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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.25  Caxias do Sul  2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v25.e020021 

ARTIGOS

Poética da Notação Esquizofrênica: corpos, pensamento e linguagem em jogo

Poetic of Schizographic Notation: bodies, thinking and language at play

Diego Winck Esteves* 
http://orcid.org/0000-0003-4965-9677

Máximo Daniel Lamela Adó** 
http://orcid.org/0000-0002-7643-1785

*Graduado em Educação Física, Licenciatura Plena, pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: winckesteves@gmail.com

**Doutorado em Educação pela UFRGS. Mestrado em Literatura (Teoria Literária) pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduação em Ciências Sociais pela UFSC. Professor no Departamento de Ensino e Currículo e no Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da UFRGS. E-mail: maximo. lamela@gmail.com


Resumo

Este texto se propõe perspectivar a agência humana no entorno do ato de grafar, ou seja, trata das relações e suas tensões entre as percepções do real e de sua inscrição no tempo-espaço, com ênfase à escrita. Dimensiona essa questão circunscrevendo certa noção de um corpo em jogo no mundo, no qual nota e anota o que percebe, via uma Poética da Notação Esquizográfica. Passa, por conseguinte, a perspectivar tal noção de corpo a partir da ideia de um indivíduo que, em Deleuze, é colocada em questão nos termos de um eu passível, ou um ante-eu, como condição para determinações diferenciais dos e nos encontros: sob esse ante-eu, todavia, se impõe um Eu pessoal. Um corpo é, então, considerado como composto por singularidades em movimentos contínuos, variações nas quais irrompem individuações – individualidades dotadas de forças pré-individuais inerentes aos corpos. O problema é colocado a partir da ideia, presente em Barthes, de que uma logosfera nos envolve, e que precisamos, portanto, sacudi-la, pois se trata de um dado do nosso sujeito centrado: pôr em jogo, assim, o que, em nossa individualidade, constitui o Eu pessoal, que condiciona os movimentos da representação, via recognição. Com efeito, é um jogo com a linguagem, tomando-a, com Deleuze e Guattari, como incorpóreos que se expressam dos corpos. Trata-se de ponderar que o mundo, após pensado, só pode ser perspectivado nesses termos, com o pensamento e a linguagem. Destarte, o jogo que propomos – e seus efeitos sobre a educação –é condicionado, com Baudrillard, por uma impostura radical, que passa a lidar com o real, via certa Poética da Notação Esquizográfica.

Palavras-chave Poética; Jogo; Corpo; Pensamento; Linguagem

Abstract

This text proposes to envision human agency around the act of graffiti, that is, it deals with the relations and their tensions between the perceptions of the real and its inscription in time-space, with emphasis on writing. It dimensions this issue by circumscribing a certain notion of a body at stake in the world, in which it notes and writes down what it perceives, via a Poetics of Notation. Consequently, we begin to envision such a notion of body from the idea of an individual who, in Deleuze, is questioned in terms of a passable self, or an ante-self, as a condition for differential determinations of and in encounters: under this ante-self, however, a personal self is imposed. A body is then considered as composed of singularities in continuous movements, variations in which individuations erupt – individuals endowed with pre-individual forces inherent in the bodies. The problem arises from the idea, present in Barthes, that a logosphere surrounds us, and that we need, therefore, to shake it up, because it is a fact of our centered subject: putting into play, thus, what in our individuality it constitutes the personal self, which conditions the movements of representation, via recognition. In effect, it is a game with language, taking it, with Deleuze and Guattari, as incorporeal that express themselves in bodies. It is a matter of considering that the world, after thought, can only be viewed in these terms, with thought and language. Thus, the game we propose – and its effects on Education – is conditioned, with Baudrillard, by a radical imposture, which starts to deal with the real, via a certain Poetics of Schizographic Notation.

Keywords Poetics; Game; Body; Thought; Language

Resumen

Este texto propone poner en perspectiva la agencia humana en torno al acto de la escritura, su grafía, es decir, de las relaciones y sus tensiones entre las percepciones de lo real y de su inscripción en el tiempo-espacio – con énfasis a la escritura. La dimensión a circunscribiendo una noción de cuerpo en juego en el mundo, en el que anota y toma nota de lo que percibe, a través de una Poética de la Notación. Se comienza, por lo tanto, a poner en perspectiva esta noción de cuerpo a partir de la idea de un individuo que, en Deleuze, es puesto en cuestión en términos de un yo pasivo o un anti-Yo, como condición para determinaciones diferenciales de y en los encuentros: bajo este anti-Yo, aun, se impone un yo personal. Un cuerpo considerado como compuesto por singularidades en movimientos continuos, variaciones en las cuales irrumpen individuaciones – a su vez, estas individualidades mantienen en si fuerzas preindividuales. El problema es colocado a partir de la idea barthesiana de que una logosfera nos envuelve, y que necesitamos, por ello, sacudirla, pues se trata de un dado de nuestro sujeto centrado: poner en juego, así, lo que en nuestra individualidad constituye el Yo personal, que condiciona los movimientos de la representación, vía recognición. En efecto, es un juego con el lenguaje, tomándolo, con Deleuze y Guattari, como incorpóreos que se expresan de los cuerpos. Se trata de ponderar que el mundo, después de pensado, solo puede ser perspectivado en estos términos, con el pensamiento y el lenguaje. De ese modo, el juego que proponemos – y sus efectos en la Educación – es condicionado, con Baudrillard, en una impostura radical, que pasa a lidiar con lo real por medio de una Poética de la Notación Esquizográfica.

Palabras-clave Poética; Juego; Cuerpo; Pensamiento; Lenguaje

Sacudir a logosfera

De início, quer-se, com Barthes, afirmar que é preciso perturbar a ordem ligada das coisas, quebrar:

Tudo o que lemos e ouvimos recobre-nos como uma toalha, rodeia-nos e envolve-nos como um meio: é a logosfera. Essa logosfera nos é dada por nossa época, nossa classe, nosso ofício: é um “dado” de nosso sujeito. Ora, deslocar o que é dado não pode ser senão a consequência de uma sacudida; temos de abalar a massa equilibrada das palavras, rasgar a cobertura, perturbar a ordem ligada das frases, quebrar a estrutura da linguagem (toda a estrutura é um edifício de níveis)

(2007, p. 312).

A sacudida é o título dado por Roland Barthes à segunda parte do texto intitulado Brecht e o discurso: contribuição ao estudo da discursividade. Tal ideia, a da sacudida, será reafirmada implicitamente, no decorrer do texto, que agora apresentamos, e, no qual, passamos a tratar da ideia de uma Poética da Notação Esquizográfica. Sacudida justamente na interlocução entre pensamento e escrita – e desses com a linguagem –, tendo, portanto, o texto como um conector, um espaço onde se afirmam (ou se colocam em dúvida) as relações entre o eu, o pensamento e o mundo; espaço condicional para um jogo entre sensações e sentidos, tensão entre o que se percebe e o que escapa; texto como lugar de encontros incertos, de composições de antemão imprevisíveis, ainda que possam ser rigorosamente planejados.

Jogo entre corpo, pensamento e linguagem, de tal modo que o texto funciona como espaço que possibilita e nos convoca, escritor e leitor, à imprevisibilidade dos sentidos inerente à multiplicidade de que é feito, como escrita polimorfa em narrativa polifônica. Assume-se, então, o caráter performativo da escrita e do pensamento como manifestação de origem incerta, na qual nos assumimos como indivíduos também constituídos nessa derivação em curso; portanto, variação contínua, sobre a qual importa perguntar em que direção atua uma educação: se, derivando nos movimentos dos corpos e dos discursos, ou, se buscando a estabilidade das identidades, das certezas; e, a partir disso, se essa produz sacudidas ou se contribui para a solidificação do edifício que é a linguagem, se reforça ou põe em dúvida os modos de compreender o mundo que constituem a logosfera.

Assim, passamos a desdobrar a questão: tal sacudida, que desequilibra o sujeito e a linguagem (a qual instaura o próprio sujeito) põe, de antemão, a verdade em jogo, em prol de uma verdade do pensamento. Não se tratando, por conseguinte, de uma verdade que se justifica pelo real, ainda que condicionada pelos signos como possibilidade do pensar; nesse fazer, o do pensar na escrita, um pensar do e no texto, o eu é um ele, um corpo que importa como espaço de manifestação de pensamentos que não são seus, ainda que, paradoxalmente, sejam, porquanto manifestados pelas faculdades próprias que possibilitam sua existência – existência dos pensamentos e desse incerto si, em jogo com esses outros que se manifestam no pensar. Vejamos esta proposição com Barthes, que cita um personagem de Brecht: “Ele pensava em outras cabeças; e, na sua, outros que não ele pensavam. Esse é o verdadeiro pensamento”, e completa: “O verdadeiro pensamento é mais importante do que o pensamento (idealista) da verdade” (BARTHES, 2007, p. 311).

Tal estrutura da linguagem, da qual nos fala Barthes, se expressa tanto no texto quanto no pensamento, que só pode ser pensado, enquanto é produção de sentidos, por meio da utilização de sinais que possibilitam o pensar: uma organização, via linguagem, do que se manifesta ao corpo, a partir do que o afeta e que é, de todo modo, ao menos num primeiro momento, da ordem de um sensível. Há, portanto, os signos que percebemos, mas, também, algo que é da ordem da sensação – por vezes quase imperceptível –, que passa, mas do qual nos apropriamos também, ou nos esforçamos para, ao anotar, o significar via linguagem. Trata-se de pensar que o pensamento, tal como nos fala Barthes acerca do texto, funciona como um teatro,

[...] pois que, no teatro, como em todo texto, a origem da enunciação é indetectável: são impossíveis a colusão, sádica, do sujeito e do significado (essa colusão produz o discurso fanático), ou aquela, mistificadora, do signo e do referente (esta produz o discurso dogmático)

(2007, p. 311).

A escrita – e sua composição, dando a ver um texto – assim, funciona como uma interlocução entre mundo e pensamento. Tal relação, para o que nos interessa neste texto, pode ser compreendida nas noções que Deleuze e Guattari (1995) vão nos apresentar como corpos e incorpóreos. Nesse sentido, ainda que, no momento, estejamos enfatizando o corpo humano, como dotado da capacidade de pensar, se faz relevante considerar:

Devemos dar à palavra “corpo” o sentido mais geral (existem corpos morais, as almas são corpos, etc.); devemos, entretanto, distinguir as ações e as paixões que afetam estes corpos, e os atos, que são apenas os atributos não-corpóreos, ou que são o “expresso” de um enunciado

(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 13).

Trata-se, por conseguinte, de um corpo humano afetado pelos espaços que habita, pelo que passa a notar e anotar como indivíduo alocado num lugar de estudo, e, nesse lugar, ganha destaque a escrita, como condição para fazer funcionar o pensamento, ambos operando com e sobre a linguagem. Escrita como ato de um corpo em jogo, que produz outro corpo, como expressão desse primeiro, um corpo do texto. É nesse sentido que propomos uma compreensão poética da e na educação, em variações, pois, interpelado por outros corpos, na imanência de um estudo, o indivíduo produz suas anotações, para o que propomos uma esquizografia – donde passamos a destacar a impostura e o pensamento radical.

Notação Poética: entre corpos e incorpóreos, a impostura e o pensamento radical

Estamos tratando da relação entre corpos e de suas expressões que, conforme nos apresenta Deleuze e Guattari, operam com certa independência, pois não são da mesma natureza, sendo, portanto, heterogêneos: temos os corpos, como extensão, afetados por ações e paixões, e os incorpóreos, como expressão de enunciados. “A forma de expressão será constituída pelo encadeamento dos expressos, como a forma de conteúdo pela trama dos corpos” (1995, p. 21). Todavia, a essa relação encadeada entre conteúdo e expressão, e sua correlação entre corpos e incorpóreos, operamos com a ideia de Notação Poética, no sentido de que para Valéry (2018) a poética é tomada pela simples noção de um fazer, desse que produz, para seu próprio uso, o que ele define como obras do espírito, ou do intelecto. Sendo, portanto, a anotação um enunciado de um corpo que expressa o que notou, o que percebeu, de modo que essa matéria, então, inscrita num tempo-espaço, sirva, com potencial, para seguir pensando e produzindo.

Em tempo, importa registrar que as notas, do modo como estamos abordando, deixam de funcionar como uma espécie de rascunho do estudo, e, saindo do anonimato, assumem um posto de destaque, constituindo a pesquisa de modo enfático, em sua dimensão poética, fragmentária e especulativa.

Com efeito, tomamos como pressuposto, com Espinosa, na leitura que dele faz Deleuze (2002), que os corpos buscam perpetuar sua existência, no que se impõe aumentos consecutivos de grau de potência para agir. Assim, a notação do mundo apreende – ou melhor, intenta apreender – poeticamente, esse inapreensível: o real; pois lidamos com indícios, com efeitos desse real sobre os quais imaginamos um mundo, numa relação esquizo; um real acessível via apropriação inventiva, que perspectiva e valora, tal como nos propõe Nietzsche: trata-se de considerar a produção de verdades como ficções eficazes (GRANIER, 2009); eficazes porquanto aumentam nossa vitalidade, nosso potencial de agenciamento no mundo, perpetuando nossa existência. Operamos, assim, com as matérias, com a extensão, com corpos que expressam incorpóreos, donde lidamos com esses sinais, efeitos de um real inacessível – a noção mais apropriada, aqui, seria, por conseguinte: um real especulado. Vejamos, com Vieira, os índices como expressão de comportamentos que notamos:

Neste sentido, observar o mundo é notar e registrar diferenças, ler as mesmas, utilizá-las como índices que exprimam o comportamento deste, buscar então uma adequação a essa leitura que seja eficiente ou pelo menos promissora para garantir nossa permanência como sistemas vivos. É importante frisar que o desenvolvimento de instrumentos científicos mais e mais sofisticados não nos garante fugir de nossa “bolha” particular, o nosso “Umwelt”; o real permanece inacessível, só podemos trabalhar signos e é desse trabalho que emergem signos cada vez mais complexos, na medida em que mergulham na complexidade sugerida pelos índices do real

(2007, p. 3).

Trata-se de considerar que, ao se relacionar com o mundo ou com o que dele acessamos, é uma espécie de ruído, nunca um som plenamente audível, muito menos claramente legível. Ao ampliar esse ruído, precisamos dar conta das lacunas que nele se apresentam, e é aí que entra a linguagem (e o pensamento que se constitui por meio dela) que, com os signos que indicam o tal real, produz uma realidade; tal realidade é uma manifestação possível do real, mas não sua concretude. Tal problema nos é colocado por Baudrillard, tendo em vista a correlação mundo-pensamento-escrita:

É por isso que a escrita pode ir ao extremo de sua lógica, sabendo que, a um certo ponto, o mundo nada mais pode fazer do que assemelhar-se a ela. Mas ela mesmo só é capaz de ir ao extremo porque segue a ordem imanente do mundo. Reduplica o mundo, e o mundo não existe sem essa reduplicação. Ao mundo não falta antes de ser pensado, porém, depois disso, só pode ser explicado sobre essa base

(2002, p. 153).

Refirmamos, então, a necessidade da sacudida, de, em nossas experiências com o real – quando se impõe o pensamento que lida com os indícios do que nos passa —, fissurar a linguagem, para que essa realidade inventada não reproduza uma realidade dominante; dominação que captura os corpos inserindo-os numa função e que, assim, como parte de uma estrutura, que a sobrepõe às singularidades desses corpos, diminui a potência deles: “A sacudida é uma re-produção; não uma imitação, mas uma produção destacada, deslocada: que faz barulho” (BARTHES, 2007, p. 312, grifo do autor). Noutras palavras, num tom mais pragmático: é preciso viver ficções que nos interessam, que vitalizem nossa existência; o que requer atenção e esforço para resistir às ficções dominantes: requer compreender, de antemão, se assim se quiser, que a realidade é uma produção, como tantas outras produções do capitalismo (para se falar em realidades dominantes); produzir, então, sua própria realidade significa, portanto, não um se recolher num mundo apartado daquele da tirania que quer captar nossas forças – da fuga pela metafísica, por exemplo –, mas resistir ativamente, uma resistência não ressentida, que possa produzir, via sacudidas, deslocamentos e desvios: não se negam as forças dessa realidade que seduz para nos dominar, mas, ao contrário, ao se colocar nesse jogo, as estudamos para poder fazer uso delas para nossos próprios fins.

Por conseguinte, diante do inevitável ruído, ampliamos, sem embargo, sua ausência de sentidos; afirmamos a potência do barulho que sacode os corpos e, pela relação com significados ausentes enquanto são um a priori, a capacidade de um corpo agir em leituras do mundo que percebe, tendo, nesse, um suposto real, especulando-o, assim, e produzindo uma realidade em reciprocidade com sua singularidade e vontades. De todo modo, não é possível um controle sobre esse fazer, nem sobre nossa experiência do real, nem da apropriação de seus indícios e das narrativas possíveis em ficções/realidades: estamos num jogo de imprevisão, nosso alcance é limitado, nosso corpo, contingência, nossa capacidade de produção. Apesar disso, ou, justamente por isso, é que propomos, neste texto, a compreensão prática de uma poética que se afirme na multiplicidade imanente do mundo, via uma Notação Esquizográfica. Trata-se de uma postura descentrada e de um pensamento radical; portanto, de uma impostura que possibilita esse jogo improvável de escrever o mundo, de escrever um mundo – ou, tendo em vista a dimensão temporal e a incomensurabilidade desse fazer, um escrever mundos provisórios, a serem, tão logo percam a vitalidade de seus sentidos, reescritos. Perspectivar a existência, como nos aponta Baudrillard (num jogo de verdades, de desejos e sedução.

Pode-se dizer também que ao mundo falta efetivamente “nada”, e que o pensamento é a sombra levada desse Nada sobre a superfície do mundo real (path of nihility). O pensamento radical está na intersecção violenta do sentido e do não-sentido, da verdade e da não-verdade, da continuidade do mundo e da continuidade do nada. Aspira ao estatuto e ao poder da ilusão, restituindo a não-veracidade dos fatos, a não-significação do mundo, e encurralando esse nada que corre sob a aparente continuidade das coisas. O pensamento como ilusão é, sem dúvida, uma impostura. Mas a impostura (e a linguagem é, em si, uma impostura) não é o que se opõe à verdade: ela é uma verdade mais sutil, que envolve a primeira, do signo de sua paródia e de seu apagamento. Literalmente, joga o “jogo da verdade”, como a sedução joga o jogo do desejo

(2002, p. 153).

Esquizografia: delírios e ação poética sobre si

Portanto, enquanto tomamos o mundo como um real do qual acessamos seus efeitos, matérias em movimento (desde suas subpartículas), a notação se apresenta como um certo registro desses movimentos (no âmbito macro dos acontecimentos manifestos, mas que estão coadunados com os movimentos dessas partículas sensíveis). Consideramos, portanto, esses movimentos como reflexos de complexos processos mais ou menos ordenados, mas sempre descontrolados, no todo e nos detalhes, porquanto vazam por todos os lados – ainda que, eventualmente, expressados em composições finitas, individuadas. Uma notação, portanto, na transposição entre notar e anotar, apresenta os contornos do que, se consistentes, dão a ver, via linguagem que ordena o mundo, um corpo (de uma coisa, um ser, uma ideia, um texto, etc.); “pois é o processo de subjetivação e o movimento de significância que remetem aos regimes de signos ou agenciamentos coletivos” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 20). No limite, é dizer que “escrever é talvez trazer à luz esse agenciamento do inconsciente, selecionar as vozes sussurrantes, convocar as tribos e os idiomas secretos, de onde extraio algo que denomino Eu” (1995, p. 20).

Compreendemos, por essa via, um corpo como um composto que, atravessado por forças diversas, que o compõem, é, portanto, movimento; esse corpo, sobretudo o humano em sua capacidade de agência, compõe outros corpos e, sem embargo, recompõe a si nesses processos. Deleuze, no seu livro dedicado a Espinosa, escreveu que

[...] cada corpo na extensão, cada ideia ou cada espírito nos pensamentos são constituídos por relações características que subsumem as partes desse corpo, as partes dessa ideia. Quando um corpo “encontra” outro corpo, uma ideia, outra ideia, tanto acontece que as duas relações se compõem para formar um todo mais potente, enquanto que um decompõe o outro e destrói a coesão das suas partes

(2002, p. 25).

Não saímos ilesos dos encontros. Podemos considerar, então, por um lado, a ideia de um indivíduo, menor, um dos múltiplos indivíduos num corpo humano, em contraponto ao Indivíduo, maior, uma força que quer dominar pelo sentido que impõe; ambos são percebidos como resultantes da desaceleração: movimentos que ganham visibilidade ao se manterem numa velocidade passível da percepção humana. Assim, quanto ao indivíduo, trata-se de considerá-lo pelos acessos intermitentes de individuação que afirmam sua diferença, e, de todo modo, mantém, em si, uma coabitação de possíveis – que, em Simondon (2003) aparece na ideia de pré-individual. Por outro lado, temos o Indivíduo: o sujeito no humano, o que faz dele um Eu pessoal, centrado e coeso. Já o indivíduo – não compreendido como sujeito, portanto, mas ao modo de um objeto a sofrer as ações físicas, ou um animal que se afeta pelo ambiente –, é uma espécie de eu impessoal, em certo sentido, um eu passivo: não é que não possua energia para reagir, mas reage sem sobreposição hierárquica; é compreendido como passional, no sentido de que é movido pelas paixões, pelas afecções. Nos termos de Deleuze (1988), seria a diferença entre um eu que age em jogo com as paixões, que se afeta e nota as diferenças, e um Eu que age via recognição, que representa, como veremos mais à frente.

Com isso, passamos a considerar que um corpo – com ênfase ao humano, mas estendido a um corpo qualquer – se compõe não como um Indivíduo, como quer o pensamento da representação (que necessita dessa unidade num Eu centrado), mas um indivíduo: múltiplas divisões de um eu fendido, ou, se se quiser, de múltiplos eus. Trata-se de multiplicidades inerentes à singularidade que nos compõe, mas, também, de divisões operadas pela linguagem, nos múltiplos discursos que nos atravessam; tal efeito pode ser observado na manifestação dos diálogos que vivemos em nossos pensamentos: tais diálogos parecem emergir da constante ruptura resultante de tensões entre sensação e memória e, a partir daí, da incapacidade inevitável de encaixar a singularidade do novo (da ordem do sensível, efeito dos encontros) no idêntico (via recognição); mesmo assim, de forma truncada e autoritária, esse encaixe é realizado por tal Indivíduo: um falsário de má-fé (pois existe, é claro, um falsário de boa-fé), que apresenta, via identificação (decalcada), suas certezas – uma voz que subjuga as demais e se autoproclama porta-voz do corpo que fala (ou que cala).

Projetamos, portanto, uma maneira de notar e anotar o mundo que resista ao Império do Indivíduo. Compreende-se, contudo, que não é possível calá-lo, enquanto é uma das vozes que compõem o nosso corpo: tampouco se tem essa intenção, pois nossa resistência opera por desvios, não por submissão; todavia, intenta-se ampliar as outras vozes dos possíveis que, em nós, coabitam (muitos dos quais imprevistos). Tal intenção não significa uma oposição à individuação, pois a compreendemos como um processo de diferenciação contínua, via acessos intermitentes, como pontos de uma linha que corre ao infinito. É indispensável diferenciar, portanto, a individuação, vista como movimento, do Indivíduo como uma resistência ao movimento e suas mudanças de estados e perspectivas. Significa dizer que estamos ao lado da individuação, como devir do ser:

A individuação corresponde à aparição de fases no ser, as fases do ser; ela não é uma consequência depositada ao lado do devir e isolada, mas está na própria operação enquanto se efetua; só podemos compreendê-la a partir dessa supersaturação inicial do ser homogêneo e sem devir que, em seguida, se estrutura e devém, fazendo aparecer indivíduo e meio, em conformidade com o devir, que é uma resolução das tensões primeiras e uma conservação dessas tensões sob a forma de estrutura; em certo sentido, poderíamos dizer que o único princípio pelo qual podemos nos orientar é o da conservação do ser pelo devir, essa conservação existe pelas trocas entre estrutura e operação, procedendo por saltos quânticos entre equilíbrios sucessivos

(SIMONDON, 1993, p. 101-102, grifos do autor).

Por essa via, imprimimos como condição de vitalizar a vida, aumentando, assim, seu grau de potência de agir, a reapresentação de uma problemática: O que não estou vendo que poderia ser visto? E considerar para isso que, o que se vê, paradoxalmente, é visto ao falar-se: é (v)isto! Vejo, logo existo, ao dizer(me). Trata-se de uma ação poética de anotar o que se nota. Contudo, o indivíduo tem uma visão restrita, pois seu excesso de peso – acúmulo de informação, consciência hipertrofiada pelo tempo –, resulta num centro de gravidade que demarca um ponto de equilíbrio do qual é difícil deslocar-se, pois, sobrecarregado com todas as certezas que se antecipam às possibilidades imprevistas.

Propomos que se considere a substituição do Indivíduo por uma ideia singular de corpo, como um corpo potencial; esse, por sua vez, é composto de múltiplos indivíduos, por isso um indivíduo (ainda que recorrentemente um indivíduo se destaque entre os demais). Desse modo, tal corpo pode multiplicar seus pontos de vista, porquanto cada parte que o compõe, em contato com o mundo, vê diferentes detalhes, e os apresentam em falas dissonantes. Já o indivíduo ouve apenas poucas frequências sonoras, as que, egocentricamente, vibram na emanação de sua própria voz.

Essa ideia, ainda que difusa, afirma-se num modo de operar com e sobre o pensamento; tal modo pretende manter, e até mesmo reforçar, a tensão nos agenciamentos gráficos (num texto, numa dança, foto, música), pois a compreende, nesse jogo entre percepção e apreensão, via linguagens, como multiplicidade: pluralidade que se expressa em cada manifestação que difere. Por esse caminho, entra em cena um corpo que se afirma em práticas que intentam pôr-se em jogo com os códigos que compõem a língua, ainda que compreenda que a linguagem possui uma força centralizadora, e, justamente por isso, dilui-se em indivíduos, a partir de sua implexa individualidade corpórea; mas, ainda antes, trata-se de dar a devida atenção ao que passa entre, que escorre nos interstícios, a-significantes: algo da ordem do inaudito, do não fundado, dos movimentos intensivos que nos tocam, ainda sem forma e que, sequer, por vezes, somos capazes de notar.

Esse modo de agir no/com o mundo, compreendidos como práticas e que tomamos enquanto jogos e exercícios experimentais, que reagem sobre si de forma inventiva, portanto poética, estamos imprimindo, no que tange às nossas relações com o mundo via grafismos, na ideia de uma Notação Esquizográfica. Aceita-se, portanto, e se potencializa, o que no significado da palavra esquizo, de origem grega, nos pode ser proposto: em primeiro lugar, a noção de algo dividido. Perspectiva-se, adiante, o que nos pode dar a pensar a esquizofrenia, como dissociação entre o pensamento e a realidade, afirmando, assim, justamente, a potência dessa impossibilidade de associação direta entre pensamento e real, que, para ser compreendida, precisa, então, ser imaginada, inventada.

Uma dimensão ética aqui se apresenta: trata-se de um modo de compreender a si numa ação poética que resiste ao Império do Indivíduo ao se reinventar em cada encontro, ao ser reinventado numa tensão dentro-fora de tal modo que é necessário ir além, produzindo, na esquizografia, resistência à hierarquia suposta na relação sujeito-objeto; uma compreensão, em exercícios em prol da ampliação, da força imanente entre os corpos. Enquanto o Indivíduo condiciona o mundo no entorno do seu centro, um corpo composto por múltiplos indivíduos só pode ser tensionado para as periferias de si. Colocar-se assim nesse jogo trata-se de, via exercícios de experimentação de si, intensificar as vozes numa escrita fendida, múltipla, que nota o mu(n)do de incertezas, pois, titubeando entre silêncios, murmúrios e gritos, os quais tenta captar nos pensamentos que pensam o que podem notar; vertigens, delírios em pensamentos que são vistos por um incerto eu que ouve o que pensa que vê: um sentir-ver-ouvir-pensar nas superfícies pele-pensamentos: é a totalidade do corpo que compreende!

Um si notado como um corpo, um corpo como espaço, um espaço como um campo de forças, de energias que intentamos captar e potencializar(se). De todo modo, esse eu que tenta é, aqui, no texto, um efeito de linguagem; e é, na vida, uma ação performática de um eu provisório, manifesto num corpo que se percebe num bloco de sensações-pensamentos; aqueles que, por sua potência, emergiram à superfície e produziram sentidos para se chegar alhures – em nova recomposição corpórea no porvir. Sem embargo, é um jogo energético, de cinéticas e dinâmicas num plano de longitude a latitude (DELEUZE, 2002). Corpo múltiplo que funciona como um dínamo que move e distribui pelos espaços as singularidades que o compõem; difere, portanto, da resistência de um Indivíduo que formaliza, que corta, que restringe para caber nos limites sempre restritos de uma identidade.

As forças ativas do corpo fazem do corpo um si e definem o si como superior e surpreendente. “Um ser mais poderoso, um sábio desconhecido – que se chama si. Ele habita teu corpo, ele é teu corpo” [...]. Em Nietzsche, assim como na energética, chama-se “nobre” a energia capaz de transformar. O poder de transformação, o poder dionisíaco, é a primeira definição da atividade

(DELEUZE, 1976, p. 22).

Precisamos escrever sobre (e com) a linguagem ao falar sobre (e com) o pensamento

Por conseguinte, trata-se de compreender, sobre a ideia de notação, que a escrita “fala” por si só, e que, mesmo que possa ter no escritor uma relação de autoria, esse também pode ser compreendido como, de certa forma, um instrumento da escrita: espaço e ação que possibilitam sua existência. Corpo que, como espaço de passagem, modula corpos com as matérias-pensamentos que o atravessam. Materialmente, ao menos, empreendemos uma força à autoria: mas conjecturamos um permanente jogo entre um escritor dividido, uma escrita polimorfa e uma narrativa polifônica. Com Foucault, então,

[...] pode dizer-se que a escrita de hoje se libertou do tema da expressão: só se refere a si própria, mas não se deixa, porém aprisionar na forma da interioridade; identifica-se com a sua própria exterioridade manifesta. O que quer dizer que a escrita é um jogo ordenado de signos que se deve menos ao seu conteúdo significativo do que à própria natureza do significante; mas também que esta regularidade da escrita está sempre a ser experimentada nos seus limites, estando ao mesmo tempo sempre em vias de ser transgredida e invertida; a escrita desdobra-se como um jogo que vai infalivelmente para além das suas regras, desse modo as extravasando. Na escrita, não se trata da manifestação ou da exaltação do gesto de escrever, nem da fixação de um sujeito numa linguagem; é uma questão de abertura de um espaço onde o sujeito de escrita está sempre a desaparecer

(2001, p. 269).

Tomar em conta, assim, com Barthes (2004, p. 57), que “a escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo pelo qual foge o nosso sujeito, o branco-e-preto em que vem se perder toda a identidade, a começar pela do corpo que escreve”.

O autor nunca é mais do que aquele que escreve, assim como “eu” outra coisa não é senão aquele que diz “eu”: a linguagem conhece um “sujeito”, não uma “pessoa”, e esse sujeito, vazio fora da enunciação que o define, basta para “sustentar” a linguagem, isto é, para exauri-la

(BARTHES, 2004, p. 60).

Por essa via, passa-se a considerar que a continuidade do pensamento é um efeito de uma individualidade a criar seus sentidos, a produzir uma narrativa com os fragmentos captados da e na existência. Tal fato se justifica na produção de sentidos, na necessidade, como afirma Nietzsche, da alternância entre as forças dionisíacas e apolíneas.

Daquele fundamento de toda a existência, o subsolo dionisíaco do mundo, só pode chegar à consciência do indivíduo humano exatamente tanto quanto puder ser superado por aquela força apolínea de transfiguração, de tal modo que esses dois impulsos artísticos são obrigados a desenvolver as suas forças numa proporção de rigorosa alternância, de acordo com a lei da eterna justiça. Onde os poderes dionisíacos se erguem de forma impetuosa, como presenciamos, já Apolo deverá ter nascido até nós, envolvido numa nuvem

(2005, p. 174).

Todavia, é preciso possibilitar a pluralidade: que o texto possa tornar presente a descontinuidade do pensamento, sem, com isso, deslizar para a completa ausência de sentido; mas, aceitando os riscos das possíveis rupturas de sentidos, e nisso, rupturas na constituição de si, resultantes dos paradoxos presentes nesse jogo polifônico os quais habitam os pensamentos de um corpo fendido. Colocamos, com Blanchot, o problema:

Uma das questões que se colocam à linguagem da pesquisa é ligada a esta exigência de uma descontinuidade. Como falar de modo que a palavra seja essencialmente plural? [...] Ou ainda, como escrever de tal maneira que a continuidade do movimento da escrita possa deixar intervir fundamentalmente a interrupção como sentido e a ruptura como forma?

(2010, p. 37).

A esquizografia, então, nos aparece como procedimento de pesquisa e criação, que passa a ser compreendida como um modo de notar o mundo e anotá-lo em pensamento (descontinuado) – e em pensamento escrito (como um pensamento-escrita-nômade); uma escrita que pode ser perspectivada como exercício espiritual, na linha do que nos aponta Hadot (2002), que tem sentido de existência na intenção de vitalizar a vida, possibilitando fluxos de multiplicidades que o compõem, que se dispõem em relação ao mundo – ainda que, paradoxalmente, compreendidos na impossibilidade de sua compreensão em totalidade. É exercício, enquanto prática, e espirituais, por se tratar de um processo que comporta pensamento, ética, intelecto, sensações, e toda uma complexidade do indivíduo que, justamente por essa complexidade manifesta, é aqui apresentado na ideia de dividualidades num corpo composto de multiplicidades. A Poética da Notação Esquizográfica se apresenta, assim, como um modo de perspectivar a si, a escrita, a pesquisa, e a vida, nesse entrelaçamento corpo a corpo que vai tomando forma e se compondo na poética do texto. Grafia3 que, então, nesse jogo com as matérias que a compõem, passa a ser compreendida como um exercício de um humano que se compreende como parte desse jogo, permutado entre corpo-jogador e matéria-corpo do jogar. Vejamos a importância da noção de Exercícios Espirituais, na tradução feita por Gallo e Genis sobre um texto de Hadot (2002), num estudo em que relacionam esses exercícios com a educação:

“Exercícios espirituais”. A expressão incomoda um pouco o leitor contemporâneo. De início, não é de muito bom tom, hoje, empregar a palavra “espiritual”. Mas é preciso se resignar a empregar esse termo, porque os outros adjetivos ou qualificativos possíveis: “psíquico”, “moral”, “ético”, “intelectual”, “de pensamento”, “da alma”, não dão conta de todos os aspectos da realidade que queremos descrever. Poderíamos, evidentemente, falar de exercícios de pensamento, porque, nesses exercícios, o pensamento é tomado de alguma maneira por matéria e procura modificar-se a si mesmo. Mas a palavra “pensamento” não indica de maneira suficientemente clara que a imaginação e a sensibilidade intervêm de uma maneira muito importante nesses exercícios. Pela mesma razão, não podemos nos contentar com “exercícios intelectuais”, ainda que os aspectos intelectuais (definição, divisão, raciocínio, leitura, pesquisa, amplificação, retórica) desempenhem aí um papel importante. “Exercícios éticos” seria uma expressão bem sedutora porque, o veremos, os exercícios em questão contribuem potentemente à terapêutica das paixões e se reportam à condução da vida. No entanto, seria ainda uma via muito limitada. De fato, esses exercícios – nós o entrevemos pelo texto de G. Friedmann – correspondem a uma transformação da visão do mundo e a uma metamorfose da personalidade. A palavra “espiritual” permite fazer entender que esses exercícios são a obra não somente do pensamento, mas de todo o psiquismo do indivíduo que se eleva à vida do Espírito objetivo, isto é, se recoloca na perspectiva do Todo (“eternizar-se ao se superar”)

(2015, p. 103).

Trata-se do “conceito de exercício espiritual como conversão do sujeito, trabalho de si sobre si mesmo” (GALLO; GENIS, 2015, p. 100); um si que opera com e sobre notas como exercício de escrita, onde está em jogo com o pensamento, se propondo a sacudir a linguagem para derivar da centralidade do Indivíduo; logo, como metamorfoses da maneira de ver e estar no mundo.

Humores em jogo: a paixão como potência na escrita – e a escrita como um exercício espiritual (entre arte e educação)

O que me obriga a escrever, imagino, é o medo de ficar louco. Padeço uma aspiração ardente, dolorosa, que dura em mim como um desejo insaciável. Minha tensão se assemelha, em certo sentido, a uma louca vontade de rir; difere pouco das paixões com que queimam os heróis de Sade e, no entanto, está próxima da dos mártires e dos santos... Não posso duvidar: esse delírio acusa em mim o caráter humano. Mas é preciso dizer: ele arrasta ao desequilíbrio e me priva penosamente de repouso. Queimo e me desoriento – e permaneço vazio no final

(BATAILLE, 2017, p. 21).

Não seria a loucura, na sua acepção doentia, resultante da queda nesse abismo entre a sensação e os sentidos? Afecções vazias, não ordenadas, que reverberam sem rumo, em desatino, num corpo sem destino? A transmutação não realizada entre as forças dionisíacas e apolíneas? Contudo, mesmo se assim for, erra quem, suposto Indivíduo dotado de um controle sempre artificial, credita-se distante da loucura – e ela, então, nos diz: “Eu, a Loucura, sou a única sempre pronta a distribuir indistintamente entre todos os homens meus benefícios” (ROTTERDAM, s/d, p. 64).

Que fique claro, então, o modo como estamos nos relacionando com a loucura: desrazão, erro, ausências e incertezas, mas também, e sobre isso, coragem, experimentação, invenção e criação de uma vida plural e potente. Ouçamos, então, novamente, o que Ela nos diz: “Parece-me ouvir alguns filósofos reclamando: ‘Sem dúvida, é uma grande desgraça que alguém seja mantido, pela Loucura, na ilusão, no erro e na ignorância’. Não, estão totalmente enganados, pois é justamente nisso que consiste ser homem” (ROTTERDAM, s/d, p. 46). É essa dimensão trágica, que, acreditamos, clama para ser incorporada na vida, porque, em verdade, ela é o fundo que nos suporta – ou, talvez, o sem-fundo, o não fundado. Vejamos com Deleuze essa questão e a correlação que tentamos delinear no jogo entre indivíduo-Indivíduo:

É que a representação começou por ligar a individuação à forma do Eu e à matéria do eu. Para ela, com efeito, o Eu não é somente a forma de individuação superior, mas o princípio da recognição e de identificação para todo juízo de individualidade que incida sobre as coisas: “é a mesma cera...” Para a representação, é preciso que toda individualidade seja pessoal (EU) e que toda singularidade seja individual (Eu). [...] Todavia, o eu como eu passivo é apenas um acontecimento que se passa em campos de individuação prévios: ele contrai e contempla fatores individuantes de um tal campo e se constitui no ponto de ressonância de suas séries. [...] Como diferença individuante, a individuação é tanto um ante-Eu, um ante-eu, quanto a singularidade, como determinação diferencial, é pré-individual, é este o mundo do SE ou do “eles”, que não se reduz a banalidade cotidiana, mas que, ao contrário, é o mundo em que se elaboram os encontros e as ressonâncias, última face de Dioniso, verdadeira natureza do profundo e do sem-fundo que transborda a representação e faz com que os simulacros advenham

(1988, p. 382-383, grifos do autor).

Eis, então, o último tópico que se quer visível nesse corpo-texto, do que nos cabe tentar manifestar nesse jogo assumidamente performático de escritas moduladas em origem indefinida, ou, sobretudo, na ausência de uma origem: de conferir força, como ação direcional, à força da experimentação movente e incerta, dotada da potência do SE, como aponta Deleuze. Trata-se de encontrar um modo de conferir às paixões sua potência, ao compreendê-las na sua força de determinação diferencial. Por essa via, portanto, ganha importância a dimensão dos exercícios espirituais como terapêutica das paixões; e, nesse sentido, de encontrar, na escrita, um espaço de estrita relação entre arte e educação – relação que, abaixo, nos parece ser apontada sobre as noções de literatura e clínica:

Os momentos de desabamento do mundo da representação não bastam para fazer um livro e as epifanias devem ser encadeadas em uma intriga de saber à maneira aristotélica: a da produção de uma verdade à revelia do sujeito que a sustenta. É nesse mythos aristotélico que a lógica disruptiva do pathos libera sua potência. [...] Sabe-se que, para construir essa lógica singular do antilogos, Deleuze deve voltar três vezes ao texto de Proust. Sabe-se também que a antiphysis assim esquematizada tem um nome: o de esquizofrenia ou, mais simplesmente, de loucura. À obra-organismo ou catedral o que se opõe, em última instância, é a obra-teia de aranha, rede do narrador esquizofrênico. [...] Em última instância, a correção da metafísica da literatura e das contradições de sua poética tende a lhe dar uma coerência que assimila estritamente espaço literário e espaço clínico

(RANCIÈRE, 1999, p. 5-6).

Trata-se, portanto, de se aproximar do abismo e de contorná-lo, poeticamente, na criação de pontes e sentidos provisórios, redimensionando, assim, a linguagem e a si nesse jogo; bebe-se do vinho de Dionísio, mas se encontra a medida ao cessar antes do último gole: a tomar assim das da loucura e não padecer em sua confusão.

Acreditávamos estar no ponto culminante de pesquisas literárias, na mais alta invenção da linguagem e das palavras; já nos achamos nos debates de uma vida convulsiva, na noite de uma criação patológica concernente aos corpos. É por isso que o observador deve permanecer atento: é pouco suportável, sob o pretexto das palavras-valise, por exemplo, ver misturar as histórias infantis, as experimentações poéticas e as experiências da loucura. [...] Com toda a força da admiração, da veneração, devemos estar atentos aos deslizes que revelam uma diferença profunda sob semelhanças grosseiras. [...] O problema é o da clínica, isto é, do deslize de uma organização para outra ou da formação de uma desorganização progressiva e criadora. O problema é também o da crítica, isto é, da determinação dos níveis diferenciais em que o não-senso muda de figura, a palavra-valise de natureza, a linguagem inteira de dimensão

(DELEUZE, 2007, p. 86-87).

Parece que avançamos o suficiente nesta elaboração. Nos sentimos como ao final de uma intensa dança: paradoxalmente esgotados, mas repletos de energia; é como se o esgotamento se apresentasse ao corpo que tenta, de diversas formas, ante o Indivíduo, desfazer-se de si mesmo e, ao se esgotar tentando (e falhando), percebe uma energia que emana das possibilidades, sente no corpo a energia que vem de fora, mas a percebe por dentro.

Talvez, para findar, seja necessário um parágrafo, uma conclusão (quiçá, uma frase de efeito). Mas e se é nesse espaço, o do texto, que, justamente, ao mirar o fundo vazio que nos suporta e, por instantes, pensar: Sobre o que mesmo se falava? Ora, não seria justamente um ato de bravura aceitar tais inconsistências? Mas deixemos a bravura de lado, pois não é disso que se trata; com efeito, é preciso lidar com nosso ideal de intelecto, inteligência, perspicácia: poder correr com a escrita, seus riscos, mesmo titubeando com os pensamentos, em errância, ânsias, e queimar, e rir; ecoar Borges (2000, p. 123): “Quando estou escrevendo algo, tento não compreendê-lo. Não acho que a inteligência tenha muito a ver com o trabalho de um escritor. Acho que um dos pecados da literatura moderna é ser muito autoconsciente.” Não seria a educação, também, muito autoconsciente?

Que assim seja, então, pois, pela via da escrita, possamos nos encontrar com eles: talvez nossos humores, talvez nossos pensamentos, talvez nosso gênio, mas, de todo modo, com esses outros que nos compõem, dos quais não sabemos o que, necessariamente, pensam. E, no que nos afeta, sobre o que podemos pensar nós, dizemos então: que possamos, com clareza e sanidade, esquecer. Mas é claro, sabemos que

deveis estar esperando, vejo-o, uma conclusão. Mas deveis estar bem loucos para supor que eu me lembre de meus propósitos, depois dessa efusão de palavreado. Aqui está uma frase antiga: “Detesto o conviva que se lembra”. E aqui está uma frase nova: “Detesto o ouvinte que não se esquece.” Portanto, adeus! Aplaudi, bebei, sucesso, ilustres discípulos da Loucura!

(ROTTERDAM, s/d, p. 107).

3Não somente do pensamento, via escrita, mas também do movimento corporal, como a coreografia, ou da luz, fotografia, entre outras.

Referências

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Recebido: 18 de Agosto de 2019; Aceito: 12 de Maio de 2020

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