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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.25  Caxias do Sul  2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v25.e020025 

ARTIGOS

Educação continuada de professores: diálogos emergentes a partir da visão de Gert Biesta

Teacher’s lifelong learning: emerging dialogies from Gert Biesta’s philosophical views

Educación Continuada de profesores: diálogos emergentes del visión de Gert Biesta

Alexandre Anselmo Guilherme* 
http://orcid.org/0000-0003-4578-1894

Bettina Steren dos Santos** 
http://orcid.org/0000-0002-5595-232X

Carla Spagnolo*** 
http://orcid.org/0000-0003-3798-2995

*Possui graduação MA Honours em Filosofia - University of Edinburgh (2001), mestrado MLitt em Filosofia - University of St Andrews (2002), doutorado PhD em Filosofia - Durham University (2008), e pós-doutorado pelo Institute of Advanced Studies in Humanity, University of Edinburgh (2010). Trabalhou nas universidades de Edinburgh, Durham e Liverpool Hope University. E-mail: alexandre.guilherme@pucrs.br

**Doutora em Psicologia Evolutiva e da Educação, pela Universidade de Barcelona. Coordenadora do PROMOT. E-mail: bettina@pucrs.br

***Doutorado em Educação – Pucrs. Integrante do Grupo de Pesquisa PROMOT – Pucrs. Coordenadora Pedagógica – Colégio Marista Rosário. E-mail: carlaspagnolo1@gmail.com


Resumo

A Educação Continuada de professores é reconhecida como indispensável e fundamental para a qualificação dos processos de ensino e aprendizagem. Para tanto, neste estudo, levaremos em consideração alguns aspectos dessa temática. Em primeiro lugar, precisamos ter conhecimento das diretrizes que tratam da Educação Continuada de professores, ou seja, compreender de onde viemos e qual é a proposta das legislações nacional e internacional. Em segundo lugar, explanaremos e discutiremos conceitos teóricos que tratam da temática, em especial a visão de Gert Biesta, o importante filósofo da educação. Finalmente, com base nos dois itens citados, entrelaçaremos considerações e indagações para uma Educação Continuada que possa fazer diferença no cotidiano dos professores. Portanto, o principal foco desta pesquisa é analisar, criticamente, essa educação dos professores, à luz das concepções propostas por Gert Biesta.

Palavras-chave Educação Continuada; Professores; Diálogo; Gert Biesta

Abstract

It is recognized that the teacher’s lifelong education is something essential and fundamental for the improvement of teaching and learning processes in education. Following this, this article considers some aspects related to this subject. Firstly, we discuss official documents dealing with the teacher’s lifelong education; that is, we aim to understand the historical development of this topic and what has been proposed by national and international laws. Secondly, we explain and discuss some theoretical views related to the theme of teacher’s lifelong learning, especially those put forward by Gert Biesta, the important philosopher of education. Finally, following from what we discussed before, we put forward some suggestions for a teacher’s lifelong education that makes a difference in their day-to-day activities. Therefore, the main focus of this article is to analyse critically the topic of teacher’s lifelong education in the light of Gert Biesta’s philosophical views.

Keywords Lifelong Education; Teachers; Dialogue; Gert Biesta

Resumen

La Educación Permanente de los maestros es reconocida como un elemento esencial y fundamental para la cualificación de los procesos de enseñanza y aprendizaje. Por lo tanto, en este estudio vamos a considerar algunos aspectos de este tema. En primer lugar, tenemos que ser conscientes de las directrices acerca de la Educación Permanente de los profesores, o entender de dónde venimos y lo que la propuesta de la legislación nacional y internacional. En segundo lugar, explanaremos y analizaremos los conceptos teóricos que tratan el tema, sobre todo a partir del punto de vista de Gert Biesta, el filósofo importante de la educación. Por último, sobre la base de los dos elementos mencionados que puede hacer una diferencia en la vida cotidiana de los maestros. Por lo tanto, el objetivo principal de esta investigación es examinar criticamente la Formación Permanente de los profesores a la luz de los propuestos por Gert Biesta.

Palabras clave Educación Permanente; Profesores; Diálogo; Gert Biesta.

Introdução

O recente documento “Rethinking education: towards a global common good?” da Unesco (2015) aponta as dificuldades enfrentadas por professores no mundo inteiro. Tanto no Hemisfério Norte como no Sul, existe uma preocupação com a desqualificação docente, que vem acontecendo por inúmeros fatores: financeiros, autonomia reduzida, avaliações padronizadas, diferentes realidades sociais que demandam novas atitudes, etc. Percebe-se que a Formação Continuada de professores é uma temática fundamental para a qualificação do sistema educacional. A Unesco afirma:

Se a educação deve contribuir para a plena realização do indivíduo e um novo modelo de desenvolvimento, professores e outros educadores devem continuar sendo atores-chave. No entanto, embora o discurso dominante articula repetidamente a importância dos professores, uma série de tendências apontam para um processo de desprofissionalização de professores, tanto no Norte como no Sul global. Essas tendências incluem o influxo de professores não qualificados, em parte em resposta à falta de professores, mas também por razões financeiras; a precarização da profissão de professor através de contratos casuais, particularmente no ensino superior, onde a dependência de adjuntos para atender à carga de trabalho de ensino está aumentando; a autonomia reduzida dos professores; a erosão da qualidade da profissão docente como resultado de testes padronizados e avaliações dos professores; a invasão, dentro das instituições educacionais, de técnicas de gestão privada; e lacunas entre a remuneração dos professores e de profissionais de outros setores em muitos países

(2015, p. 54, tradução nossa).

O referido documento (UNESCO, 2015) enfatiza que é preciso repensar os conteúdos e os objetivos da educação de professores para que se possa dinamizar o processo de aprendizagem dos estudantes, além de ampliar o entendimento da diversidade, da inclusão, aspectos, esses, primordiais para desenvolver as competências necessárias para ensinar na contemporaneidade. Assim, os professores são fundamentais no que diz respeito ao encorajamento de um ambiente de respeito e segurança nas escolas, a promoção da autoestima e autonomia dos estudantes, ao mesmo tempo que fazem uso de uma variedade de estratégias didáticas e pedagógicas.

Essas afirmações corroboram a tese de que a sociedade contemporânea demanda, cada vez mais, profissionais capazes de lidar com os desafios cotidianos e dar conta das distintas variáveis que interferem na aprendizagem humana, em consonância com os saberes das mais diversas áreas do conhecimento. Ao mesmo tempo, podemos questionar: De que maneira os professores, independentemente da modalidade de ensino em que atua, pode conciliar essas demandas? O que é verdadeiramente necessário para ensinar e aprender? Como qualificar as práticas pedagógicas docentes?

Evidentemente que a educação e as práticas dos professores, atualmente, não podem ser as mesmas de épocas passadas. Novas ações são necessárias, e, de fato, há uma urgência de propostas pedagógicas que, significativamente, façam a diferença na prática cotidiana. Assim, entendemos que a Educação Continuada de professores tem função central para reestruturar as bases que fundamentam as ações dos ambientes educativos, possibilitando reflexões sobre a própria prática tanto em dimensões individuais quanto coletivas, no currículo, nos processos de aprendizagem, nas metodologias e em outros temas que permeiam o desenvolvimento profissional.

Nóvoa (1992, 2007), desde os anos 90, traz subsídios teóricos sobre a educação como um trabalho de reflexividade crítica sobre as práticas e de (re)construção permanente de uma identidade pessoal. Por isso, segundo o autor, é tão importante investir na pessoa e dar um preceito ao saber da experiência. Behrens (2007) vai além e argumenta em favor de um paradigma inovador, pois propõe uma visão crítica, reflexiva e transformadora na educação, a qual exige interconexões de múltiplas abordagens, visões e abrangências. Busca a superação da linearidade e atende a uma nova concepção que tem como eixo articulador a totalidade e a interdisciplinaridade. “A educação de docentes para atuar no novo paradigma requer processos de qualificação contínua e que abordem uma visão crítica, reflexiva e transformadora” (BEHRENS, 2007, p. 445). Outro autor que corrobora esse entendimento sobre a importância da fomentação da habilidade crítica na educação dos professores é Gur-Ze’ev (2010) importante filósofo da educação israelense, que argumenta em prol do professor-improvisador, crítico e encorajador do criticismo. Vale ressaltar, aqui, já que o termo improvisador pode levar a um mau entendimento, que o professor é improvisador no sentido de ter uma racionalidade crítica desenvolvida e, assim, ser capaz de lidar com as mais diversas situações e temas com seus estudantes; ele não é improvisador no sentido de estar despreparado e de ser inapto e incompetente.

Assim sendo, repensar a Educação Continuada de professores torna-se indispensável e fundamental para a qualificação dos processos de ensino e aprendizagem. Para tanto, neste estudo, levaremos em consideração alguns aspectos: em primeiro lugar, ter conhecimento das diretrizes que tratam da Educação Continuada de professores, ou seja, compreender de onde viemos e qual é a proposta das legislações nacional e internacional. Em segundo lugar, explanar e discutir conceitos teóricos que tratam da temática, em especial, da visão de Gert Biesta, importante filósofo da educação, e, em terceiro lugar, com base nos dois itens citados, entrelaçar considerações e indagações para uma Educação Continuada que possa fazer a diferença no cotidiano dos professores, e, consequentemente, na vida dos estudantes.

Portanto, o principal foco desta pesquisa é analisar, criticamente, a Educação Continuada dos professores, à luz das concepções propostas por Gert Biesta. Para solidificar essa discussão, buscamos imergir nas teorias desenvolvidas pelo autor e promover diálogos com as diretrizes vigentes para essa educação de professores. Independentemente da nomenclatura utilizada, devido às distintas maneiras de se apropriar do termo para tratar do desenvolvimento profissional dos professores, ressaltamos que nossa postura epistemológica segue a gênese de compreender o desenvolvimento docente para além de aprendizagens restritivas e inexoráveis, mas, ao contrário, que seja disruptiva e engajada ao seu ser, fazer e estar-no-mundo neste estudo.

Aspectos da legislação brasileira sobre a Educação Continuada de professores

A formação de professores pode ser entendida como o processo pelo qual os futuros professores, ou professores em exercício, se preparam para desenvolver a função de docência (CUNHA, 2008). Pode ser considerada, ainda, como um conjunto de medidas que objetivam auxiliar na contínua melhoria da atividade profissional, articulando conhecimentos, tarefas e métodos, com o objetivo de promover os processos de ensino e aprendizagem nos âmbitos pessoal e profissional. No Brasil, percebe-se grande ascensão das redes de ensino e de cursos oferecidos para atualização profissional em diferentes áreas do conhecimento em curto espaço de tempo, bem como a ampliação da necessidade de profissionais para atuarem nesses cursos. No entanto, a formação desses não mudou consideravelmente a ponto de atender às necessidades dos estudantes e dos próprios professores.

Os processos de mudanças e reformas educacionais, presentes nos panoramas nacional e internacional, principalmente nos anos 90, têm destacado o papel dos professores como agentes fundamentais na materialização das políticas educacionais. A Educação Continuada dos docentes, nessa perspectiva, é considerada um dos pontos significativos para o êxito das mudanças. De certa forma, essa temática tem sido problematizada em diferentes âmbitos e realidades, causando muitas contradições e, certamente, ainda está distante de alcançar objetivos na prática propriamente dita. Por essas razões, tem se constituído um grande desafio para as políticas públicas educacionais em nosso país: elaborar diretrizes que atendam às necessidades peculiares de cada realidade para potencializar o desenvolvimento profissional dos professores. As dificuldades para atender a essas demandas locais nos direcionam a determinações internacionais de toda ordem. Fato como esse tem levado professores e pesquisadores do Brasil a preocuparem-se com a educação e o desenvolvimento profissional a partir do contexto brasileiro, com suas demandas específicas.

De acordo com Gatti e Barreto (2009), a preocupação com a educação de professores iniciou no século XIX, tendo maior ênfase no século XX, em decorrência das exigências sociais e econômicas. Nesse período, há uma crescente demanda de maior escolarização entre os trabalhadores, pelo início da progressão da industrialização no País. Sendo assim, nos anos 30, a partir da educação de bacharéis, acrescenta-se um ano com disciplinas da área da educação para obtenção da licenciatura (GATTI; BARRETO, 2009).

Ressaltamos que estudos efetivos com a educação de professores são relativamente recentes, sendo as décadas de 60 e 70 o período que favoreceu novas discussões. Tais estudos deram-se pela necessidade de aperfeiçoamento, tendo em vista a massificação escolar e, alguns anos mais tarde, a obrigatoriedade para a Educação Básica. Diante das diversidades que foram sendo incluídas nas escolas, nesse mesmo período, há uma grande demanda por novos saberes. Nóvoa (1992, 2007) afirma que esse é um momento difícil para a carreira docente, tendo em vista as desigualdades sociais e a desvalorização da profissão docente. Apesar das dificuldades vivenciadas, a busca pela educação torna-se necessária para o desenvolvimento de uma nação.

A partir dos anos 90, percebe-se maior ênfase nas políticas educacionais em relação ao desenvolvimento profissional do professor, que passou por distintas etapas: a criação das escolas normais, que, posteriormente, denominaram-se de “Magistério”, para atender às séries iniciais; e as licenciaturas em nível superior, para atender às séries finais do Ensino Fundamental e o Ensino Médio. Porém, foi a partir da Lei n. 9.394/1996, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) que se editaram novas configurações educativas de docentes, seguindo parâmetros de análises mais profundas para atender à nova demanda do sistema educacional.

Alguns arts. da LDB (61, 62, 63) esclarecem que a educação dos profissionais da educação terá como fundamento a relação e o diálogo entre a teoria e a prática e estipula que a educação de docentes para atuar na Educação Básica deve ser em nível superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores de educação.

A legislação brasileira para a educação de professores também dispõe de outros documentos, que incrementam e fornecem distintos suportes à LDB: as Diretrizes Nacionais para a Educação de Professores para a Educação Básica, e o Plano Nacional de Educação, que é criado e revisado a cada dez anos, com o intuito de traçar metas para a educação brasileira.

O Plano Nacional de Educação (2014), originalmente, possui 20 metas. Para cada uma das metas, estratégias são planejadas, de modo que as metas possam ser consolidadas. Sobre a Educação Continuada de professores, encontramos, na meta 16, subsídios que referenciam as intenções políticas para os próximos dez anos, a contar de 2014:

Meta 16: educar, em nível de pós-graduação, 50% (cinquenta por cento) dos professores da educação básica, até o último ano de vigência deste PNE, e garantir a todos(as) os(as) profissionais da educação básica a educação continuada em sua área de atuação, considerando as necessidades, demandas e contextualizações dos sistemas de ensino

(BRASIL, 2014).

Ainda: as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para a formação de professores (2019), art. 6º, política de formação de professores para a Educação Básica, em consonância com os marcos regulatórios, em especial com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que tem como princípios relevantes a formação continuada, que deve ser entendida como o componente essencial para a profissionalização docente, devendo integrar-se ao cotidiano da instituição educativa e considerar os diferentes saberes e a experiência docente, bem como o projeto pedagógico da instituição de Educação Básica na qual atua o docente.

Dentre as diversas estratégias elaboradas para essa meta, destacamos: a realização, em regime de colaboração, de um planejamento estratégico para dimensionamento da demanda por Educação Continuada; a consolidação da política nacional de educação de professores e professoras da Educação Básica, definindo diretrizes nacionais, áreas prioritárias, instituições educadoras e processos de certificação das atividades educativas; ampliação e consolidação do portal eletrônico para subsidiar a atuação dos professores da Educação Básica, disponibilizando, gratuitamente, material didático e pedagógico suplementar, inclusive aquele com formato acessível; ampliação de oferta de bolsas de estudo para pós-graduação dos professores e demais profissionais da Educação Básica.

Não restam dúvidas de que existam documentos oficiais que fomentam as políticas de Educação Continuada de professores. Entretanto, apesar da evolução obtida em muitos aspectos, no decorrer de algumas décadas, as contradições entre o conteúdo das legislações e a realidade vigente são visíveis. Outro ponto a ser considerado é a desmistificação de tempos e espaços iguais para todas as instituições brasileiras. Acreditamos na eficácia de uma base comum, mas que não descaracterize as peculiaridades de cada região. Por isso, parece ser coerente que sejam estabelecidas diretrizes com características originais, autônomas e construídas em colaboração com os envolvidos.

No que diz respeito às modalidades de formação continuada desenvolvidas no Brasil, pode-se concluir que as possibilidades são diversificadas. É um movimento crescente, primeiro pela necessidade de qualificar, cada vez mais, as práticas docentes; segundo, por ser uma maneira de preencher algumas lacunas que o processo de formação inicial pode ter deixado, pois, segundo a análise de Gatti (2008, p. 58), essas constantes e abrangentes iniciativas de formação continuada de professores no Brasil “respondem a uma situação particular nossa, pela precariedade em que se encontram os cursos de formação de professores em nível de graduação”.

Sobre isso, Gatti e Barreto (2009) chamam a atenção para a limitação dos programas de formação continuada de professores, centralizados apenas nos aspectos cognitivo-individuais. Tais programas desconsideram os professores como seres essencialmente sociais, imersos em relações grupais das quais derivam valores, atitudes que dão sentido às suas opções pessoais e profissionais e servem de referência às suas ações.

Nesse sentido, os processos de Educação Continuada, que buscam modificar conceitos, atitudes e práticas, têm a premissa de levar em consideração o que pensam e sabem os professores e as influências do ambiente sociocultural em que vivem e trabalham. O desafio para a educação dos professores, no século XXI, é romper com a educação passiva e centrada somente na racionalidade e na reprodução de conteúdos. Mais do que receitas prontas, os docentes precisam desenvolver a capacidade de investigação, a autoria, a curiosidade e o senso crítico.

Para Gatti e Barreto (2009) os desafios do momento exigem uma prática docente mais contextualizada e autônoma, na busca de qualidade educacional que legitime os objetivos sociais. O desafio está em tecer compromissos que incorporem elementos práticos e teóricos, aproximando as realidades entre escola e sociedade. Com isso, faz-se necessário pensar e planejar a formação continuada de professores, a qual incentive a participação efetiva dos professores como protagonistas, e não, como meros espectadores e que proporcione espaços de diálogo, pesquisa e reflexão acerca das necessidades vigentes e da própria aprendizagem.

Assim sendo, Day (2005), a partir da ideia de aprendizagem ao longo da vida (lifelong learning and education), defende a Educação Continuada de docentes como uma forma de escolha dos próprios professores, sendo um pré-requisito a colaboração ativa entre colegas. Essa perspectiva vai ao encontro da visão de complexidade e paradigma inovador, que, segundo Behrenz (2007), propõe a rearticulação entre as partes, o que provoca a necessidade de interconexões e interdependência de saberes. É mais provável que se mantenham os efeitos da educação continuada quando os professores podem adaptar-se à sua realidade e receber o apoio da gestão da escola.

A ideia de Educação Continuada (Lifelong Learning and Education) não é nova, já que pode ser observada até em A República, de Platão, em que o mesmo sugere o estudo e a aprendizagem através da vida. Entretanto, vale notar que o conceito de Educação Continuada parece ter sido usado, pela primeira vez, no livro Lifelong Education, de Basil Yeaxlee, em 1929. De maneira quase profética, Yeaxlee caracteriza a educação continuada e sugere:

Com o desenvolvimento descobrimos cada vez mais a necessidade da educação de adultos. Esta só será realmente efetiva quando uma melhor preparação ocorrer na adolescência. Por outro lado, não conseguiremos ter um sistema de educação fundamental até que os adultos de nossa sociedade, pela Educação Continuada, se deem conta de quão perigoso é o descaso com a educação dos mais jovens. Mas a educação de adultos, quando interpretada corretamente, é inseparável da vida, é como o alimento e o bem estar físico. A vida, para ser vívida, intensa e criativa, precisa de reflexões constantes das experiências, para que ações sejam guiadas pela sabedoria [...], mesclando assim trabalho e prazer […].

(1929, p. 28, tradução livre).

Assim, argumentamos que a Educação Continuada tem de estar intrinsecamente conectada com a educação de professores como argumenta Day (2005). Segundo Hernández-Hernández (2014), a aprendizagem dos professores é realizada principalmente em práticas colaborativas no ambiente de trabalho. A ênfase está no caráter relacional do conhecimento e nas experiências das pessoas envolvidas. Ao participar de processos de formação continuada, com o objetivo de colaboração entre os pares, os professores constroem seu próprio conhecimento e a compreensão da própria prática. Esse processo converte-se em um aspecto relevante para narrativas e reflexões sobre fatos e tensões cotidianos tanto da sala de aula como do ambiente educacional como um todo.

As concepções de Gert Biesta sobre a Educação Continuada de professores

Gert Biesta pode ser considerado um dos mais importantes filósofos da educação da atualidade no mundo anglo-saxônico. Nos últimos anos, Biesta aprofundou seus estudos sobre o papel do professor (BIESTA 2004, 2006, 2010, 2012, 2013b). Ele identificou e problematizou uma concepção equivocada baseada na pespectiva construtivista que argumentou, durante muito tempo, que o professor deveria ser um facilitador do processo de aprendizagem. Entretanto e, epistemologicamente falando, o construtivismo, como uma teoria que apresenta o ser humano como ativo no processo de desenvolvimento cognitivo, não atribui ao professor o papel de facilitador, muito pelo contrário, o professor deve participar ativamente da aprendizagem dos estudantes através da problematização, provocação e mediação. A crítica de Biesta tem consonância com a de Meirieu (1995, p. 1), que comentou, já nos anos 90, que “assistimos, estranhamente, a um ato de ‘refundação’ da identidade professional dos professores porque nos voltamos ‘às aprendizagens fundamentais’ e a priorização dos conteúdos disciplinares, com o detrimento de toda a dimensão pedagógica da profissão”.

Os processos educacionais são mais amplos, envolvendo tanto o aprender como o ensinar, assim como todas as particularidades das pessoas. A aprendizagem, apesar de parecer algo individual, recebe grande influência do meio externo. Assim, é inquestionável o papel do professor nesse processo na Educação Formal, na medida em que ele tem o domínio do planejamento cotidiano das práticas educativas e possui determinados conhecimentos que faltam ao estudante. Então, dentro da Educação Formal, aprender é, na maioria das vezes, aprender algo, para algum propósito, de alguém, tanto do professor quanto de seus pares. Assim, Biesta (2012a, p. 36, tradução nossa) comenta: “A maneira mais rápida de se explicar a importância do papel do professor é apontar que a educação não […] significa que os estudantes meramente aprendem, mas que aprendem algo, que aprendem com um propósito, e que aprendem de alguém”.

Biesta é crítico dos termos aprendizagem (learning) e aluno (learner), preferindo os termos educação (education) e estudante (student). Isso porque o autor entende que o campo da educação vivenciou uma mudança paradigmática no sentido kuhniano, do paradigma da instrução para o paradigma da aprendizagem (BARR; TAGG, 1995; BIESTA, 2012a). Porém, o que está sendo dito é que o paradigma da instrução estava focado na transmissão de conteúdos do professor para o estudante, e que, no paradigma da aprendizagem, há um foco em como o professor pode ajudar o estudante. Biesta (2013b) comenta que, nesse paradigma da aprendizagem, se concebe a ideia de que o professor precisa facilitar a aprendizagem dos alunos, a partir das concepções dos mesmos. Essa última concepção também é insuficiente para explicar um processo tão complexo como o educacional, no qual, tanto o estudante quanto o docente participam de forma ativa, assim como a ideia de facilitar a aprendizagem.

O papel do professor é muito maior, na medida em que atua, problematiza e organiza o processo de aprendizagem. Isso se contrapõe à ideia de que o professor passa conteúdos pela ação de ensinar e por meio de práticas diretivas. Essa mudança paradigmática não ocorreu por acaso e se deve, principalmente, à exaustão de um tipo de educação baseada no autoritarismo, no entendimento que o professor é autoridade absoluta e possui todo conhecimento em sala de aula e, no caso do aluno, é um receptáculo vazio a ser preenchido, o que foi alvo de críticas por parte de vários autores (BECKER, 2001; FREIRE, 1968, 2005).

Biesta (2013b) entende que essa mudança paradigmática também se deve ao desenvolvimento de teorias construtivistas no campo da psicologia, que erodiram paulatinamente o papel do professor, dando maior importância às atividades dos alunos, atividades que são comumente chamadas de “aprendizagens”. Como dito, no nosso entender, esse criticismo se aplica a um uso errôneo e superficial dessas teorias no campo da educação. As críticas levantadas por Biesta, em seus escritos, não se aplicam, necessária e diretamente às teorias, mas às suas aplicações no campo da educação.

César Coll (1994), um dos grandes estudiosos do construtivismo em sala de aula, justifica nosso entendimento e também aponta que existe uma desconfiança e um cansaço em relação ao construtivismo. Essa situação não se deve ao fato de não ser assumido o construtivismo como marco teórico de referência, mas à diversidade de enfoques e propostas que se autodefinem como construtivistas, fazendo com que assuma certa função de curinga, dentro do qual cabe quase tudo. Pensando nisso, acreditamos que deve ficar bem claro que existe uma diferença entre a teoria construtivista e as diferentes metodologias utilizadas para alcançar essa construção. Conhecemos a realidade através de modelos que construímos para explicá-la, e ela será sempre susceptível de melhora ou de modificação. Portanto, na teoria construtivista, o conhecimento deriva da interação do sujeito com o outro e com o mundo. Como Meirieu (2011, p. 10, tradução nossa) comenta: “Todas as crianças precisam estudar, mas o fundamental não é o aprender, e sim estudar em conjunto na escola.”

A percepção do professor como facilitador, tão criticado por Biesta (2004, 2006, 2010, 2012, 2013b) e pela teoria construtivista, não é filosoficamente nova, já que está presente nos escritos de Platão (2001). Por exemplo, no diálogo “Teeteto”, Sócrates comenta que seu papel é similar ao das parteiras:

A minha arte obstétrica tem atribuições iguais às das parteiras, com a diferença de eu não partejar mulher, porém homens, e de acompanhar as almas, não os corpos, em seu trabalho de parto. Porém a grande superioridade da minha arte consiste na faculdade de conhecer de pronto se o que a alma dos jovens está na iminência de conceber é alguma quimera e falsidade ou fruto legítimo e verdadeiro. Neste particular, sou igualzinho às parteiras: estéril em matéria de sabedoria, tendo grande fundo de verdade a censura que muitos me assacam, de só interrogar os outros, sem nunca apresentar opinião pessoal sobre nenhum assunto, por carecer, justamente, de sabedoria

(PLATÃO, 2001, 151 bc).

Todd (2003, p. 23 apudBiesta, 2013b, p. 453, tradução nossa) comenta que Sócrates, como professor facilitador e parteiro, se torna parecido com o assassino perfeito porque “[...] dá a aparência que o ato de ensinar não ocorreu, deixando a cena sem deixar traços, e que, ademais, ainda está convencido de sua própria inocência”. Assim, sugerir que o professor é um elemento não importante na situação, que o professor está ali apenas ajudando o próprio aluno a conceber seu conhecimento é uma má-representação do que realmente ocorre na realidade, diminuindo a importância do papel do professor no processo de educação. Daí a preocupação de Biesta sobre esse fenômeno educacional em seus escritos.

Assim, defendemos a importância do papel do professor, na medida em que seu fazer pedagógico possibilita experiências, para que o aluno aprenda com o outro, seja na interação com o próprio professor, seja na com colegas. No cenário contemporâneo, não se admitem mais práticas pedagógicas que elevem a competência do professor pelo autoritarismo e hierarquias do ensino. Partindo dessa ideia, tanto os professores como os alunos, ambos sujeitos de sua aprendizagem, passam por um processo de desenvolvimento cognitivo cujo papel, como o do meio em que se encontram inseridos, são fundamentais. A construção de conhecimento é um assunto muito discutido e trabalhado nos últimos tempos, e várias são as explicações realizadas por especialistas na área (VYGOTSKY, 1995, BRUNER, 1991).

A teoria sociocultural de Vygotsky e Bruner considera o sujeito que aprende um ser social. Pela educação, o sujeito recebe modelos e suportes cognitivos que o ajudam a adquirir determinados conhecimentos. O processo de ensino e aprendizagem, visto desde essa perspectiva, utiliza um instrumento que desempenha um papel fundamental: a linguagem. Essa apresenta duas funções: uma comunicativa e outra cognitiva. Comunicativa porque, através da linguagem, quem ensina e quem aprende trocam, entre si, seus pensamentos. Cognitiva porque é o veículo pelo qual a criança internaliza os conceitos de sua cultura. Esse modelo teórico é importante na medida em que outorga um papel central aos aspectos sociais da aprendizagem (LACASA, 1994). Seguindo essa perspectiva, para entender os aspectos individuais da construção do conhecimento, é fundamental compreender as relações sociais nas quais o indivíduo se desenvolve. Vygotsky considera que a passagem do social para o individual implica uma transformação. Para explicar tal processo de mudanças, elaborou os conceitos de “Internalização”, “Zona de Desenvolvimento Proximal” [Zone of Proximal Development] (ZPD) e “Mediação do Outro Mais Conhecedor [More Knowlegdable Other] (MKO)” (VYGOTSKY, 1995).

César Coll (1990), grande teórico do construtivismo já citado, ajuda a entender o processo de ensino e aprendizagem sob a ótica da teoria sociocultural. Ele afirma que a concepção construtivista organiza-se em torno de três ideias fundamentais: a primeira é: o aluno é o responsável último do seu próprio processo de aprendizagem. É ele quem constrói seu conhecimento, e ninguém pode substituí-lo nessa tarefa. O ensino está totalmente mediatizado pela atividade mental construtiva do aluno. A segunda ideia refere-se ao conteúdo, que possui um grau de construção em nível social. O conhecimento educativo é praticamente preexistente, os alunos internalizam, construindo ou reconstruindo objetos de conhecimento que, de fato, já haviam sido elaborados socialmente. A terceira ideia está relacionada com a anterior, na medida em que os objetos encontram-se preexistentes e aceitos como saberes culturais, alterando o papel do professor. Sua função não pode limitar-se, unicamente, a criar as condições ótimas, para que o aluno realize sua construção rica e diversa. O professor, como MKO, deve orientar e guiar essa atividade com o propósito de que a construção do aluno se aproxime, de forma progressiva, dos significados e representações dos conteúdos como saberes culturais. Essa orientação ocorre através da ZPD, estabelecendo o que o aluno já sabe e o que pode ser aprendido com a ajuda do MKO. Assim, fica evidente que a função do professor, no construtivismo, é fundamental, e que o que tem ocorrido, no campo educacional, essa visão do professor facilitador, algo tão criticado por Biesta, é, na verdade, uma distorção da teoria.

Ademais, apontamos que o processo de ensino e aprendizagem deve ser visto como uma produção compartilhada entre professor e aluno. Ambos, juntamente com o conteúdo, são os responsáveis por tal processo. Isso não significa que deve haver uma simetria entre eles, pois, na interação educativa, professor e aluno desempenham papéis distintos, mesmo que igualmente imprescindíveis e totalmente interconectados. Nesse sentido, consideramos que tanto o professor ajuda seu aluno no seu processo como o aluno também participa do processo de aprendizagem do professor. Há uma troca de saberes porque o aluno, assim como o professor, pode ser o MKO em tópicos específicos, em aspectos da vida professional e na história de vida.

Biesta (2010, 2013c) também refere outro desenvolvimento que tem tido grande impacto na profissão docente: o surgimento da cultura de gerenciamento (managerialism) e do uso de medidas (measurements) na educação. Entretanto, a eficácia do professor não é um critério suficiente para servir de base à educação dos professores e ao processo de ensino e aprendizagem. A razão óbvia para isso é que, a partir de estratégias de ensino e aprendizagem, pode ser que os resultados nem sempre sejam os previstos, ou seja, como Biesta diz, a educação envolve um risco, uma imprevisibilidade, que não pode ser medida. Biesta (2013c, p. 2, tradução nossa) comenta que “[…] o desejo de tornar a educação algo robusto, seguro, previsível e sem riscos é algo que esquece que a educação tem como finalidade principal se tornar dispensável – quer dizer, nenhum professor quer que seus alunos sejam eternos estudantes”. O objetivo da educação é possibilitar autonomia, pensamento crítico do indivíduo, e o professor é fundamental nesse processo. Assim, essa cultura de gerenciamento e mensuração tem um grande impacto no professor porque ele é submetido

a uma miríade de julgamentos, medidas, comparações e objetivos. Informações são coletadas constantemente, catalogadas e publicadas na educação de rankings, e o desempenho monitorado através dos pareceres de colegas, visitas e inspeções in loco. Isso tudo gera um nível de incerteza e instabilidade, um sentimento de ser constantemente julgado e avaliado de maneiras diferentes, por meios diferentes, de acordo com critérios diferentes, e por pessoas e órgãos diferentes. Há um fluxo constante de requisitos que mudam constantemente, e de expectativas e indicadores que são continuamente registrados e demandam prestação de contas. Assim, nos tornamos inseguros: não temos certeza se o que fazemos é o suficiente, se fazemos a coisa certa, se fazemos tanto quanto os outros ou tão bem quanto os outros, sempre procuramos melhorar, ser o melhor. Entretanto, nunca sabemos com precisão o que é esperado de nós

(BALL, 2003, p. 220, tradução e grifos nossos).

Existem muitos documentos que tratam da educação de professores na União Europeia, por exemplo, o Programme for International Student Assessment (Pisa) da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento (OCDE) e o documento Initial teacher education in Europe: an overview of policy issues (European Commission, 2014). Esses consideram a educação de professores essencial e as avaliações de aprendizagem um elemento importante para o contexto atual. Todavia, Biesta (2012b), enxerga negativamente todos os testes e avaliações quantitativos que permeiam as escolas, por transparecer um sistema de demasiado controle, que não consegue, necessariamente, medir a qualidade dos professores. Eis o grande problema das avaliações externas e instrumentalizadas: utilizar argumentos às escolas de que a eficácia dos professores é justamente fazer o que alguns documentos sugerem que se deva fazer. Isso significa não dar autonomia e seguir diretrizes inflexíveis, o que contradiz a ideia de um professor crítico, tão argumentada como notado por teóricos como Biesta, Nóvoa, Behrens e Gur-Ze’ev.

Biesta (2012b) entende que o foco no desempenho do professor também está diretamente conectado à influência da psicologia construtivista na educação, entendimento, esse, contrário à nossa concepção, pois ela está baseada na interpretação errônea da teoria. Assim, Richardson (2003, p. 1.627, tradução livre) comenta que “a criação de ambientes, atividades e métodos educacionais baseados na teoria construtivista de aprendizagem, tem como objetivo desenvolver os interesses pessoais dos estudantes em tópicos de seus interesses, assim como as habilidades mentais para futura aprendizagem”

Essa linha de pensamento demonstra como a linguagem da aprendizagem, principalmente aquela baseada num mal-entendido do construtivismo, tem reposicionado o papel do professor, ou seja, de alguém que estava no centro do processo educacional porque tinha algo a ensinar para alguém que fica às margens, meramente facilitando a aprendizagem dos alunos. Claro, como apontado, o discurso sobre a aprendizagem emergiu da necessidade de se questionar a forma autoritária de educação, mas, no processo, o importante papel do professor ficou negligenciado (BIESTA, 2012).

O professor passa de alguém que é educador de caráter, de cidadãos, que tem um conhecimento a ser ensinado a uma nova geração, para alguém que meramente facilita o processo de aprendizagem do aluno, sendo avaliado constantemente no quesito de quão satisfeito está o aluno. Lamentavelmente, isso gera um imediatismo na educação, podendo tornar professores reféns das avaliações estudantis, fomentando uma cultura de entretenimento, de acordo com a qual o professor tem de produzir um “espetáculo” a cada aula. Isso cria uma grande pressão sobre os professores, especialmente porque, como Ball (2003) notou, os parâmetros nunca estão fixos ou claros, mudando constantemente. Assim, a educação de professores precisa instigar certas competências no docente, para que consiga gerir essas situações.

Biesta (2013a, 2005) é claro e preciso quando afirma que necessitamos nos envolver explicitamente com a questão do propósito da educação. Em seus estudos, tem se referido a isso como uma questão positiva para a educação, a fim de destacar que, quando no envolvemos criticamente com processos de aprendizagem, conseguimos distinguir o que é educacionalmente desejável. Daí a necessidade de nova linguagem e uma relação diferenciada para a educação que estariam baseadas e fundamentadas em olhar as pessoas como seres únicos e singulares.

[...] uma das principais responsabilidades educacionais é a de propiciar oportunidades para que os indivíduos venham ao mundo. Vir ao mundo não consiste definitivamente em autoexpressão. Consiste em entrar no tecido social e ser, portanto, inteiramente relacional. Consiste em responder ao outro e assim ser também responsável pelo que é o outro e por quem é o outro

(BIESTA 2013a, p. 48).

Evidentemente que tanto para o autor como para nossa interpretação sobre a educação, o cognitivo, o conhecimento, é apenas um modo de se relacionar com o mundo e não necessariamente o mais importante ou libertador. Hoje a questão mais importante é: De que modo podemos reagir responsavelmente a que e a quem é o outro, como podemos viver pacificamente com o que e com quem é o outro. A educação precisa ser compreendida a partir do resultado de uma combinação de tendências, desenvolvimentos e relações diferentes, que é parcialmente contraditória. Emerge a necessidade de uma educação transcendente e de surgimento de uma sociedade consciente disso. Biesta comenta:

A pergunta que eu gostaria de abordar é o que seria necessário para considerarmos o ato de ensinar como algo fundamental para a educação, ou seja, para dar ao ato de ensinar “de voltar” para a educação. E a tese que desejo explorar é se não seria nesse caso que a ideia de ensinar só tem sentido se ela carrega consigo uma certa ideia de “transcendência”, isto é, se entendermos o ato de ensinar como algo que vem radicalmente a partir do exterior, como algo que transcende a personalidade do “aluno” transcende aquele que está sendo ensinado

(BIESTA, 2013c, p. 46, tradução nossa).

Essas afirmações ampliam o conceito de competência. O uso do termo competência não deve perpassar pelo sentido e significado reducionistas. Biesta questiona a maneira como é interpretada por policy makers e por não haver discussões e outros questionamentos sobre competências. É necessário, nesse sentido, abrir esse senso comum e mostrar que é possível pensar diferentemente sobre educação e o que os professores devem ser capazes de fazer, pelo menos, para se distanciarem de ações sem reflexão no que se refere à educação. Nesse mesmo viés, o autor faz críticas ao documento “Common European Principles for Teacher Competences and Qualifications”, que trata das competências que os professores devem ter, e, mais uma vez, subestimando a autonomia e o protagonismo docentes.

Como proposta mais inovadora à educação e à Educação Continuada de professores, emergem alguns aspectos importantes sugeridos pelo autor. O primeiro ponto é a multidimensionalidade da educação como objetivo, isso é precisamente o que torna a educação interessante – certamente, esse aspecto é postulado por outros teóricos da pedagogia crítica como Gur-Ze’ev (2010) e Guilherme (2019); e o segundo, é ter posicionamentos e opiniões críticas sobre a própria prática docente. Assim, Biesta sugere que o engajamento com a questão do propósito da educação requer a interlocução entre três domínios: qualificação, socialização e subjetivação.

Para Biesta (2013a) a qualificação é o processo por meio do qual as pessoas se tornam qualificadas para fazer algo, ou seja, com competência para realizar determinada atividade ou função. É um domínio restrito à aquisição de conhecimentos e habilidades necessários ao envolvimento do indivíduo para os desenvolvimentos pessoal e profissional profusos. Diretamente relacionada ao conceito de qualificação, está a socialização, uma vez que apresenta conhecimentos sobre o mundo e sobre a inter-relação entre as pessoas. No processo educacional, isso estaria representado pelo papel do professor com seus alunos.

Nesse cenário, o professor está, de uma maneira ou de outra, representando e apresentando o mundo para o estudante, colocando-se dentro de uma tradição particular, mas que, ao mesmo tempo, não se reduza em reproduções sociais. Por isso, o autor destaca, substancialmente, o conceito de subjetivação. Esse terceiro domínio, a subjetivação, é essencial para ampliar a percepção do ser humano em sua individualidade. Biesta ressalta que a educação deve ter como horizonte a interconexão entre as pessoas e a própria pessoa consigo mesma. Porém, é enfático ao afirmar que o indivíduo é único e singular e que deve ser educado não somente para se tornar autônomo, mas também um sujeito de ação e responsabilidade.

Nesse cenário, as pessoas devem ser vistas em suas características individuais, mas, ao mesmo tempo, precisam estar cientes de que são parte de um mundo, de uma construção global e coletiva. Tal fato preconiza a visão do uno e do múltiplo e valoriza os sujeitos como pertencentes a um meio, o qual necessita saber, ser protagonista e também responsável pela educação e pelo desenvolvimento do mundo.

Desse modo, precisamos de uma educação de professores que não seja orientada à evidência, nem mesmo ao sentido de competência, mas em direção à promoção da sabedoria educacional, que leva em consideração processos criativos que estão abertos ao futuro. Para dar conta dos três domínios citados, é fundamental que as ações educacionais não sejam restritas ao aprender alguma coisa, mas que seja uma relação educativa permeada por constantes desafios, em que a reflexão das pessoas sobre seu papel no mundo é oportunizada com criticidade, autoria e conduta ativa.

No artigo intitulado “The Role of Educational Ideals in Teachers’ Professional Work”, Biesta (2005) relata a experiência com um projeto desenvolvido com professores. Explica que a tentativa desse projeto era ajudar professores a obterem uma melhor compreensão, na sua prática diária, dos modos de funcionamento dos ideais educacionais, de modo que eles podem ser capazes de usar essas ideias de forma mais reflexiva e deliberada. Os ideais educacionais vão além da aprendizagem. Eles são parte do que os professores fazem e pensam, e orientam a ação dos professores. É extremamente importante enfatizar que todos os professores consideraram como o aspecto mais importante de todo o processo, o tempo obtido para refletir sobre seu trabalho de uma educação sistemática e, ainda mais relevante, que eles foram capazes de fazê-lo em um diálogo acadêmico com outros professores. Esse projeto demonstra a importância das mencionadas competências defendidas por Biesta: qualificação, socialização e subjetivação.

Biesta (2013b) transfere aos professores resistência ao senso comum, baseado numa interpretação errônea do construtivismo sobre o ensino, em que o professor é aquele que não tem nada para dar e que está lá para extrair o que está internalizado no aluno, que está ali para facilitar a aprendizagem dos alunos, em vez de possibilitar distintas experiências e mediar o processo de ensino e aprendizagem. Desmistificar a percepção de que está lá para fazer o processo de aprendizagem tão suave e agradável possível, que não vai fazer perguntas difíceis ou introduzir conhecimentos difíceis.

Os professores não são recursos descartáveis e dispensáveis para a aprendizagem; pelo contrário, a educação é onde tem algo para dar, onde não se coíbem de perguntas difíceis e verdades inconvenientes, e onde trabalham ativamente e consistentemente com a distinção entre o que é desejado e o que é desejável […]

(BIESTA, 2013b, p. 459, tradução nossa).

Partindo de tais pressupostos, acreditamos que o papel do professor é fundamental na educação dos estudantes (para não dizer aprendizagem dos alunos), principalmente por consideramos o professor como o profissional da educação. Sua influência ultrapassa o ambiente de sala de aula e vai além do espaço da escola. A Educação Continuada dos professores ajuda a promover espaços de reconstrução e reflexão, que contribuam para o progresso e a autonomia dos estudantes para “vir ao mundo”, bem como a responsabilidade com seu meio social imediato e a sociedade em geral. Vir ao mundo significa entrar no tecido social e ser, portanto, inteiramente relacional. Consiste em responder ao outro e, assim, ser também responsável pelo que é o outro e por quem é o outro.

Considerações Finais

Revisitar a Educação Continuada a partir da visão de Gert foi motivador para compreender conceitos que perpassam pelo fazer docente estruturado pelos significados de aprendizagem estritamente sintéticos e desconexos ao sujeito e ao mundo em que se vive. Acreditamos que uma das principais responsabilidades dos professores diante da educação é possibilitar às pessoas conhecerem o mundo, agindo e interagindo com dinamicidade e compromisso.

Talvez, um dos grandes desafios da atuação docente seja impulsionar e encorajar os estudantes ao protagonismo, à autoria e à criação. Abrir espaços e permitir a escuta da voz dos estudantes, para compreender as necessidades, perceber a visão de mundo que eles têm e ter subsídios para fazer uma educação que atenda às demandas, respeitando as subjetividades e colaborando para a qualificação e socialização das pessoas.

Diante de um mundo fortalecido pelo consumo capitalista e pela constante uniformização (standardization) de todos e de tudo, transfigura-se indispensável romper com a lógica linear e individualista dos processos de ensino e aprendizagem aos quais estamos acostumados. O professor precisa contribuir para a qualificação e socialização dos sujeitos, para que se reconheçam como singulares no mundo, mas que, ao mesmo tempo, saibam de sua responsabilidade no meio em que vive. Não basta adequar-se aos parâmetros curriculares exigidos pela legislação, é primordial que a ação docente pleite questionamentos e confrontos e que possa reavaliar e reconstruir saberes constantemente.

Biesta (2013a) afirma que os professores devem ter o cuidado de não dizer o que o mundo é, mas fazer com que os alunos se confrontem e se relacionem singularmente com o mundo. Nessa perspectiva, os professores precisam estar preparados para se apropriarem de uma postura mais ampla e sensível da educação, compreendendo o ser humano na sua integralidade e complexidade, acolher e saber conviver com as incertezas como pressuposto conceitual, atitudinal e procedimental do processo educacional.

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Recebido: 24 de Julho de 2019; Aceito: 15 de Junho de 2020

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