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Conjectura: Filosofia e Educação

versión impresa ISSN 0103-1457versión On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.25  Caxias do Sul  2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v25.e020019 

ARTIGOS

Da revolução ao constitucionalismo: uma análise das propostas de escolarização de adultos em Portugal (1974-1986)

From revolution to constitutionalism: an analysis of the proposals for schooling adults in Portugal (1974-1986)

Rubens Luiz Rodrigues* 

*Possui graduação em História pela Universidade Federal Fluminense (1990). Mestrado em Educação pela Universidade Federal Fluminense (1997). Doutorado em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2006) e Pós-Doutorado pela Universidade do Porto (Portugal – 2015). Professor associado III, do Departamento de Educação da Faculdade de Educação da UFJF. E-mail: rubensluizrodrigues65@gmail.com


Resumo

O presente artigo pretende analisar as propostas de escolarização de adultos em Portugal, no período demarcado entre os anos de 1974 a 1986. As lutas sociais impulsionadas pela revolução de 25 de abril de 1974 potencializaram propostas de escolarização de adultos orientadas pelas concepções de mundo, pelos valores políticos e pelas tradições socioculturais da classe trabalhadora. Destaca-se a crítica à concepção reducionista, supletiva e aligeirada da escolarização de adultos, bem como a permanência de um ensino voltado para a adaptação dos sujeitos às exigências da produção capitalista. A intenção era de promover a dimensão educativa das práticas sociais, permitindo a elevação da consciência dos trabalhadores a um novo patamar de compreensão e de enfrentamento dos desafios e das perspectivas colocadas em termos da superação das desigualdades. Desse modo, o artigo se orienta pela seguinte questão: Como o processo revolucionário português marcou as propostas de escolarização de adultos, na recente história política da sociedade portuguesa? Especificamente, abordou-se a proposta de criação de um Subsistema de Educação de Adultos, que se constituiu no período da restauração constitucionalista, que se consolidou com a aprovação da Lei de Bases do Sistema de Ensino n. 46/1986. A análise foi desenvolvida com base na produção teórica e crítica do campo da educação de adultos em Portugal, tendo por referência suas formulações históricas e sociológicas. Trata-se de reconhecer que a educação de adultos não pode ser reduzida, aligeirada e negligenciada nos e pelos processos de escolarização. Ao contrário, suas reivindicações históricas, suas especificidades sociais e suas características políticas constituem-se em referência para a continuidade das lutas e proposições de escolarização de adultos.

Palavras-chave Educação de Adultos; Escolarização; História; Política; Portugal

Summary

This article intends to analyze the proposals of adult schooling in Portugal in the period between 1974 and 1986. The social struggles promoted by the Revolution of April 25, 1974 have strengthened proposals for adult education oriented by world conceptions, values political and socio-cultural traditions of the working class. The critique of the reductionist, supplementary and lightening conception of adult schooling, as well as the permanence of a teaching aimed at the adaptation of the subjects to the demands of capitalist production stand out. The intention was to promote the educational dimension of social practices, allowing the workers’ awareness to be raised to a new level of understanding and facing the challenges and perspectives of overcoming inequalities. In this way, the article is guided by the following question: How did the Portuguese revolutionary process mark the proposals of adult schooling in the recent political history of Portuguese society? Specifically, we approached the proposal to create an Adult Education Subsystem, which was constituted in the period of constitutionalist restoration, which was consolidated with the approval of the Basic Education System Law No. 46/1986. The analysis was developed based on the theoretical and critical production of the field of adult education in Portugal, with reference to its historical and sociological formulations. It is necessary to recognize that adult education can not be reduced, lightened and neglected in and through schooling processes. On the contrary, its historical claims, its social specificities and its political characteristics constitute a reference for the continuity of the struggles and propositions of adult schooling.

Keywords Adult Education; Schooling; History; Politics; Portugal

Introdução

O presente artigo pretende analisar as propostas de escolarização de adultos em Portugal no período demarcado entre os anos de 1974 a 1986. As lutas revolucionárias de contestação e de resistência ao período ditatorial em Portugal potencializaram propostas de escolarização de adultos orientadas pelas concepções de mundo, pelos valores políticos e pelas tradições socioculturais da classe trabalhadora.

O mote central dessas proposições visava superar a perspectiva dominante, que impunha processos de escolarização que vigoravam por meio de um ensino voltado para a adaptação dos sujeitos às exigências da produção capitalista, que nega a apropriação do conhecimento, da ciência e da tecnologia como um direito social. Essas propostas de escolarização enfatizavam a dimensão educativa das práticas sociais presentes na educação de adultos.

Com base nas formulações de Freire (2014), pode-se considerar a valorização da dimensão educativa das práticas sociais, como uma ação intencional desenvolvida por educador e educando, nos processos de escolarização. Essa ação pretende contribuir para a apropriação do conhecimento historicamente acumulado e socialmente produzido, a partir da problematização da realidade social que envolve trabalhadores(as). A problematização da realidade social requer a exposição do conhecimento significativo, que potencialize o debate entre os educadores e educandos, de modo a proporcionar a elevação da consciência. Nesse contexto, articulase a prática pedagógica, presente na escolarização de adultos à problematização da realidade social, permitindo que o processo de conscientização, desenvolvido por educadores(as) e educandos(as), oriente as ações para um novo patamar de compreensão e enfrentamento dos desafios e das perspectivas colocadas em termos de superação da realidade educacional e social.

Considera-se que as lutas sociais adquirem centralidade na análise das perspectivas e dos desafios colocados para os processos de escolarização de adultos. Desse modo, o artigo se orienta pela seguinte questão: Como o processo revolucionário português marcou as propostas de escolarização de adultos, na recente história política da sociedade portuguesa?

A análise foi desenvolvida com base na produção teórica e crítica do campo da educação de adultos em Portugal, tendo por referência suas formulações históricas e sociológicas. O texto organiza-se em duas partes.

A primeira parte intitula-se Processo revolucionário, lutas sociais e propostas de escolarização de adultos em Portugal. Nessa parte, destaca-se a análise acerca do processo revolucionário português de 25 de abril de 1974, revigorando as proposições e ações em torno da denúncia aos processos de escolarização de adultos, consolidados pelo regime ditatorial fascista de Salazar (1926 a 1974). As potencialidades dessas proposições e ações permitiram crítica à concepção reducionista, supletiva e aligeirada da escolarização de adultos, bem como da preparação de força de trabalho para a inserção produtiva, mediante a associação entre elevação da escolaridade e crescimento econômico. Considera as relações que o Estado português estabelecia com as lutas sociais que denunciavam os processos de escolarização de adultos, que se consolidaram no período ditatorial. Sugere, ainda, que as orientações da aparelhagem estatal de Portugal expressavam os limites e as possibilidades de que os processos de escolarização se referenciassem nas reivindicações históricas, nas especificidades sociais e nas características políticas de contestação e resistência.

Denominada Proposta de escolarização e a criação do Subsistema de Educação de Adultos [...], a segunda parte aborda experiências de escolarização de adultos em Portugal, que se referenciavam nos interesses, nas expectativas e nos projetos de transformação e emancipação da classe trabalhadora. Nesse sentido, realça o Subsistema de Educação de Adultos, em Portugal, como expressão da articulação dos processos de escolarização, em torno da dimensão educativa das práticas sociais. Salienta que a contrarrevolução, de novembro de 1975, e a restauração constitucional de julho de 1976 consolidaram processos de escolarização que negligenciavam essas proposições. Na medida em que permaneciam compromissos, interesses e projetos de dominação em favor do crescimento econômico, as propostas de escolarização, pautadas pelas lutas sociais, foram esvaziadas pelas exigências de adequação da formação dos trabalhadores à sociabilidade capitalista. Esse processo foi consagrado na Lei de Bases do Sistema de Ensino n. 46/1986, por meio do ensino recorrente e da educação extraescolar de adultos.

Trata-se, portanto, de reconhecer que a educação de adultos não pode ser reduzida, aligeirada e negligenciada nos e pelos processos de escolarização. Ao contrário, suas reivindicações históricas, suas especificidades sociais e suas características políticas constituem-se referência para as lutas e proposições de escolarização de adultos.

1 Processo revolucionário, lutas sociais e propostas de escolarização de adultos em Portugal

A partir das formulações de Canário (2014), pode-se considerar que as lutas sociais, presentes em Portugal no contexto revolucionário de 1974, renovaram os eixos das proposições e ações da educação de adultos, em torno da superação das privações de acesso e de apropriação dos bens materiais e culturais. Um dos pontos que a recuperação da educação de adultos colocou no centro do debate diz respeito aos processos de escolarização de trabalhadores. Ao destacar a recuperação da educação de adultos em Portugal, o autor salienta a ratificação da crítica ao projeto dominante de educação, confrontando-se a perspectiva reducionista, supletiva e aligeirada, com a qual se impunham os processos de escolarização de adultos.

A abordagem estatística para a década de 1970 revela que o regime ditatorial manteve altos índices de analfabetismo na formação social portuguesa, negligenciando as reivindicações pela ampliação do direito ao conhecimento historicamente acumulado, por parte da classe trabalhadora. Candeias et al. (2007) destacam que o analfabetismo português alcançava o patamar maior que 30% para a faixa etária de 15 anos ou mais, na década de 1970.

Nesse contexto, Canário (2014) sinaliza, ainda, a denúncia que se fazia à omissão da aparelhagem estatal portuguesa, durante o período ditatorial, em relação à educação de adultos, bem como às propostas e ações que distorciam seu compromisso com a classe trabalhadora. Em termos das distorções da educação de adultos, as propostas de alfabetização eram consideradas como expressões da preservação da ideia de inferioridade e de incapacidade do analfabeto, mas também refratárias a princípios como a autonomia, a participação, a solidariedade, a emancipação como eixos da formação dos sujeitos. Em Estado e educação popular na revolução portuguesa,Canário (2015) aponta que a Campanha Nacional de Educação de Adultos (1952-1956) , lançada pelo Estado fascista de Salazar, converge para essa perspectiva.

A recuperação da educação de adultos articulava-se em torno dos movimentos e das organizações tradicionais de grupos que resistiam às condições socioeconômicas impostas pela ditadura portuguesa. O associativismo popular, presente desde meados do século XIX e que resistiu ao fascismo, fortaleceu-se com a Revolução de 25 de abril de 1974, estabelecendo uma estreita relação com a educação de adultos (CANÁRIO, 2015).

Expressando a tentativa de construção da educação de adultos, pautada na crítica ao analfabetismo como um mal que deveria ser erradicado, os movimentos e as organizações portuguesas reforçavam o que Canário (2014) denomina como conquista da autonomia de classe. Conquistar a autonomia de classe significava participar das decisões de sua sociedade, independentemente das condições de escolarização que eram impostas pelo processo de dominação. Esses movimentos e essas organizações destacavam a participação política como elemento central na construção coletiva de uma cultura em comum, em que o trabalho se constituía no princípio educativo de identificação, consolidação e difusão das concepções, dos valores e projetos de transformação social. A articulação entre trabalho e educação visava à emancipação humana, na medida em que rompia a unilateralidade da formação para o crescimento econômico, potencializando todas as dimensões do ser social, no campo da ciência, da arte, da ética, dentre outros.

Em Portugal, Canário (2014) ressalta que o processo revolucionário, aberto pelo golpe militar do Movimento das Forças Armadas (MFA), instaurou um contrapoder popular em relação à aparelhagem estatal, intensificando e fortalecendo um processo coletivo de autoaprendizagem, que passou a vigorar nos locais de trabalho, nas associações de moradores, nos espaços culturais. Da deflagração da revolução, em 25 de abril de 1974, até a contrarrevolução em 25 de novembro de 1975, as dinâmicas educativas eram inerentes aos contextos sociais instituintes dos trabalhadores, expressando a solidariedade compartilhada nos locais de trabalho, nas associações de moradores, nos espaços culturais. Suas lutas sociais, suas estratégias de organização, suas concepções de mundo vinculavam-se às formas de produção da vida, à criação de possibilidades de reconhecimento sociocultural e, sobretudo, a convicção da necessidade de emancipação política e humana.

A revolução portuguesa de 25 de abril de 1974 contribuiu para a constituição inédita da educação de adultos direcionada para a ruptura com os processos de escolarização, sobretudo em termos de alfabetização. Como salienta Silva (1990), não se tratava de difundir os processos de escolarização à educação de adultos. Tratava-se de tornar a escola expressão de seu contexto social, potencializando “processos educativos de aprendizagem por resolução de problemas e por diálogo entre formadores e formandos, no quadro de projetos e estruturas sociais coletivas” (SILVA, 1990, p. 19). Ao contrário das propostas de alfabetização, a dimensão educativa das práticas sociais na educação de adultos envolvia a especificidade da escola nas concepções de mundo, nos valores políticos e nas tradições socioculturais dos trabalhadores, destacando seu protagonismo na direção da sociedade. Ao mesmo tempo, subordinava os processos de escolarização à perspectiva “de focalizar e desenvolver as dimensões educativas de práticas sociais, privilegiando, portanto, as condições e os recursos para capacitação, para a aquisição de competências para agir, e as oportunidades e virtualidades formativas e comunitárias dos momentos e práticas lúdicas” (p. 19).

Em Portugal, a educação de adultos gerou conflitos em relação aos processos escolares. Por sua vez, esses conflitos motivaram proposições e ações por parte da aparelhagem estatal que oscilava, tal como identifica Canário (2015), entre a “absoluta exterioridade” e uma “relação virtuosa” com o poder popular. Cabe, então, analisar experiências implantadas no âmbito das orientações políticas promovidas pelo Estado português pósditadura fascista de Salazar, compreendendo os limites e as possibilidades de que os processos de escolarização se referenciassem em princípios da educação de adultos.

Em estudos acerca das relações empreendidas no Poder Popular, Canário (2015) sistematiza uma análise acerca das orientações políticas do Estado português pós 1974. Em termos educacionais, salienta que “as proposições e ações estatais transitam entre uma relação em consonância com a educação popular, baseada num processo coletivo e autónomo de autoaprendizagem, e a educação do povo, tutelada a partir de uma ação heterónoma conduzida pelo Estado” (CANÁRIO, 2015, p. 6). Essa distinção contribui para uma abordagem acerca dos desafios e das perspectivas das propostas de escolarização refratárias à condução ideopolítica do período ditatorial português.

Como já mencionado, a emergência do período revolucionário português (25 de abril de 1974 a 25 de novembro de 1975) reforçou a intensificação das proposições que buscavam superar a perspectiva reducionista, supletiva e aligeirada predominante nas propostas de escolarização de adultos, durante a ditadura fascista de Salazar. As orientações políticas do Estado português constituíram tensões com essa perspectiva, mesmo durante o período revolucionário.

Essas tensões evidenciavam-se na configuração da Campanha de Dinamização Cultural e Ação Cívica do Movimento das Forças Armadas (MFA). Sob o comando da 5ª Divisão do Estado Maior das Forças Armadas, a Campanha de Dinamização Cultural e Ação Cívica perdurou até a contrarrevoluação de 25 de novembro de 1975, embora algumas equipes permanecessem em atividade até 1976 (CANÁRIO, 2014).

Ribeiro (2014) considera que as ações educativas dessa campanha continham uma concepção missionária, salvacionista e redentora que, ao anunciar o fim do obscurantismo fascista e o vigor da ideologia revolucionária, pretendia esclarecer e conscientizar o povo para a transformação social. Operando por transferência do modelo cubano, a Campanha de Dinamização Cultural e Ação Cívica preservava a concepção preconceituosa da alfabetização dos adultos, atribuindo-lhes uma condição de “iletrados, logo, impreparados cívica e politicamente” (SILVA, 1990, p. 20-21). Mantinha a fragmentação e a hierarquização contida nos processos de escolarização em que “os padrões culturais dos alfabetizandos ficavam prejudicados pela procura de um efeito político espectacular de conversão ideológica instantânea de milhares de ‘vítimas do obscurantismo’” (p. 20-21). Mesmo em um contexto revolucionário, no qual se multiplicavam as formas de contrapoder popular, o Estado impunha a tendência escolarizante à condução das ações de alfabetização e cursos de Educação de Adultos, iniciadas com a criação da Direção-Geral de Educação Permanente (DGEP) em 1971 (p. 20-21).

A partir de outubro/novembro de 1975, a Direção-Geral de Educação Permanente (DGEP) vivenciou uma proposta que buscava superar as diretrizes das chamadas campanhas de alfabetização. No curto período de nove messes, contrapôs-se a uma concepção salvacionista da educação, a uma organização centralista do processo pedagógico e a um tratamento subalternizante na formação de adultos; empenhando-se na perspectiva de que as ações da aparelhagem estatal tinham como ideia central “garantir apoio continuado e estruturado a iniciativas sociais com relevância educativa” (p. 20-21).

Formando equipes móveis, impulsionando com recursos e adotando a descentralização regional, a Direção-Geral de Educação Permanente (DGEP) priorizava atividades coletivas de interesse comum. Referenciado na perspectiva freireana e no poder popular, o acompanhamento abrangia uma rede de comissões de trabalhadores em autogestão, associações de moradores, cooperativas socioculturais, visando a “respeitar e incentivar a autonomia da base, apoiando o desenvolvimento de projetos, dando-lhes visibilidade e contribuindo para a sua generalização” (CANÁRIO, 2015, p. 18). Problemas como o do analfabetismo e outras questões que supunham processos de escolarização de trabalhadores eram identificadas e enfrentadas, no caso de serem consideradas um obstáculo às atividades coletivas de interesse comum, vislumbradas Pelo Poder Popular (p. 18). Em outros termos, os processos de escolarização estavam subordinados aos movimentos sociais da educação de adultos portuguesa.

Mesmo a contrarrevolução ocorrida em 25/11/1975 teve dificuldades de conter as proposições da Direção-Geral de Educação Permanente (DGEP). As análises de Silva (1990) permitem compreender que a contrarrevolução amenizou mas não bloqueou as formulações e as ações que valorizavam a dimensão educativa das práticas sociais da educação de adultos em Portugal. Ainda como expressão do movimento associativo, a Direção-Geral de Educação Permanente (DGEP) ficou encarregada de elaborar e coordenar a execução do Plano Nacional de Alfabetização e Educação de Base de Adultos (PNAEBA).

Esse plano foi aprovado como Projeto de Lei n. 3, de 10/01/1979, já no período constitucional português, que se inicia na presidência de Mário Soares (1976-1978). Ainda que preservasse uma abordagem em torno da “eliminação do analfabetismo”, o autor de Educação de Adultos: educação para o desenvolvimento salienta que esse plano destacava-se por: 1 – construir uma concepção de referência para iniciativas populares; 2 – articular os programas de alfabetização e de promoção do ensino preparatório para adultos às ações socioeducativas mais perenes, flexíveis e diversificadas, na vida das comunidades e nos projetos de desenvolvimento; e 3 – descentralizar a administração dos programas e a criação de serviços e equipamentos de apoio às iniciativas emergentes na sua área. Em termos de processo pedagógico, o plano propunha uma organização que almejava construir a unidade do diverso.

Para desenvolver a educação de base dos adultos, apontava-se para a criação do Instituto Nacional de Educação de Adultos, para a elaboração de programas regionais integrados e para a construção de centros de cultura e educação permanente, em nível local. A alfabetização e o ensino preparatório para adultos eram transversais ao incentivo, apoio e suporte à dimensão educativa das práticas sociais, que se pretendia empreender, a partir dessa organização, à educação de adultos (SILVA, 1990).

Pode-se depreender, pelas análises de Silva (1990) acerca dos eixos centrais e da organização pedagógica do plano, que, pela ação descentralizada da aparelhagem estatal, o processo de escolarização de trabalhadores fosse conduzido pelos interesses populares. Nesse sentido, as práticas de educação de adultos adquiriam uma abrangência que envolvia os programas de escolarização de trabalhadores por temas pertinentes aos processos socioeducativos. Tal proposição buscava superar os preceitos da escolarização, pautados em uma concepção minimalista, compensatória e aligeirada do conhecimento.

O restabelecimento da dominação burguesa que se instaurou em Portugal, após a contrarrevolução e com a instauração dos governos constitucionais se eximiu de adoção de medidas políticas e administrativas que viabilizassem essa tentativa. Previsto para vigorar durante toda a década de 1980, o Plano Nacional de Alfabetização e Educação Básica (PNAEBA) foi abandonado na metade do percurso, com uma avaliação reduzida ao seu diagnóstico e sem estabelecer a programação da segunda etapa (SILVA, 1990).

De fato, a intervenção estatal no campo da educação de adultos ocorreu por meio da Direção-Geral de Educação de Adultos (DGEA), instância que substituiu a Direção-Geral de Educação Permanente (DGEP) pelo Decreto-Lei n. 534, de 31/12/1979. Até os anos de 1985, três características articuladas marcaram as ações da aparelhagem estatal na educação de adultos. A primeira refere-se à negligência política, à insuficiência de recursos e aos constrangimentos administrativos que lhe atribuíram um lugar subalternizado, engessando suas potencialidades pela centralização e pelo autoritarismo do sistema. A segunda consiste na retração dos intercâmbios entre as instâncias da aparelhagem estatal e as organizações populares, que diminuiu o apoio técnico e financeiro no campo da educação de adultos. A terceira aponta para o predomínio dos processos de escolarização que rompem com a articulação às práticas sociais (SILVA, 1990).

As propostas e ações em torno das características, especificidades e dos projetos da educação de adultos permitiram a organização de um Subsistema de Educação de Adultos na década de 1980. Entretanto, houve uma tendência de assimilação de processos de escolarização compensatórios, minimalistas e aligeirados, atendendo a expectativas de apropriação, ainda que parcial, da escrita e da leitura e de formação para as mudanças no mundo do trabalho proporcionadas pela reestruturação produtiva. A ênfase nas atividades de alfabetização e ensino centralizava-se na certificação da aquisição de competências na leitura, escrita e no cálculo, distanciando-se das atividades extraescolares que partiam da realidade socioeducativa dos trabalhadores (SILVA, 1990).

As orientações políticas do Estado português tenderam, portanto, a imprimir um sentido secundarizante, compensatório e aligeirado à educação de adultos, neutralizando suas relações com a intensificação dos movimentos e das organizações populares. Cabe, contudo, analisar as proposições de escolarização de adultos, que orientavam essa perspectiva, no período constitucional português.

2 Proposta de escolarização e criação do Subsistema de Educação de Adultos: suas raízes na Lei de Bases do Sistema de Ensino português (Lei n. 46, de 14 de outubro de 1986)

Após o período ditatorial português, os movimentos e as organizações socioeducativas potencializaram condições de contestação e de resistência ao prevalecimento do sentido secundarizante, compensatório e aligeirado nos processos de escolarização de adultos. Pode-se considerar que essa potencialidade contribuiu para a construção de proposições e ações que se confrontavam com os processos de escolarização lineares, a-históricos e reducionistas. Ainda que as exigências da dominação negligenciassem os processos de escolarização de adultos, a perspectiva de consolidar a dimensão educativa das práticas sociais influenciou as orientações da política educacional, dos sistemas de ensino e das unidades escolares na formação social portuguesa.

Silva (1990) considera que a configuração de um subsistema de educação de adultos trouxe inovações pedagógicas que permitiam redimensionar o modelo escolar português, na década de 1980. Isso porque sua capilaridade proporcionou a “instalação de mais uma rede de serviços, recursos e agentes, cobrindo o território nacional, e articulada em níveis de coordenação concelhia e distrital” (SILVA, 1990, p. 38). Ao mesmo tempo, “a própria posição de marginalidade, no contexto da administração e das políticas estatais, tornando-a menos institucionalizada e menos formalizada, menos tutelada também, induziu alguma comunicação com iniciativas socioculturais e interlocutores locais” (p. 38).

A alfabetização serviu de eixo motivador na adequação dos processos de escolarização às especificidades, complexidades e diversidades dos públicos que frequentavam a educação de adultos. Os interesses, as expectativas e as experiências dos educandos eram compreendidas como potencializadores de processos de escolarização, a partir da dimensão educativa das práticas sociais. No que se refere aos adultos,

mesmo na versão menos aberta à interação com o trabalho, a formação de base representa alguma atividade cultural local – designadamente através de acções (pontuais a maior parte, mas algumas com notável continuidade) de animação de leitura, dinamização de bibliotecas, recolha etnográfica, educação patrimonial, exposições e feiras, concursos, jogos florais, colaboração com coletividades de cultura e recreio como articuladora da alfabetização e do ensino a partir da leitura de mundo

(SILVA, 1990, p. 38).

Pode-se observar a perspectiva de desenvolver a escolarização pela articulação às práticas sociais. Essa articulação pretendia possibilitar a apropriação do conhecimento historicamente acumulado a partir da compreensão das condições de vida, das relações sociais e dos valores socioculturais do público da educação de adultos.

Em que pese essa perspectiva, o contexto português consolidou uma tendência de escolarização de adultos voltada para uma formação supletiva, que se orientava pela centralidade da experiência como referência de autoaprendizagem em que se pretendia adaptar os sujeitos a necessidades de desenvolvimento comunitário. Nesse sentido, a escolarização de jovens se apresenta como estratégia de formação para o trabalho. Em relação aos mais jovens, a rede de educação de adultos sublinhava a questão do ensino de segunda via, dos cursos escolares supletivos e noturnos mostrando que:

perspectivas de sucesso para a implementação de formas de educação em relação ao trabalho [...]; evidenciando a especificidade das práticas andragógicas, designadamente as vantagens de métodos educativos não formais, do primado do princípio da gestão da própria aprendizagem pelo sujeito, e da adequação dos objectivos e programas às necessidades e aos interesses distintivos de cada grupo de adultos

(SILVA, 1990, p. 38).

O cumprimento da escolaridade obrigatória distanciou-se da perspectiva de consolidar a dimensão educativa das práticas sociais construídas pelos movimentos de contestação e de resistência, que se confrontaram à proposição supletiva, reducionista e privatista da educação de adultos, consolidada pelo regime ditatorial português. A garantia de processos de escolarização mantidos pelo Estado, gratuito em todos os níveis e aberto e acessível a todos, incluindo os que não seguiram ou concluíram a educação escolar, pouco incorporou as referências sociais, as especificidades formativas e a dimensão política da educação de adultos.

Silva e Rothes (1998) indicam que a aprovação da Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE) n. 46/1986 reforçou o enquadramento da educação de adultos nos processos de escolarização por meio da estruturação do ensino recorrente de adultos e da educação extraescolar. Caracterizado como uma “modalidade da educação escolar” (art. 16), o ensino recorrente destinava-se aos “indivíduos que já se encontram na idade normal de freqüência dos ensinos básico e secundário e aos indivíduos que não tiveram oportunidade de se enquadrar na idade normal de formação, tendo em especial atenção a eliminação do analfabetismo” (art. 20). Ainda este artigo destaca que “este ensino atribui os mesmos diplomas e certificados aos conferidos pelo ensino regular, sendo as formas de acesso e os planos e métodos de estudos organizados de modo distinto, tendo em conta os grupos etários a que se destinam, a experiência de vida entretanto adquirida e o nível de conhecimentos demonstrados”. Ocorre, portanto, a substituição do termo educação por ensino, minimizando o caráter amplo e diverso da formação de adultos portuguesa. Vale, ainda, ressaltar que o reconhecimento das especificidades educativas da geração adulta consiste em aspecto relevante em termos da apropriação do conhecimento. Entretanto, há uma ênfase na certificação e na diplomação, que minimiza as perspectivas de educação/formação de adultos e a adaptação às exigências da produção capitalista, sem relação com a reflexão sobre as práticas sociais que marcam as trajetórias, experiências e os projetos dos educandos e das educandas.

A educação extraescolar “tem como objectivo permitir a cada indivíduo aumentar os seus conhecimentos e desenvolver as suas potencialidades, em complemento da formação escolar ou em suprimento da sua carência” (art. 23). Ainda nesse artigo, destaca-se que a educação extraescolar “integra-se numa perspectiva de educação permanente e visa a globalidade e a continuidade da acção educativa”. Apesar da LBSE n. 46/1986 definir os vetores fundamentais, os contextos de realização e as competências estatais referentes à educação extraescolar, Silva e Rothes (1998) consideram que seu tratamento negligenciou, sobretudo, as potencialidades contidas na modalidade de intervenção socioeducativa. Isso porque as iniciativas do Ministério da Educação português centraram-se nos cursos socioeducativos e cursos socioprofissionais. Os autores destacam que os objetivos desses cursos passavam pelo desenvolvimento pessoal, de modo a proporcionar melhor inserção na vida ativa, em especial no que se refere às necessidades conjunturais de emprego. Além desses cursos, havia iniciativas empreendidas no âmbito dos concelhos, que eram incentivadas pelo subsistema público de educação de adultos, tais como a dinamização de bibliotecas populares e o apoio ao associativismo (SILVA; ROTHES, 1998). Em outros termos, as atividades realizadas no domínio da educação extraescolar tinham, prioritariamente, o caráter de complementar os processos de escolarização, visando formar para o mercado de trabalho.

A síntese a seguir expressa o sentido que a educação de adultos adquire em Portugal, a partir da Lei n. 46/1986:

Em suma, na elaboração da LBSE, a educação de adultos acaba por ter um tratamento disperso em termos de abordagem, secundarizante quanto ao relevo que lhe é atribuído, predominantemente supletivo em relação à educação “regular” em que a lei se concentra. Para isso contribuiu a reorientação política, que apontava para uma virtual escolarização da educação de adultos e viria a conceptualizá-la no quadro do processo de modernização econômica. Mas também contribuiu a marginalidade que vimos assinalando ao subsistema de educação de adultos. No longo processo de negociação que conduziu à aprovação da Lei de Bases, os interesses ligados a este sector nunca tiveram o peso suficiente para que, nesta lei fundamental para a definição do sistema educativo, fosse reconhecido à educação de adultos o papel essencial que, num país com níveis educativos tão preocupantes, ela teria, em princípio, que desempenhar em qualquer estratégia consistente de desenvolvimento

(SILVA; ROTHES, 1998, 26).

Segundo Silva e Rothes (1998), o tratamento disperso, secundarizante e supletivo atribuídos à educação de adultos estendeu o “ensino recorrente” até o secundário, adequando seus planos curriculares às características da população adulta. Houve a expansão quantitativa de cursos e formandos no âmbito desse ensino, com o predomínio do público juvenil que desistia da escola, prejudicando o apoio às modalidades não escolares.

A inserção da educação de adultos nos processos de escolarização ocorreu, portanto, em torno de exigências que prescindiam do reconhecimento das especificidades, das complexidades e das potencialidades de seu público. Ocorreu, no sentido de que os processos de escolarização se constituíssem como espaço de formação técnicooperativa e ético-política para a adaptação à sociabilidade capitalista, pautados no que Canário (2014) denomina como ação heterônoma do Estado.

A perspectiva da escolarização de adultos, que articulasse a dimensão educativa das práticas sociais, foi substituída pela ideia de adaptação dos sujeitos aos preceitos do mercado. Em termos de processo de escolarização de adultos, tal substituição buscava inculcar valores como a aquisição de competências, o potencial de empregabilidade e a formação empreendedora na direção da modernização e do desenvolvimento econômico (SILVA, 1990).

Autores como Silva (1990) demonstram que, na sociedade portuguesa, as forças dominantes conseguiam conduzir os processos de escolarização, arrefecendo propostas que se pautavam na ampliação de recursos, na condição da docência, na qualidade educacional de trabalhadores jovens e adultos. Nesse sentido, a caracterização da educação de adultos em substituição ao ensino de suplência, o reconhecimento da diversidade geracional, o provimento de recursos tinham pífio respaldo, em termos de sua garantia, nas políticas educacionais, de sua normatização nos sistemas de ensino e de seu atendimento nas unidades escolares.

Conclusão

A análise da recente história política de Portugal permite considerar que a intensificação e organização dos movimentos sociais potencializam as propostas de escolarização de adultos. As lutas sociais decorrentes do período revolucionário (1974-1975) buscaram articular a dimensão educativa das práticas sociais dos trabalhadores, explicitando suas finalidades em favor da transformação social. As lutas antiditatoriais possibilitaram a preservação desse legado da educação de adultos, embora os interesses dominantes pressionem na direção do estreitamento dos processos de escolarização, em favor do desenvolvimento e da modernização econômica concebida pelo atual estágio da sociabilidade capitalista.

Agradecimentos

Agradeço à Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior (Capes-Brasil) a concessão de financiamento, durante a realização de meu pós-doutoramento na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, no período de abril a novembro de 2015.

Referências

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Recebido: 23 de Outubro de 2018; Aceito: 09 de Março de 2020

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