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Conjectura: Filosofia e Educação

versión impresa ISSN 0103-1457versión On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.25  Caxias do Sul  2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v25.e020018 

ARTIGOS

Reflexões sobre a experiência e o ensino de arte: o conceito benjaminiano de “perda da aura” como parâmetro para a análise

Reflections on experience and art teaching: the Benjamin concept of “loss of aura” as a parameter for analysis

Rui Bragado Sousa* 
http://orcid.org/0000-0003-1889-8501

Diego Silva Rodrigues da Costa** 
http://orcid.org/0000-0002-1536-809X

Eduardo Oliveira Sanches*** 
http://orcid.org/0000-0001-9810-5764

*Graduado em História (UEM) em Pedagogia (Fael), doutorando em Educação (UEM). E-mail: ruibsousa@hotmail.com

**Graduado em Filosofia (UCS) e mestrando em Educação (UEM). E-mail: diego.costa33@gmail.com

***Graduado em Educação Física (UEM) e Pedagogia (UEM), Mestrado em Educação (UEM) e Doutorado em Educação (Unesp). E-mail: eduardo-uem@hotmail.com


Resumo

Com a análise conceitual da arte e da expressão artística, este artigo situa a discussão do ensino de arte em síntese aos pressupostos críticos de Walter Benjamin. Busca-se, primeiramente, o sentido da arte no contexto de seu surgimento, sua valorização cultural e sua função social, para, posteriormente, mediante pressupostos da Teoria Crítica da Sociedade, verificar-se as contradições com sua desintegração na atualidade, apropriada pela indústria cultural como valor de mercadoria. Nesse trajeto, a reprodução técnica da obra de arte tornase o fundamento categórico para a crítica e o desnudamento das formas decadentes sob as quais a arte é “visualizada” na modernidade. A redução das formas estéticas de percepção da arte expressa-se no desaparecimento da experiência, na incapacidade de narrar, na crise da transmissão, enfim, no ensino de arte.

Palavras-chave Teoria Crítica da Sociedade; Indústria Cultural; Arte; Ensino de Arte

Abstract

From the conceptual analysis of art and artistic expression, this article aims to situate the discussion of art teaching in synthesis to the critical assumptions of Walter Benjamin. Firstly, the meaning of the birth of art, itscultural valorization and its social function are rescued, so that, later, with the assumptions of the Critical Theory, it is possible to verify the contradictions with its disintegration today, appropriated by the Cultural Industry as a commodity value. In this way, the technical reproduction of the work of art becomes the categorical foundation for the critique and denudation of the decaying forms that art is “visualized” in modernity. The reduction of aesthetic forms of perception of art is expressed in the decay of experience, the ability to narrate, in the transmission crisis, in short, in art teaching.

Keywords Critical Theory; Cultural Industry; Art; Art Teaching

Um artista é alguém que produz coisas que as pessoas não precisam ter

(Andy Warhol).

Para o filisteu, a arte é o enfeite das fadigas e tormentos do cotidiano. Ele tenta abocanhar os ornamentos como o cão a linguiça

(Karl Kraus, Aforismos).

Introdução

Conceituar o objeto “arte” talvez seja uma das tarefas mais complexas, quando comparada à definição de cultura e linguagem, por exemplo. Não se sabe, ao certo, em que contexto histórico esses três conceitos foram elaborados ou em quais circunstâncias. Sabe-se, porém, que estão interligados e relacionados entre si, como formas de expressão, como significantes e significados humanos. Logo na introdução de História da arte, Ernst Gombrich (2015, p. 15), afirma que “nada existe realmente que se possa dar o nome de Arte. Existem somente artistas”.

Mesmo ignorando o marco inicial do surgimento das artes plásticas, conhecem-se as motivações que levaram os homens à criação da arte: diversos intelectuais e especialistas a relacionam à religião, ao sagrado. “Nos primórdios, pinturas e estátuas eram usadas para realizar trabalhos de magia”, afirma Gombrich (2015, p. 40). Uma pintura rupestre do período paleolítico é descrita pelo crítico Benjamin como “um instrumento de magia”, pois as primeiras manifestações de artes surgiram como um ritual, primeiro mágico, depois religioso (BENJAMIN, 1994, p. 173). De acordo com Nunes (2011, p. 15), a arte é o “foco de convergência de valores religiosos, éticos, sociais e políticos, a Arte vincula-se à religião, à moral, e à sociedade como um todo [...]”. Nessa perspectiva, a arte, assim como a cultura, constitui o sinônimo e a antítese da civilização.

Neste trabalho, pretendemos uma leitura crítica do processo histórico, buscando a contribuição das artes plásticas como legado histórico e pedagógico, de modo a oferecer subsídios para que possamos pensar criticamente a prática docente e o ensino de arte na atualidade. Este legado histórico, todavia, não pode ser visto meramente como cronologia linear – como no método positivista. A arte atual não é esteticamente melhor ou superior que a grega ou a medieval; elas são diferentes e refletem (ou expressam) a própria humanidade como civilização. É preciso, portanto, analisá-la tal como o fazem muitos especialistas: como forma dialética, isto é, em constante evolução e retração, conforme determinado estágio do desenvolvimento técnico e cultural humano.

O parâmetro de análise centra-se no conceito benjaminiano de “perda da aura”, diretamente relacionado à crise de experiência formativa na modernidade. Todo discurso da experiência deve partir da constatação de que ela não é mais algo que ainda nos seja possível fazer, anotou Giorgio Agamben (2005, p. 21). No mesmo sentido, Georg Simmel, cujas ideias influenciaram Benjamin, escreveu:

O ponto de partida da crítica kantiana, que acredita que “todo conhecimento começa com a experiência” não é evidente. Equivale mais ou menos a situar o começo de toda pintura no esboço. [...] A experiência, primeira etapa da sequência cognitiva, também não é a primeira forma de atividade do Espírito. Outras a precedem

(SIMMEL, 2011, p. 57).

Parte do afastamento progressivo do homem com a experiência1 devese às formas de trabalho alienado na modernidade, uma vez que a intensificação do trabalho morto no processo de produção, ou seja, “devido ao adestramento operado pela máquina, os trabalhadores são obrigados a adaptar seu movimento ao movimento contínuo e uniforme do autômato” (LÖWY, 2008, p. 193). Na concepção de Benjamin, a perda da experiência está, assim, estritamente ligada à transformação do trabalhador em autômato: os gestos repetitivos, mecânicos e carentes de sentido do operário às voltas com a máquina, provocam neles uma experiência de choque (Chockerlebnis), que condiciona um comportamento reativo, de autômatos. Dessa forma, “eles seguem seu caminho sentido, porém surdos; enxergando, porém mudos. Surdos perante Deus e mudos diante do mundo. Ao prestarem contas fracassam, não pelo seu agir, mas pelo seu existir. Eles emudecem” (BENJAMIN, 2009, p. 32), porque “nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadoras que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes” (BENJAMIN, 1994, p. 115).

Método: a arte como “reflexo” ou “expressão” do mundo material?

Qual a relação entre a arte (assim como da cultura ou da religião) com determinado período histórico ou determinada civilização? Seria a arte o “reflexo social e o estilo de um sistema de representação”, tal como se refere Hauser; ou seria ela a “expressão da personalidade do artista”, de acordo com Gombrich? Ou seria a expressão do temperamento nacional, individual ou de uma época, como concebe Wöllflin? Estas questões desafiadoras, propostas por Caramela (1998, p. 17), longe de terem respostas objetivas, são relevantes para nos mostrar os desafios e a complexidade do conceito e do ensino de arte.

Seguramente, uma das questões mais discutidas no âmbito da cultura é o debate entre a base econômica ou infraestrutura e as esferas culturais ou superestruturas. O suposto “determinismo econômico” inibe a crítica da arte por meio do marxismo como método. Desse modo, sustenta-se, neste tópico, seu sentido inverso, ou seja, compreendemos que o Materialismo Dialético é um método eficaz e historicamente coerente para se pensar a arte e a cultura. Esta problemática ficou evidente na década de 1950, com a publicação de História social da arte e da literatura, de Arnold Hauser. Ao propor que as formas artísticas resultam de um contexto social e material, ele enfrentou a resistência do meio acadêmico idealista tradicional. Todavia, se resgatarmos a própria definição de arte, conforme Alfredo Bosi (1985), em Reflexões sobre a arte, fica evidente a relação intrínseca entre o meio econômico-social e as ideias em geral. Bosi (1985, p. 13) afirma: “A arte é uma produção; logo, supõe trabalho. Movimento que arranca o ser do não ser, a forma do amorfo, o ato da potência, o cosmos do caos. Techné chamavam-na os gregos: o modo exato de perfazer uma tarefa, antecedente de todas as técnicas dos nossos dias”.

No mesmo sentido, Vygotsky, pondera que a arte não pode ser reduzida a uma forma simples e unívoca de reflexo das condições econômicas. No dizer de Marx (apudVYGOTSKY, 1999, p. 24), “certos períodos de seu florescimento não estão, absolutamente em consonância com o desenvolvimento geral da sociedade”. Em Psicologia da arte, como representante da psicologia marxista, o autor afirma que a arte como tendência definida, como soma de obras concluídas, é ideologia como qualquer outra ideologia.

Autores como Georg Lukács e Lucien Goldmann preferem usar a expressão “dialética da totalidade”, em vez de o termo reflexo ou o sentido “determinismo econômico”, cujas esferas econômica e cultural se influenciam mutuamente, embora de forma desigual. Bloch (2006), na obra O princípio esperança, insiste que as variáveis das condições socioeconômicas não restringem a expressão real da questão ao interesse econômico, ao velho debate da base e da superestrutura; o fator econômico não é o único, mas o fundamental, nunca determinante, embora condicionante.

Em Cultura e materialismo, Williams também buscou elucidar o problema, insistindo que a fórmula herdada de base e de superestrutura fez com que as explicações marxistas da literatura e do pensamento, muitas vezes, se tornassem fracas na prática. A base econômica determinaria as relações sociais que determinariam a consciência e esta, por sua vez, determinaria as ideias e as obras. O autor não aceita a fórmula e a vê como algo “essencialmente burguês e utilitarista”, substituindo-a pela ideia mais ativa de um campo de forças “mutuamente determinantes, embora desiguais” (WILLIAMS, 2009, p. 28). O autor considera o determinismo, seguindo Lukács, como uma característica específica da sociedade capitalista, em que a economia penetra inteiramente nos demais tipos de vida e de consciência – não como um conceito marxista.

Benjamin também não se furtou ao debate entre a base econômica (infraestrutura) e os níveis de cultura (superestrutura): “Marx expõe a correlação causal entre economia e cultura. O que importa, aqui, é a correlação expressiva. Trata-se não de apresentar a gênese econômica da cultura, mas a expressão da economia na cultura”, diz Benjamin (2012, p. 146). No ensaio sobre Eduard Fuchs, colecionador e historiador, um dos trabalhos em que o Materialismo Histórico é mais evidente, Benjamin escreve:

Sabemos que Marx nunca se pronunciou em pormenor sobre o modo como se deve entender a relação entre base e superestrutura em casos particulares. O que sabemos é que ele pensava numa série de mediações, ou transmissões, que se ativam entre as condições materiais de produção e os domínios mais distantes da superestrutura, nos quais se inclui a arte

(2012, p. 146).

Benjamin conhecia as cartas de Friedrich Engels que visavam elucidar a questão, nas quais insistia em formas de dependência causal de influência mútua, cujas esferas da cultura possuem relativa autonomia em relação à base econômica, sendo que a teologia e a filosofia são as esferas que flutuam mais alto. Benjamin encontrou, assim, o ponto exato de crítica ao determinismo atribuído erroneamente ao marxismo e, em justaposição a isso, o modelo ideal para a análise das obras de arte. O que importa, portanto, em se tratando de arte ou cultura, é apreender não a gênese econômica da arte, mas a expressão da economia na cultura, pois todo esforço de análise de uma obra de arte será vão se o seu conteúdo histórico sóbrio não se tornar objeto de “um conhecimento dialético”, adverte Benjamin (2012, p. 130). A arte é, em todos os seus aspectos essenciais, o revestimento idealizado da situação social, pois há uma lei eterna segundo a qual toda situação política e social dominante tem tendência a idealizarse, para, desse modo, legitimar moralmente a sua existência (BENJAMIN, 2012, p. 155).

Generalizando a arte como integrante das esferas da cultura, tal relação também fica evidente. A origem da palavra cultura, do latim culter, designa a relha de um arado; deriva de trabalho e agricultura, de colheita e cultivo. Nesse sentido, a raiz latina da palavra cultura é colere, com significado diverso, desde cultivar a adorar e proteger, podendo também significar, via o latim cultus, o termo religioso “culto”. No início, cultura denotava um processo completamente material; depois, foi metaforicamente transferido para as questões do espírito – da existência rural para a urbana; da criação de porcos a Picasso; do lavrar o solo à divisão do átomo. A construção da cultura está, portanto, desde sua origem epistemológica, relacionada à natureza e ao trabalho. “A cultura não é uma vaga fantasia da satisfação, mas um conjunto de potenciais produzidos pela história e que trabalham subversivamente dentro dela” (EAGLETON, 2011, p. 10-39).

Os pressupostos teórico-metodológicos mencionados são tomados neste texto para a reflexão mais ampla sobre a função social que a arte desempenha na modernidade, bem como sobre os limites do ensino de arte na atualidade. Seguramente, o utilitarismo econômico, a redução de valores humanos universais em relações comerciais, de sentimentos em valores monetários são fatores limitadores para a apreensão do objeto artístico. A profunda desintegração da experiência na modernidade líquida, descrita por Bauman (2013), impacta diretamente na redução da sensibilidade artística, seja como observador, seja no processo de ensino da Arte.

Experiência aurática2 e o “desaparecimento” da experiência

O ensaio de Benjamin, intitulado A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica,3 foi definido por ele próprio como a primeira análise da arte estritamente materialista. O teor materialista dessa obra é perceptível logo no segundo parágrafo, quando o crítico afirma que a superestrutura se modifica mais lentamente que a base econômica e, assim, “as mudanças ocorridas nas condições de produção precisariam de mais de meio século para refletir-se em todos os setores da cultura” (BENJAMIN, 1994, p. 165) – isso não significa que esta passagem deva ser compreendida mecanicamente como determinismo. Na sequência, o autor adverte que os conceitos empregados no ensaio não são “de modo algum” apropriáveis pelo fascismo; pelo contrário, podem ser utilizados para a formação de exigências revolucionárias na política artística.

Os subtítulos “Reprodução técnica” e “Autenticidade” examinam a discrepância entre os novos meios de reprodução modernos (xilogravura, litografia, fotografia e o mais densamente analisado, o cinema) e as formas artísticas pré-capitalistas, sobretudo as gregas. Para Benjamin, a reprodução técnica desvaloriza o conteúdo da obra de arte, chamado por ele de “aqui e agora” (Jetztzeit), sua autenticidade. A autenticidade “de uma coisa é a quintessência de tudo o que foi transmitido pela tradição, a partir de sua origem, desde sua duração material até o seu testemunho histórico” (BENJAMIN, 1994, p. 168). De acordo com Benjamin, as mais antigas obras de arte surgiram sempre a serviço de um ritual, primeiro mágico e depois religioso, ou seja, “o valor de uma obra de arte ‘autêntica’ tem sempre um fundamento teológico”. No momento em que a arte perde sua autenticidade, toda a sua função social se transforma; “em vez de fundar-se no ritual, ela passa a fundar-se em outra práxis: a política” (BENJAMIN, 1994, p. 172).

Essa transformação estética da arte e da própria percepção, que difere das formas anteriores ao capitalismo, em que a técnica se fundia inteiramente com o ritual, isto é, com o teológico, é oposta àquela conjuntura [1935-36] de ascensão do fascismo, em que a técnica é emancipada desse ritual e transposta para o terreno político apenas, ou seja, ao profano. O declínio perceptivo contemporâneo é associado ao conceito de “perda da aura”. Nas palavras de Benjamin (1994, p. 168): “O que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte é sua aura”, pois “a técnica de reprodução destaca do domínio da tradição o objeto reproduzido”.

O conceito de aura ou “perda da aura” é um dos elementos sublimes e complexos em Benjamin. Segundo a leitura de Gagnebin (2009, p. 39), aura está relacionada à perda da auréola, ou do halo presente em Baudelaire4 no “Spleen de Paris”. Já para Matos (2010), este fenômeno é fruto direto e teológico5 dos conceitos marxistas de fetichismo da mercadoria e de alienação do trabalhador, pois não mais se estabelece relação com a tradição “e a aura se enraíza na tradição”, afirma a autora. Vale lembrar a frase clássica de Marx (2010, p. 80), em Manuscritos econômico-filosóficos: “a desvalorização do mundo humano aumenta em proporção direta com a valorização do mundo das coisas”.

Se pudéssemos esboçar uma hipótese sobre o conceito de aura, diríamos que ele mantém relação com a tradição das sociedades artesanais, do trabalho dos mestres de ofício, do camponês, do marinheiro,6 que possuíam contato direto com a mercadoria que produziam; seu trabalho não lhes era alienado, logo a percepção teoricamente estaria relacionada à tradição e não à técnica. A descrição da aura surge pela primeira vez em 1930 e é detalhada com os seguintes termos:

Primeiro, a ausência da aura manifesta-se em todas as coisas, e não apenas em algumas, como em geral se pensa. Segundo, a aura transforma-se totalmente com cada movimento do objeto dessa aura. Terceiro, a aura de modo algum é aquele feixe mágico e impecável de luz espiritual que aparece nas imagens da literatura mística vulgar. Pelo contrário, o que caracteriza a aura é o ornamento, um envolvimento ornamental no qual a coisa ou o ser estão mergulhados como num estojo. Talvez nada dê uma ideia tão autêntica da aura como os quadros tardios de van Gogh, nos quais – poderiam descrever-se assim esses quadros – a aura é parte integrante da pintura de todos os objetos

(BENJAMIN, 2013, p. 157).

Todavia, relacionado à arte, o conceito de aura visa estabelecer a distinção entre a reprodução tradicional da obra de arte e sua reprodução técnica. Está no “aqui-e-agora” do original sua autenticidade, sua originalidade e sua inacessibilidade. A aura é definida em correlação à arte como “algo próximo por mais distante que esteja”, evoca assim a distância em si e o sentimento de inacessibilidade com a obra de arte original. O que se perde com a reprodução técnica da arte, com a cópia, com o inautêntico, é o valor ritual e sagrado atribuído à arte original.

A descrição de aura e seus efeitos na desintegração da experiência e da percepção perpassam também os trabalhos tardios de Benjamin sobre Baudelaire. Nesses escritos, o declínio da aura relaciona-se a imagens da memória involuntária e da experiência, novamente em declínio pela reprodução técnica da modernidade. O conceito causou espanto de Brecht7 ao afirmar em seu diário: “Benjamin está aqui, escrevendo sobre Baudelaire. [...] Parte de qualquer coisa que chama aura, que tem ligação com o sonho (com o sonhar acordado). [...] Tudo misticismo, apesar da atitude antimística. E desse modo se adapta a concepção materialista da história! é bastante assustador” (BENJAMIN, 2015, p. 234). Mas o declínio da aura torna-se claro quando Benjamin a explica citando o romântico Friedrich Novalis: “A capacidade de percepção é uma forma de atenção”. Essa capacidade de atenção “não é outra coisa senão a aura”, ele completa.

Benjamin exige da arte uma tarefa difícil: desfazer a alienação do sensório corporal, restaurar a força instintiva dos sentidos corporais humanos em prol da autopreservação da humanidade, sem evitar as novas tecnologias, mas perpassando-as. Benjamim descobriu a tese segundo a qual, graças à sua reprodução técnica na era industrial, a obra de arte teria recebido um novo status, abalando assim os fundamentos da estética tradicional. A arte na modernidade não se fundamenta mais na práxis mágico religiosa – como na Antiguidade –, ou na sacralidade – como no medievo –, mas sim na práxis política. Reside aí a grande mudança qualitativa da arte pós-Revolução Industrial: a arte como valor individual e monetarizado.

A crítica ao consumo individual das obras de arte, à indústria cultural de forma geral, foi densamente descrita por Adorno e Horkheimer em Dialética do esclarecimento e pelos teóricos da Escola de Frankfurt. A “arte é racionalidade que crítica a racionalidade sem dela se esquivar”. Pois, “com o progresso da razão, apenas as obras de arte autênticas conseguiram evitar a simples imitação do que já existe” (ADORNO, HORKHEIMER, 1985, 34). Mas Benjamin parece antecipar a Teoria Crítica – sistematizada apenas em 1947 na Dialética do Esclarecimento – quando procura traduzir a oposição entre diversão e concentração:

Quem se recolhe diante de uma obra de arte mergulha dentro dela e nela se dissolve, como ocorreu com um pintor chinês, segundo a lenda, ao terminar seu quadro. A massa distraída, pelo contrário, faz a obra de arte mergulhar em si, envolve-a com o ritmo de suas vagas, absolve-a em seu fluxo

(BENJAMIN, 1994, p. 193).

Da teoria à prática: ensino de Arte e restituição da experiência

Gombrich destaca o papel das artes na educação da sociedade no decorrer de quatro períodos históricos (Antiguidade grega, Renascimento, Romantismo e Modernidade). Na Grécia antiga, o mais importante expoente teórico da arte foi Platão. Com seus diálogos, em A República, preocupa-se em escolher a forma adequada de arte (música, poesia), que tem efeito benéfico sobre as emoções. Platão condenou alguns instrumentos e certo estilo musical pela influência nociva que exerciam sobre a sociedade. No entanto, a música não era a única das artes à qual se atribuía propriedades mágicas sobre as emoções. A oratória, a eloquência, a arte de narrar enfim eram formas artísticas privilegiadas. A mais famosa aplicação do que Gombrich denomina de teoria “mágicomédica” da expressão artística na Antiguidade se encontra na Poética, de Aristóteles. Gombrich refere-se à descrição dos efeitos da arte dramática, que Aristóteles denomina como Catarsis. Trata-se de um termo médico que pode significar purificação; e aquilo que deveria ser purificado, segundo Aristóteles, seriam as paixões.

Nesse sentido, Gombrich (2015) afirma que uma pintura de Apeles ou uma escultura de Praxíteles conservavam ainda laços de união entre os efeitos da magia e o irresistível poder dos artistas. Ele enfatiza não haver civilizações ou tradição nas quais essa crença não se manifeste em imagens realizadas com fins religiosos ou supersticiosos. Portanto, há semelhança entre a teoria “mágico-médica” da arte na Antiguidade e os efeitos dos feitiços e elixires.

De acordo com as definições de Gombrich, no Renascimento, predomina o drama. A concepção dramática (em Shakespeare, sobretudo) predominou na arte e na crítica artística até o século XVIII, quando sofreu uma importante alteração relacionada ao Romantismo. Segundo as definições de Löwy e Sayre, em Revolta e melancolia, o romantismo extrapola a literatura; trata-se de um movimento que se opõe à civilização engendrada pela Revolução Industrial e do valor de mercadoria que em tudo lhe é análogo. O Romantismo não significa ou não deve ser entendido como “reação política” ou “medievalismo alemão patriótico”, nem como “escola literária”. O que o romantismo de Goethe, de Schiller, de Kant, de Fichte e a Revolução Francesa têm em comum é que todos são antifilisteus – expressão que designa, na linguagem cultural do século XIX, a estreiteza, a mesquinharia e a vulgaridade burguesas (LÖWY; SAYRE, 2015).

Predomina, assim, no Romantismo, a “teoria dos sentimentos”, como afirmam Goethe, Wordsworth e Schiller; ou seja, a arte como uma comunicação de emoções deveria deleitar o espírito e agradar à liberdade. Afinal, “uma obra de arte executada sem sentimentos, de uma forma fria, é uma verdadeira fraude; algo desonesto e imoral, como um poeta que escreve sobre o amor não o sentisse em seu coração estaria enganando seus leitores” (GOMBRICH, 2015).

Com essa retrospectiva histórica, Gombrich esboça a solução para seu problema, sua teoria sobre a expressão artística, à qual ele denomina de “teoria da mente coletiva”. Na arte dos períodos anteriormente analisados, o estilo do antigo Egito, o dos gregos, o do gótico no medievo, o romantismo, foram considerados como produto do Zeitgeist – o espírito de cada época – dos egípcios, dos gregos e da Idade Média cristã; os artistas, mesmo que representando sua própria interioridade, expressam-se e revelavam a essência de sua nação e de sua época. Com as definições de Gombrich, podemos apreender que a arte possui um viés individual do artista – a teoria das emoções –, mas isso não significa que as artes não possam ser analisadas como manifestações coletivas e sociais. Afinal, o próprio artista está inserido em um contexto temporal e espacial que molda sua visão de mundo, exprimindo por meio da arte suas emoções e o espírito de cada época.

Uma vez analisados historicamente alguns dos pressupostos teóricos das artes plásticas, neste tópico visamos estabelecer uma paralelo ou uma correspondência com o ensino de arte. Como foi sublinhado na introdução deste trabalho, temos como objetivo relacionar teoria e prática de ensino e estabelecer uma conexão com os atuais debates em torno do objeto supracitado. Portanto, buscamos dar fundamento objetivo à teoria, verificar sua aplicação prática, aproximando assim a realidade social do aluno e do professor com a expressão artística.

De acordo com as definições de Bosi (1985), a arte constitui e corresponde a três aspectos intrínsecos ao ser humano, quais sejam: fazer, conhecer e exprimir. A arte indica fazer, pois transforma em objetos a matéria-prima fornecida pela natureza.8 A arte como fazer’ vale para a pintura e para a escultura, mas é na arquitetura que está seu verdadeiro ser, afinal o instinto de morar e a fome são os mais elementares do homem. Nota-se que a definição triangular da arte como ação’ (fazer, conhecer, exprimir) é semelhante às teses da especialista Barbosa (2011), analisadas adiante. Os dois especialistas, Barbosa (2011) e Bosi (1985), desenvolveram trabalhos conjuntos, contribuindo para a elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais de arte (PCNs/Arte), e para a disseminação de um ensino crítico e especializado.

Barbosa (2011) propõe o ensino de arte baseado em ações continuamente interligadas, o que ela denomina de “Abordagem Triangular”, contrário à divisão tradicional no ensino de artes plásticas, entre teoria e prática. Essa proposta passou a ser sistematizada em pesquisas no Museu de Arte Contemporânea (MAC), da Universidade de São Paulo (USP), bem como na Secretaria de Educação de São Paulo, no período de 1983 a 1993. A Aprendizagem Triangular está presente atualmente nos PCNs/Arte, orientando a prática docente de arte no País. A autora ressalta que nos PCNs/Arte a nomenclatura dos componentes da Aprendizagem Triangular designados como “Fazer Arte” (ou produção), “Leitura da Obra de Arte” e Contextualização, foi trocada por Produção, Apreciação e Reflexão (da 1ª a 4ª série) ou Produção, Apreciação e Contextualização (5º ao 9º ano) (BARBOSA, 2011).

Uma das questões fundamentais propostas pela professora e pesquisadora Barbosa (2011) está baseada na importância do “ato de ver” e da “leitura crítica” no Ensino de Arte. Este processo que, mais tarde, viria a ser nomeado de Abordagem Triangular é revelador de uma época de mudanças, sobretudo, no que diz respeito ao exercício da crítica e análise de imagens. Nesta perspectiva, o “ato de ver” passa a ser parte essencial do processo de aprendizagem. Mas, afinal, o que podemos entender por “aprender e ensinar significativamente”?

O ensino de arte no Brasil, de acordo com Barbosa, está diretamente ligado às tendências pedagógicas reformistas colocadas em prática pela Escola Nova,9 a partir da década de 1930. Há uma grande influência das teses de John Dewey, disseminadas por Anísio Teixeira. Em suma, a arte adquire o estatuto de “experiência consumatória”. Isto significa não a experiência final, mas a consolidação da aula de arte com a prática do aluno. Em outras palavras, “a prática de colocar arte (desenho, colagem, modelagem, etc.) no final de uma experiência, ligando-se a ela por meio de conteúdo, vem sendo utilizada ainda hoje na Escola Fundamental no Brasil” (BARBOSA, 2011, p. 2).

[...] nas escolas, a arte passou a ser entendida como mera proposição de atividades artísticas, muitas vezes desconectadas de um projeto coletivo de educação escolar, e os professores deveriam atender todas as linguagens artísticas (mesmo aquelas para as quais não se formaram) com um sentido de prática ambivalente, descuidandose de sua capacitação e aprimoramento pessoal. Esse quadro estendese pelas décadas de 80 e 90 do século XX, de tal forma que muitas das escolas brasileiras de ensino médio apresentam práticas reduzidas e quase ausentes de um ensino e aprendizagem em música, artes visuais/plásticas, dança, teatro; enfim, de conhecimento de arte propriamente dita

(BRASIL, 2000, p. 47).

Com a redemocratização e as eleições diretas, no final da década de 1980, há uma mudança significativa no ensino de arte. A Lei n. 9.394/96, conhecida como Lei de Diretrizes e Bases Darcy Ribeiro, consolidou a obrigatoriedade do ensino de arte no currículo escolar; contudo, está consolidação não ocorreu sem debates. A inclusão deve-se em grande medida ao posicionamento de intelectuais como Bossi e Barbosa. Em 1996, com a promulgação na nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB – Lei n. 9.394), a área do conhecimento “Educação Artística” é extinta, entrando em cena a disciplina “Arte”, reconhecida, oficialmente, como uma área capaz de promover a reflexão e a criatividade entre os alunos. Depois de reconhecer o avanço progressista da atual LDB – sobretudo se comparada à legislação do período militar, tecnicista10 –, é preciso também analisá-la criticamente. A Lei n. 9.394/96 pertence ao contexto da economia neoliberal;11 a década de 1990, no Brasil, pode ser descrita como um período marcado pela economia neoliberal. Nesse sentido, pode-se observar que há uma grande discrepância entre a Lei n. 9.394/96 e sua aplicação prática. Esse hiato entre teoria e prática pode ser observado com a comparação da primeira versão da LDB, conhecida como Lei Darcy Ribeiro – pela forte atuação desse educador –, bem como as supressões e os recortes que o texto final sofreu para ser aprovado.

De fato, o Estado decidiu desobrigar-se de “educar o povo”, de forma mais intensa, nas áreas de ponta ou de excelência e um pouco menos direto, como mostra a ideia de substituir as escolas secundárias administradas pelo Estado por “academias” dirigidas pelo mercado de consumo (BAUMAN, 2013, p. 53). O conceito de modernidade líquida, consolidado pelo sociólogo Bauman, é relevante para a compreensão do atual debate sobre a educação e diretamente relacionado ao ensino de arte, pensando-a como estética social. Para Bauman (2013), a vida na sociedade pós-moderna caracteriza-se pelo que ele denomina de “liquidez ou superfluidez”, pois “a modernidade líquida é uma civilização do excesso, da redundância e do descarte” (BAUMAN, 2013, p. 23). Esta liquidez – que se opõe à modernidade concreta, anterior à que ele denomina de líquida – transforma os bens culturais em meros produtos para consumo, com a necessidade de novas tendências para suplantar o que já foi descartado.

Feitas tais considerações sobre o ensino da arte, retomamos a questão central que perpassa este artigo – a perda de percepção estética na modernidade ou a perda da aura, uma vez que valores universais e eternos (como a arte grega) deixaram de ter o seu significado na modernidade líquida. Na atualidade, a arte perde seu sentido original, se não for utilizada para estimular o consumo por meio de estratégias de marketing e de propagada; a educação perde seu sentido humanista; o homem perde seu centro. Contudo, segundo Gagnebin (2008, p. 108), Benjamin compreende a experiência aurática como um potencial antropológico que não deve ser liquidado, mas transformado em jogo e novamente firmado. Para Benjamin, a atrofia da aparência e a queda da aura representam “um monstruoso ganho em espaço de liberdade”.

O que Benjamin denuncia, seguido por Horkheimer e Adorno (1985), é a apropriação de valores culturais pela indústria cultural, que transforma a arte em bens de consumo individual mediante a reprodução em massa. Nesse processo, o embelezamento artificial da arte a reduz à mercadoria, destituindo seu caráter ágico, cultual, sagrado, como visto na origem das expressões artísticas da humanidade. Contra a “arte burguesa” e, contra a arte-ilusão, uma arte-refúgio, “uma arte que fabrica aura para reencantar o mundo, ele [Benjamin] advoga a destruição dos velhos clichês da estética do belo” (GAGNEBIN, 2008, p. 113), propondo novas formas de orientação no mundo, exercícios que deveriam educar e preparar para outras práticas possíveis, desta vez políticas.

Na segunda versão do ensaio sobre a reprodução técnica da arte – aquele não publicado pela Revista do Instituto de Pesquisa Social –, Benjamin define o lúdico, o jogo (Spiel), como a segunda metade da arte, arte entendida como comportamento mimético originário do homem; o que é acarretado pela atrofia da experiência, pelo declínio da aura, é um ganho formidável para o espaço do jogo (BENJAMIN, 2012b; GAGNEBIN, 2008, p. 123). Verifica-se, portanto, que o pessimismo quase fatalista em relação à apropriação da arte pela indústria cultural, presente em suas primeiras reflexões sobre o tema, posteriormente cede espaço à experimentação lúdica da arte, como que nas brincadeiras infantis, nos sonhos de criança, lugares inacessíveis à frieza burguesa e local de excelência pra o ensino de arte. Afinal, “a experiência é carente de sentido e espírito apenas para aquele já desprovido de espírito” (BENJAMIN, 2009, p. 23).

Na análise de Gagnebin (2009), a reconstrução da experiência teria como pressupostos a reordenação ou a constituição de uma nova narratividade fundada em formas sociais de organização comunitária. Esse “novo fazer” fundamenta-se no princípio de refazer a dimensão afetiva de uma experiência coletiva (Erfahrung), a começar pelas experiências vividas de modo isolado (Erlebnis). No ambiente cultural formado pela criança, há a abertura ao mundo, abertura necessária para a reconstrução dessa experiência comunitária, de senso coletivo e coletivizante das produções culturais. Afinal, como escreve Benjamin (2009), por meio do brincar, do lúdico, da mimese, as crianças estão constantemente reordenando e refazendo um mundo novo. Nesses produtos residuais, o mundo das coisas volta-se exclusivamente para elas: “Uma vez extraviada, quebrada e consertada, mesmo a boneca mais principesca transforma-se numa eficiente camarada proletária na comuna lúdica das crianças” (BENJAMIN, 2009, p. 57). Afinal, “brincar significa sempre libertação” (BENJAMIN, 2009, p. 87).

Considerações finais

Tudo consiste em que a arte sistematiza um campo inteiramente específico do psiquismo do homem social – precisamente o campo de seu sentimento

(Lev Vygotsky).

Uma das principais tarefas da arte sempre foi criar um interesse que ainda não conseguiu satisfazer totalmente

(Walter Benjamin).

Historicamente, o ensino de arte foi caracterizado pela hierarquia, tanto em relação aos seus conteúdos, como em relação ao seu públicoalvo. A arte era estudada nas academias de belas-artes e em conservatórios de música. Na escola regular, havia ensino de arte apenas como atividade extracurricular, posteriormente integrada ao currículo, com o objetivo de fixar o conteúdo de outras disciplinas. Nos seus primórdios, as atividades cênicas eram valorizadas na escola apenas em datas festivas, mediante a apresentação de peças e outras formas dramáticas, visando o desenvolvimento de valores cívicos e morais. No Brasil, essa forma de ensino foi predominante por quase todo o século XX. Com as reflexões de Bosi e Barbosa, houve certo progresso no sentido de rompimento da dicotomia teoria e prática. Estas novas metodologias de ensino, ao direcionarem a aprendizagem para o processo e não para a “experiência” final, visam a criação, imaginação e reflexão. Elementos caros na psicologia de Vigotski (2018), ao afirmar que a imaginação é a base de toda atividade criadora, que manifesta-se em todos os campos da vida cultural, tornando igualmente possível a criação artística, científica e técnica.

As reflexões expostas no decorrer deste trabalho servem como alerta ao educador engajado – e a arte tem um engajamento político – a pensar os desdobramentos da “abordagem triangular” para além de seu objetivo inicial, ou seja, a leitura de mundo por meio da leitura da arte. Em um período de frieza técnica na produção dos objetos de uso, como manifestação da racionalização – reificação, onde a teoria estética de Adorno denuncia a “regressão da audição” e Benjamin da “percepção” em geral, a arte não pode ser analisada meramente como refúgio, como “salva-vidas” simbólico para as frustrações do cotidiano. Salienta-se a importância da expressão artística que rompe a racionalização ou especialização, contra a estetização do belo ou da resistência heroica do trágico (pois o indivíduo capaz de resistir deixou de existir), ou a contratrivialização Kitsch das formas da arte. Reivindica-se uma arte-criação, uma arte libertadora, como no pensamento utópico do filósofo expressionista Bloch:

Hoje é possível a um povo, como sempre fizeram as crianças e os camponeses, criar obras expressivas e emblemáticas, mesmo que sejam privadas de maestria e estilo, sem nada em comum com objets d’art. Esta é a estrada que Klee e Marc queriam indicar; [...] a extraordinária conquista da facilitação técnica e a abundância expressionista: um relâmpago de signos nítidos e misteriosos, um improviso de todas as vias... que levam à via principal do desenvolvimento humano

(apudMACHADO, 2019, p. 27).

Na atmosfera livre, de ar puro, pode-se dizer que ainda existe a possibilidade da expressão e do ensino de arte. Um ensino que contemple desde a subjetividade do educando com a teoria dos sentimentos artísticos, até sua politização objetiva, ou o desnudamento de categorias que possibilitem a compreensão do objeto artístico em sua totalidade, seja como observação ou pela experimentação prática da arte. Afinal, como já foi notado, fazer arte remete diretamente à infância, no seu sentido etimológico de construção e também de travessura, de transgredir, de emancipar-se.

1Em pelo menos três trabalhos seminais, Benjamin dedica-se ao conceito de experiência: Experiência, escrito em 1913; Experiência e pobreza, publicado em 1933 e A imagem de Proust, de 1929. Ele diferencia a experiência coletiva (Erfahrung) da mera vivência (Erlebnis) e da experiência de choque (Chockerlebnis).

2Neste trabalho expandimos a discussão sobre a experiência aurática iniciada em outros estudos (SOUSA, 2015).

3Existem cinco versões do ensaio sobre a arte e sua reprodução técnica. A versão original foi enviada para uma revista russa no limiar da década de 1930, mas recusada porque o editor não compreendeu o conceito de aura (BENJAMIN, 2012). Esta primeira prova foi reelaborada e foram suprimidos alguns parágrafos sobre o fascismo, por exigência de Adorno e Horkheimer e publicada pela Revista de Pesquisa Social, em 1937. Neste trabalho, utilizamos as duas versões (BENJAMIN, 1994, 2012a).

4No poema em prosa “Perda da auréola”, Baudelaire expõe o poeta que não quer renunciar à sua auréola, à sua inspiração sentimental, mas que afinal já está inserido na crueldade e trivialidade de um mundo de mercadorias.

5A teologia é um dos pilares do pensamento benjaminiano (aura, culto, messias), mas elas surgem de forma escondida, implícita, quase evanescente na maioria de suas obras. “A multiplicidade de extratos da prosa crítica de Benjamin só pode ser apreciada se se percebe que mesmo na alegoria sociológica ainda ecoa algo teológico”, afirma o seu biógrafo, Bernt Witte (2017, p. 91).

6Ver o ensaio “O narrador”.

7Benjamin escreveu parte dos ensaios sobre Baudelaire, após pesquisas na Biblioteca Nacional de Paris, na casa de Bertolt Brecht, em seu exílio na Dinamarca.

8É possível estabelecer conexões e paralelos entre o conceito de arte e trabalho e cultura. Afinal, o trabalho – assim como a arte – é o processo de transformação de bens materiais em bens culturais, é toda ação humana consciente que modifica a natureza.

9Com o Manifesto dos pioneiros da Educação Nova, publicado em 1932, houve uma mudança radical nos processos de ensino e de aprendizagem de arte. Essa tendência metodológica foca o ensino centrado na figura do aluno, como sujeito e como objeto da aprendizagem.

10Por meio de licenciaturas curtas, “polivalentes”, nasceu a Educação Artística no Brasil. A obrigatoriedade do ensino de arte no período militar (1964-1985) trouxe consigo esta ambiguidade: ensino de arte para uma educação tecnicista.

11O neoliberalismo nasce na década de 1940 ainda durante a Segunda Guerra Mundial. Seu marco inicial é o livro de Friedrich Hayek publicado em 1944 e intitulado O caminho da servidão. Embora suas teses tenham caído no esquecimento durante as décadas de 1950-60, marcada pelo keynesianismo e por forte atuação dos Estados na economia, ele retorna com força após as crises da década de 1970, tornando-se hegemônicas com a eleição de e Margareth Thatcher e de Ronald Reagan, respectivamente na Inglaterra e nos EUA. Em suma, a cartilha neoliberal prega a mínima participação e a mínima regulação do Estado na economia, que deve ser controlada ao máximo pela iniciativa privada, visando à livre concorrência. Por esses fatores, as economias neoliberais foram fortemente marcadas por programas de privatização em massa e pouca atuação dos Estados nas áreas sociais, na educação e na saúde pública.

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Recebido: 14 de Dezembro de 2019; Aceito: 24 de Março de 2020

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