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Conjectura: Filosofia e Educação

versión impresa ISSN 0103-1457versión On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.25  Caxias do Sul  2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v25.e020006 

ARTIGOS

Gênese do complexo da arte: um estudo fundamentado na estética lukacsiana

Genesis of the art complex: a study based on lukacsian aesthetics

Adele Cristina Braga Araujo* 
http://orcid.org/0000-0002-0386-4053

Josefa Jackline Rabelo** 
http://orcid.org/0000-0002-4933-631X

*Licenciada em Pedagogia pela Universidade Estadual do Ceará. Mestra em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual do Ceará. Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Ceará. Professora no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE) – Campus Quixadá, na subárea Fundamentos da Educação, Política e Gestão Educacional. E-mail: adele.araujo@gmail.com.

**Licenciada em Pedagogia pela Universidade Federal do Ceará. Mestrado em Educação pela Universidade Federal do Ceará. Doutora em Educação pela Universidade Federal do Ceará (janeiro de 2005). Pós-Doutora pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHSS) – Paris-França sob a supervisão do Professor Michel Löwy e com bolsa do CNPq (2013-2014). Professora-Associadana Universidade Federal do Ceará, no curso de Pedagogia e no Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará, na linha Educação, Estética e Sociedade. E-mail: jacklinerabelo@gmail.com


Resumo

Este artigo tem como objetivo apresentar como se estabelecem os estudos do filósofo húngaro Georg Lukács sobre a origem do complexo da arte a partir das formas abstratas do reflexo estético da realidade, a saber: ritmo, simetria e proporção e ornamentística. Tais categorias configuram-se, conforme os estudos de Lukács, em princípios; em elementos estruturais da produção artística, os quais são diversos, orientados por funções as mais variadas e já bastante evoluídas e que, de forma excepcional, no caso da ornamentística, mantiveram sua independência, ainda que não tenham garantido o mesmo grau de importância de tempos remotos. Trata-se de um estudo teóricobibliográfico, apoiado em uma base onto-histórica. O filósofo húngaro considera a dificuldade de revelar a procedência do complexo da arte. Atentamos ao método, considerando que devemos partir do já esteticamente formado, procedendo a tempos remotos, numa relação dialética. Podemos, então, nos aproximar da origem quando entendemos o mais desenvolvido. Nossas considerações vão ao encontro da compreensão de que qualquer nível de atividade humana deve implicar o trabalho como categoria fundante, na relação de transformação da natureza e do próprio homem. A arte, portanto, tem sua gênese no trabalho e, como complexo tardio no mundo dos homens, tem seu desprendimento do solo cotidiano, alcançando um processo de autoconsciência humana. Nesse sentido, a relevância do estudo consiste em contribuir com o projeto coletivo para o entendimento do papel da atividade criadora-receptora no aprimoramento dos sentidos, abrindo possibilidades de elevadas expressões no processo de humanização, com vistas à superação da sociabilidade regida pelo capital.

Palavras-chave Trabalho; Arte; Formas abstratas

Abstract

This article aims to present how had been established the studies of the Hungarian philosopher Georg Lukács about the origin of the art complex from the abstract forms of the aesthetic reflection of reality, namely: rhythm, symmetry and proportion and ornamentation. These categories, according to Lukacs’ studies, are based on principles; in structural elements of artistic production, which are diverse, guided by functions that are the most varied and already quite developed, and which, in an exceptional way, in the case of ornamentation, have maintained their independence, even if they have not guaranteed the same degree of importance of remote times. This is a theoreticalbibliographic study, supported on an onto-historical basis. The Hungarian philosopher considers the difficulty of revealing the provenance of the art complex. We take into account the method, considering that we must start from the already aesthetically formed, proceeding to remote times, in a dialectical relation. We can, then, get close to the origin when we understand the most developed. Our considerations reach the understanding that any level of human activity must imply labor as founding category, in the relation of transformation of nature and of man himself. Art, therefore, has its genesis at labor and, as a late complex in the world of men, has its detachment from the everyday soil, reaching a process of human self-consciousness. In this sense, the relevance of the study is to contribute to the collective project towards the understanding of the role of creative-receptor activity in the improvement of the senses, opening possibilities for high expressions in the process of humanization, seeking to overcome the sociability maneged by capital.

Keywords Labor; Art; Abstract forms

1 Introdução

De acordo com Vaisman e Fortes (2010, p. 20), o pensamento maduro de Georg Lukács continua pouco estudado: “A autoridade intelectual do pensador húngaro ainda hoje é muito mais reconhecida por conta de História e consciência de classe”. Nesse sentido, consideramos importante o estudo de sua última obra publicada em vida: Estética 1: la peculiaridad de lo estético. É desse trabalho que buscamos elementos para o entendimento da escolha de Lukács pelas formas abstratas do reflexo estético da realidade, a saber: ritmo, simetria e proporção e ornamentística, para compreendermos a gênese do complexo da arte, categorias, essas, ontologicamente fundadas no trabalho.

Lukács (1974) refere-se, continuadamente em seu texto, à dificuldade de sabermos a origem da arte, assinalando como é difícil delinear, com precisão, a divisão entre formação pré-artística e arte. Nas palavras do autor: “Vale la pena repetirlo cada vez que viene a cuento: no sabemos prácticamente nada del origen histórico real del arte” (p. 265). Não obstante, Lukács entende, fundamentando-se em Marx, que “el proceso de desprendimiento de lo estético a partir de la cotidianidad mágica no puede pues estudiarse tampoco aquí – filosóficamente – más que partiendo de lo ya estéticamente formado y procediendo hacia atrás” (p. 265). Nesse sentido, consideramos a máxima propalada por Marx:

A sociedade burguesa é a organização histórica mais desenvolvida, mais diferenciada da produção. As categorias que exprimem suas relações, a compreensão de sua articulação, permitem penetrar na articulação e nas relações de produção de todas as formas de sociedade desaparecidas, [...]. A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco. O que nas espécies animais inferiores indica uma forma superior não pode, ao contrário, ser compreendido senão quando se conhece a forma superior. A Economia burguesa fornece a chave da Economia da Antiguidade, etc.

(MARX, 1982, p. 17, grifos nossos).

Atentamos ao método, considerando que devemos partir do já esteticamente formado, procedendo a tempos remotos, numa relação dialética. Podemos, então, nos aproximar da origem quando entendemos o mais desenvolvido. Lukács (1967a; 1967b; 1972; 1974), utilizando-se do método materialista histórico-dialético, parte da unidade existente hoje em termos artísticos, advertindo, porém, que o estabelecimento dessa contemporânea unidade não foi impedido pela anterior heterogeneidade correspondente ao período de sua gênese.

No estágio de produção destrutiva de mercadorias com vistas ao lucro, em que nos encontramos na atualidade, não poderia ser possível à arte, bem como a nenhum outro complexo social, escapar à pauperização sofrida pelas relações humanas regidas, em primeira ordem, pelo subjetivismo, individualismo, imediatismo e fragmentação, entre inúmeras formas desprezíveis de convivência humana. Conforme asseveram Gonçalves e Jimenez (2013, p. 692): “A humanidade sofre, então, em sua expressão máxima, os revezes da destrutividade do capital.” E se edifica, no contexto atual, segundo as autoras, “uma objetividade inumana, prenhe, em seu caráter pragmático-utilitário, enquanto uma subjetividade limitada aos contornos de si mesma esvazia-se em sua práxis”.

Acreditamos que este estudo se faz proeminente, uma vez que poderemos contribuir para o entendimento do papel da atividade criadora/ receptora no aprimoramento dos sentidos, apontando à possibilidade de elevadas expressões no processo de humanização, a partir da superação da sociabilidade regida pelo capital, sob a qual o conjunto da humanidade encontra-se privado de desenvolver plenamente suas capacidades humanas.

2 Gênese da arte e as categorias abstratas do reflexo da realidade: ritmo, simetria e proporção e ornamentística

Partindo dos fundamentos teórico-metodológicos da ontologia lukacsiana, entendemos que o homem é um ser social na medida em que tudo de humano nele existente resulta do trabalho e, consequentemente, da vida em sociedade, ou seja, a passagem da esfera orgânica à condição humana constituiu um longo processo, estimulado basicamente pela fabricação de instrumentos, engendrada pelo trabalho e através da vida social (LUKÁCS, 1978). Advertimos, ademais, que, independentemente do objeto de estudo, em especial o das ciências humanas, é indispensável o estudo da ontologia como gênese. Nas palavras do filósofo húngaro,

se quisermos compreender os fenômenos no sentido genético, o caminho da ontologia é inevitável, e que se deve chegar a extrair das várias circunstâncias que acompanham a gênese de um fato qualquer os momentos típicos necessários para o próprio processo

(HOLZ; KOFLER; ABENDROTH, 1969, p. 14).

Isso posto, consideramos, baseando-nos em parte na entrevista que o filósofo húngaro concedeu, citada acima, que o surgimento do complexo universal da arte é tardio e paulatino com relação ao trabalho, tendo em vista que o estético nos faz presumir que exista certa elevação técnica, além da ocupação do agradável no processo de criação. O complexo da arte, no sentido ontológico, é uma maneira do homem compreender a própria vida na natureza e na sociedade. Nos termos de Lukács, é, também, encargo da arte “[...] uma continuidade do comportamento de o homem em relação à sociedade e à natureza” (HOLZ; KOFLER; ABENDROTH, 1969, p. 29).

Para melhor explicar a origem da atividade estética, a qual tem seu aparecimento como complexo tardio, apoiamo-nos em Tertulian (2008), ao elucidar que determinada situação, na qual se compunha um caráter mágico/religioso de cunho prático, passa a desenvolver certa autonomia, ocasião em que estabelece um desprendimento do transcendente e principia a realização de um estado de imanência, o princípio de uma efetivação genuinamente do ser social. Destarte, edifica-se, de acordo com Tertulian, fundamentado em Lukács, “[...] o momento em que a produção ou a narrativa, dança ritual ou mágica recebem, além de sua função original, uma nova função, que surge involuntariamente, a função estética” (p. 209).

Nessa ocasião, ocorre o que Lukács considera uma fase distinta da “consciência de si” do desenvolvimento humano. Aquilo que é avaliado como necessidade antropomórfica, todavia, sem apelo ao transcendente, atinge o estágio de imanência, a dialética entre objetividade-subjetividade, própria do complexo da arte. A estética, nos termos de Baumgarten,1 é a faculdade do sentir – modo como podemos nos desenvolver na realidade –, pois é da vida cotidiana que se extraem as sensações que mais tarde serão objetivadas na forma de reflexos superiores. Sendo a arte uma abstração superior, não é produzida de modo cotidiano.

Vale ressaltar que o cotidiano é, aqui, apresentado como começo e fim de toda e qualquer atividade humana e tem como base a realidade concreta do ser social. Contudo, o cotidiano é solo de rebatimento das atividades realizadas pelo homem. Sendo a arte uma abstração superior, não é produzida de modo cotidiano; é gerada, como explica Lukács (1974), pelo “homem inteiramente”, de modo a soerguer o homem em sua forma superior de abstração, pois o distancia, mesmo que seja somente em poucos instantes, da forma de ser da vida cotidiana, ou seja, do homem inteiro.2

Nesse ínterim, Lukács reconhece que as formas abstratas (ritmo, simetria e proporção e ornamentística) do reflexo estético da realidade decorrem do trabalho e se desprendem dele, de modo que conservam um caráter de autonomia relativa, bem como uma dependência ontológica perante o trabalho. Temos a intenção de evidenciar o encadeamento fundamental do processo de derivação das categorias estéticas a partir de sua base cotidiana.

Para Patriota (2010, p. 128) Hegel, em sua obra Estética, considerava como formas abstratas categorias como: regularidade, simetria e harmonia. De acordo com o filósofo alemão, essas formas abstratas são naturais, ou seja, “isso explica a ausência de uma efetiva dedução genética em suas análises, pois as categorias formais da beleza são, para ele, categorias dadas na natureza”. Patriota afirma que, apesar da riqueza e acuidade do pensamento de Hegel, suas considerações esbarram no limite de uma dualidade restritiva, que se supera tão somente por meio da categoria trabalho, em que natureza e espírito passam a se estabelecer concretamente.

Lukács, por seu turno, diante de seu pensamento maduro,3 passa a compreender que as formas estéticas respondem às necessidades do próprio homem, que se alargaram no processo de desenvolvimento humanogenérico. O complexo da arte, nesse sentido, é uma necessidade de humanização do homem. Nas palavras de Patriota,

a gênese da arte é um processo social objetivo e inconsciente. Ao se humanizar pelo trabalho o homem se faz estético. É neste sentido que o trabalho é a base originária das determinações estéticas em seus dois troncos primordiais: as formas abstratas do reflexo e as categorias miméticas

(2010, p. 128).

Para o fim deste artigo, trataremos, a seguir, apenas das formas abstratas do reflexo, mesmo reconhecendo a importância de nos debruçarmos, em outro momento, sobre as categorias miméticas. Consideramos apresentar, assim como o fez Lukács (1974), cada uma das formas de modo independente, com o intuito de proceder de maneira mais didática, entretanto, resguardando sua relação dialética com as diversas artes que dão forma à realidade.

Ao expor o ritmo como uma forma abstrata do reflexo estético da realidade, Lukács (1974) revela, apoiado na obra Trabalho e ritmo, do teórico alemão Karl Bücher – a qual Lukács considera como uma contribuição fundamental e convincente –, que o ritmo tem origem no trabalho. Patriota (2010, p. 129), ao estudar essa categoria em Lukács, assevera que “é através do trabalho que o homem se torna efetivamente consciente da existência e do significado do ritmo, fazendo intencionalmente uso dele em sua vida”.

É necessário salientar que o ritmo é um elemento presente na existência fisiológica de qualquer ser vivo e se faz presente na dinâmica da natureza inorgânica, a exemplo do dia e da noite, das estações do ano, etc. Embora o ritmo seja um componente presente nas bases inorgânica, orgânica e social, foi por meio do trabalho, do desenvolvimento do ser social, que o ritmo converteu-se em um momento importante da existência humana, superando o caráter de adequação fisiológica que ocorre nas bases inorgânica ou orgânica.

Nas palavras de Lukács,

este carácter ontológico impone un sello al ritmo que así se origina. Mientras que en el animal se trata simplemente de que la adaptación fisiológica al entorno puede en determinadas circunstancias producir algo rítmico, en el trabajo el ritmo nace del intercambio de la sociedad con la naturaleza

(LUKÁCS, 1974, p. 268).

O ritmo, nesse sentido, é um reflexo da realidade objetiva-subjetiva e que procede do trabalho na relação do homem com a natureza. A distinção entre o ritmo aplicado ao processo de trabalho e o ritmo natural se caracteriza objetivamente porque se trata de ritmos muito mais variados por um lado e, por outro muito mais complicados.

Isso posto, o filósofo húngaro entende que o caráter estético do ritmo não se compõe no cotidiano do ser social desse tempo histórico; passa a aparecer apenas na medida em que a relação de transformação do homem com a natureza, ao reduzir o tempo de trabalho, através do ritmo, provoca uma percepção de bem-estar, desprendendo, assim, uma autoconsciência de mundo. De acordo com o esteta húngaro,

Si volvemos ahora al problema del ritmo y el trabajo, estará claro que esa etapa no tiene aún por si misma nada que ver con el arte. El carácter estético del ritmo no se presenta na cotidianidad del hombre primitivo sino en la medida en que un tipo de trabajo, por disminuir relativamente el gasto de energia y producir al mismo tiempo mejores resultados, suscite placenteras sensaciones de alivio, de dominio de sí mismo y del objeto, desencadeando así una autoconsciencia del proceso de trabajo.

(LUKÁCS, 1974, p. 272-273).

Esse processo de desenvolvimento do ritmo estético requer, ainda, a possibilidade de generalização e aplicação aos mais diversos campos. Tendose em consideração que o ritmo faz parte do cotidiano, sendo oriundo, por um lado, de determinações naturais e, por outro, de desdobramentos do ato de trabalho, trataremos, a seguir, da questão da simetria e da proporção, levando-se em conta que essas também estão presentes na cotidianidade e que surgem do desenvolvimento do trabalho.

Lukács (1974) pondera que, do ponto de vista filosófico, os problemas de simetria e de proporção oferecem menos dificuldades que o ritmo. Diferentemente do ritmo, a simetria e a proporção parecem ser muito mais autônomas na atividade humana e mais diretamente ligadas ao mundo dos homens em sua relação com a natureza. Não obstante, essa margem mais larga conferida ao fator natural não atenua a importância do trabalho como processo de autoconscientização do homem.

Perpassando os estudos de Lukács sobre o aspecto da simetria, Patriota (2010, p. 132) relata: “Alguns seres inorgânicos, como os cristais, podem apresentar formas estritamente simétricas, porém, no nível orgânico, a assimetria é um fenômeno constante”, e continua, sobre o homem: “O rosto humano, por exemplo, é simétrico e assimétrico ao mesmo tempo”. No caso da proporção, descreve que “é legítimo falar de um fenômeno que ingressa na realidade do homem por vias naturais, intuitivas. A proporcionalidade rege os fenômenos imediatamente presentes no seu entorno” (PATRIOTA, 2010, p. 132-133). O autor esclarece, porém, que

para Lukács, não há problema em reconhecer que tanto a simetria quanto a proporção surgem para o homem de uma forma mais natural do que seria possível supor em relação ao ritmo. Esta margem mais ampla concedida ao fator natural não diminui a importância do trabalho como mediação dos processos de conscientização

(PATRIOTA, 2010, p. 133).

Vale ressaltar que, por mais que o mundo natural circunde o homem com constituições simétricas e proporcionais, despertando seus sentidos e sua percepção, é somente na relação com o trabalho que o ser social reconhece o entendimento desses princípios, apresentando-os, desse modo, à consciência.

Parece pouco plausível, segundo Lukács (1974), que o homem primitivo fosse capaz de observar ou conceituar determinações complicadas como são a simetria e a proporção. Entretanto, “la producción de las herramientas y utensilios más primitivos impone ya un acto práctico de atención a la proporción y la simetría” (LUKÁCS, 1974, p. 306). A experiência desenvolvida pelo homem, inclusive no primitivismo, supõe uma observação, ao menos aproximada, de comprimento, de amplitude, altura, etc., bem como na edificação de instrumentos rudimentares úteis à consecução da vida objetiva.

Assim, não há imprecisão de que a proporção e a simetria são reflexos da realidade objetiva, pois é na vida cotidiana que desenvolvem os requisitos dessa objetividade humana. Podemos citar exemplos de utensílios e ferramentas da Idade Primitiva, que, para a construção desses conjuntouse que os indivíduos observassem minimamente a proporção e a simetria: “La flecha, en la qual es imprescindible cierta simetría, ya la cerámica, en la qual la observancia de proporciones fijas es imprescindible condición de la utilidad” (LUKÁCS, 1974, p. 306).

Desse modo, entendemos que o primeiro passo de aplicação de proporção e simetria, presente no processo de trabalho primitivo, e o consequente surgimento de objetos rudimentares, ainda não é, para Lukács, um fenômeno estético. De acordo com esse filósofo,

el paso a lo estético no puede darse más que por ese camino que consiste en que los resultados de la construcción práctica formen un sistema cerrado puramente visual y se conviertan así en objeto de percepción inmediata. Esta percepción puede no ser aún estética; puede representar todavía simplemente un examen visual del logro técnico. Y se hace estética cuando esa perfección pasa a ser evocadora, esto es, cuando el sistema de proporciones visualmente realizado es capaz de desencadenar efectos de esa naturaleza.

(LUKÁCS, 1974, p. 312).

Aplica-se, desse modo, a questão sobre de que maneira, através do trabalho, cujo fim seja a prática, um objeto se transforme a ponto de obter o caráter estético, pois, para Lukács, “[…] al plantear filosóficamente la cuestión de la génesis de lo estético tropezamos con el problema de la relación y la diferencia (o contraposición) entre lo agradable (útil) y lo bello” (LUKÁCS, 1974, p. 308). Destarte, tanto a simetria quanto a proporção, conforme Lukács, para transpor ao caráter estético, com suas notas concisas, devem estar próximas do agradável.

Cada uma das formas abstratas conserva a tendência de se estabelecer em princípio ordenador do reflexo da realidade, inclusive do reflexo estético; ou seja, as formas abstratas têm a capacidade de constituir, por si mesmas, formações estéticas (LUKÁCS, 1974). Como relatamos acima: ritmo, simetria e proporção, através do trabalho, associam-se à vida cotidiana do homem. Embora as categorias abstratas estejam atreladas à utilidade, apontam para além dela. As leis estéticas formadas na ornamentística também irão influir no reflexo da realidade concreta e real, e, ademais, a partir do trabalho e de seu processo técnico, surgem os sentimentos, que, na lição de conforme Patriota (2010, p. 138), “vão conduzir o homem desta era primordial à primeira formação com caráter efetivamente estético: a arte ornamental”.

A gênese da arte ornamental é uma súmula de muitos fatores, dentre eles, o do deleite despertado pelo adorno. Darwin, de acordo com Lukács (1974), reuniu um material diverso e impressionante, rico em detalhes, para explicar um legado do estado animal no que cabe à ornamentação. Contudo, quando subjugada a uma consideração atenta, a tese darwiniana do adorno como dado preexistente na natureza e dela derivado cai por terra. Isso porque a ornamentação no animal é espontânea; difere da produzida pelo homem porque essa decorre do trabalho e, em conseqüência, da sociedade. Com o intuito de elucidar dita questão, Lukács recorre aos Manuscritos Econômico-Filosóficos de Marx:

O animal é imediatamente um com sua atividade vital. Não se distingue dela. É ela. O homem faz de sua mesma atividade vital um objeto de sua vontade e de sua consciência. Ele tem atividade vital consciente. Esta não é uma determinação com a qual ele coincide imediatamente. A atividade vital consciente distingue o homem imediatamente da atividade vital animal. Justamente, [e] só por isso, ele é um ser genérico. [...] O animal forma só segundo a medida e a carência da species à qual pertence, enquanto o homem sabe produzir segundo a medida de qualquer species, e sabe considerar, por toda parte, a medida inerente ao objeto; o homem forma, por isso, segundo as leis da beleza.

(2004, p. 84-85).

Isso posto, cremos que não é muito difícil compreender tal questão. O ornamento no animal é inato, e, desse modo, não pode aprimorar-se senão pela via biológica de evolução das espécies. Ademais, tem uma função objetivamente dada à qual serve (proteção, camuflagem, etc.). O homem, por sua vez, adorna a si próprio em uma atividade atrelada ao seu trabalho. O adorno produzido, por mais primitivo que seja, desprende-se do trabalho. Além disso, o adorno é construído socialmente, e, assim, se elimina toda e qualquer comparação com o animal. Vejamos, nos termos de Lukács (1974, p. 330): “La manera como se adorna un hombre – por tatuaje o por adornos que se pone – no se puede, en modo alguno, inferir de su situación fisiológica, sino que es un producto de relaciones, situaciones y actividades sociales.”

Outro ponto a ser considerado, na sistematização lukacsiana sobre a ornamentística é a separação do estético sobre o útil e agradável, e que esse afastamento exibe diferentes trajetórias, de acordo com o tempo histórico. Por exemplo, uma ferramenta que, no passado, teve um fim essencialmente útil, em tempos atuais, submerge o cerne da utilidade. De acordo com o autor,

en los ornamentos que nos han llegado, se ha producido ya el proceso de separación respecto de la utilidad por obra del tiempo trascurrido desde entonces, a causa, esto es, de que las herramientas en cuestión se há desprendido del desaparecido contexto vital en el cual figuraban cuando nacieron y se usaron. La impresión que producen en el receptor contemporáneo nuestro contiene pues una inversión completa del original

(LUKÁCS, 1974, p. 337).

O critério de utilidade não desaparece inteiramente da existência evocadora, apenas baixa a utilidade genérica inicial. O que antes – no Período Primitivo – tinha o uso fundamentalmente imediato, portanto útil, pois para ser estético exigiria um ócio plenamente desenvolvido, que Lukács avalia que, mesmo que tivesse ocorrido um processo estético perante o ornamento, este não teria, na prática humana, uma ação essencialmente consciente.

Podemos afirmar, na esteira de Lukács, que “toda ornamentística nace del trabajo tecnico” (1974, p. 355), mas que é difícil traçar seu princípio estético de forma dedutiva. O adorno humano, como já destacado, tem seu caráter social “y que ese fundamento social tiene un radio de acción tanto más intensamente dominado cuanto más se aleja el adorno de la vida cotidiana, cuanto más se constituye en género artístico”. Como resultado, a evolução social implica profundamente a gênese e as possibilidades concretas da ornamentística. “El estudio histórico-materialista del arte tiene que averiguar cuándo esa evolución social es fecunda para la ornamentística, cuándo tiene que producirse su esterilidad y donde arraigan sus principios” (LUKÁCS, 1974, p. 367).

A arte ornamental, como bem explica Patriota (2010, p. 141), expande a “potencialidade estética dos produtos do trabalho” e, dessa maneira, tais produtos “estão aptos a desencadear sentimentos ligados à utilidade”, fazendo com que se estabeleça o reflexo estético da realidade objetiva. Se a arte constitui seu sentido basilar na própria vida humana, portanto, as leis estéticas devem corresponder, antes de tudo, à expressão dessa mesma vida. As necessidades do homem, as quais nascem no cotidiano, fazem com que aquele exerça uma ação, ou seja, o trabalho por meio do qual a humanidade institui o novo, permitindo ao gênero humano um processo ilimitado de desenvolvimento.

De acordo com e escopo teórico-metodológico marxiano reivindicado por Lukács, é pela via do trabalho que a significação de utilidade se transpõe a uma dimensão estética, e esse processo é mediado pela consciência. Há um desprendimento do utilitário ao agradável. Nesse sentido, o complexo universal da arte é tardio e paulatino com relação ao trabalho, uma vez que o estético nos faz prever que existe uma ascensão técnica, além do emprego do aprazível no processo de criação. A arte é uma das formas através das quais o homem compreende a própria vida na natureza e na sociedade. Assim, com Lukács, a consideramos a maior prova da imanência humana.

Considerações finais

A gênese da arte tem como objeto o fundamento da existência social dos homens: o trabalho, na relação da sociedade em intercâmbio com a natureza, é mediada pelas relações de produção. O complexo da arte se apresenta no mundo dos homens gradualmente, uma vez que “supone materialmente una determinada altura de la técnica, y, además, un ocio para la creación de ‘superfluidad’, determinado por el aumento de las fuerzas productivas del trabalho” (LUKÁCS, 1974, p. 251).

O complexo da arte, diante da lógica societal do capital, necessita conjeturar outra forma de sociabilidade, fundamentada na íntegra igualdade e na efetiva formação humana no mundo dos homens. Uma sociedade que tenha como precedência condições humano-objetivas para o desenvolvimento pleno dos sentidos humanos.

Essa problemática contribui para a brutalização dos sentidos humanos, criando dificuldades para que o reflexo estético possa desenvolver-se com toda sua potencialidade. Isso ocorre em virtude da radicalização da exploração do homem sobre o homem, decorrente do trabalho estranhado, que, com efeito, aprisiona o ritmo, a simetria e a proporcionalidade e a ornamentística, e todo o movimento decorrente da livre-consciência no que se refere à autenticidade da arte. Isso posto, é relevante a compreensão das formas abstratas do reflexo estético como momentos necessários à vida cotidiana.

No momento em que nos é dado um cotidiano tão embrutecido, uma atividade estética pode deslocar-se e reverberar no cotidiano, de modo que possa enriquecer o indivíduo, como partícipe do gênero humano. Não queremos dizer, com isso, que a arte pode resolver as mazelas que assolam a humanidade; entendemos que tal intento não tem sua resolução por essa mediação. Falar em aprimoramento dos sentidos, da arte, da estética e do desenvolvimento das melhores e mais desenvolvidas faculdades humanas, é vislumbrar outro patamar de sociabilidade, que supera a ordem capitalista. O que almejamos é dar um passo na direção do entendimento da Estética marxista, recuperada e formulada, em grande medida, por Georg Lukács, compreendendo que tal obra contribui para a elucidação das possibilidades de pleno desenvolvimento humano dos sentidos, numa forma de sociabilidade para além dessa.

1Geoffrey Alexander Baumgarten, filósofo alemão nascido em 1714, autor da conhecida obra Metafísica, que foi adotada por Kant como manual para suas aulas acadêmicas. Mas sua obra mais importante foi Aesthetica (1750-1758), que o converte em fundador da estética alemã e em um dos mais eminentes representantes da estética do século XVIII (ABBAGNANO, 1994, v. 2).

2Por ocasião de nosso estudo dissertativo, compreendemos, a partir da sistematização de Georg Lukács, a relação dialética das categorias homem inteiro e homem inteiramente. A relação supracitada, diante do complexo da arte, tendo em vista que o homem inserido no meio homogêneo – inteiro – é capaz de estabelecer uma ascensão ao cotidiano, assim, o sujeito é fincado no gênero humano, de modo inteiramente, acercado pelo conhecimento, que, uma vez estabelecido, institui a fruição intelectual-espiritual. Entretanto, enfatizamos que o homem inteiro e o homem inteiramente vivem em uma dialética insuprimível no imediato do cotidiano. O homem inteiro tem a possibilidade de ampliar, nessa coletividade, suas mais incipientes manifestações fundamentais, quando vive em condições favoráveis ao desenvolvimento dos sentidos. Assim, o homem inteiro eleva-se ao homem inteiramente e retorna ao inteiro enriquecido (ARAUJO, 2013).

3 Vaisman e Fortes (2010) afirmam, junto a pesquisadores como István Hermann – um dos primeiros alunos de Lukács e László Szikai – diretor do Arquivo Lukács de Budapeste, que houve uma virada histórica nos anos 1930, pois, logo após deixar Viena, Georg Lukács vai a Moscou e passa a trabalhar e a cuidar, no Instituto Marx-Engels-Lênin, da edição dos Manuscritos de Marx, elaborados em Paris, em 1844.

Referências

ABBAGNANO, N. Historia de la filosofía. Barcelona: Hora S. A., 1994. 2 v. [ Links ]

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Recebido: 17 de Abril de 2019; Aceito: 30 de Dezembro de 2019

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