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Conjectura: Filosofia e Educação

versión impresa ISSN 0103-1457versión On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.25  Caxias do Sul  2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v25.e020022 

ARTIGOS

Literatura e docêcia: uma justificativa estética da existência

Literature and teaching: an aesthetic justification of existence

*Mestra em Educação. Professora de Língua Portuguesa e Literatura. E-mail: fracorbellini@gmail.com

**Pós-Doutora em Educação pela Universidade de Lisboa – Portugal. Pós-Doutora em Ciências Humanas pela Griffith University – Austrália. Doutora e Mestra em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Graduada em Pedagogia pela Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). Atualmente é professora na Escola de Humanidades e no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). E-mail: betinaschuler@hotmail.com


Resumo

Em tempos de aceleração, de competição consigo mesmo e de uma linguagem instrumental e pragmática para se falar da educação, qual seria o valor de uma justificativa estética da existência em se tratando da formação de professores? Tendo tal problemática como motivadora, objetivamos, com este estudo, levantar a discussão acerca da relação entre literatura e docência, procurando aproximá-las de modo não utilitário, mas com vistas à estética da existência. Como um modo de resistência, optamos por perguntar pela formação de professores pautada pelo exer cício do pensamento, pela problematização dos valores e pelo cuidado consigo e com os demais. A partir disso, utilizamo-nos da pesquisa com inspiração arquegenealógica em Foucault, nos debruçando sobre autores que abordam ou a literatura ou a docência como possibilidades de entendimentos outros que não os conteudistas. Assim, tomamos a literatura, com inspiração nos estudos foucaultianos para problematizar a constituição docente. Mais especificamente, buscamos, nos estudos sobre a genealogia da subjetivação, a leitura, e a escrita tomadas como práticas possíveis do cuidado de si, quando da investigação de Foucault na Antiguidade greco-romana, especialmente nos primeiros séculos da nossa era. Todavia, não se trata de uma aplicação conceitual anacrônica, mas de tomarmos esse ferramental para pensar o que estamos nos tornando no presente, quais são os modos contemporâneos de dominação e quais são as possibilidades, em brechas, de criação de uma estilística da existência. Sendo um ensaio teórico, operamos com a literatura como possibilidade de dobra na linguagem tida como verdade, que poderia funcionar não fora da linguagem, mas fora da ordem do discurso. Seguindo essa perspectiva, entendemos que ela pode não ter apenas a função de revelar outra verdade, ser um passatempo, informar ou transmitir um saber, mas pode funcionar como uma prática de si num exercício de pensamento que problematiza o que estamos fazendo com nossa vida e com a vida dos demais no presente.

Palavras-chave Literatura; Docência; Práticas de si; Foucault

Abstract

In times of acceleration, competition against oneself, and pragmatic and instrumental language to refer to education, which would be the value of aesthetic justification of existence in teaching training? We aim at highlighting the relation between literature and teaching based on the concept of aesthetic of existence. We have chosen to deal with teacher training highlighted by the exercise of thought, by the problematization of values, and by the care of the self and others as a mode of resistance. We adopted an arch genealogical inspiration based on Foucault in order to read authors that work with literature and teaching beyond the pragmatic perspective. Based on such perspective, this article takes literature from Foucauldian studies to problematize teaching constitution. More specifically, we searched the genealogy of subjectivation studies for writing and reading as possible practices of the care of the self-regarding Foucault’s investigation on Greek-Roman Antiquity, especially during the first centuries of our era. However, rather than using an anachronic conceptual application, we took these tools to think about what we have become in the present, what the contemporary modes of domination are, and what possibilities to create the stylistics of existence we have. As a theoretical essay, this article operates with literature as a fold in language taken as truth, as a bent force over itself, which could work not out of language, but out of the order of discourse. Under this perspective, lite rature would not have the function to reveal the truth, to be a pastime, to inform or to deliver knowledge; but it could function as a practice of the self in an exercise of thought to problematize what we are doing with our lives and the others in the present.

Keywords Literature; Teaching; Practices of the self; Foucault

De alguma emergência

Apesar de os primeiros escritos, que mais tarde seriam classificados como literatura, terem sido encontrados na Grécia, a palavra literatura foi dada pelos “latinos, que cunharam o termo littera (letra), ou seja, tudo aquilo que é/está escrito” (SANTOS, 2007, p. 160). Essa primeira concepção de literatura perdurou até o século XVIII, pois, a partir da segunda metade desse mesmo século, litteratus passa a carregar a ideia de homem que produz obras, homem culto, ou conjunto de obras escritas. É nesse momento, também, que a literatura, agora classificada como obra, passa a compor as belas artes que servem de base para o conceito de estética de Alexander Gottlieb Baumgarten3 (SANTOS, 2007).

Da percepção, apontada por Marcos Carvalho (2010), sobre Baumgarten em estabelecer a relação entre arte, beleza e sensibilidade do ser humano, para delimitar um conceito possível de estética, chega-se a várias formas de conceituação no presente. Nesta escrita, optamos pelo conceito foucaultiano de “estética da existência”, ou também chamado de uma arte da existência para tomarmos a literatura e a formação de professores. Foucault debruçou-se sobre a estética da existência pautado pelo cuidado de si na Antiguidade greco-romana, principalmente nos dois primeiros séculos da nossa era, como uma arte de viver implicada não como uma preparação para o futuro ou para uma profissão, mas sendo o fim último a constituição de uma vida, de uma estilística da existência. E essa forma de viver exigiria outra relação com o mestre, pois esse não teria a função de suprir uma suposta ignorância, mas de convidar o outro a cuidar de si, ou seja, de “puxar para fora”, de colocar o sujeito frente a frente consigo mesmo, justamente para se deslocar de si. Daí que não se trataria de um mestre que transmite uma verdade para tornar o discípulo um objeto para um discurso verdadeiro, mas de um mestre preocupado em transformar a verdade em um ethos (FOUCAULT, 2014).

Em tempos de uma linguagem instrumental e de um léxico empresarial que invadem escolas e universidades (SIBILA, 2016) em nome da eficiência, dos resultados calculáveis, das competências atingíveis e da produção de sujeitos, que competem consigo mesmos nessa sociedade do superdesempenho (HAN, 2015), qual seria a potência da literatura quando tomada para pensar na formação de professores? Quando o importante dá lugar ao útil (ORDINE, 2016), qual seria a potência da literatura em tempos de moralismos e utilitarismos de toda ordem na formação docente? Em tempos de elogio à lógica das competências e de ataque às humanidades, como poderia a literatura ser tomada, em brechas, como uma prática possível da arte da existência, provocando outros modos de subjetivação, em se tratando, especificamente, da docência? A partir dessas questões, buscamos argumentar sobre a importância da literatura na formação de professores, quando tomada pela possibilidade de se constituir como uma prática possível de alguma criação de si no presente.

Da literatura nos estudos foucaultianos

À literatura foi concebido o entendimento de ser o texto de imaginação, e isso conferiu a ela também o estatuto de obra de arte e, a partir daí, vem sendo colocada numa posição de ficção, mas a ficção entendida não como potência e afirmação, tal como operada por Nietzsche e Foucault, mas em oposição ao real da representação. Porém, a partir dos estudos pós-estruturalistas, todo discurso pode ser tomado como sendo da ordem da ficção, uma vez que se rompe com a divisão de verdadeiro e falso pautada pela verdade original. Não é porque a literatura “vem a ser constituída por um modo especial de se conceber uma linguagem da ordem do estético, do belo, da subjetividade” (SANTOS, 2007, p. 160) que somente a ela deva ser dado o lugar da ficção.

Assim, a partir de Nietzsche, “o problema, portanto, não está em que existam ficções, mas em que estas ficções [...] tenham se tornado o ‘critério de verdade’, isto é, da realidade [...], [e] os filósofos preferiram acreditar que aquelas ficções eram a representação da ‘verdade’ [...]” (MOSÉ, 2016, p. 48). Portanto, não duvidar, não questionar, não problematizar as ficções colocadas em prática foi o que possibilitou a constituição de modos de vida ainda presentes nos dias de hoje, pautados pela racionalidade instrumental, alicerçados no conhecimento fragmentado e com foco, sempre, na objetividade prescritiva. Incentivando as discussões acerca da realidade que se esqueceu que é uma ficção, Nietzsche e Foucault foram os autores que mais teceram duras críticas à racionalidade moderna, para pensar em brechas, escapes voltados aos modos de subjetivação. A partir disso, podemos problematizar esse lugar contemporâneo que vem sendo dado à literatura como passatempo, o lugar da ficção como o outro do real da representação.

Indo um pouco além, o fictício nunca está nas coisas e nunca está nos homens, consistindo a ficção naquilo que mostra “o quanto é invisível a invisibilidade do visível” (FOUCAULT, 2001c, p. 225). Desse modo, se a ficção for tomada como invenção e não como oposição ao real da representação, poderia funcionar como afirmação, pois, Foucault rejeita a opção fácil de entender a ficção em oposição ao real e irreal, realidade e imaginário. Ele nos convoca a pensar no fictício como surgido de certo tipo de distância – distanciamento que remete ao que é interno à linguagem e que cria linguagens duplas. Porém, entendemos que a literatura não joga o jogo de uma duplicidade da linguagem, essa entendida como o que aponta à escolha entre uma e outra, mas que ela pode exercer a força de dobra, da linguagem sobre si mesma.

A literatura contemporânea, contudo, tem seu início como o duplo da linguagem: puxada para fora de si e que se apresenta para si mesma. Era preciso que a linguagem possuísse uma eficácia funcional também e que coincidisse com o projeto simples de se fazer ler a obra, de ser lida pelo que contasse, não “pela emoção, medo, terror, ou piedade que as palavras estavam encarregadas de transmitir, mas que deveriam comunicar por sua pura e simples transparência” (FOUCAULT, 2001a, p. 55).

Assim, entendemos que é importante retomar os estudos arqueológicos de Foucault, marcadamente produzidos na década de 60, podendo destacar a obra História da loucura na Idade Clássica (2003) em que a literatura vem atravessada pela loucura na discussão da transgressão, sendo que a loucura é entendida como “linguagem que transgride as leis da linguagem [...], rompe com os limites instaurados pela razão [...]” (MACHADO, 2000, p. 15). Por isso, também, é que consideramos a literatura podendo funcionar como uma dobra que transgride as leis e regras, em se tratando da constituição da docência quando se pensa nas práticas de formação docente. Ainda nesse mesmo movimento, podemos citar outras obras, tais como Nascimento da clínica (FOUCAULT, 2008) e as conferências Linguagem e literatura (2008), A linguagem ao infinito (2001a), Prefácio à transgressão (2001b) e Pensamento do exterior (2001c). Nessas obras, Foucault relaciona a literatura à loucura, à morte e à possibilidade de um pensamento fora da ordem do discurso, problematizando o discurso da simples comunicação quando se trata de literatura.

O autor discute, também, a linguagem e o desaparecimento do sujeito, problematizando a linguagem reflexiva, operando com conceitos como linguagem da ficção e pensamento do fora (o fora será posteriormente problematizado pelo próprio Foucault como um mito) (FOUCAULT, 2001c). Ainda na década de 60, podemos citar o livro As palavras e as coisas (2002b), em que o filósofo tenta dar conta da constituição histórica dos saberes sobre o homem na Modernidade, não remetendo a um sujeito ou a um objeto, mas elidindo esse sujeito e objeto. Outra obra dessa mesma década é Raymond Roussel (1999), na qual o autor faz, talvez, sua maior experimentação sobre literatura, jogando com a linguagem no que se refere às formas verbais. Ou seja, descreve procedimentos de maquinação, operando com a literatura como estratégia (1999), problematizando-a como esfera da arte ou expressão estética, para operá-la como forma de pensamento. Um processo fabulativo para multiplicar os sentidos, daí a potência de uma linguagem da ficção que dissimula ao invés de representar.

Ainda na década de 60, foi publicado o texto O belo perigo: conversa entre Michel Foucault e Claude Bonnefoy, 1968 (FOUCAULT, 2016a), sendo que, nessa compilação de textos e entrevistas, é problematizada a linguagem da explicação, descrevendo seus processos e relações com a escrita, trazendo a imagem da escrita como um bisturi que faz pequenas incisões, fazendo aparecer focos de lesão. Diz ele que “[...] escrever era fazer vento” (p. 39). E acrescenta, “[...] escreve-se para chegar ao limite da língua” (p. 65); [...] “escreve-se também para não ter mais rosto, para se fugir de si mesmo sob sua própria escrita” (p. 66). Desse modo, a escrita vai aparecer com essa função de incisão no corpo dos outros e com uma função de diagnóstico, o que vem na esteira da produção de Nietzsche, também, de fazer ver aquilo que está próximo demais de nós mesmos para que consigamos enxergar.

E, ainda, destaca-se a obra A grande estrangeira: sobre literatura (FOUCAULT, 2016b), sendo que, nessa compilação de textos proferidos na década de 60 e no início de 70, encontram-se discussões sobre a linguagem da loucura, linguagem e literatura e uma conferência sobre Sade, a partir dos quais Foucault nos aconselha a ouvir com ouvido fresco essa linguagem que fala de uma ausência. Assim, tomamos a potência desse pensamento para pensar na constituição das docências, quando a literatura é tomada, de certo modo, como estratégia que irá explodir a própria economia dos sentidos e a lógica da reflexão e da comunicação, abrindo à possibilidade de multiplicar as imagens, ampliar os limites.

Quanto à sua produção na década de 60, pode-se dizer que a literatura passou por quatro relações em Foucault, tematizadas por Alves (2013) da seguinte forma: literatura e transgressão, em que o sujeito é despedaçado no rompimento de novas linhas; literatura e loucura, entendendo as duas como experiências de transgressão, a primeira podendo se aproximar de um murmúrio, de uma não linguagem e a segunda é problematizada como a própria experiência da desrazão; literatura e morte, num pensamento de finitude ligado ao lirismo do séc. XIX; e literatura e linguagem, trazendo a potência do pensamento do fora. Não há, no entanto, como estabelecer um conceito fechado de literatura em Foucault. Ele apresenta e estuda todo esse esquema de relações, mas sua obra parece estar sempre em construção. Não há conceitos fixos, eles são dados nas diferentes escritas, porque ele, justamente, escrevia para tentar pensar e não explicar algo que já sabia de antemão.

Quando o filósofo toma a literatura pelo conceito de transgressão, aposta no movimento de arrastar os sentidos para além de exercícios prescritivos, porque o pensamento transgressor “não deve ser uma pura crítica, ele deve ir além das extremidades atuais do ser para acompanhar até o fim o movimento da ruptura” (SARDINHA, 2010, p. 185). A transgressão é um transpor das linhas do limite estabelecido que faz com que esse mesmo limite perceba uma ação positiva na sua transposição, na sua transgressão. Transgressão é um acontecimento e, por isso, ela não se opõe a nada, não procura abalar a solidez dos fundamentos, não é acusação nem denúncia, não é planejada, prescritiva ou repetitiva. Não é negativa.

Já na obra História da loucura na Idade Clássica, Foucault, examinando a linguagem dos loucos, aproxima essa linguagem da literatura, dizendo que “todo homem que fala faz uso, ao menos em segredo, da absoluta liberdade de ser louco [...]” (FOUCAULT, 2016b, p. 54). O filósofo aproxima a literatura da loucura porque acredita que “elas têm um horizonte em comum, uma espécie de linha de junção que é a linha dos signos” (p. 70). Não pretendemos adentrar, aqui, no desdobramento do signo, mas essa perspectiva faz com que se olhe de outra forma tanto para a loucura como para a literatura, tendo elas certa relação com a linguagem, um fator comum.

A literatura é língua que se dobra sobre si mesma, assim como a língua da loucura. Ela faz dobras e abre brechas sobre essa linguagem já naturalizada pela obediência à filosofia do sujeito e da consciência, às regras, às convenções. O literário, pois, pode operar como uma dobra na linguagem tida como verdade, é uma força dobrada sobre a própria força. Logo, “é a linguagem se colocando o mais longe possível dela mesma; e [...], nessa colocação ‘fora de si’, ela desvela seu ser próprio [...]” (FOUCAULT, 2001c, p. 221).

O filósofo designou como sendo linguagem tanto o murmúrio de tudo aquilo que é pronunciado, como também sendo esse tema transparente que faz com que sejamos compreendidos. Em suma, linguagem é, a um só tempo, as falas acumuladas na história, o próprio sistema da língua por meio do qual nos constituímos (2001b). A linguagem, pois, pode ser entendida como uma das formas pelas quais o ser humano é inserido e se insere no mundo, pela qual fala e é falado, produzido, transformado. Ao mesmo tempo que se prova do falar, se é provado no dizer. E, mais do que isso, existe uma produção discursiva nas práticas sociais mais cotidianas. Ou seja, a linguagem, em uma perspectiva foucaultiana, faz mais do que narrar o mundo, ela produz o mundo tal como nós o conhecemos (2002a). As categorias e os vocabulários que usamos para nomear as coisas fazem mais do que as representar, elas as constituem, nos constituem, nos produzem.

A partir do que escreveu Wittgenstein (HADOT, 2014), dando indícios do que seria a virada linguística, a linguagem começa a ser vista de outros modos, e as palavras não permanecem isoladas, mas se relacionam. Isso faz com que o mundo seja produzido ao invés de apenas nomeado, uma vez que “[...] a linguagem não pode ser considerada como um simples instrumento, utilitário ou decorativo, do pensamento [...], é a linguagem que ensina a definição do homem, não o contrário” (BARTHES, 1988, p. 31-32).

Disso se depreende que a linguagem está entremeada por diferentes relações de poder, que é operado, nessa perspectiva, como relação, exercício, estratégia, tática, força sobre outras forças que produzem sentidos. Essas relações, como define Foucault (2015), são relações dinâmicas e microfísicas que atravessam nossos fazeres mais cotidianos, nossos modos de pensar e como nos conduzir. O que existe são relações de poder e saber produzindo efeitos de verdade e modos de existência em práticas discursivas e não discursivas. A linguagem opera, então, através dessas relações, valorando valores e verdades que permeiam a condução das condutas, e isso leva a certo governamento de si e dos outros.

Dessa forma, a língua é aquilo que nos permite construir múltiplas possibilidades de enunciação, ao contrário do discurso que é sempre limitado e obedece a uma série de normativas, para existir enquanto tal. Isso não significa advogar por um uso absolutamente sem regras, mas de jogar o jogo com essas regras, produzindo pequenos escapes na produção de outros sentidos, para além dos usualmente operados, como uma possibilidade de viver de outros modos, mesmo que em brechas. É possível, no entanto, trapacear com a língua ou trapacear a língua. “Essa trapaça salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora [das relações] do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem, eu a chamo, quanto a mim: literatura” (BARTHES, 2013, p. 17). E para Foucault (2016a) a literatura também carrega o entendimento de ser um terceiro termo que transita entre a linguagem e a obra onde se situa a linguagem.

No entanto, como é que o texto literário pode fazer outra língua com a sua própria? Como pode funcionar não fora da linguagem, mas fora da ordem do discurso, fora de uma linguagem gregária, que visa apenas à comunicação? Uma das maneiras de se chegar a isso poderia ser quando o texto destrói, até o fim, sua própria categoria discursiva e investe contra estruturas canônicas da própria língua: o léxico, a sintaxe (BARTHES, 1996) por vias de uma transmutação que faria surgir novo estado filosófico. A partir disso, podemos citar autores como Manoel de Barros, quando diz que “distâncias somavam a gente para menos [...] e o rio encosta as margens em minha voz” (BARROS, 2010, p. 7); Kafka (2001, 2011) quando inventa uma metamorfose e uma artistagem da fome; Lispector (1998) quando cria um instante-semente; entre outros autores que trapaceiam a língua e criam escapes no mundo. Inventam mundos, criam tensões, fazem parar a falação, farejam a decomposição dos tempos, falam do insuportável, nos deixam nus.

Assim, está posto que essa abertura de brechas sobre o que é dado como verdade implica outros modos de pensar. Modos possíveis de atravessar as subjetivações e que priorizam o “abandonar as marcas que nos constituem, mesmo que por alguns instantes, permitir que outras forças venham a nos compor, desfazendo o ‘eu’ soberano e detentor da verdade que nos habita” (OLEGARIO; MUNHOZ, 2014, p. 157).

No deslocamento para seus estudos sobre a genealogia do poder, Foucault fortalece seu discurso demarcando-se fora do estruturalismo, referindo-se à literatura como “[...] um efeito do sistema do poder disciplinar que, desde o século XVII, obrigou o cotidiano a se colocar em discurso” (apud MACHADO, 2000, p. 26). Podemos citar alguns textos, tais como A vida dos homens infames (FOUCAULT, 2006) e novamente a Conferência sobre Sade (2016c), sendo que, nesse último, o filósofo coloca Sade no posto de “sargento do sexo” (MACHADO, 2000, p. 27), porque ele formulou um erotismo próprio de uma sociedade disciplinar a partir de seus escritos. Nessa perspectiva da genealogia do poder, Foucault discutiu algumas funções da escrita e da leitura fortemente operadas como instrumentos do exame e da técnica de confissão a partir da lógica da sociedade disciplinar.

Já no deslocamento para suas pesquisas sobre a genealogia da subjetivação, no final da década de 70 e no início da de 80, podemos citar o texto A escrita de si (FOUCAULT, 1992) e mesmo o Curso no Collège de France A hermenêutica do sujeito (2014), obras nas quais discorre sobre a leitura e a escrita como práticas do cuidado de si desde seus estudos na Antiguidade greco-romana, especialmente nos primeiros séculos da nossa era.

Percebemos, a partir desse levantamento, alguns deslocamentos nos estudos foucaultianos a respeito da potência da literatura; até porque não se trata de uma produção filosófica que se agarra a um pensamento único ou de inconsistência, mas justamente nos traz um pensamento em constante deslocamento. Assim, o filósofo e professor Foucault nos traz o surgimento da literatura no final do século XVIII e início do XIX, em um momento crítico, e todo um deslocamento para seu esmaecimento a partir de estudos sobre Sade, quando encerraria a literatura na lógica do poder disciplinar.

É possível perceber o próprio interesse na problemática do filósofo sendo modificado, o que não anula os textos elaborados até então. Aparentemente, essa posição poderia ter tirado a literatura de jogo. Todavia, com os estudos sequentes sobre a estética da existência, abrem-se algumas possibilidades de pensarmos a leitura, a escrita (e por que não também a literatura), a partir de outras composições conceituais, inclusive como técnicas possíveis do cuidado de si. Assim, os cadernos de notas recheados de poemas e aforismos, as correspondências aos demais em formato de cartas, fortalecem a perspectiva de que a escrita e a leitura funcionavam como operadoras de transformações em se tratando dos modos de vida (FOUCAULT, 2014). O autor irá trazer a leitura e a escrita como práticas possíveis do cuidado de si, que é o que nos interessa, também, para tomar a docência, não como um modo de aplicação anacrônico de um conceito, mas tomando como ferramental analítico para pensarmos o nosso tempo.

Literatura, práticas de si e docência

O cuidado de si nos escritos de Foucault dos anos 80 é operado na perspectiva de certa formação de si, de constituição de si em práticas exercitadas junto com um mestre. Foucault, quando da descrição das práticas por meio das quais nos relacionamos com nós mesmos na história do Ocidente, pesquisou desde a Antiguidade greco-romana até a Modernidade. Assim,

Foucault descreveu (2011) o cuidado de si em três momentos, não fragmentados, aqui podendo-se pensar muito mais em movimentos. Inicia com o momento denominado de socrático-platônico, sendo o seu aparecimento na história da filosofia com o Alcibíades de Platão (2011) e com a discussão do cuidado ainda submetido ao conhecimento de si e à preparação de uma vida futura, uma dada posição, ao governo da cidade, e ainda, ligado a uma deficiente pedagogia. O segundo momento foi denominado de helenístico-romano, o qual chamou de idade de ouro do cuidado de si, principalmente nos dois primeiros séculos da nossa era. E, ainda, um terceiro momento que Foucault (2011) chamou de cartesiano, em que o cuidado de si será denunciado como o que poderia levar a uma conduta individual e egoísta

(SCHULER, 2016, p. 142-143).

Dessa forma, tratou-se de um modo de pesquisa que investigou a relação do sujeito com a verdade, seja por reconhecimento, seja pela meditação, seja pela via método, a partir dos três momentos elencados pelo autor. No segundo momento descrito por Foucault (2014), operado nos primeiros séculos da nossa era na Antiguidade greco-romana, o cuidado de si é entendido como um modo de se conduzir, de se fortalecer para a lidação com o mundo e consigo mesmo; buscando escapar às diversas formas de dominação, em relação aos outros ou a nós mesmos. Portanto, não significava uma revelação da alma ou de uma verdade interiorizada, mas da criação de uma estilística da existência, o que exigiria escuta, atenção a si e ao mundo, leitura demorada e ruminada, escrita para si e para os outros como forma de constituir um corpo e não para repetir elementos mortos e apartados da vida (FOUCAULT, 2014). Assim, “o cuidado de si pressupunha uma atenção e, portanto, uma forma de olhar. Olhar para si mesmo o que permite uma volta do exterior para si e para o próprio pensamento” (MARCELO; FISCHER, 2014, p. 165).

A partir disso, ousamos pensar a literatura como uma prática de si, como uma prática possível de subjetivação em se tratando da formação de professores no presente. E não se trata de um anacronismo que busca aplicar um conceito operado há 2.000, mas de tomá-lo como ferramental para nos fazer pensar o que e como estamos nos tornando o que somos. Se esse tipo de cuidado nos pede vigilância sobre modos de dominação, quais são essas dominações que se desdobram sobre a atuação docente no presente? Como a literatura vem (ou não) atravessando a formação de professores? Como as práticas com literatura, na formação de professores, vêm operando certa forma de atenção, de escuta, de olhar para si, para o pensamento, para os outros, para o mundo de outros modos? Como poderia a literatura funcionar como um labor sobre si mesma em se tratando da docência? A partir dessas questões de inspiração arquegenealógica, argumentamos que a literatura poderia ser pensada como uma prática possível de subjetivação para fazer outras coisas conosco e com os outros, quando se trata de pessoas responsáveis também pela formação de outras pessoas.

Nessa perspectiva, a literatura não teria a função de acesso a uma verdade para o estabelecimento de um saber, não funcionaria como um manual que prescreve como ser professor ou como produzir bons alunos leitores, mas poderia funcionar como exercício de pensamento na problematização do que estamos nos tornando no presente, do que estamos fazendo com nossa vida e com a vida dos demais para além dos clichês e formas românticas e totalizadoras de toda ordem. Argumenta-se, pois, a possibilidade de se pensar a literatura em espaços de formação de professores pautados por uma justificativa estética da existência, por uma função etopoiética, expressão de Plutarco (FOUCAULT, 2014). Assim, trata-se de uma relação com o saber e com o texto que busca produzir um ethos, que implica um modo de existência; ou seja, trata-se da transformação do lógos em êthos (2014).

Entendemos que não existe sujeito pedagógico fora dos discursos pedagógicos. E, em tempos de utilitarismos e pragmatismos de toda ordem, em tempos de supervaloração da avaliação e rankings, qual é o lugar de uma justificativa estética na formação de professores? Qual é a política, de verdade, que regula os discursos que circulam na formação inicial e continuada dos professores? Poderia a literatura funcionar como um fósforo, um escape, uma dobra, uma microbrecha para pensarmos nas maneiras dadas e aceitas para a existência docente, buscando perceber as relações desses sujeitos consigo mesmos para produzir outros modos de subjetivação?

Essas questões falam de uma postura que quer problematizar uma cultura, rever suas concepções, provocar brechas e dobraduras nas naturalizações daquele que se ocupa e que está no discurso pedagógico. Se a docência não é uma essência, uma substância, uma forma idêntica a si mesma, podemos perguntar pelos modos de existência e pelas práticas por meio das quais podemos nos pensar para abrir uma possibilidade de criação de outras composições possíveis.

E, para tanto, a literatura também poderia funcionar como certa deformação, certo esquecimento e esvaziamento de tantas existências já lotadas demais em se tratando da docência, pois “professores e professoras são sujeitos divididos entre [...] demandas distintas, e, muitas vezes, contraditórias: burocráticas, morais, pessoais, profissionais, técnicas, etc.” (GARCIA et al., 2005, p. 55). Em vez de tentar enquadrar esse docente em determinado perfil ou de tentar dizer como deve agir, optamos por pensar na potência da literatura, tomando-a como uma prática específica de subjetivação, nos múltiplos espaços de formação, pelos quais passam os professores. “A idéia clássica de formação tem duas faces. Por um lado, formar significa dar forma e desenvolver um conjunto de disposições preexistentes. Por outro lado, significa levar o homem à con-formidade em relação a um modelo ideal que foi fixado e assegurado de antemão” (LARROSA, 2007, p. 135). Queremos escapar por entre esses dois modos.

Podemos tomar a formação por outra perspectiva, se entendemos a necessidade de certo cultivo de si, de certo labor sobre si mesmo nos espaços de formação de professores, seja inicial, continuada ou em exercício, quando, no contemporâneo, são pautadas por um tipo de relação com o saber cada vez mais veloz, da ordem da utilidade pragmática e marcado pelo farol da avaliação e das metodologias. Se nos relacionamos, com o texto literário como uma mercadoria a consumir, como uma verdade a ser alcançada via métodos seguros, como passatempo, podemos passar anos lendo e escrevendo, sem que nada nos atravesse, nos aconteça, nos comova. “Consumimos arte, mas a arte que consumimos nos atravessa sem deixar nenhuma marca em nós. Estamos informados, mas nada nos co-move no íntimo” (LARROSA, 2011, p. 132-133). Walter Benjamin (2012) também alerta à problemática da pobreza da experiência quando nosso patrimônio cultural não mais se vincula a nós, o que pode nos fazer pensar que a leitura, quando atravessada por sua potência de subjetivação, derruba o limite entre o que sabemos e o que somos. Até agora, o que somos e o que sabemos parecem estar colocados em degraus diferentes devido à razão instrumental, que separou, por muito tempo, o acesso à verdade e à constituição de si. A leitura, então, como formação de si, poderia funcionar como essa potência de subjetivação, não se reduzindo à aquisição de informações. Até porque, para formar leitores nas escolas, os professores necessitam também se deixar invadir pela literatura.

Assim, operar com certas literaturas na formação de professores, focando no que essa prática tem a ver com os modos de vida do leitor, pode nos remeter a pensar que não se trata apenas do que o professor sabe sobre ensino, didática, conteúdos específicos, avaliação, aprendizagem, mas também com aquilo que ele é, com o que está se tornando. Por isso, a investida na literatura, já que a característica desses textos é justamente

[...] que, apesar de serem humildes em sua pretensão cognoscitiva, apesar de não pretenderem a universalidade em seus enunciados [...], não perdem de vista a situação vital de seus destinatários, [...] não pretendem dizer a verdade sobre o que são as coisas, mas pretendem veicular um sentido para aquilo que nos passa

(LARROSA, 2007, p. 140).

Todavia, a Pedagogia nasce como ciência já tentando controlar a experiência da leitura, submetendo-a a uma causalidade técnica, convertendo-a em experimento, sequenciando-a como parte de um método, tornando a escrita como duplicação da leitura, a partir de modelos prescritivos de formação, preocupada com a formação instrumental de leitores. A Pedagogia viu a leitura como um remédio para muitos males e não demorou em construir bulas capazes de orientar, de forma estanque, suas medidas, precauções e modos de administração. Convertidas a meras questões metodológicas e avaliativas, tal como as vivemos no presente, a oralidade, a leitura e a escrita se restringem a textos e modos de se atuar que dificilmente provocam efeitos políticos, éticos e estéticos. Isso porque, quando operados como decifração da verdade, registro de um código ou entretenimento, os sentidos são levados em rédea curta, dados de antemão, como sendo levado ao seu destino natural pela coleira por seus proprietários. Mas Manoel de Barros (2007, p. 37) dizia: “Eu vim pra cá em coleira, meu amo.”

Por isso, em se tratando da formação de professores, poderíamos pensar na lidação com obras literárias, a qual não se limite a mostrar o código do texto como algo a ser analisado e esquadrinhado, mas como algo a ser escutado, ruminado, como diria Nietzsche (2006) quando se quer tomar a leitura como arte. Desse modo, o que de mais importante um professor pode transmitir para seus alunos não é, necessariamente, a significação do texto, mas um tipo de relação com o mesmo, “[...] uma atitude de escuta, uma inquietude, uma abertura. [...] A função do professor é manter viva a biblioteca como espaço de formação” (LARROSA, 2007, p. 147). Inquietar-se diante do texto, abandonar-se para conseguir topar com outros sentidos; interrogar-se sobre a potência de sua própria leitura; ler ruminando e com lentidão; saber silenciar a tagarelice da opinião; perguntar pelas forças que circulam no texto; aprender a ler, a escutar e a ver de outras maneiras; ser exigente consigo mesmo.

Daí que a produção foucaultiana, em se tratando de literatura, ajuda a pensar que não se trata de explicação, não se trata de um enfeite estético, não se trata de um pensamento reflexivo a partir de uma filosofia do sujeito e da consciência, não se trata de uma possibilidade de prever os efeitos. O que se quer pensar é na potência da literatura na formação de professores quando se parte da perspectiva do deslocamento do sujeito para práticas de subjetivação, pensando na possibilidade de criação de uma estética da existência, sempre em brechas. Justamente uma linguagem dobrada sobre si mesma, uma força dobrada sobre si mesma para a possibilidade de ficcionarmos e dispararmos uma multiplicidade de sentidos que podem abrir outras possibilidades à problematização docente. O estudo dos textos, de maneira a fazer aberturas, pode romper com a condução das condutas preestabelecidas e, de certa forma, previstas, fazendo agir outras forças e outras formas de relação com o saber, consigo e com o mundo, enfocando, por exemplo, a subjetivação docente. Então, “trata-se apenas de um modo diferente de relacionar-se com o saber, o que permite ao pensamento percorrer alguns caminhos que outros saberes [incluindo o científico] não podem percorrer por si [...]” (KOHAN, 2009, p. 26).

A literatura pode, pois, afetar os modos de vida daqueles que com ela operam. Contudo, não se trata de toda a literatura, de qualquer literatura, da literatura tomada no geral, de qualquer prática, mas daquelas que mexem nas nossas relações com o saber, com o pensamento, conosco mesmos, com os demais. De textos que apostam na perspectiva da fruição, muito mais do que no prazer que confirma e acomoda as identidades (BARTHES, 1996). Em se tratando da constituição da docência, estamos preocupados

[...] com a diversidade de estratégias e táticas de subjetivação que têm tido lugar e que têm se desenvolvido em diversas práticas, em diferentes momentos, e em relação a diferentes classificações e diferenciações de pessoas. O ser humano não é, aqui, uma entidade com uma história, mas o alvo de uma multiplicidade de tipos de trabalho, é mais como uma latitude ou uma longitude na qual diferentes vetores, de diferentes intensidades, se cortam

(ROSE, 2001, p. 49).

Por isso, a literatura foi, aqui, tomada por essa possibilidade de funcionar como uma prática de si na constituição docente, como aquela que convida para que se cultive, que se cuide de si mesmo, que se tenha atenção sobre si, justamente para se deslocar de si. Não se trata de uma postura romântica de acreditar que a literatura fará a grande revolução na formação de professores. Trata-se, muito mais, de uma postura micro-política de invenção de outras saídas possíveis.

Literatura-fósforo e docência

Pensar é perigoso porque “o pensamento seria de qualidade eminentemente combativa: um vetor de força que se faria contínuo no jogo do poder, produzindo transgressão do pensável como gesto incondicional de resistência” (RIBEIRO, 2011, p. 620). Pensar é problematizar a si e aos outros. Assim, podemos perguntar pelos processos de formação de professores quando pautados pelo exercício do pensamento ou pela perspectiva de reflexão. Reflexão é o que nos regula, nos controla, nos molda em condutas pré-prontas instituídas em nós pelos outros e por nós mesmos, pelo ambiente no qual vivemos, pelas condições dadas, e pensar é o que se dá no meio de todas essas forças.

A reflexão está para a convivência pacífica, para o controle dos instintos, para a obediência às regras. Ela mantém a sociedade em ordem, no entendimento do senso comum. Por isso, a literatura, atravessada na formação de professores, poderia ser composta não com a reflexão, mas com o exercício de vida e de pensamento. A literatura poderia funcionar como uma arte de burlar a língua utilizando-se dela mesma, fazendo outra língua dentro dela própria. Ela poderia funcionar como um fósforo4 aceso que mostra a escuridão ao nosso redor. A escuridão compreendida como aquilo que está para ser inventado ainda, como essa potência do vazio e não como algo da ordem que imprime à literatura uma ideia de detentora do saber ou de iluminação para suprimir certa ignorância. O fósforo é um objeto pequeno que se põe em chamas com um movimento simples e que ilumina por segundos apenas, mesmo assim ele consegue mostrar que existe uma escuridão pela qual é possível se arriscar. Na escuridão como outros modos possíveis de subjetivação, a literatura é essa fagulha que poderia colocar esse processo em movimento.

O docente pode ter sua constituição dada para além do que imortalizam os dicionários como sendo seu significado único. Professores são pessoas que se constituem de diferentes formas: formação inicial e continuada, experiências de sala de aula, observação de outros docentes em suas práticas, leituras, estudos, escritas, etc. Essas práticas obedecem a certas regras, produzindo verdades e modos de subjetivação, os quais irão regular a ação em sala de aula. E, microfisicamente, podem ser pensadas também como potentes práticas que podem ser compreendidas como prática de si, porque operam formas de viver. Assim, “o que a literatura faz é o mesmo que acender um fósforo, no campo, no meio da noite. Um fósforo não ilumina quase nada, mas nos permite ver quanta escuridão existe ao nosso redor” (FAULKNERapud ITURBE, 2012, p. 11).

Pensar a literatura como ferramental na constituição de uma problematização da docência, relacionada a uma linguagem que se dobra sobre si mesma e que provoca o pensamento, que se torna prática em um modo de viver, eis o que quisemos provocar. Considerando que a função da literatura dada pelo senso comum é a de comunicar, divertir, entreter, ensinar um conteúdo, estabelecer uma moral, isso sequestra outras possibilidades de pensamento. Quando a literatura é operada no jogo do verdadeiro e do falso, da revelação da verdade, do entretenimento rápido e voraz, dificilmente é tomada como uma potência de fazer o pensamento pensar em outras coisas.

Por isso, a aposta na literatura como fagulha, faísca, ficção de si na formação de professores. Ler e escrever não para acessar uma verdade dada, para passar o tempo ou para registrar um significado, mas para equipar a si mesmo, fortalecer a si mesmo. Práticas com literatura que atravessem esses professores no sentido de que se tomem como elemento de problematização, justamente para se deslocarem de si e para que possam fazer o mesmo exercício com os demais. Por isso, um mestre do cuidado, que convida o outro a também cuidar de si mesmo e não um mestre que irá suprir uma suposta ignorância que o outro teria. Assim sendo, opta-se pela pergunta pelos tipos de texto que os professores em formação estão lendo em seus efeitos de poder e subjetivação. Textos que não operem na perspectiva de tomar os professores como um objeto para um discurso verdadeiro, mas que transformem a verdade em um ethos. Textos com menos cheiro de ranço moralizador do “tu deves”, que nos problematizem na diminuição dos modos de dominação dos outros e de nós mesmos. Por isso, se trata de um deslocamento dos conteúdos do que os professores estão lendo e escrevendo, mas também dos modos como estão lidando com eles e para que.

Qual seria a potência da literatura na formação de professores quando entendemos que os modos de vida inspiram maneiras de pensar e escrever e que esses podem criam modos de existência? Qual a potência para se problematizar o senso comum, o bom-senso, a moral de rebanho, os clichês, os entupimentos, as opiniões e falações e o próprio pensamento? Como fazer existir o que ainda não existe quanto à docência?

Se o cuidado de si exigiria, aqui, vigilância e exercícios diários na constituição de certos critérios de estilo quanto à docência, quais seriam os perigos que se atravessam em se tratando da formação de professores aos quais precisamos estar atentos no presente? Como práticas com a literatura, na formação de professores, poderiam funcionar como fruição, como exercício de pensamento e de si mesmos nesse cultivo de si? O quanto isso exigiria de certo ócio cultivado na constituição de um corpo e não tanto entupimento de verdades a serem reproduzidas como elementos mortos?

Dizia Sêneca (FOUCAULT, 2014) que úteis são os saberes que permitem transformar a existência e aqueles que nos protegem da stultitia, essa agitação permanente que não permite que nada se passe conosco. Daí que talvez a pergunta não seja o que o texto literário quer dizer na formação de professores, mas ao que leva a pensar e a viver, podendo ser operado como um importante intercessor de princípios de ação.

3Alexander Gotlieb Baumgarten foi um filósofo alemão que criou, no séc. XVIII, a Filosofia da Estética, entrelaçando arte, beleza e sensibilidade humana (CARVALHO, 2010).

4Inspirado na obra Phosphorus da artista plástica Elida Tessler participou da Exposição de título 365 realizada de 5 de outubro a 7 de novembro de 2015, no espaço Bolsa de Arte (Porto Alegre – RS). “Elida Tessler tem investigado, ao longo de sua trajetória, a relação entre arte e literatura. Convidada para realizar um livro/objeto para o Clube de Colecionadores de Gravuras do MAM – SP, a artista desenvolveu o projeto Phosphoros a partir do romance Fahrenheit 451, escrito pelo norte-americano Ray Bradbury e publicado, pela primeira vez, em 1953. O livro de referência para a gravura de Tessler é uma ficção científica distópica passada num futuro onde todos os livros e qualquer possibilidade de pensamento crítico são proibidos. O título da ficção é uma referência ao grau 451, a temperatura da queima de papel na escala Fahrenheit. Em 1966, Fahrenheit 451 se tornou um filme, dirigido por François Truffaut [...]. Ao longo do processo de produção da obra, descobriu-se uma série de restrições para se manipular a matéria-prima do trabalho e também uma lei que proíbe museus de abrigarem pólvora em sua reserva técnica. Por isso, Phosphoros, literalmente, não cabe dentro da instituição. Trata-se de uma obra de arte pequena fisicamente, mas que representa uma grande ameaça” – trechos do texto do professor e crítico de arte Cauê Alves, que fez o convite à artista para a construção de tal obra de arte.

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Recebido: 25 de Setembro de 2019; Aceito: 12 de Maio de 2020

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