito é critério de substancialidade (BOEHM, 1976, p. 129); no entanto, o “jacente-au-fond” não está determinado como em Categorias pelo que surge uma insuficiência explicativa. A questão a colocar é: Faz realmente sentido estabelecer a identificação entre substância e substrato? Repare se que, na Metafisica, é-nos dito que uma tal identificação levaria a uma identificação com a matéria (1028 a 15-20). Ora, Aristóteles abandona a noção de substrato e dá um passo importante como explica David Ross, pois se encaminha para o sentido mais original da substância – a essência,22 como vemos em 1030 a 2: “Porquanto a essência é precisamente o que uma coisa é.”

Suzanne Mansion é uma defensora do conceito de quididade como sendo a substância de cada coisa.23 Façamos, então, a seguinte pergunta: Como entender a quididade? Podemos definir a quididade como um modo específico de ser, ou melhor, de “ser um aquilo”? Essa expressão tem por correlativo no grego o To Ti En Einai, que os latinos traduziram por quod quid erat esse, ou quidditas. A quidditas permite-nos interpretar o que uma coisa é, era e vai sendo (atendendo aos tempos verbais), o que cria uma dimensão de temporalidade própria ao ente – ao Tó Ón – enquanto existente em ato, enquanto ente sujeito às mudanças que ocorrem no mundo, no fundo, ao devir. (TOMÁS de AQUINO, 1995, p. 70).24

Façamos um breve parênteses para chamar ao diálogo São Tomás de Aquino, que é um intérprete privilegiado desse modelo aristotélico, de que a sua obra O ente e a essência (um opúsculo, que tem o intuito didático de ensinar os principais conceitos metafísicos), se torna reveladora. Aí, Tomás de Aquino inscreve o leitor no coração do tema: “o ente e a essência são o que o intelecto concebe em primeiro lugar, como diz Avicena no princípio da sua Metafísica” (TOMÁS de AQUINO, 1995, p.7 2).25 Tomás de Aquino quer nos introduzir no seio das coisas existentes reais (tal é o pressuposto aristotélico no qual o santo se baseia). São Tomás explica a tradução adotada:

E porque aquilo por que uma coisa é constituída no seu próprio gênero ou espécie é aquilo que é significado pela definição indicando o que uma coisa é, por isso é que o nome de essência foi transformado pelos filósofos no nome de quididade: e é isso que o filósofo chama frequentemente aquilo que o ser era (quod quid erat esse), isto é, aquilo por que alguma coisa tem / como / ser aquilo / que é

(TOMÁS de AQUINO, 1995, p. 2, grifo nosso).

Assim, o To Ti En Einai “apontaria, portanto, para essa substância, essa substancialidade do ente que como que o vai expressando naquilo que constitutivamente é (e já era – quod quid erat esse)” (BARATA-MOURA, 1979, p. 459, grifo nosso).

No seguimento dessa interpretação, Vianney Décarie avança com a tese de que o Ti En Einai é qualquer coisa de determinado, um Tode Ti: “Com efeito, o ser significa o Ti Esti e o Tode Ti e depois a qualidade, a quantidade e cada um dos outros predicados acidentais” (DÉCARIE, 1972, p. 143). Essa, aparentemente, simples distinção de nomes a aplicar sobre a essência, mostra o quanto ela está intimamente relacionada com a noção de substância.

3 Dinâmicas da substância ou a abertura da Metafísica Onto-Teo-Lógica

Como bem referiu Aristóteles, à pergunta ontológica – O que uma coisa é? – responde-se pela definição. A definição é uma proposição que exprime uma diferença específica, ou se preferirmos, definir em Aristóteles é estabelecer uma relação entre dois nomes. Problema: Se a definição é composta de dois termos, qual é o estatuto de uma substância composta? Se os termos compostos tivessem uma quididade, teríamos, ao que parece, uma regressão ad infinitum, ou seja, o indivíduo não seria um, mas uma soma de quididades (e se perderia a unidade do indivíduo).26 Então, a questão a colocar é: Qual seria a relação entre a quididade e a coisa que é; a quididade tem uma dimensão universal e sabemos que este universal coincide com cada indivíduo, portanto como pode ser ela universal? A solução ontológica: o indivíduo tem que coincidir com sua quididade e com o seu Ti Estin; caso contrário, se tornaria indefinido.

O importante para Aristóteles é garantir que se conhece o indivíduo, pois, assim, se terá acesso à sua quididade, isto é, ao seu modo específico de ser, conhecer aquilo que ele é, Ti Estin. O indivíduo é conhecido na sua dimensão universal – não seria possível definir um ser individual, uma vez que essa definição estaria sempre sujeita à demolição argumentativa. Dizendo de outra forma, só o indivíduo existe, mas aquilo que é conhecido nele é o universal.27 Assim, porque o nosso espírito pode considerar, abstratamente, não importa o quê como um sujeito, que reconhecemos uma quididade nas categorias secundárias. Todo o conhecimento intelectual de um objeto é certa apreensão do que ele é, aquilo que ele é – Ti Estin: algo que é característico e próprio. Mas Aristóteles vai ainda mais longe e, para resolver o problema do conhecimento e da gênese ontológica, ele aponta ao par conceitual matéria / forma, que acaba por representar o composto de que o indivíduo é formado (e por isso a ciência deve dar conta da substância na qual se encontram reunidas essas características).28

Responder à pergunta: O que é o ser para Aristóteles? Responde-se: a substância, uma vez que é primeira no tempo e na ideia (conceito de acordo com o conhecimento). Ser significa, primeiramente que tudo é uma substância, e tudo aquilo que não é substância existe em virtude de uma e não pode ser concebido sem uma; assim, ser no seu sentido primário, significa ser um individual subsistente (repare-se que temos aqui subjacente o par conceitual matéria/forma). Esse individual subsiste como determinado. Mas como? Aristóteles responde-nos: que a forma é a determinação essencial de alguma coisa, e a matéria é essa alguma coisa que precisa ser determinada, pelo que Mansion sintetiza dizendo: “A substância sensível é, pois, a forma de uma matéria; é unidade, o “conjunto” de forma e matéria…” (1979, p. 87). Inevitavelmente, surgem outras questões coladas a essa definição, por exemplo: Como se determina essa substância sensível? Ou, Qual é o sentido atribuído por Aristóteles à matéria?

Um esclarecimento em fim de linha: na esteira dos pré-socráticos, também Aristóteles atribui um significado indeterminado à matéria; tal indeterminado não é nenhum ser em particular, e porque não é em ato, pode ser em potência qualquer ser ou substância e, ao mudar, adquire uma forma que a faz ser (em ato).29 Estamos perante algo mais elaborado no pensamento aristotélico que devemos esclarecer. Os entes compostos de forma e matéria estão sujeitos e se sujeitam ao devir, à mudança, e, consciente dessa constatação empírica, Aristóteles introduz as noções de potência e ato.

Essa distinção potência/ato é anunciada no Livro 7 e retomada. Posteriormente. no Livro 9 e parece ser uma distinção paralela à matéria/forma, embora queira parecer que Aristóteles concede certa primazia à forma como é dito em 1032 b 30-32: “A geração é impossível se não pré-existir algo”. Somos, naturalmente, levados a pensar que a forma tem de preexistir em face da matéria porque empiricamente, aquilo que encontramos no mundo são matérias com forma, ou, se quisermos dizer de outro modo, não existe matéria sem forma, por isso Mansion refere que, no caso das substâncias sensíveis, há mesmo uma inseparabilidade entre matéria e forma (1979, p. 86).

Assim, com o par conceitual potência/ato aplicado conjuntamente ao par matéria/forma, torna-se inteligível (ess)a mudança nos entes. Essa inteligibilidade explica não só o devir, o movimento, a passagem de não ser a ser, mas a gênese ontológica dos indivíduos, de como algo se transmuta noutra coisa. Por exemplo, um jovem que se torna (com o passar do tempo) velho (o jovem é velho em potência; a velhice encontra-se num número de possibilidades que o jovem poderá vir a atualizar).

A potência designa uma possibilidade (a possibilidade de passar a ser, de se tornar algo diferente daquilo que é) e é, nesse sentido, que ocorre a dunamis inerente a todo processo ontológico.30 Os entes captam as diferenças que ocorrem no devir através de sua consciência relacional, quer dizer, através do modo como as coisas se vão atualizando (a relação entre um antes e um depois como Platão já referira).

Seguindo a lógica argumentativa de Aristóteles, percebe-se que a matéria pode ser, em potência, qualquer coisa e, através da mudança, adquire uma forma que a faz ser em ato. Isso significa que o ato tem uma identificação com a forma, uma vez que a forma é que faz com que a coisa seja aquilo que é, e sendo uma estrutura que afeta a matéria, a forma aproxima-se dos elementos essenciais que fazem com que as coisas sejam o que são (aproxima-se da essência). Esse privilégio da forma compreende-se bem se atentarmos que Deus é considerado, no sistema aristotélico, ato puro, como o motor imóvel,31 o que significa que, privilegiando a forma, a essência, Aristóteles privilegia, também, a forma das formas, ou seja é, reforça a primazia da essência sobre a existência (o privilégio do universal, do lógico sobre o individual). Talvez por isso, fazer ciência para Aristóteles só é possível a partir das determinações do homem, uma vez que a essência tem um primado lógico – o que uma coisa é é a substância.32

Podemos afirmar que Aristóteles, ao identificar o estudo do ser com o estudo da substância e da inteligibilidade da forma, acaba por cair numa certa forma de platonismo. Note-se que Platão havia referido que a forma domina e explica o sensível (embora sem nunca ter explicado como se movia a forma do sensível); ora, para Aristóteles a forma está a realizar-se no sensível, quer dizer, ela aciona a matéria, mas é, ao mesmo tempo, fim, é ordem para que tende ao sensível. No fundo, Aristóteles, ao privilegiar o estudo do real, dos entes concretos, inscreveu, no coração da realidade, uma estrutura metafísica, fazendo da forma o instrumento de realização do mundo.

A filosofia primeira, que se proponha estudar o ente como ente, acaba por inaugurar um modelo de Onto-Teo-Logia (uma redução ôntica como refere Mafalda Blanc), na qual se destaca o plano da forma e do ser supremo na figura do ato primeiro: identificando o estudo do ser ao da substância e da inteligibilidade dessa ao plano da forma, Aristóteles acabaria por cair no platonismo que criticara, consumando a redução ôntica do ser ali esboçada e agora consignada na figura do ente supremo, ato puro e causa primeira. Acabaria, assim, por dar à filosofia primeira o perfil de uma Onto-Teo-Logia, que constituiria, doravante, o modelo metafísico da ontologia subsequente até à crítica kantiana (BLANC, s/d, p. 19).

Nesse sentido, Gonçalves destaca uma dupla interpretação: “Uma de caracter ontológico, segundo a qual a metafísica faria a análise da estrutura do ser; outra, de tendência Metafísico-Teológica, cuja função consistiria na apreensão de uma causa primeira acabando a metafísica por se transformar numa filosofia primeira ou teologia” (GONÇALVES, 1977, p. 125-129).

Podemos, pois, dizer que a filosofia primeira – leia-se, a ciência do ente como ente – culmina em algo que excedeu ao seu projeto. Indo ao coração da realidade, sítio privilegiado da metafísica, Aristóteles abriu as portas para esse pensamento metafísico, que suscita a interrogação e parece indicar o caminho para o quadro conceitual de uma Onto-Teologia racional, onde o mistério da espiritualidade se adensa e ganha sentido. Talvez esta seja uma das mais preciosas lições do pensamento aristotélico: a realidade é metafísica. Talvez por isso o homem que nega a metafísica está a negar a constituição essencial do seu ser e, portanto, a negar a subtância da realidade que se faz fazendo-se. Como refere Severino, a metafísica “é precisamente o processo que conduz a ciência do ente desde a afirmação da existência do ente em devir (identificado com physis) até à afirmação do ente imutável” (p. 110).

1Convém recordar este aspecto essencial relativamente ao corpus aristotelicum (embora não nos possamos deter demasiado nessa problemática); a extensão e a veracidade dos escritos aristotélicos, legitimados pela não coerência de certo estilo literário (apesar de, como sabemos, sua obra ser imensa e incluir além dos trabalhos científicos, memorandos e diálogos), levanta problemas. Um dos problemas – senão mesmo o maior dos problemas –, com que nos deparamos, é como conseguir determinar um conceito como o de substância em que se verifica pela leitura conjunta das duas obras, que surgem imensas inconsistências?

2Numa primeira parte, teríamos aquilo que o professor Ricardo Santos diz ser “o tratado original sobre os mais elevados gêneros de ser ou categorias, o qual se encontra incompleto”. (1995, p. 19). Na segunda parte, portanto, os Capítulos de 10 a 15 surgem textos com noções em que a análise não segue “um fio condutor ou qualquer ordem lógica” (p. 19). O que está a ser dito é que, nessa primeira parte, evidencia-se uma coerência que se perde a partir do Capítulo 10. Veja-se: No Capítulo quatro é enumerada uma lista de 10 categorias, iniciando no Capítulo 5 a substância, o Capítulo 6 a quantidade, o Capítulo 7 os relativos, o Capítulo 8 a qualidade e quando esperávamos que continuasse, o Capítulo 9 finaliza com as duas últimas da lista, fazer e ser afetado, e é quebrada a exposição em 11b8-16, que mais parece um texto inserido para fazer a transição dessas duas supostas partes da obra. Os Capítulos de 10 a 15 denominados “pós-predicamentos” funcionam como uma espécie de apêndice, como refere Ricardo Santos. Esse tipo de abordagem mantém a polêmica sobre a autenticidade e se diga em abono da verdade que a argumentação contra essa autenticidade é igualmente insatisfatória e pouco conclusiva, salvo algumas exceções como a de David Ross quando refere: “A autenticidade deste livro tem sido negada [...] os argumentos contra esta autenticidade do ponto de vista da doutrina filosófica, não são conclusivos, e a sua forma gramatical e estilo são, definitivamente aristotélicos” (1987, p. 21).

3Cerqueira Gonçalves revela, de fato, duas questões interessantes, mas os problemas que envolvem a obra remontam e remetem a outras dificuldades como as apontadas por comentadores. Uma dessas questões diz respeito à obra em si, quer dizer, a obra começa por ser conhecida comportando só 10 livros, não se sabendo, ao certo, quais são os volumes que teriam sido excluídos (ou mesmo se haveria livros aristotélicos nesse conjunto para serem excluídos). A maioria dos ensaístas aponta para três livros que pelo seu conteúdo poderiam não estar incluídos, uma vez que não alterariam a obra no seu conjunto, a saber, o Livro 2, o Livro 5 e o Livro 11 (embora alguns apontem também o Livro 6). Um desses comentadores é Sir David Ross que afirma que a função principal desses livros é estritamente de ligação, mas mais importante é que eles “podem muito bem remontar ao próprio Aristóteles”. (1987, p. 24).

4"L’exposé qu’on va lire commencera…par ignorer délibérément l’ouvrage logique des Categories” (MANSION, 1946, p. 346). No fundo, essa decisão reduz-se à dúvida instalada sobre a autenticidade do tratado, sendo essa dúvida assumida com as seguintes palavras (MANSION, 1946, p. 346): “Les Categories donnent de la substance une définition autre que celle qu’on trouve commumént ailleurs de cette définition ne se retrouve pas en d’autres endroits de l’ouvre du stagirite”.

5Note-se, contudo, que para Suzanne Mansion, as partes mais importantes são: Met. V, 5 (1017 b 13-14); VII, 13 (1038 b 15); VII, 16 (1040 b 23-24); XI, 10 (1066 b 14). Refere ainda a importância de V, 11 (1019 a 5), e, VII, 1 (1028 a 26-27). (MANSION, 1979).

6“La détermination de l’essence livrée par les Catégories ne saurait être utilisée simultanément comme base d’interprétation et comme argumente justifiant le fait que l’interprétation preune cette base elle-même” (BOEHM, 1976, p. 147).

7“En d’autres termes, partir, dans une interprétation de Met. VII, 3, de la présupposition ingénue des déterminations des Catégories relatives à l’essence et prêter a la démarche de pensée d’Aristote l’acception initiale d’une présupposition si ‘évidente’, est méthodiquement inadmissible” (BOEHM, 1976, p. 147).

8“Du traite des Categories, il faut rapprocher le livre V de Métaphysique qui contient parfois des indications plus intéressants et plus mûres [...] selon toute apparence, ce traité était l’introduction à tout le cours de philosophie” (HAMELIN, 1920, p. 106). Segundo Boehm, Hamelin teria visto que Aristóteles partiria da tese segundo a qual a característica universal admitida de um sujeito ou substância (uma vez que nas categorias haveria uma ‘identificação’ de sujeito e substância) seria a de que existem individualmente e separadas; “Discutant Met. VII, 3, au fil d’une étude de la doctrine des ‘quatre causes’, Hamelin admet qu’Aristote prend pour point de départ la thèse selon laquelle la caractéristique universellement admise d’un sujet ou (!) d’une substance, c’est d’exister seul et separe…” (BOEHM, 1976, p. 124).

9“Par suite l’ousia première est la plus proprement ousia: en effet, elle est parfaitement autonomeet-stable, puisqu’elle “git-au-fond” de toute le rest”.

10“In Met. Book 5, chapter 8, immediately following the elucidation of the senses of ‘being’ Aristotle distinguished four senses of ‘substance’. The first sense corresponds to primary substance delineated in the Categories”.

11Lobkowicz refere-se à célebre passagem do capítulo 5 das Categorias e à não menos reconhecida Met. V, 8 1017b 13-15: “In the Cats he had suggested a nominal definition of ousia which on the Met. he repeats several times: an ousia is that of which everything else is said while it itself is not said of anything else”.

12Met.. V, 8, 1017b 13: “Tudo isso se diz substância porque não é predicado de um sujeito, mas tudo o mais disso é predicado”. Categorias 2 a 11: “Substância – aquilo a que chamamos substância de modo mais próprio, primeiro e principal – é aquilo que nem é dito de algum sujeito nem existe em algum sujeito, como, por exemplo, um certo homem ou um certo cavalo”. Categorias 3 a 7: “É comum a todas as substâncias não existir num sujeito. Pois a substância primeira nem é dita de um sujeito nem existe num sujeito”. Foram utilizadas para esse efeito duas leituras da obra Metafísica, a saber: (A Metafísica de Aristóteles. Edição trilingue organizada por Valentim García. Madrid: Editorial Gredos, s/d.A Metafísica de Aristóteles. Tradução de Leonel Vallandro. Coleção Biblioteca dos Séculos. Porto Alegre: Globo, 1995).

13Met. VII, 1 1028 a 10: “Como indicamos anteriormente, em nosso livro sobre as acepções da palavra, ‘ser’ significa ‘o que uma coisa é’ ou uma essência; noutro, designa uma qualidade, uma quantidade ou algum outro atributo desse género. Embora ‘ser’ tenha todos esses sentidos é evidente que o que primeiramente ‘é’, é a essência, a substância da coisa”. Categorias, 3 b 10: “Todas as substâncias parecem significar um certo isto. No que respeita às substâncias primeiras, é incontestavelmente verdade que elas significam um certo isto; pois a coisa revelada é individual e numericamente uma”.

14A chamada de atenção de Ricardo Santos na introdução de Categorias faz por isso todo o sentido: “Toda a substância primeira é um ‘certo isto’ (tode ti) pois é numericamente uma. Mas se a individualidade e a unidade numérica são condições suficientes para que algo seja um ‘isto’, então esta propriedade não é exclusiva da substância primeira, mas estende-se a tudo o que não é dito de um sujeito (1b 6-9). E de facto, Aristóteles também considera a existência de ‘istos’ na categoria de relativos (8 a 38 b 8).”

15Metafísica I, 7, 988 b 35: “Quanto à essência, isto é, a realidade substancial, ninguém a expressou com clareza”.

16A crítica de Aristóteles a Platão prende-se, essencialmente, a três pontos: primeiro, é insustentável a transcendência das ideias em relação às coisas; segundo, a noção de “participação” é frágil e insuficiente para justificar a relacionação; terceiro, as ideias são incapazes de explicar a génese e a existência das coisas.

17Atente-se às palavras de Emanuel Severino: “Dizia-se portanto que a ousia, isto é, a substância, é não apenas o ser, um ente determinado, mas o ser determinado de um certo modo que, inversamente, não corresponde aos ‘acidentes’. Também o acidente é um ente e, portanto, um ente determinado; mas a substância é aquilo sobre o qual acontece e que suporta o acidente (os acidentes) e que portanto existe já, quando o acidente sobre ela acontece e continua a existir quando o acidente dela se afasta” (s/d., p. 114).

18É isso que destaca Ricardo Santos na introdução de Categorias: “A principal tese das categorias: as substâncias primeiras são sujeitos de todas as outras coisas e, por isso, se não existissem substâncias primeiras, nenhuma outra coisa poderia existir” (1995, p. 22).

19Mafalda Blanc sugere os diferentes modos de interrogação que radicam, em última instância, no desvelamento do mistério ontológico do ser: “Podemos distinguir os seguintes níveis da interrogação ontológica: o que é o ente enquanto ente? O que é o ser do ente? Porquê [sic] o ente e não o nada? Que significa ser? São planos de sucessivo aprofundamento do mistério ontológico” (s/d., p. 12).

20De fato, não é fácil precisar sobre essa realidade tão simples (só o seria para Aristóteles que parece falar com interlocutores que – supostamente – estariam familiarizados com tal terminologia). Refere Mansion: “Mais justement parce que le essence est au principe de l’être et de la connaissance, il est d’en pouvoir être expliquée par autre chose” (1976, p. 44).

21Cousin afirma que Aristóteles identifica o sujeito com a matéria, a forma e o composto dos dois, e que essa doutrina está claramente exposta no VII, 13 e no Livro 8, 1: “[...] La doctrine selon laquelle la sujet est équivalent en un sens à la matière, en un sens à la forme, et un troisième sens au composé des deux se retrouve au livre VIII, 1, et il y a fait allusion au livre VII, 13” (1933, p. 327). Também vemos essa leitura nas palavras de Robin: “Aristote déclare que l’ousia, c’est, et la matière, et la forme, et enfin les deux ensemble” (1944, p. 88).

22“The identification of substance with substratum tends to lead to the identification of it with matter … thus the thought of substance as substratum leads to a wrong result. Instead of abandoning it, however, Aristotle ostensibly retains it, but infers that the substratum must be one of the other two things he has said it might be-form, or the unity of form and matter… but… he here makes a fresh start; he leaves the notion of substratum and passes to another of the original claimants of substantiality – essence” (ROSS, 1987, p. 180). Cousin explica esse ponto: “Aristotle’s main argument appears to be as follows. We must not identify substance with the subject, because to do so involves its identification with matter, and we know on other grounds that the matter is not substance… now at the very outset of his argument he had identified the subject with matter, form and their compound. Superficially, this is in open contradiction with his conclusion that the substance is not the subject, because in this case it would be matter, but rather form or the compound… his point is that it must be subject in the way in which form and the compound, rather then matter, are subjects”. (1933, p. 327).

23“La science de chaque être consiste dans la connaissance de la quiddité de cet être” (MANSION, 1976, p. 43). Mansion coloca uma nota cerca dessa passagem em que justifica o afirmado, colocando as passagens da Metafísica onde se pode inferir essa conclusão: Met. VII, 6, 1031 b 6-7; III, 2, 996 b 17-21; VII, 1, 1028 a 36 e b 2; VI, 7, 1064 a 19-20, 1034 a 32; XII, 4, 1078 b 24-25, entre outras.

24Os estudos relativos ao termo ente podem assumir duas acepções importantes, nomeadamente nos estudos dos juízos existenciais, como alerta Mafalda Blanc, em que a aceção pode ser nominal e participial. Alerta, ainda, para o verbo ser com o emprego entitativo e copulativo. (s/d., p. 13 e ss).

25Pergunte-se, então, O que é a essência? Dir-se-á que é aquilo que se diz mais subjetivamente sobre aquilo que é mais objetivo (a essência do homem é a sua “humanidade”); ou para utilizarmos um vocabulário mais adequado, é aquilo que faz com que uma coisa seja aquilo que é. Tomás de Aquino adverte no Opúsculo para outros sentidos que a essência pode assumir, como quididade, forma ou ainda natureza. Veja-se o seguinte: a quididade, o quod quid erat esse é sinônimo de essência em latim; forma, uma vez que, na terminologia aristotélica, ela determina o que uma coisa é; natureza pois toda substância é uma natureza. Contudo, essência parece assumir, ainda, uma conotação (existencial) mais forte, tal como diz S. Tomás: “Quanto ao termo ‘quidade’, ele é tirado daquilo que se significa pela definição. Já ‘essência’ diz que, por ela e nela, o ente recebe o existir” (TOMÁS de AQUINO, 1995, p.72).

26Recorde-se que neste ensaio se faz um estudo comparativo entre as Categorias e a Metafísica. Essa ressalva procura expressar e evitar duas observações: a primeira de que se encontra na Ética Nicomaqueia I 6, uma passagem em que Aristóteles censura, presumivelmente, os platônicos por não admitirem outros modos de definir senão por gênero e diferença específica. De acordo com o estagirita (nessa passagem) seria precisamente por isso que não teriam tido êxito em definir os números (1096a 18-19). Aristóteles introduz aí outro princípio para as definições, baseado no par anterioridade-posterioridade. Outra passagem que poderia colocar em causa a atribuição de Aristóteles é a convicção de que a definição se faz por gênero e diferença se encontrar discutida no bloco dos Analíticos Posteriores II 8-10. Aí, Aristóteles parece sustentar que uma definição adequada seria composta por três termos (um dos quais seria a explicitação da causa), assimilando-se formalmente, a um silogismo (veja-se por exemplo 93 b 38-94 a 2 e 94 a 11-14).

27Conhecemos o TI ESTIN: “On doit donc dire que ce que l’intelligence connait, ce qui fait l’objet de ses concepts, lorsqu’elle s’applique à saisir un aspect quelconque de la réalité, c’est toujours le Ti Estin” (MANSION, 1976, p. 54).

28Podemos, assim, dizer que Aristóteles conseguiu realizar seu projeto de trazer as ideias do céu à Terra, na exata medida em que destrói a dualidade instituída por Platão. Essa anulação poderia ser resumida numa palavra – substância. Nesse mundo sensível, cada coisa é, tem uma existência determinada, e, isso constitui não só o mundo de Aristóteles como o nosso mundo. No mundo não existem senão substâncias, por exemplo, a árvore que vemos quando olhamos pela janela, o cão que passou, etc. O mundo é assim constituído por substâncias. Mas Aristóteles tinha de solucionar um problema que o seu sistema não justificava: Como conceber a passagem do não ser ao ser? Ou, Qual é o princípio de inteligibilidade que permite conceber as substâncias na sua gênese ontológica? Aristóteles percebeu o problema e anunciou uma das soluções mais importantes e brilhantes na história da filosofia, nomeadamente, através dos pares conceituais forma / matéria e ato / potência. Sem tais noções, a mudança seria impensável, e o ser ficaria fechado sobre si próprio.

29Em 1045 a 20: “Mas se, como dissemos, um dos elementos é a matéria e o outro a forma, e um existe em potência e o outro em ato, parece que temos à vista a solução procurada.”

30Há dois sentidos para dunamis (1045 b – 1046 a 11 – 1048 a 25): como potência de fazer ou produzir e como potência de sofrer ou ser afetado.

31Considere-se, pois, que a potência só existe em nível de mundo sublunar; se a matéria representa a possibilidade de contrários, e o possível está do lado da matéria, então, se compreende por que a matéria é incapaz de movimento, isto é, ela precisa de uma causa motora que atualize essas potencialidades. Essa ideia de um ser divino responsável e capaz de incutir o movimento no mundo, irá ser usada na modernidade (para além de como sabemos, ser um modo de compreendermos, na tradição cristã, o Criador do céu e da Terra) para justificar a existência do mundo tal como ele é (seja através de uma substância certificadora, seja de um relojoeiro que deu corda inicialmente ao mundo).

32Atentemos à lógica aristotélica, e, em concreto, ao silogismo demonstrativo: a relação entre duas determinações de uma coisa só pode ser estabelecida a partir do que a coisa é, da sua substância. Tome-se uma premissa – S é P – em que o S representa o sujeito, o suppositum das predicações, o ‘é’ é a cópula, aquilo que serve de mediação e afirmação entre o sujeito e a essência, a substância que é afinal o P. A inevitabilidade dessas proposições coloca um pensamento de adequação metafísica e lógica em que a afirmação da existência pressupõe relação com a essência.

Referências

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Recebido: 11 de Novembro de 2019; Aceito: 30 de Dezembro de 2019

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