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Conjectura: Filosofia e Educação

versión impresa ISSN 0103-1457versión On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.25  Caxias do Sul  2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v25.e020012 

ARTIGOS

Estágio supervisionado na Educação Infantil: desafios e contribuições para a formação inicial de professores#

Supervised stage in Children Education: challenges and contributions to initial teacher training

Aliandra Cristina Mesomo Lira* 
http://orcid.org/0000-0003-2945-464X

Eliane Dominico** 
http://orcid.org/0000-0002-2320-4036

Kamile de Oliveira Silva*** 
http://orcid.org/0000-0001-5581-4309

Heloisa Toshie Irie Saito**** 
http://orcid.org/0000-0003-1061-5933

*Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora Associada no Departamento de Pedagogia e Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Estadual do Centro-Oeste/UNICENTRO, Guarapuava/PR. E-mail: aliandralira@gmail.com

**Doutoranda em Educação pela Universidade Estadual de Maringá/UEM. Mestra em Educação pela Universidade Estadual do Centro-Oeste/Unicentro. E-mail: nane_dominico@hotmail.com.

***Pedagoga formada pela Universidade Estadual do Centro-Oeste/Unicentro. E-mail: kmile.oliveira@gmail.com.

****Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora Associada no Departamento de Teoria e Prática da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá/UEM. Maringá/PR. E-mail:heloisairie@gmail.com.


Resumo

O artigo objetiva refletir acerca dos embates vivenciados pelos acadêmicos do curso de Pedagogia, durante o momento de Estágio Supervisionado na Educação Infantil, buscando identificar a contribuição desta disciplina no curso de Pedagogia para a formação dos futuros profissionais. Para isso, partimos da importância do estágio supervisionado na formação inicial de professores e sustentamos a reflexão a partir da análise documental do plano de ensino da disciplina e de dezenove relatórios de estágio, no contexto de uma instituição pública de Ensino Superior. As análises estão respaldadas em autores como Kishimoto (2001, 2011), Pimenta (2002; 2006), dentre outros que contribuem para pensarmos a relevância do estágio, como elemento formador. Dadas as necessidades e o franco desenvolvimento vivido pelas crianças na faixa etária da Educação Infantil, torna-se necessária uma formação inicial consistente em que os futuros docentes sejam capacitados a trabalhar fomentando nas crianças habilidades sociais, intelectuais, físicas e afetivas. Os dados evidenciaram um distanciamento entre o contexto estudado na universidade e o cotidiano nas instituições de Educação Infantil, condição que torna menos qualificada a experiência do estágio supervisionado, mas não reduz sua importância como momento de reflexão e aproximação com o campo de trabalho. Embora exista uma relação entre o plano de ensino da disciplina e os relatórios analisados, ainda persiste uma grande distância entre a formação oferecida no âmbito acadêmico e a prática das instituições. Isso, ao contrário de oferecer um descrédito à formação, demonstra uma necessidade de melhor preparo e espaço para as discussões acerca da Educação Infantil, nos cursos de formação de docentes.

Palavras-chave Educação Infantil; Estágio supervisionado; Formação inicial de professores

Abstract

The article aims to reflect on the struggles experienced by the Pedagogy students during the Supervised Internship in Early Childhood Education, seeking to identify the contribution of this discipline in the course of Pedagogy for the training of future professionals. In order to do this, we start from the importance of the supervised internship in the initial formation of teachers and we sustain the reflection from the documentary analysis of the teaching plan of the discipline and of nineteen internship reports, in the context of a public institution of higher education. The analysis is supported by authors such as Kishimoto (2001; 2011), Pimenta (2002; 2006), among others that contribute to the relevance of the stage as a formative element. Given the needs and the frank development of children in the Early Childhood age group, it is necessary to have an initial formation in which future teachers are trained to work by fostering children’s social, intellectual, physical and affective skills. The data showed a distancing between the context studied in the university and the daily life in the institutions of Early Childhood Education, a condition that makes the experience of the supervised stage less qualified, but does not reduce its importance as a moment of reflection and approximation with the field of work. Although there is a relation between the teaching plan of the discipline and the analyzed reports, a great distance still exists between the offered training in the academic scope and the practice of the institutions. This, in contrast to providing a discredit to training, demonstrates a need for better preparation and space for discussions about Early Childhood Education in teacher training courses.

Keywords Early Childhood Education; Supervised internship; Initial teacher training

Introdução

Do ponto de vista histórico, temos dois marcos importantes que garantem os direitos das crianças brasileiras à educação: a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) na qual as crianças passam a ser reconhecidas e consideradas como sujeitos de direitos e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) n. 9394, de 1996 (BRASIL, 1996), que insere a Educação Infantil como primeira etapa da Educação Básica.1

Antes da implementação das referidas leis, as instituições existentes estavam sob a responsabilidade das Secretarias de Assistência Social, com cunho predominantemente assistencialista e objetivavam atender especialmente a crianças pobres, filhas de mães trabalhadoras. Ao vincular o atendimento das crianças de 0 a 5 anos de idade à esfera educacional, a legislação e os documentos orientadores que a acompanham ressaltam a importância de lançar olhares atentos com relação à realização do trabalho pedagógico desenvolvido com as crianças, articulando as ações do cuidado e educação.

Com essa compreensão, ganha importância a problematização da relação entre a formação decorrente da disciplina de Estágio Supervisionado na Educação Infantil e os desafios enfrentados pelas estagiárias,2 no campo de estágio. Esse texto busca refletir sobre os embates vivenciados pelos acadêmicos do curso de Pedagogia, no momento do Estágio Supervisionado na Educação Infantil. Nesse sentido, focalizamos nosso olhar na disciplina de Estágio Supervisionado na Educação Infantil, com o objetivo de compreender como ela está organizada e quais os impactos para a formação, a partir das experiências vivenciadas no contexto da educação básica. Considerando que, no final da disciplina, as acadêmicas elaboram um relatório chamado de memorial descritivo sobre sua experiência de estágio, debruçamo-nos também sobre esses documentos, buscando captar quais aspectos mereceram maior destaque, nos relatos e como esses são interpretados pelas futuras profissionais.

As reflexões aqui apresentadas são resultantes da análise do plano de ensino da referida disciplina e dos relatórios de estágio produzidos pelas acadêmicas do terceiro ano do curso de Pedagogia de uma instituição pública de Ensino Superior. O intuito foi problematizar os desafios, as expectativas e contribuições do estágio na formação inicial dos professores.

Na escrita, inicialmente, tratamos do estágio na Educação Infantil, apoiadas em autores que estudam a temática como Broering (2008), Gatti e Nunes (2008), Pimenta (2002), Pimenta e Lima (2012), Kishimoto (2001; 2011) e Ostetto (2008). Em seguida, apresentamos como se desenvolve a disciplina de Estágio Supervisionado na Educação Infantil para, na seção seguinte, problematizar o conteúdo dos memoriais produzidos pelas discentes.

O estágio na Educação Infantil: teoria e prática em discussão

Dadas as necessidades e o franco desenvolvimento vivido pelas crianças na faixa etária da Educação Infantil, torna-se necessária uma formação inicial consistente, em que os futuros docentes sejam capacitados a trabalhar fomentando nas crianças habilidades sociais, intelectuais, físicas e afetivas. Como ressalta Kishimoto (2001), a formação profissional constitui a principal ação capaz de enfrentar a maioria dos desafios da Educação Infantil, pois incide sobre a capacidade de sistematizar práticas pedagógicas que permitam um processo educativo emancipatório às crianças.

Ao refletir sobre o estágio, Pimenta (2002, p. 23) salienta que este sempre foi marcado pela problemática relação entre teoria e prática, ao passo que “[...] o estágio realizado com pesquisa e como pesquisa contribui para uma formação de melhor qualidade de professores e de pedagogos”. Por esse motivo, o estágio é o momento de confronto entre as práticas vivenciadas na instituição e aquelas, muitas vezes, idealizadas na universidade.

De acordo com a ementa da disciplina de Estágio Supervisionado na Educação Infantil do curso de Pedagogia investigado, o estágio é a oportunidade que as futuras profissionais da educação têm de investigar e analisar criticamente as práticas encontradas, tanto dos professores da instituição quanto a sua própria prática enquanto estagiárias. O foco está no aprofundamento da inter-relação entre teoria e prática, partindo das discussões em sala para o contexto das instituições de Educação Infantil. Muitas vezes, nos cursos de formação, é o estágio que rompe o distanciamento entre as escolas e a universidade.

Apoiadas em Pimenta e Lima (2012), entendemos que, muitas vezes, os cursos de formação apresentam em seus currículos um aglutinado número de disciplinas segregadas entre si, que estão desvinculadas do campo de atuação profissional dos acadêmicos. Nesse contexto, ainda perdura nos currículos dos cursos de formação docente, nas universidades, um privilégio das disciplinas da área de fundamentos, com maior carga horária, em detrimento das disciplinas de metodologia e os estágios supervisionados. Como ressaltam Gatti e Nunes (2008, p. 45) , a partir de resultados de pesquisa,3 há um “[...] desequilíbrio na relação teoria-prática, em favor dos tratamentos mais teóricos, de fundamentos e contextualização”. Contudo, a formação exige articulação e aprofundamento tanto da teoria como da prática, proporcionando aos acadêmicos estabelecer relações e reflexões acerca dos desafios da profissão, no decorrer de seu percurso formativo.

Certamente, uma formação baseada em uma relação entre teoria e prática dará embasamento para o trabalho nas escolas, como dito anteriormente, mas não deve bastar-se por si só. A prática precisa estar ligada à teoria, numa relação dialética em que ambas têm importância e se retroalimentam (PIMENTA, 2002). Portanto, a concepção de que o estágio é a parte “prática”, instrumental, e/ou técnica da formação necessita ser reavaliada, uma vez que não representa apenas um momento em que as acadêmicas vão a campo observar e reproduzir as práticas lá observadas. Ao contrário, partindo de todo o arcabouço teórico e experiências que as estudantes já possuem, o momento do estágio deve ser concebido como campo de conhecimento (PIMENTA; LIMA, 2012). É nesse momento que as discentes têm a oportunidade de fazer uma minuciosa reflexão sobre as práticas docentes buscando alternativas para melhorá-las, intervindo de acordo com o contexto social em que a instituição de Educação Infantil está inserida. Nesse ínterim:

O papel das teorias é iluminar e oferecer instrumentos e esquemas para análise e investigação que permitam questionar as práticas institucionalizadas e as ações dos sujeitos e, ao mesmo tempo, colocar elas próprias em questionamento, uma vez que as teorias são aplicações sempre provisórias da realidade

(PIMENTA; LIMA, 2012, p. 43).

Assim sendo, o estágio supervisionado seria uma aproximação entre a teoria e a realidade ao inserir as estudantes no cotidiano das instituições de Educação Infantil. Como afirma Pimenta,

a finalidade do estágio supervisionado é proporcionar que o aluno tenha uma aproximação à realidade na qual irá atuar. Portanto, não deve colocar o estágio como o polo prático do curso, mas como uma aproximação à prática, na medida em que será consequente à teoria estudada no curso, que por sua vez deverá constituir numa reflexão sobre e a partir da realidade [...]

(2006, p. 70).

Desse modo, o estágio é mais um momento de formação para as acadêmicas, juntamente com as outras disciplinas da matriz curricular do curso. Ele contribui, principalmente, no sentido de permitir a inserção direta na prática podendo proporcionar formação profissional e pessoal. Segundo Ostetto (2008, p. 130), “[...] o estágio, não é o aprendizado [...] de um saber-fazer determinado, mas um ‘saber sobre si’, traduzido no processo de autoconhecimento que se abre da vivência interativa, para a percepção de limites e possibilidades”.

O estágio, nessa compreensão, torna-se um momento de descobertas, do contato com a novidade, de reflexão, de tomada de decisões no cotidiano das instituições, especialmente quanto à organização e condução das práticas pedagógicas. Conforme Broering (2008, p. 110), “[...] o estágio deve ser visto não apenas como um campo de aplicação de conhecimentos, mas também como um campo de produção de conhecimentos”. Desse modo, a experiência vivenciada no estágio supervisionado é parte imprescindível do conjunto de conhecimentos essenciais à formação do profissional da educação. É nesse percurso que ocorre a articulação entre teoria e prática, indicando possibibidades, caminhos, assim como também desvelam-se as inquietações e as particularidades do fazer docente. Além disso, os momentos reflexivos acerca da relação professor-aluno/adulto-criança proporciona um olhar mais atencioso à dinâmica formativa, dando voz aos sujeitos envolvidos e compreendendo-os no contexto sócio-histórico.

A disciplina de estágio supervisionado: organização e objetivos

A fim de reconhecer como está organizada e quais objetivos apresenta a disciplina de Estágio Supervisionado na Educação Infantil, empreendemos análise documental do plano de ensino. A disciplina faz parte da grade curricular do curso de Pedagogia de uma instituição pública de Ensino Superior.4

O referido curso tem duração de quatro anos e a disciplina, no momento da investigação, era ofertada no primeiro semestre do 3º ano. A carga horária totaliza 68 horas, distribuídas entre atividades de discussões de texto em sala e prática de estágio em instituições de Educação Infantil. Desse total, 28 horas são destinadas para estudo de textos sobre o campo da Educação Infantil e organização das intervenções, 24 horas para a realização das observações nos Centros Municipais de Educação Infantil (CMEIs) e 16 horas para a regência. Nessa organização observamos que há os momentos de reflexão sobre as especificidades do trabalho pedagógico na Educação Infantil, reconhecimento da realidade da instituição campo de estágio, planejamento de práticas e exercício da docência, por meio da regência.

De acordo com a ementa explicitada, o plano de ensino prevê o “Reconhecimento do trabalho nas instituições de Educação Infantil para a realização de práticas em docência e projetos pedagógicos na instituição escolar”. Dentre os objetivos elenca-se: “Observar as práticas pedagógicas realizadas com as crianças nos CMEIs; proporcionar a articulação dos fundamentos teórico-metodológicos à prática pedagógica; elaborar e aplicar projetos pedagógicos nas instituições infantis”. Cabe mencionar que o plano de ensino contempla referências de autores que discutem o papel do estágio na formação inicial, bem como estudos e documentos orientadores do campo da Educação Infantil, especialmente no que tange à organização das práticas pedagógicas.

O primeiro momento da disciplina envolve aulas expositivas, leituras dirigidas, pesquisas, seminários e apresentações de trabalhos. Posteriormente, acontece a realização das observações em Centros de Educação Infantil do Munícipio, momento em que as acadêmicas fazem o reconhecimento da instituição, estudam o Projeto Político-Pedagógico da unidade e observam a atuação dos(das) professores(as) com as crianças. Na sequência, as acadêmicas retornam à sala de aula na universidade, onde são feitas discussões sobre as observações e inicia-se a elaboração do projeto de regência de turma, sob a orientação da professora da disciplina, e de acordo com o tema indicado pela instituição campo de estágio. Como explicitado no programa da disciplina, inicialmente apresenta um panorama geral das atividades de estágio, para, posteriormente, dedicar-se à etapa do planejamento das observações e da regência. Aqui inclui-se também a elaboração de materiais a serem utilizados, como jogos, fantoches, dentre outros.

No momento da regência, as estagiárias são avaliadas pela professora da disciplina de estágio e pela regente da turma da instituição onde acontece o estágio. Esta deve preencher uma ficha que contempla os critérios a serem avaliados, os quais dizem respeito aos materiais utilizados, aos conteúdos abordados, à metodologia, à relação com as crianças, à liderança de turma e a pontualidade. O estágio é realizado em duplas, mas a avaliação ocorre de forma individual, pautada na participação das discentes durante as aulas, na entrega de diário de observação de campo, no desempenho durante a realização da regência e no relatório elaborado. Ao término do estágio, as acadêmicas dão início à elaboração do relatório de estágio que deve estar fundamentado em autores que estudam a temática e ser representativo das vivências, durante as observações e as práticas. Para finalizar, o aprendizado adquirido é socializado com as demais colegas e professoras em sala de aula, num momento de reflexão das experiências vivenciadas e dos principais desafios da docência, na Educação Infantil.

Os relatórios de estágio na Educação Infantil

Os relatório de estágio, também chamados de memoriais, constituemse em documentos acadêmicos elaborados na disciplina de estágio, devendo ser representativos das experiências vividas analisadas e refletidas à luz dos teóricos da área da Educação Infantil. Segundo Libâneo e Pimenta (2002, p. 51), é preciso que os acadêmicos tenham contato com a realidade escolar integrando os conteúdos das disciplinas com as situações práticas, experimentando problemas e soluções. Ainda de acordo com os autores, isso “[...] significa tomar a prática profissional como instância permanente e sistemática na aprendizagem do futuro professor e como referência para a organização curricular”.

Kishimoto (2011) avalia que um dos aspectos negativos na realização dos estágios está na sua durabilidade. A autora posiciona-se ressaltando que o tempo é curto e insuficiente e mesmo que os cursos de formação de professores tentem colocar os alunos em contato com livros, poucos vão à realidade, para observar e aprender como se processa a relação ensino e aprendizagem. Assim, a universidade precisa traçar caminhos buscando romper o distanciamento entre o plano ideal e o plano real, de modo a proporcionar de fato situações significativas de imersão na realidade da Educação Infantil. Embora a carga horária do estágio seja relativamente baixa, defendemos que a disciplina apresenta grandes contribuições para a formação do futuro professor, ao aguçar o pensamento e o olhar crítico sobre a docência.

A análise documental, além de considerar o plano de ensino da disciplina, debruçou-se sobre dezenove relatórios de estágio das acadêmicas do 3º ano do curso de Pedagogia, do período matutino, cujos estágios foram realizados em dois Centros Municipais de Educação Infantil (CMEIs) de um município de médio porte, no interior do estado do Paraná. De acordo Ludke e André (1986), os documentos são uma excelente fonte natural de informações que surgem de um determinado contexto.

Algumas questões nortearam a análise do conteúdo dos relatórios, dentre elas: Como o cuidar e o educar, o brincar, as práticas, a formação e o planejamento são abordados nos relatórios? Quais os(as) principais desafios/dificuldades encontrados no campo de estágio? Quais as principais falas das crianças/professoras citadas nesses documentos? Quais situações mais intrigaram as acadêmicas? Os relatórios destacam a Educação Infantil como uma etapa da educação básica que necessita de profissionais qualificados? Como os relatórios apresentam a unidade teoria e prática? Qual a postura dos profissionais dos CMEIs com relação às crianças e às estagiárias? Está explícita nos memoriais qual a contribuição dessa disciplina para a formação docente?

Partimos do pressuposto de que as perguntas nos ajudariam a problematizar a relação entre a formação decorrente da disciplina de Estágio Supervisionado na Educação Infantil e os desafios enfrentados pelas estagiárias no campo de estágio. Cabe esclarecer aqui que por questões éticas, a fim de preservar tanto as estagiárias quanto as professoras e as instituições envolvidas, utilizaremos nomes fictícios ao mencionarmos as situações descritas. Além disso, cada memorial foi numerado e assim será referenciado com a identificação M seguida da numeração, e para as instituições campo de estágio referimo-nos como X e Y. Além de permitir compreender quais as contribuições da disciplina de estágio na formação, a análise dos relatórios foi de grande valia para reconhecer como o trabalho está sendo desenvolvido com as crianças na Educação Infantil.

A instituição X possuía nove professoras concursadas e 22 estagiárias, predominando profissionais com formação inicial em andamento. Na instituição Y, eram dez educadoras, sendo sete professoras regentes concursadas e três estagiárias, algumas com formação concluída, outras em andamento.

Pode-se dizer que a formação não específica dos profissionais que atuam na área da Educação Infantil é uma grande lacuna observada pela turma, no momento do estágio. Constatou-se que muitas profissionais haviam cursado outras licenciaturas, não a Pedagogia, e isso foi mencionado nos memoriais como um aspecto que poderia estar interferindo na prática dos professores, uma vez que as licenciaturas, em geral, não apresentam no programa de suas disciplinas estudos voltados para a faixa etária da Educação Infantil.

Uma das questões abordadas nos relatórios refere-se ao planejamento, que acontecia de forma diferente em cada uma das instituições, de acordo com as ponderações das acadêmicas. Na instituição Y, o planejamento era ancorado em momentos de estudos e reflexões, e o relato a seguir expressa essa realidade:

A hora atividade além de ser um momento de preparação de atividades/materiais que serão utilizados com as crianças, é também um momento de reflexões sobre a prática pedagógica. As discussões são mediadas pela supervisora que organiza essa dinâmica, bem como indica e orienta o trabalho educativo

(M12).

Contraponto essa realidade, os relatórios de estágio realizados na instituição X indicam: “Quando é perguntado se a escola tem autonomia sobre o planejamento para a pedagoga ela responde que: A prefeitura manda o modelo, mas é flexível. É feito por semestre e dura 15 dias cada projeto” (M17). Sobre os trabalhos nessa instituição os relatos reafirmam a ausência de planejamento:

Já no início da manhã pudemos analisar quanto à postura da professora da turma, percebemos que ela não segue o planejamento, pois quando as crianças chegaram na sala ela falou: “Nossa, deixa eu ver o que eu vou fazer hoje”. Pegou o caderno e deu uma olhada

(M14).

Para as estagiárias foi perceptível o despreparo dessas professoras com relação ao planejamento que é um elemento essencial na Educação Infantil. De acordo com Ostetto (2008), o planejamento na Educação Infantil cria um espaço educativo que envolve situações que desafiam as crianças em contextos significativos, em que novas descobertas, novos conhecimentos ocorrem. Ainda de acordo com a autora, o planejamento prevê momentos significativos que proporcionam experiências tanto com o mundo físico quanto com o social.

A ausência do brincar nas práticas também foi evidente na instituição X, contrariando as orientações nacionais que indicam ser ele o eixo do trabalho na Educação Infantil. Defendemos que o brincar tem caráter pedagógico e deve ser encarado como uma atividade com extrema importância, que leva ao aprendizado e desenvolvimento das crianças. Nos relatórios analisados dessa instituição, o brincar apareceu como um fator de desestabilização, não sendo priorizado como prática corriqueira ou, ainda, a vivência do brincar como um “passatempo”, uma atividade livre, que somente demanda cuidados dos adultos para que as crianças não se machuquem. Um fato que merece destaque é que na instituição X as crianças brincam praticamente sem brinquedos: “Os brinquedos ‘bons’ eram guardados em prateleiras porque poderiam ser estragados ou quebrados. Eram oferecidos aos poucos para as crianças e sobre a vigilância das professoras. Na maior parte do tempo, as crianças brincavam com vidros vazios de amaciante, shampoo, lenços umedecidos, pet, entre outros” (M11).

Apoiadas em autores que estudam as crianças e sua relação com os brinquedos, como Brougère (2004, p. 16), defendemos que as crianças precisam ter acesso aos brinquedos (em bom estado) e que estes permitam a interação umas com as outras. Os brinquedos constituem “[...] uma entrada que abre outras portas para a complexidade e para a riqueza do universo contemporâneo e suas mutações recentes”. Segundo esse estudioso, os brinquedos são reconhecidos como artefatos culturais, pois, além de sua dimensão material, técnica e cultural, podem ser concebidos como suporte de determinadas funções, por estarem inseridos em um contexto sócio-histórico específico. Desse modo, além da sua qualidade de uso, os brinquedos precisam estar ao alcance dos pequenos, e não trancados em armários como de costume, na maioria das instituições de Educação Infantil.

Contudo, os relatos da instituição Y apontaram para um trabalho diversificado com as crianças. A rotina era flexível e as atividades realizadas no decorrer do dia davam lugar à fala, à expressão, à participação e ao envolvimento de cada criança. Nessa instituição, além da valorização do brincar, práticas relacionadas ao incentivo à leitura estavam presentes, sendo dedicada durante a rotina meia hora para contar histórias de literatura infantil. As crianças também frequentavam a biblioteca e escolhiam livros de seu interesse para levar para a casa: “A professora valoriza a literatura, tendo como prática diariamente a contação de histórias. As crianças interagem e participam do momento da contação. Dramatizam, cantam, manipulam os livros e fantoches” (M8).

As demais atividades também eram diversificadas, respeitando a participação e o interesse de cada criança:

Na Instituição Y o trabalho elaborado é diferenciado. As crianças não fazem todas juntas a mesma atividade. A proposta pedagógica valoriza o diversificado, desse modo alguns ficam nas mesas com atividades de registros, outros modelam massinhas e os demais brincam no tatame. O rodízio possibilita que a professora observe todas as crianças atentando-se para o respeito as particularidades de cada um

(M8).

Os relatos acima expressam a preocupação com o promoção de uma rotina dinâmica que permita um ambiente ativo e questionador. Nesse sentido Lira e Saito (2011) admitem que organizar práticas diversificadas é desafiador aos professores e, ao mesmo tempo, posssibilita às crianças maior interação e superação de desafios. Nessa perspectiva, Barbosa e Horn (2001) contribuem mencionando que uma das finalidades da Educação Infantil é possibilitar às crianças a socialização, o respeito, o direito à livre expressão, o acolhimento das suas falas. Logo avaliamos, a partir dos memoriais, que o trabalho pedagógico da instituição Y estimulava a construção da autonomia, respeitando o tempo e o espaço de cada criança. Práticas nessa direção demonstram que é possível realizar, nos contextos educativos, um trabalho que promova o protagonismo infantil. A interação, o acolhimento, o falar e o ouvir também estiveram presentes na rotina dessa unidade. O relato a seguir exprime isso: “Na instituição Y há muita interação entre a equipe pedagógica, professoras e crianças. O relacionamento é pautado em respeito e acolhimento, desse modo as crianças são recepcionadas pelos pares com músicas, abraços e beijos” (M9).

Outro fato mostra a abertura ao diálogo:

Dia do brinquedo, todas as crianças trouxeram brinquedos industrializados, exceto um menino que trouxe uma capa de caderno e um mouse velho. A professora curiosa questiona sobre o seu brinquedo e sua utilidade. O menino responde: “É meu computador com ele posso fazer tudo o que eu quiser, até brincar com todos esses brinquedos que vocês trouxeram e até viajar se eu quiser”

(M7).

A fala do menino ajuda a compreender que a aquisição do conhecimento ocorre quando há oportunidades para que a criança crie, imagine, fantasie, expresse desejos e preferências. Ademais, o relato traz uma reflexão a respeito de como a mídia influencia na brincadeira das crianças, incentivando o uso de brinquedos industrializados e até mesmo ensinando como se deve utilizá-los. Esse fato, muitas vezes, impede os pequenos de desenvolverem seu processo criativo. Vygotsky (1988) defende que o aprendizado das crianças ocorre durante as brincadeiras, na medida em que, ao construir regras, assimilam conceitos, criando novas formas de brincar. O autor alerta:

[...] mais importante que a utilização de alguns objetos como brinquedos é a possibilidade de executar, com eles um gesto representativo. Essa é a chave para toda função simbólica do brinquedo das crianças, [...] o próprio movimento da criança, seus próprios gestos é que atribuem a função de signo ao objeto e lhe dão significado

(VYGOTSKY, 1988, p. 130).

Nesse sentido, é importante que os professores da Educação Infantil reflitam acerca dos brinquedos ofertados e disponibilizados às crianças, no sentido de perceberem como esses influenciam o processo de construção da subjetividade dos pequenos.

Divergindo dessa realidade, na instituição X os relatos apontaram para um silenciamento das crianças e uma ausência de objetivos nas práticas pedagógicas:

No período da tarde, momento em que realizamos o estágio, presenciamos brincadeiras livres, com poucos materiais. Na maioria do tempo, as crianças ficaram ociosas. As professoras relataram que a “parte pedagógica” acontece no período da manhã

(M7).

A descrição acima demonstra a dificuldade que as professoras da Educação Infantil encontram na compreensão de que todas as ações desenvolvidas com as crianças se sustentam numa concepção de aprendizagem, desenvolvimento e Educação Infantil. A percepção das acadêmicas expressa nos relatórios evidenciou uma incompreensão da indissociabilidade entre cuidado e educação, uma vez que para as professoras atividades pedagógicas seriam aquelas que envolvem práticas de leituras durante a rodinha, as músicas e especialmente as registradas no papel. Os momentos de alimentação, higiene, sono e brincar não eram planejados, pois as professoras compreendiam que são ações que se incluem no âmbito do cuidado e não exigiriam planejamento.

Arroyo e Silva (2012, p. 267) destacam que “[...] assim, muitas vezes, as atividades ‘pedagógicas’ são compreendidas, pelos profissionais que atuam diretamente com as crianças, como aquelas atividades que ensinam algo para a criança”. Contudo, deveria prevalecer o entendimento de que toda a ação que realizamos com a criança é imbuída de um princípio pedagógico, o que exige que a Educação Infantil supere a percepção de que o ‘momento pedagógico’ se referiria apenas às atividades realizadas no papel, com exercícios gráficos.

Kishimoto (2001) chama a atenção para a importância de articular as ações de cuidado e educação. A autora ainda ressalta como o brincar atividades lúdicas, que podem auxiliar no desenvolvimento das crianças. Contudo, as observações evidenciaram que, nas instituições, ainda existe a separação entre o cuidar e o educar:

Na turma do berçário não foi possível presenciar nenhuma atividade lúdica e nem de estímulo motor. A preocupação estava no cuidado, como por exemplo, o momento de trocas de fraldas, alimentação e hora de sono. Atividades realizadas de forma apressada. Cabe ressaltar que algumas ações eram praticadas em condições precárias de higiene

(M14).

A dinâmica de conduzir o trabalho pedagógico nas unidades educativas, em especial no berçário, evidenciou uma semelhança ao trabalho fabril abordado por Foucault (2014), em que a ordem e a disciplina fazem parte da rotina desde muito cedo. Com a intenção de atender às necessidades físicas da criança, o profissional sucumbe a um fazer sem interação, e não compreende que alimentar uma criança, organizar um ambiente acolhedor para o descanso e ajudá-la em sua higiene são atividades educativas importantíssimas para a formação humana.

Martins Filho (2013) reflete a respeito das ações que são mecanizadas na Educação Infantil, apontando que o fazer apressado não possibilita atentar para as minúcias cotidianas ao desconsiderar e desrespeitar o processo criador e criativo das crianças. Esse foi um dos aspectos observados durante o estágio pelas acadêmicas, as quais atentaram para as relações estabelecidas entre as professoras e as crianças e também destas entre si. De acordo com os relatórios, o cotidiano revelou situações de medo, gritos, ausência de diálogo com as crianças, predominando um fazer permeado por relações de poder.

Esse poder objetiva moldar os corpos, ajustar os comportamentos, governar as crianças e suas infâncias, para que a ordem possa pairar sobre a rotina, tornando mais administráveis os sujeitos e o trabalho pedagógico. Veiga-Neto (2015, p. 55) afirma que “[...] governar a infância significa educar as crianças, moldando-lhe a alma que é, ao mesmo tempo, efeito e instrumento de uma anatomopolítica dos e sobre os corpos infantis”. O autor prossegue afirmando que as instituições educativas ocupam lugar de destaque no governamento, sendo um dos principais veículos de controle e poder sobre as crianças.

Godoi e Silva registram que os espaços destinados ao desenvolvimento dos pequenos são mais voltados para uma cultura institucional normatizada, tendo pouco lugar a vida infantil:

Essa forma de organização não favorece a construção da autonomia, ao contrário, termina por educar seus corpos, por modelá-los para que aceitem uma posição submissa (permanecer quieta, imóvel e obedecer às regras e às ordens que são colocadas), posição essa que tem como referencial uma concepção de criança como um ser incapaz, incompetente, frágil, e não como um ser criador de culturas infantis

(2011, p. 135).

A análise dos relatórios revelou descrições de situações e diálogos bastante agressivos com as crianças, o que pode gerar impactos sobre a constituição das identidades das crianças. Relatos demonstraram a indiferença, o desprezo e a falta de respeito das professoras ao se referirem às crianças, por meio de verbalizações pejorativas e preconceituosas:

Em nossa sociedade fala-se muito sobre bullyng e as professoras deveriam esforçar-se para que isso não ocorra. No âmbito educacional, porém, o que realmente acontece nesta instituição [instituição X], é o contrário, as próprias educadoras expõem as crianças a situações constrangedoras, pondo nestas apelidos como: “Tonho da lua, ovo, bobão, fanqueira, mongo, Bega”. Também foram observadas práticas de racismo contra uma criança negra a qual a educadora se referia a esta, como “eita fanqueira”, “veja não nega a cor, vai ser baladeira”. Em outra situação a criança chamou a professora de mãe e esta falou: “Eu não tenho filha dessa cor”

(M11).

As situações instituídas nessa escola e presenciadas pelas estagiárias não incidem positivamente para a constituição de sua profissionalidade; ao contrário, expõem um cotidiano marcado pela desumanização no trato com as crianças enquanto sujeitos de direitos em pleno desenvolvimento. Os contextos relatados apresentam condutas que ferem os direitos das crianças, afetando diretamente sua autoestima, influenciando na sua formação humana. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), em seu art. 17, a criança precisa ser cuidada e respeitada devendo ser velada a sua integridade física, psicológica e moral. Negar esse direito é comprometer a construção da sua identidade, é opor-se à sua participação como sujeito ativo e competente, para falar sobre si e sobre o mundo que a cerca, é refutar o respeito que todo ser humano merece.

Os relatórios também indicaram que o espaço não era limpo e a higiene pessoal das crianças não era bem trabalhada:

O nariz das crianças escorre e as professoras não limpam, ignoram e também no solário há sacos de lixo no chão e as crianças mexem. Depois de brincar no solário foram direto para o refeitório almoçar sem lavar as mãos

(M5).

[...] Quando a estagiária 1 sentou-se perto dessa menina perguntou às educadoras: “Essa chupeta é dela?” A auxiliar que estava ali presente respondeu que a chupeta era da creche, que todas usavam, mas que era para deixar com a criança para que essa não chorasse

(M13).

O uso coletivo de materiais que deveriam ser individuais apresentou às estagiárias uma realidade que não respeita as individualidades dos bebês, tampouco a higiene. Desse modo, além das ações do cuidar e educar serem entendidas e realizadas sem planejamento ou articulação, a higiene é precária e compromete a saúde das crianças.

Relatos como estes não são admissíveis em instituições de Educação Infantil, que têm como função cuidar e educar crianças, pois se sabe o quanto os pequenos são sensíveis às doenças e como qualquer pessoa precisa ter seu bem-estar resguardado para que possa se sentir acolhida e respeitada. De acordo com Weiss,

O aprendizado de qualquer hábito de higiene na Educação Infantil deve propiciar à criança a oportunidade de experimentar novas sensações, oportunizar o desenvolvimento de novas habilidades e autonomia, além da aquisição de novos conhecimentos relacionados ao seu corpo e ao autocuidado. Ultrapassar a mera repetição de regras, mas promover a introjeção de hábitos saudáveis que repercutam em sua saúde atual e no decorrer de sua vida

(2012, p. 133).

Como pudemos observar, um fator de tensão no momento do estágio é a relação das educadoras das instituições com as crianças. Agressões verbais e até físicas deixaram transparecer que as profissionais entendem suas ações como um favor para as famílias e não a Educação Infantil como um direito das crianças. Em um dos relatos analisados temos a seguinte situação: “As professoras ficavam questionando a vida pessoal das crianças, dizendo que as mães não faziam nada e que poderiam bem ficar com vocês (crianças) em casa” (M17). A preocupação com as condutas familiares não se restringe aos aspectos relacionados ao desenvolvimento das crianças, mas evidencia uma incompreensão da Educação Infantil como um direito de todas as crianças cujas famílias manifestem interesse.

Outro aspecto descrito, a partir das práticas observadas com as crianças, é a concepção escolarizante da Educação Infantil, que coloca em primeiro plano atividades de escrita envolvendo letras e números, marginalizando o brincar. Foram relatados encaminhamentos frequentes de pintura de desenhos fotocopiados, colagens com materiais semiprontos, execução das atividades com letras e números pelas professoras, para guardar nos portafólios das crianças, dentre outros. Cabe ressaltar que as estagiárias relatam ainda, nos memoriais, que encontram dificuldades na elaboração e execução do projeto determinado pelas unidades educativas, pois, além de temas difíceis de serem abordados, são também pautados em datas comemorativas, o que acaba tornando, muitas vezes, o trabalho pedagógico e os conhecimentos fragmentados.

Os relatórios trouxeram à tona, ainda, muitos embates vivenciados pelas acadêmicas em campo de estágio que se tornam desafios a serem superados na luta e defesa de uma Educação Infantil com qualidade para todas as crianças. Um dos aspectos negativos marcantes foi a resistência das instituições e da mantenedora em constituírem-se como campo de estágio, sendo isso explicitado pelo não acolhimento institucional, fato descrito em três memoriais. A resistência das profissionais em receber em seu grupo de trabalho estagiárias cria um ambiente hostil a sua presença, marcado pela tensão e desconfiança de ambas as partes.

A despeito dos aspectos negativos destacados pelos relatórios, a maioria sinalizou que o estágio foi uma oportunidade de aproximação com a realidade da Educação Infantil. Alguns trechos dos relatórios mencionaram o descompasso identificado entre as discussões realizadas na universidade e o que realmente acontece no interior das instituições. Isso desvela a inquietação das acadêmicas em presenciar situações de falta de respeito às crianças e à incompreensão dos objetivos e das finalidades da Educação Infantil, condição que compromete a possibilidade do estágio, como experiência enriquecedora para a formação das futuras profissionais. Assim, os dados evidenciaram um distanciamento entre o plano idealizado na universidade e o cotidiano nas instituições de Educação Infantil, condição que torna menos qualificada a experiência do estágio supervisionado, mas não reduz sua importância como momento de reflexão e aproximação com o campo de trabalho.

Considerações finais

Acreditamos que o Estágio Supervisionado em Educação Infantil, como componente curricular dos cursos de formação de professores, desempenha um importante papel neste percurso formativo, embora nem sempre as experiências vivenciadas sejam positivas ou estejam de acordo com o que indicam os documentos orientadores e a legislação para a Educação Infantil. A partir da análise dos relatórios, foi possível reconhecer como as acadêmicas atentaram para os aspectos essenciais da organização do trabalho pedagógico e da docência com crianças pequenas.

Observamos que, embora exista uma relação entre o plano de ensino da disciplina e os relatórios analisados, ainda persiste uma grande distância entre a formação oferecida no âmbito acadêmico e a prática das instituições. Isso, ao contrário de oferecer um descrédito à formação, demonstra uma necessidade de melhor preparo e espaço para as discussões acerca da Educação Infantil nos cursos de formação de docentes.

Os profissionais da área precisam conhecer e dominar os saberes docentes necessários para atuar com crianças de 0 a 5 anos, para que a aprendizagem e o desenvolvimento nessa faixa etária sejam cumpridas. Nessa direção, o currículo dos cursos de formação, que abarcam a Educação Infantil, precisam contemplar de maneira consistente aspectos como a indissociabilidade entre cuidado e educação, a importância do brincar, a literatura infantil, entre outras questões que devem ser contempladas de maneira integrada. Além disso, precisam garantir uma carga horária suficiente para que isso seja bem desenvolvido.

Outro ponto que merece nossa atenção é que, nos relatórios, predominaram análises das acadêmicas relacionadas às práticas docentes, deixando de lado o olhar mais apurado às crianças e de como elas se relacionam. A duração do estágio compromete essa percepção, mas, além disso, as discussões nos momentos de formação precisam enaltecer as crianças e suas capacidades, dando a elas um lugar de maior importância, tanto do ponto de vista das estagiárias, como também para os professores em serviço.

1De acordo com a referida lei dividida em duas etapas: I – creches, ou entidades equivalentes, para crianças de até três anos de idade; II – pré-escolas, para as crianças de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade (LDBEN, art.30).

2No texto, referir-nos-emos a acadêmicas, uma vez que todos os sujeitos desta pesquisa são do gênero feminino.

3Esta pesquisa fez parte de um projeto chamado “Formação de professores para o ensino fundamental: instituições formadoras e seus currículos”. O estudo buscou analisar o que se propõe atualmente como disciplinas formadoras nas Instituições de Ensino Superior nas licenciaturas presenciais em Pedagogia, Língua Portuguesa, Matemática e Ciências Biológicas, onde foi feita uma análise dos projetos pedagógicos das disciplinas e também das suas ementas. Sobre isso há também texto de Gatti (2010).

4Essa grade curricular vigorou até o ano de 2017.

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Recebido: 04 de Junho de 2019; Aceito: 13 de Março de 2020

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