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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.25  Caxias do Sul  2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v25.e020020 

ARTIGOS

Um pensamento pedagógico emergente das práticas educativas como humanização e diferença

Emergent pedagogical thinking of educational practices as humanization and difference

Luiz Artur dos Santos Cestari* 
http://orcid.org/0000-0002-1842-2207

*Graduado em Pedagogia (1997), Mestre em Educação (2000) e Doutor em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente é Professor Titular na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. E-mail: lacestari@hotmail.com


Resumo

Este trabalho apresenta uma proposta para pensar nas práticas educativas como humanização e diferença. Diante disso, põe em questão que muitos dos conhecimentos sobre educação advêm de processos de elaboração que têm pouca ou quase nenhuma relação com práticas educativas. Por isso, posiciona-se pela crítica à postura que submete a educação aos diversos discursos que circulam nas ciências da educação, superando os fundamentos humanistas modernos e o entendimento de educação como lugar de produção de determinadas subjetividades e/ou identidades. Ao contrário disso, assumindo uma atitude propositiva, as práticas educativas serão abordadas como lugar de formação humana, entendendo a humanização como um conceito aberto, cuja definição não pode ser descrita antes e fora das práticas educativas. Além disso, esta proposta argumenta em favor da diferença e/ou da pluralidade do ser humano, ou seja, deve ser aceito que a educação ainda é um processo pelo qual os indivíduos são formados de acordo com suas potencialidades, e que essas são construídas durante o processo educativo.

Palavras-chave Práticas educativas; Humanização; Singularidades; Diferenças

Abstract

This work outlines a proposal for thinking of educational practices as humanization and difference. With this in mind, it puts in question that much knowledge about education come from elaboration processes that have little or no relation to educational practices. Therefore, in a critical task it should oppose to approaches that recognize ducation as an object of discourse from other sciences, and hence it should seek to overcome modern humanist conceptions to recognize education as a subject of research and production of certain subjectivity and identity. On the other hand, in a propositional task it will take educational practices as a subject of human formation, understanding humanization as an open concept whose definition cannot be described prior and outside of educational practices. As well as, it will support the human being condition of difference and or plurality, that is, it should be accepted that education is still a process to form individuals according to their potentialities and that their potentials are still being constructed during the educational process.

Keywords Educational practices; Humanization; Singularities; Differences

Resumen

Este artículo presenta una propuesta para pensar prácticas educativas como la humanización y la diferencia. Ante esto, cuestiona que gran parte del conocimiento sobre educación proviene de procesos de elaboración que tienen poca o ninguna relación con las prácticas educativas. Por lo tanto, está posicionado por la crítica de la postura que somete la educación a los diversos discursos que circulan en las ciencias educativas, superando los fundamentos humanistas modernos y la comprensión de la educación como un lugar de producción de ciertas subjetividades y/o identidades. Por el contrario, asumiendo una actitud intencional, las prácticas educativas se abordarán como un lugar de formación humana, entendiendo la humanización como un concepto abierto cuya definición no puede describirse antes y fuera de las prácticas educativas. Además, esta propuesta defiende la diferencia y/o la plura lidad del ser humano, es decir, debe aceptarse que la educación sigue siendo un proceso por el cual los individuos se forman de acuerdo con sus potencialidades y que se construyen durante el proceso educativo.

Palabras-clave Prácticas educativas; Humanización; Singularidades; Diferencias

[Natividade] Não atinou... Nem sempre as mães atinam. Não atinou que a frase do discurso não era propriamente do filho; não era de ninguém. Alguém a proferiu um dia, em discurso ou conversa, em gazeta ou em viagem de terra ou de mar. Outrem a repetiu, até que muita gente a fez sua. Era nova, era enérgica, era expressiva, ficou sendo patrimônio comum. Há frases assim felizes. Nascem modestamente, como a gente pobre; quando menos pensam, estão governando o mundo, à semelhança das ideias. As próprias ideias nem sempre conservam o nome do pai; muitas aparecem órfãs, nascidas de nada e de ninguém. Cada um pega delas, verte-as como pode, e vai levá-las à feira, onde todos as têm por suas

(MACHADO DE ASSIS. Esaú e Jacó. In: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985, p. 993. v. I).

Introdução

Aceitemos como definição inicial que precisamos compreender as ciências da educação como um lugar de produção de ideias pedagógicas e/ ou educacionais com as quais se põe em circulação boa parte das pesquisas que é tomada como referenciais de análise de políticas, processos formativos e atuação dos sujeitos da educação em diversificadas experiências educativas. Corroborando isso, consideramos que muito dos conhecimentos sobre educação advêm de processos de elaboração que têm pouca ou quase nenhuma relação com práticas educativas, de modo a produzir uma ideia dita educativa, tomando como base problemas que não veem a educação como um lugar próprio do saber (RÖHR, 2007; CHARLOT, 2006).2

A exemplo disso, quando um psicólogo está fazendo psicologia da educação, a preocupação central desse profissional é com um aspecto da psique humana, e um dos mais relevantes, na história da psicologia da educação, tem sido o desenvolvimento cognitivo. Nesse caso, os pesquisadores, ao fazerem pesquisas educacionais, pretendem, sempre, apontar a elementos oriundos da prática educativa, os quais mostram que estão respondendo a questões de ordem psicológica e, no exemplo em pauta, se preocupam em mostrar situações em que houve uma melhor adequação dos sujeitos às fases do desenvolvimento da cognição. Assim, a educação, nesse sentido, tem sido bem mais um campo de aplicação de conhecimentos de campos correlatos do que um lugar em relação com esses.

Por isso, um dos argumentos desta pesquisa é que, se vamos estudar a prática educativa, devemos assumir que a educação é um lugar próprio do saber que se faz nesse lugar e, para isso, devemos criticar a perspectiva que toma o sujeito como objeto dos diversos discursos que circulam nas ciências da educação, buscando superar os fundamentos humanistas modernos e o entendimento da educação como lugar de produção de determinadas subjetividades e/ou identidades, seja ele o sujeito racional, o sujeito engajado com a transformação social, o indivíduo autônomo, etc.; para ir em busca da tarefa primeira da educação que deve ser a humanização.

Nesse sentido, partimos da sugestão feita por Biesta (2012, 2013) que aborda o fazer educação como o lugar da formação humana, tratando o significado do ser humano como uma questão radicalmente aberta e para a qual apenas poderemos obter uma resposta quando participarmos e fizermos parte desse saber, ao contrário da maioria dos saberes, que se lança sobre a educação, que define, antes, uma finalidade cujos sentidos e problemas são elaborados antes e fora do fazer educacional.

O segundo argumento deste trabalho se refere à compreensão do ser humano, que, na condição de indivíduo, depara-se com a tarefa de se relacionar com outros indivíduos, aceitando a condição que lhe é dada de ser diferente e/ou plural. Nesse aspecto, consideramos que a relação que os indivíduos estabelecem com os outros e as instituições são modos pelos quais eles vão se sujeitando às socializações predominantes e determinadas. As instituições, as ideologias e suas formas de poder inerentes têm por função produzir subjetividades, ou seja, uma série de processos sociais de relação com o outro e com o mundo a qual faz esses sujeitos assumirem modos de estar- no-mundo nos sentidos dos quais se esperam deles numa ordem estabelecida. Desse modo, o processo educativo prepara, de início, o indivíduo para assumir um papel social no mundo ordinário.

Por outro lado, assumir a condição de pluralidade ou diferença implica, também, admitir “[…] a educação como […] um processo de formar as pessoas segundo as potencialidades que elas vão revelando durante o próprio processo (o que chamaremos de singularização)” (GALLO, 2010, p. 230). Diante disso, a prática educativa vai além da compreensão que se tem dela como lugar de reprodução do social, pois admitir a diferenciação, nos processos de subjetivação, é pôr a condição de resistência do indivíduo a esses processos, sendo que as singularizações se fazem nos momentos de distanciamento dos sujeitos dos modos de socialização predominantes.

Partindo desses argumentos, este trabalho busca desenvolver duas tarefas: num primeiro momento, num exercício de crítica educacional, pretendemos mostrar que há, predominantemente, um processo efetivo de adesão a ideias produzidas fora do contexto das práticas educativas, e o exemplo que abordaremos, na primeira parte do texto, apresentará que a constituição dessa proposta educativa precede a uma injunção valorativa sobre o conceito de educação que está assentado numa compreensão moderna que tem ensejado, nesse campo, a polarização entre teoria e prática. Num segundo momento, assumindo uma atitude propositiva, consideramos que a prática educativa é um fazer de onde emergem processos de singularização que escapam das formas de colonização das ciências da educação por meio de ideias elaboradas em contextos de conhecimentos correlatos ao educacional.

Nesse sentido, o objetivo deste trabalho é fazer um esboço do que estamos denominando de um “pensamento emergente das práticas educativas”, mostrando as limitações das ideias que se dizem educativas e que são, elas mesmas, ausentes de uma prática educativa.

1 Saindo da relação polarizada entre teoria e prática

Partimos do argumento de que muitas ideias que fazem parte do que denominamos de “pensamento pedagógico” tem pouca ou quase nenhuma relação com práticas educativas, o que pressupõe distinções básicas na educação entre realizar pesquisas sobre e em educação, e práticas para e em educação. A utilização da educação como um domínio de conhecimento que é a extensão de objetos de estudo e problemas oriundos das ciências humanas, tais como da psicologia, da sociologia, da filosofia, etc., é a lógica de produção da pesquisa mais comum e bem mais disseminada entre os pesquisadores de educação, de modo que há certa restrição, em muitos pesquisadores, sobre educação em aceitar que são exatamente educadores (identificando-se como sociólogos, psicólogos ou filósofos da educação), posto que, em geral, realizam suas pesquisas em um desses domínios correlatos à educação, e suas pesquisas tratam apenas de uma extensão de suas preocupações na análise de políticas, bem como de práticas em espaços institucionais que realizam a tarefa educacional.

Ao longo da história do pensamento pedagógico, essa postura das chamadas ciências da educação tem sido responsável por circular ideias produzidas em campos correlatos à educação como ideias educacionais e, consequentemente, esse tipo de lógica da pesquisa é responsável por introduzir, no campo educacional, discursos pedagógicos que ensejam a produção de determinadas subjetividades e/ou identidades como metas a serem alcançadas em processos educativos.

Algumas ideias que circularam pelo pensamento pedagógico brasileiro são exemplos disso. Um dos casos amplamente divulgados na literatura educacional se trata da defesa da educação como um ato político e, em geral, esse é intermediado por um tipo específico de discurso político e, no Brasil, um desses, que exerceu forte influência no imaginário pedagógico de uma época, foi o discurso gramsciano na educação, principalmente nos anos 80 e 90, quando muitas das propostas formativas para a educação tentavam dar suporte ao entendimento de que o professor, em sala de aula, poderia ser um intelectual orgânico.

Esse tipo de afirmação faz com que o sentido que se quer construir sobre o ato de educar vem de uma elaboração que se realiza fora do fazer educacional, pois esse é, antes disso, uma elaboração do campo político fazendo com que o ato educativo do professor, na escola, seja uma extensão da ação de outros atores em outros espaços sociais. Paolo Nosela (1983) foi um dos autores que assumiu o papel de querer ser o intelectual protagonista da difusão desse pensamento na educação brasileira, pois, em seu livro A escola de Gramsci,3 publicado nos anos 90, consolida a intenção de apropriação do pensamento de Gramsci no Brasil, desde o final dos anos 60, ao incluir o debate educacional na esteira da proposta política de preparar os atores necessários à ascensão do proletariado.4 A proposta de Nosela é mostrar a validade desse discurso para a educação brasileira diante do processo de esfacelamento do sistema educacional para atender aos interesses de determinados grupos sociais, tais como: formação rápida e aligeirada para a classe trabalhadora e outra de conservação da elite nos estratos mais privilegiados e com funções de poder.

Por isso, o argumento gramsciano, em torno de uma escola única, trazido por Nosela, ter se tornado a base da crítica às formas diferenciadas e também descaracterizadas de como, historicamente, se faz educação no Brasil. A recepção desse discurso, bem como sua disseminação, no campo educacional brasileiro, se deram de forma tão expressiva que o próprio Nosela (2005, p. 226) destacou um efeito denominado por ele mesmo de “gramscimania” dando ênfase ao fato de que “mais de 40% das dissertações e teses de pós-graduação em educação produzidas nos anos 80 citavam o nome de Gramsci” o que mostra que essa tentativa se deu bem mais com elaborações e apropriações gramscianas do campo intelectual do que da constituição de uma prática educativa que servisse de base à constituição de um pensamento pedagógico.5 Assim, afirma o autor:

[…] Presenciamos a uma verdadeira “gramscimania”, isto é, a uma excepcional difusão dos escritos desse intelectual marxista italiano. Calcula-se que mais de 40% das dissertações e teses de pós-graduação em educação, produzidas na década, citavam Gramsci como principal referência teórica. Suas frases eram citadas, em epígrafe, nos projetos ou nas propostas de política educacional de várias secretarias de Educação, estaduais e municipais. O nome de Gramsci era citado com grande frequência nos congressos e nas reuniões das várias associações científicas e sindicais dos educadores. A literatura sobre ele e dele era sempre bem-vinda e até mesmo bem vendida

(NOSELA, 2005, p. 22).

Portanto, o que pretendemos afirmar é que essas se tornam injunções de caráter valorativo da prática política sobre o que deve ser a prática educativa, deduzindo que seus significados são determinados por valores (sentidos) construídos fora dessa prática. Essa afirmação nos leva a questionar o próprio conceito de prática, cujo objetivo é retirar tal noção de sua relação polarizada com a de teoria, que é, predominantemente, influenciada pela sua abordagem na cultura filosófica ocidental de origem platônica.

Os argumentos de dois autores contemporâneos do campo educacional servem de base a essa afirmação. Brayner (2010) vai nos reportar à influência da filosofia platônica na compreensão entre teoria e prática, ao examinar o tema da relação entre o senso comum e a consciência filosófica no domínio da educação popular no Brasil. Ele afirma, inicialmente, que, na história do pensamento ocidental, assim como no pensamento pedagógico, podemos encontrar um conjunto significativo de elaborações teóricas que renova a ideia platônica de que o mundo é divido em duas partes – aparência e essência – e que “para atingirmos a verdade, teríamos que passar da primeira para a segunda através de um importante trabalho sobre nossa cognição e consciência [...]” (BRAYNER, 2010, p. 161).

Ao mostrar essa dualidade, Brayner (2010) conduz o texto a situar que essa questão esteve na esteira das propostas de educação popular no Brasil desde a primeira metade do século XX e que, também, fez parte da elaboração teórica mais influente no campo da educação popular que é a proposta de Paulo Freire, expressando essa dualidade com as noções centrais de sua pedagogia, ao defender que o diálogo, na relação pedagógica, deve conduzir os sujeitos a estágios mais avançados de consciência que possam retirá-los da consciência ingênua para elevá-los à consciência crítica. Para Brayner a dualidade se encontra presente nas diversificadas elaborações do pensamento ocidental, com destaque para o discurso filosófico-moderno em suas perspectivas críticas.

O problema é que essa ideia assumirá roupagens diversas, mas todas remetendo à ideia original platônica: em Marx encontramos a ideia de alienação e de consciência de classe; em Lukács, classe em si e classe para si; em Sartre, ser-em-si e o ser-para-si; em Snyders, cultura primeira e cultura elaborada; em Gramsci, consciência filosófica e senso comum e, finalmente, em Paulo Freire, sob a forma da consciência ingênua e consciência crítica

(BRAYNER, 2010, p. 161).

A crítica feita por esse autor, e que ora endossamos, se trata da consideração de origem foucaultiana segundo a qual é dado a alguns o direito privilegiado de delimitar uma ordem discursiva para afirmar que uma determinada consciência é ingênua e, por isso, esses se colocam como portadores de saberes-poderes que lhes permitam julgar o que possa ser dito ou calado e sob quais circunstâncias, exercendo um tipo de dominação sutil e controlando os possíveis discursos.

Levando isso em consideração, o autor dedica sua crítica educacional a um dos tópicos do texto ao que ele chama de “Educação popular como ortopedia do olhar”, posto que, nesse entendimento político, mais corrente da educação popular, pressupõe-se que o educador deve ter acesso a uma espécie de representação mais perfeita do mundo (essência) e que precisa fazer com que os sujeitos, tomados pela consciência ingênua (aparência) possam converter o olhar para a direção da luz (teoria) que deverá habilitá-lo a enxergar agora, de modo diferenciado, o próprio mundo em que habita (a prática), ou seja, o trabalho do educador deve ser a submissão de sua prática a uma teoria, entendida, aqui, como um acesso privilegiado a uma consciência adequada que dará um novo sentido à sua prática.

Além de se defrontar com essa dualidade, Brayner argumenta em favor de retornar ao senso comum, repensando a relação entre educação e política que retira a tarefa educacional de sua função de instrumento para o alcance de uma meta posta fora dela e que, ao mesmo tempo, atribui a um determinado sujeito o direito privilegiado de acesso à verdade. Ao contrário disso, a proposta do autor assume a esteira do pensamento de Hannah Arendt e defende que educação e política só têm sentido como ação, dando atenção ao aspecto de que o conceito de ação em Arendt é a relação própria e exclusiva que nos caracteriza como humanos, tal como diz o autor:

Educação e política só têm sentido enquanto ação! Quer dizer, tanto um domínio quanto o outro só se realizam no encontro entre os homens para, ou “apresentar o mundo” a quem nele chega (o tipo de responsabilidade que Arendt chamava de “autoridade”), ou para que cada ponto de vista possa se confrontar, no espaço comum, com outros pontos de vista, com os diferentes e plurais significados do mundo, com vistas à construção de um sensus communis

(BRAYNER, 2010, p. 165, grifos do autor).

A segunda contribuição teórica que apresentamos neste texto vem da leitura da relação entre teoria e prática de Veiga-Neto (2015). Em seu texto, ele nos convida a perceber que essa dualidade se constitui no que ele denomina de um “falso problema” e alerta para o argumento de que esse é falso muito menos pela sua inexistência, do que pela devida importância que o campo educacional tem atribuído à dualidade. Por isso, sua opção é contornar o problema e, ao contrário de tentar julgar a prática segundo um sentido mais adequado fora dela (teoria), ele considera a prática como tendo um valor em si mesma, ou seja,

essa palavra designa um domínio das ações humanas, segundo uma regularidade e uma racionalidade que organiza tais ações de diferentes maneiras. E, na medida em que estou falando em regularidade e racionalidade, já começamos a nos dar conta de que junto com qualquer prática – ou, para dizer em termos mais técnicos: imanente a qualquer prática – existe sempre uma teorização, por mais obscura e indefinida que ela se apresente para os olhares menos acostumados com essas questões epistemológicas

(VEIGA-NETO, 2015, p. 118).

Ao colocar os termos na perspectiva que lhe interessa, Veiga-Neto (2015), além de nos trazer anotações acertadas sobre a etimologia das palavras, vai, inicialmente, desconstruir a polaridade da relação teoria-prática, mostrando, próximo do que fez Brayner, a origem dessa na cultura ocidental de origem platônica. Tomando como base as “notas de aula” de Gerd Bornheim, o autor vai afirmar que não constituiu uma novidade o entendimento dual da realidade dos gregos porque a referência mais antiga que se pode encontrar disso está na visão mitológica de atribuir aos deuses a função de representar as forças da natureza e/ou os sentimentos humanos, fazendo os homens inventarem um espaço e um tempo sagrados, que, posteriormente, vão encontrar, nos diálogos platônicos, sua elaboração racional propriamente dita, que divide a realidade em duas dimensões: de um lado, a epistêmica (mundo inteligível) e, de outro, a doxológica (mundo sensível). Segundo o autor,

[…] de modo muito resumido e simplificado, pode-se dizer que uma parte do pensamento grego antigo, no seu empenho pela construção de uma racionalidade cujo objetivo era o conhecimento seguro (episteme) acerca da natureza e do ser humano, acabou instituindo filosoficamente a noção de que a realidade é dual. Sobre a realidade, haveria duas maneiras de conhecer algo: ou ter uma opinião (doxa) que, por não ser fundamentada, não passaria de uma crença ou ilusão; ou ter um conhecimento seguro (episteme) que, por ser racionalmente fundamentado, seria uma verdade em si mesma ou, pelo menos, nos levaria até ela

(VEIGA-NETO, 2015, p. 122).

A importância da crítica dos autores (Brayner e Veiga-Neto) sobre dito aspecto está no entendimento histórico de que a modernidade incorporou, acriticamente, essa doutrina dos dois mundos, mas agora sob a aura da formulação lógico-filosófica e antropológica da ciência moderna, ou seja, diferentemente de outros momentos, o discurso filosófico da modernidade vai tentar encontrar, no sujeito racional, a representação mais adequada de sua ação no mundo. Por isso, suas elaborações vão direcionar seu interesse à construção de uma verdade baseada na organização de um método científico, que tem como função validar algumas afirmações, porque, agora, estão submetidas ao seu procedimento (o método), atingindo o critério de universalidade, que será a base para a emergência das ciências humanas e sociais. Para Severino

essa participação do elemento social na natureza intrínseca do modo de ser humano torna-se marca característica da antropologia fundante da compreensão da educação no século XIX, constituindo a base central do conhecimento que, nessa fase, já se constitui como conhecimento científico, graças à emergência das ciências humanas. É que, ao lado da expressão filosófica, dando-se como filosofia social ou filosofia política, as ciências humanas se instauram fundamental e preponderantemente como ciências sociais. E sob as inspirações de todos os paradigmas epistemológicos daquele momento, o pensamento teórico se manifesta enfatizando a primazia do social

(2006, p. 626-627).

Não é sem razão que sob esse pano de fundo epistemológico, o pensamento pedagógico moderno teve dificuldade em se afastar da alternativa de reproduzir essa dualidade nas suas mais diversificadas versões (ver citação de Flávio Brayner na p. 6) e é, por isso, que o problema colocado para a disseminação de muitas ideias no campo da educação sempre toma o direito privilegiado do cientista (pesquisador) que domina o método e, por isso, é capaz de fazer a correta tradução da teoria para prática.

Em estudos que realizamos sobre a difusão de ideias no pensamento pedagógico brasileiro recente, e, ao analisar o caso específico do construtivismo piagetiano no Brasil, lembro que os autores lamentavam, naquele momento, que essa ideia teria entrado em moda posto que o professor, no âmbito de sua prática, não conseguia fazer a correta tradução dos pressupostos teóricos e epistemológicos contidos na elaboração teórica, desprestigiando, totalmente, as condições dadas para sua apropriação. Posicionamentos, nesse sentido, encontramos nos textos de Silva (1993) e Arroyo (1993) que, ao discutir a ampla aceitação que teve o construtivismo, no campo da educação, naquele momento, sintetizaram a concepção mais comum da noção de modismo no campo educacional que o considerava como resultado de uma adesão gregária, decorrente de uma apropriação inconsistente pelo professor. O docente era acusado de não obter o amadurecimento intelectual que fosse comparável ao que fazem os intelectuais em suas experiências de pesquisa, tendo em vista os precários processos formativos aos quais muitos eram submetidos. Eles eram acusados de estabelecer uma relação com a ideia de que, em muito, se distanciava do modo como essa era elaborada nos domínios de uma reflexão epistemológica. O elemento contraditório de tudo isto é que os modismos começam senão pela forte interferência do campo intelectual na difusão de uma ideia.

Vale destacar que, quando fizemos essa análise, sempre nos posicionamos a questionar o papel do pesquisador na consolidação de uma perspectiva no campo e, por isso, sempre rejeitamos o posicionamento de perceber o professor e sua prática educativa como algo profano, cujos sujeitos são incapazes de alçar voos interpretativos que os projetem ao templo sagrado das elaborações teóricas, um tipo de hermetismo que dá exclusividade a alguns (ao pesquisador como um deus Hermes, por exemplo) o poder de fala, alimentados por um otimismo racionalista que acredita que a emancipação humana se daria via saber científico.

Diante disso, na esteira de Veiga-Neto (2015), endosso, aqui, sua posição de que a crítica mais acertada à modernidade é “navegar por outras águas” e no sentido do que fala o autor não se trata de qualificar umas melhores que outras, mas que nessas águas possamos deixar de nos preocupar com a busca incessante de um melhor método que traduza a teoria para a prática e olhar a prática em si mesma e as discursividades que as regulam segundo práticas não discursivas (as relações de poder) que estão postas em jogo.

2 Prática educativa como humanização e diferença

A interlocução que fizemos, na sessão anterior, com os autores em tela (Brayner e Veiga-Neto) se trata de uma escolha proposital, posto que nossa intenção é contornar ao mesmo tempo o pano de fundo epistemológico, marcado pela dualidade entre teoria e prática, mas também da apropriação que o discurso filosófico moderno fez dessa e de suas consequentes implicações para o pensamento pedagógico moderno, tendo em vista o fato de que muitas das versões do pensamento educacional, intermediadas pelas ciências da educação tomaram como referência a orientação de se construir um método científico que submetesse a prática educativa aos ditames de um saber que se constrói fora dela.

A noção de prática educativa que queremos tomar como orientação para nossas pesquisas tende a ser radicalmente diferente dessa vertente ocidental e moderna. Por isso, vamos começar dizendo que não queremos nem pretendemos fazer das orientações a serem apresentadas neste texto um modo que se considere superior ou melhor que outras alternativas, mas que se trata, apenas, de um modo diferente.

Não se trata apenas de tomar emprestadas as argumentações dos autores citados, mas também de interagirmos com o universo teórico com o qual eles se situam no campo educacional. De um lado, o texto de Flávio Brayner6 nos leva aos seus estudos acerca da educação popular na esteira do pensamento de Hannah Arendt, e, de outro, das contribuições do pensamento de Michel Foucault para Alfredo Veiga-Neto7 pensar nos problemas próprios do campo educacional.

De fato, o argumento que queremos apresentar é da convicção da existência de pontos de convergência do pensamento de Hannah Arendt ao de autores do pós-estruturalismo como Foucault, Derrida e Deleuze.8 Essa convicção não será mostrada por um tipo de revisão inaugural da relação do pensamento desses autores, por isso, vamos assumir, neste texto, questões apresentadas, há um certo tempo, por Ortega (2001) que, ao defender a tese da existência dessa convergência faz as seguintes afirmações:

Ambos os autores (Arendt e Foucault) visam a um pensamento do aberto e do não determinado, uma alternativa política que vai além de uma política partidista e que aponta para recuperar o espaço público. Política como atividade de criação e de experimentação. (ORTEGA, 2001, p. 225, grifo nosso) […]. Em ambos os casos (Arendt e Foucault), a reconstrução genealógica parte de uma ontologia do presente, que problematiza a atualidade como acontecimento e que responde às perguntas acerca de nossa contemporaneidade e nossa situação presente, ou seja: o que acontece em nosso presente, na nossa atualidade? como se caracteriza? Esse diagnóstico visa desenvolver estratégias de resistência ante a despolitização dos sistemas totalitários e da sociedade de massas (Arendt), ou ante as modernas práticas subjetivantes, disciplinas e biopoder (Foucault)

(ORTEGA, 2001, p. 228-229).

Comecemos, então, pela última questão pontuada que se trata da condição posta pelas sociedades contemporâneas de que não caminhamos desde a promessa moderna para um processo histórico de materialização de uma teleologia, que colocava como metanarrativa a realização da emancipação humana.9 Ao contrário do que pressupunha o discurso filosófico da modernidade, o diagnóstico que os autores fazem do tempo presente é o da constatação de sociedades totalitárias e de democracias esvaziadas com práticas de sujeição e controle.

Num pequeno texto intitulado “Post-scriptum: sociedades do controle”, Deleuze vai mostrando como a feição assumida pelas sociedades, no capitalismo contemporâneo, vai se afastando, progressivamente, das sociedades modernas disciplinares, de modo que as instituições modernas, sob a égide da emancipação pela razão, se consolidaram com práticas de normatização para disciplinar o corpo dos sujeitos, e um exemplo notório, segundo Foucault e Deleuze reafirma isso, foi quanto à utilização de exames nas escolas, pois esses representavam o seguinte:

As sociedades disciplinares têm dois polos: a assinatura que indica o indivíduo, e o número de matrícula sua posição numa massa. É que as disciplinas nunca viriam incompatibilidade entre os dois, e é ao mesmo tempo que o poder é massificante e individuante, isto é, constitui num corpo único aqueles sobre os quais se exerce, e molda a individualidade de cada membro do corpo. (Foucault via a origem desse duplo cuidado no poder pastoral do sacerdote – o rebanho e cada um dos animais – mas o poder civil, por sua vez, iria converter-se em pastor laico por outros meios.)

(DELEUZE, 1992, p. 222).

Contemporaneamente, as sociedades do controle vão se tornar sociedades mais flexíveis, tornando essa instituição mais aberta a variadas formas de fazer educação, mas também, tornam-se flexíveis as relações entre os sujeitos nessas instituições; não é por acaso que uma escola, ao estilo tradicional (entendida aqui como prática orientada pela ratio studiorum jesuítica, por exemplo), é basicamente um afronto ao modelo de escola dita construtivista ou socioconstrutivista.

Essas, ao contrário, apostam nas novas relações entre quem aprende e quem ensina, entre coordenador e coordenados, entre diretor e o corpo de profissionais da instituição. Não queremos dizer com isso que os avanços, que tivemos para tornar a escola mais democrática, são caminhos indevidos; ao contrário, precisamos, historicamente, apreender novas formas de lidar com o poder nas instituições e acredito que a democratização dos espaços educacionais é a melhor forma.

No entanto, o que está em questão, aqui, são as formas sutis pelas quais o poder se manifesta numa sociedade do controle, tal como argumenta Deleuze: “Nas sociedades do controle, ao contrário, o essencial não é mais uma assinatura e nem um número, mas uma cifra: a cifra é uma senha, ao passo que as sociedades disciplinares são integradas por palavras de ordem” (DELEUZE, 1992, p. 222). Assim, as sociedades do controle está bem mais voltada a fazer circular, nos sujeitos, determinadas ideias como forma de dominação porque têm a finalidade de despertar a necessidade e o desejo sob determinadas figuras, fazendo-os imaginar que essas representam sua liberdade de escolha.

O modo como as ideias circulam na educação, produzidas antes e fora de uma prática educativa, parece ser um dos modos como se dá o controle de ideias na educação. Assim, tal processo se faz, inicialmente, pela atuação dos intelectuais na educação, tentando fazer injunções de caráter valorativo para a constituição de ideias de como se deve educar e, em geral, isso se faz pela difusão da educação sob a orientação de determinadas identidades e/ou subjetividades como metas educativas. A crítica que temos feito se relaciona à decisão de assimilar como educativas apenas determinadas representações de como se pode pensar a educação, e os exemplos ao longo da história de nosso pensamento pedagógico parecem ser ilustrativos, tais como o caso já citado da disseminação do “gramscianismo” em torno do qual a assimilação de uma concepção política precede ao sentido que possa ter isso no campo educativo.

Ao contrário disso, a noção de prática educativa (que queremos fazer movimentar em nossas pesquisas) parte, inicialmente, da compreensão de que suas racionalidades ou regularidades são imanentes a ela mesma e é por isso que caminhamos para o argumento de que o modo de falar sobre educação deve se opor a essas injunções valorativas construídas fora da prática educativa de modo que o processo de humanização acaba por ser substituído por cognição, conscientização, identificação ou outros discursos que introduzem não mais que um modo de falar sobre educação.

A exemplo disso, Biesta (2013) constata que, em nosso imaginário educacional contemporâneo, passamos completamente de uma linguagem (um modo de dizer) da educação para uma linguagem da aprendizagem, e que essa mudança implicou, necessariamente, a perda da educação como processo de humanização. Seguindo os passos de autores como John Dewey e Ludwig Wittgenstein, ele problematiza a linguagem tentando se afastar de uma das funções da linguagem que se trata de descrever as coisas, uma espécie de espelho da realidade.10 Ao contrário disso, ele pontua que, nesses autores e até em Foucault,

as práticas linguísticas e discursivas delineiam – e talvez até possamos dizer constituem – o que pode ser visto, o que pode ser dito, o que pode ser conhecido e finalmente o que pode ser feito. Assim, a linguagem torna possíveis alguns modos de dizer e fazer, ela torna outras maneiras de dizer e fazer difíceis e às vezes até impossíveis

(BIESTA, 2013, p. 29).

Assim, sair dessa lógica implica assumir um posicionamento que se opõe à postura moderna, já criticada neste texto, de que a polaridade teoria-prática seria resolvida por um método que daria a alguns o privilégio do recuo para alcançar o sagrado mundo das luzes, a teoria; para uma posterior imersão no mundo profano, a prática. Ao contrário disso, nossa postura é por uma imersão direta no mundo profano, numa pedagogia profana tal como argumentou muito bem Jorge Larrosa (1998) e, para isso, retomemos o argumento arendtiano já indicado e também ensejado por Biesta (2013) de que é propriamente a ação que nos caracteriza como humanos, tal como argumenta: “[…] sugiro um modo de podermos superar o humanismo na educação, afastando-se da questão sobre o que é o sujeito humano para a questão onde o sujeito humano se torna presença, argumento que só podemos nos tornar presença num mundo povoado por outros seres humanos” (BIESTA, 2013, p. 53).

Por conseguinte, os argumentos que temos apresentado neste texto tem a finalidade de situar alguns pontos de convergência entendendo que esses são ainda pontos de partida para uma orientação do que estamos chamando de pensamento emergente da prática educativa. De início, é imanente a própria ação e o resultado da relação com os outros que se constituem os processos de humanização que nos fazem humanos como afirma Ortega (2001, p. 230-231): “O modelo performático (oferecido por Arendt) concebe a constituição da identidade pessoal como um processo coextensivo à ação e não anterior a esta.” Em segundo lugar, a condição de possibilidades da ação e do discurso é a pluralidade humana, pois é por meio dessa que os sujeitos podem mostrar suas identidades (subjetivações e/ou sujeições), mas também suas singularidades, que são o resultado das performances dos sujeitos em busca de individualização e estetização de si, tal como lembra novamente Ortega e Biesta “[…] na luta contra as formas de subjetivação, à procura de novas formas de subjetividade e sociabilidade, o sujeito se constitui no mundo compartilhado com os outros indivíduos” (2001, p. 232).

Por fim, pensamos que essa convergência caminha ao entendimento de que a imanência da prática educativa se faz pela multiplicidade e, na esteira de Deleuze (1997), um pensamento pedagógico emergente se constitui num plano de imanência, onde sujeitos da educação, na condição plural ou diferente que lhe é própria, se confrontam com as múltiplas dimensões de como isso pode se dar na presença dos outros humanos.

Considerações finais

A principal crítica que fizemos neste texto se trata de uma leitura sobre um modo de produção de conhecimento predominante no campo educacional pelo qual se afirmam ideias, e cuja exigência valorativa se origina de outras práticas senão educativas, políticas, psicológicas, filosóficas, históricas, etc. Por isso, nos posicionamos em favor do argumento de que se queremos construir uma teoria que tenha a coerência de ser definida como educativa, precisamos fazer isso tomando como base as regularidades inscritas na imanência de uma prática educativa.

Em nosso entendimento, levamos em conta que uma prática não é a mera execução instrumental de uma elaboração prévia, ao contrário disso, a elaboração é coextensiva à ação, quer dizer, é inerente a qualquer prática ou ato a injunção valorativa propriamente humana de atribuir sentido ao que fazemos. Além disso, assumimos o posicionamento de compreender a humanização como uma questão radicalmente aberta, cuja resposta só será obtida quando, numa prática educativa, nos tornarmos humanos na presença de outros, dando atenção ao fato de que a formação humana decorre da condição dos sujeitos de serem plurais e/ou diferentes na imanência de uma prática educativa.

No mais, cabe, ainda, uma última consideração que se refere à relação entre as noções de pluralidade e diferença. A posição que estamos assumindo é em favor da convergência dessas ideias e, tal como notamos, esse posicionamento não é, de modo algum, inaugurado neste trabalho, pois mostramos que ele se origina em outros textos, tais como nos de Ortega (2001), mas também indicamos a referência de que o citado argumento já tinha sido desenvolvido pelo filósofo italiano Giorgio Agamben (VALERIO, 2013). Devo dizer, ainda, que essa convergência não é uma novidade no campo educacional. A exemplo disso, Cesar e Duarte (2010) vão argumentar nesse mesmo direcionamento, quando escrevem um texto sobre a crise da educação no mundo contemporâneo:

Assim, mais importante do que reiterar velhos argumentos reformistas, é pensar criticamente no significado dessas crises. É justamente sob esse aspecto que encontramos uma surpreendente convergência entre as análises de Foucault, Deleuze e Hannah Arendt sobre a crise da educação. Arendt, Foucault e Deleuze, seguindo caminhos teóricos distintos, acabam por demonstrar que a crise na educação é uma crise da modernidade, oferecendo-nos, ademais, um importante instrumental teórico para pensar criticamente o significado de tais crises

(CESAR; DUARTE, 2010, p. 834).

Diante disso, concordamos de forma declarada com a convergência da crítica desses autores ao modo como essas apropriações têm sido feitas nas ciências humanas e, particularmente, na educação. Além disso, queremos mostrar que a convergência pode ser expressa em termos propositivos no campo da educação. Sabemos que a compreensão que Hannah Arendt tem da pluralidade se origina da ontologia da condição humana que é a natalidade, ou seja, o fato de que os seres humanos nascem para o mundo, e que o nascer significa, uma nova possibilidade de agir, iniciando possibilidades ainda não previstas. Por isso, a pluralidade é um ponto de partida, quer dizer, uma condição de entrada neste mundo.

Por outro lado, a noção de diferença, comum a filósofos ligados ao movimento pós-estruturalista, tais como Foucault, Deleuze e Derrida, nos permite pensar nas relações que estabelecemos com os outros e com o mundo, e que elas podem ser mais do que repetitivas, criativas, ideia que Deleuze, por exemplo, vai assimilar do sociólogo francês Gabriel Tarde (ALLIEZ, 2020) e que vai ser a base para a afirmação da diferença como condição ontológica.

Por fim, ao argumentar em favor de um pensamento emergente da prática educativa, estamos destacando que a construção deve tomar como base o fazer educativo e, logo, de uma prática que vai ser a base da relação humana decorrente desse, num duplo sentido: como condição humana de sermos plurais, de um lado, e como busca e afirmação da diferença, de outro, expressando aquilo que estamos denominando de “convergência” desses dois argumentos. Vale dizer, ainda, que isso não é novo na educação, porque os autores citados neste texto, tais como: Jorge Larrosa, Gert Biesta, Michael Peters têm, na particularidade que lhes cabem, conjugado esses argumentos em seus trabalhos.

2 Röhr (2007) tem apresentado como objetivo, em suas pesquisas, o argumento da possibilidade de a educação se tornar uma ciência com objeto epistêmico próprio e busca pensar na educação como um campo de conhecimento diferenciado. Charlot (2006) após fazer um inventário dos discursos predominantes no campo da educação, defende uma posição que articula a especificidade da pesquisa educacional em torno da relação de três processos indissociáveis: a humanização, a socialização e a singularização.

3A primeira edição do livro Gramsci e a escola é de 1992, mas um importante texto de Nosela sobre Gramsci se trata de um artigo escrito em 1983 (NOSELA, 1983), o que justificou a devida avaliação, 20 anos depois, em Nosela (2005).

4“A difusão das obras de Gramsci no Brasil se deveu a um amplo e ambicioso projeto de iniciativa de Carlos Nelson Coutinho, em parceria com Leandro Konder, materializado pela Editora Civilização Brasileira, do Rio de Janeiro, com a publicação, em 1966 de Concepção dialética da história e Cartas do cárcere, seguidas, em 1968, de Maquiavel, a política e o Estado moderno; Os intelectuais e a organização da cultura; e Literatura e vida nacional” (SAVIANI, 2010, p. 1).

5 Saviani (2009) faz um percurso histórico sobre a apropriação do pensamento de Gramsci na literatura educacional no Brasil e mostra as produções literárias publicadas no Brasil com a intenção de construir uma proposta educacional e escolar baseada na teoria política de Antonio Gramsci. Ele afirma que as elaborações da pedagogia histórico-crítica foi a que mais se aproximou da formulação de uma pedagogia inspirada nas ideias pedagógicas de Gramsci, posto que, diferentemente de outras elaborações, essa “[…] elegeu a categoria gramsciana da “catarse” como o momento culminante do processo pedagógico” (SAVIANI, 2009, p. 7).

7Ver também do autor: VEIGA-NETO, A. Foucault & a educação. 4. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. v. 1. 158 p.

8É importante afirmar que esta convergência pode ser também encontrada em trabalhos bem consolidados na literatura filosófica contemporânea e um dos trabalhos que está na esteira desta convergência é a obra do filósofo italiano Giorgio Agamben, como fez notar Valerio (2013, p. 180): “Agamben observa que vinte anos antes de A vontade de saber, Hannah Arendt em A condição humana, havia demonstrado como a decadência do espaço público nas sociedades modernas estava relacionada com o fato de que a vida biológica, que para os gregos, os quais devemos grande parte de nosso léxico político, estava situada à margem do ordenamento político passou, a partir da modernidade, a ocupar um lugar de destaque na cena política.”

9Em Lyotard (2000), vamos encontrar as expressões dos discursos filosófico-modernos como metanarrativas.

10 Veiga-Neto (2016), ao pensar na diferença e na pedagogia vai se deparar, consequentemente, com a questão da impossibilidade de fundamentação última e utilizando argumentos de Nietzsche e Wittgenstein afirma: “[…] basta sabermos que todo sentido é dado pela linguagem – inclusive o sentido que se dá à própria linguagem – para concluir que não há como chegar a algum ponto que seria seu fundamento último e ao mesmo tempo sabermos que chegamos lá” (VEIGA-NETO, 2016, p. 122).

Referências

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Recebido: 30 de Dezembro de 2019; Aceito: 12 de Maio de 2020

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