SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.25Educación y emancipación en la producción del conocimiento al mismo del pensamiento abisalA formação inicial como espaço de desconstrução da experiência primeira: a construção do espírito científico do profissional pedagogo índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Conjectura: Filosofia e Educação

versión impresa ISSN 0103-1457versión On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.25  Caxias do Sul  2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v25.e020032 

ARTIGOS

Proposições em aula-sonho pela educação da diferença

Dream classroom Propositions for the Education of Difference

Proposiciones en clases-sueño por la Educación de la Diferencia

*Doutora em Educação. Professora Titular Permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre – RS. Pesquisadora de Produtividade do CNPq 1B. E-mail: sandracorazza@terra.com.br

**Mestranda em Filosofias da Diferença e Educação sob a orientação da Profª Drª Sandra Mara Corazza. Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre – RS, Brasil. E-mail: mdr@ufrgs.br


Resumo

Tão aberto como um sonho, este artigo de teor ensaístico aborda alguns estudos em filosofia e psicologia que tratam sobre a interpretação e a função social do sonho, aproximando escrita e educação. Essa educação sensível torna-se crítica e artística ao lidar com evocações de imagens e sensações do inconsciente individual e do coletivo. Pelo diapasão da Filosofia da Diferença, traçamos proposições a pensar pelo ritmo do sonho, sentir suas ressonâncias sociais e para a elaboração da escrita em educação. Aulas-sonho, sonhografias e não lugares emergem do inconsciente em imagens a-traduzir, isto é, do que está para ser traduzido diante da linguagem. Nesse revezamento entre o corpo, o real e o sonho, dimensionamos alguns apontamentos acerca do feminino e do trauma como disparadores sociais para problematizarmos esses afetos ao corpo do docente que pensa e sonha empiricamente, diante do real da educação. Nesse arquivo de uma educação latente, e, a partir dessa abordagem em labor de sonho, uma poética é traduzida. Assim como os quadros oníricos alimentam a realidade, a realidade alimenta nossos pensamentos, sonhos, valorações e interpretações da vida. A proposta da escrita que sonha é maneira de uma prática de si transindividual, por isso educativa e filosófica. Operacionalizando o pensar pela interpretação de sonhos, mas dela perspectivando um método de sonhar a escrita, apresentamos propostas de exercícios sonhográficos para este jogo de pensamento, que não é apenas da memória descritiva, mas da evocação de signos pré-linguagem. Tais signos traduzem a sonhografia como prática de si. O desejo docente não é uma falta, mas vontade de poesia didática que opera nos currículos ao afirmar a aula-sonho como potência de pensamento.

Palavras-chave Sonho; Educação; Escrita; Educação da Diferença

Abstract

This essay aims to reflect on education and the challenges of science and the production of knowledge in the search for emancipation. As a background plot, we bring a brief discussion about the production of knowledge today, beyond what Santos (2007) calls “abyssal thinking”. Thus, at first, it is intended to think about the condition of education today, that is, to discuss its directions in times of political and economic regressions. Then, the objective is to indicate the need to overcome abyssal thinking, reflecting on the extent to which education functions as a fundamental resource for emancipation and to what extent its limits go. The approximations with the problematized themes occur through the dialectical theoretical-methodological perspective of the analyzed phenomenon. These approaches are expected to contribute to an inclusive and emancipatory proposal for valuing the knowledge of experiences, giving visibility to the values and aesthetic representations of the various groups, whose voices are often excluded and / or silenced in educational systems. Putting in dialogue with science (re) knowing the cultures that have been excluded over the centuries. In addition, it is necessary to oppose the blind power of all collectives, strengthening resistance to them by clarifying the problem. The search for critical rationality in the production of knowledge goes through the tensions and fractures of the human condition in contemporary capitalism, but this does not necessarily mean that one has to abandon one’s own reason, in order to have an adequate condition of human life beyond abyssal thinking.

Keywords Dream; Education; Writing; Difference Education

Resumen

tan abierto como un sueño, este artículo, dotado de un contenido de ensayo, aborda algunos estudios en filosofía y psicología que tratan sobre la interpretación y la función social del sueño,

acercando la escritura y la educación. Esa educación sensible se vuelve critica y artística al tratar con evocaciones de imágenes y sensaciones del inconsciente individual y colectivo. Por el diapasón de la Filosofía de la Diferencia, trazamos proposiciones a pensar por el ritmo del sueño, sentir sus resonancias sociales y para la elaboración de la escritura en educación. Clases-sueño, sueñografias y no-lugares emergen del inconsciente en imágenes de traductor, es decir, de lo a-ser-traducido frente al lenguaje. En essa troca, o sea, de el tipo que reveza entre el cuerpo, lo real y el sueño, dimensionamos algunas notas sobre lo femenino y el trauma como activadores sociales para problematizar estos afectos al cuerpo del profesor que piensa y sueña, empíricamente, ante la realidad de la educación. En ese Archivo de una educación latente, y a partir de ese trabajo de sueño, una poética es traducida. Así como los cuadros oníricos alimentan la realidad, y así como la realidad alimenta nuestros pensamientos, sueños, valoraciones e interpretaciones de la vida, proponemos la escritura como una manera de práctica de sí mismo, pero transindividual y por eso educativa y filosófica. Operando a través de la interpretación de los sueños, pero usando para la perspectiva um método de soñar la escritura, presentamos propuestas de ejercicios de sueño para este juego de pensamiento, que no es solo de memoria descriptiva, sino de evocación de signos pre-lingüísticos. Tales signos traducen l sueñografia como auto ,pratica. El deseo de enseñar no es una falta, sino uma voluntad de poesía didáctica que opera em los currículos al afirmar la Clase-sueño como potencia de lo pensamiento.

Palabras-clave Sueño; Educación; Escritura; Educación de la Diferencia

I-magino o sonho

Deleuze (1987), em palestra sobre o ato de criação, ao responder ao que é a filosofia, declina a reflexão e usa do acaso da interpretação infinita (o lance de dados) para produzir o conceito do exercício de pensamento pela necessidade. Explica que, de toda ideia, ou seja, do potencial contido em determinada dimensão, poder-se-ia retirar, talvez, um conceito. Na dimensão cinematográfica, cita a ideia do cineasta norte-americano Vicenti Minelli (1903-1986) cujo cerne é: o sonho diz respeito aos outros. Somos vítimas de sonhos alheios, sonhos devoradores: “O sonho é uma terrível vontade de potência [...] Desconfiem do sonho do outro, porque se vocês forem apanhados no sonho do outro, estarão em maus lençóis” (DELEUZE, 1987, p. 8).

O conteúdo manifesto do sonho, segundo Freud (2005), é aquilo que fica salvo na consciência. É uma transcriação possível dada pela mente consciente e desperta. Espécie de fachada elaborada sobre o pensamento latente. Bordado desenhado pelo deslocamento e pela condensação a partir daquilo que fora vivenciado em sonho. Esse par de forças de desvio e aglomeração foram fundamentais ao desenvolvimento da consciência pela espécie Homo, “sem as quais dificilmente chegaríamos à pedra lascada e túmulos, em suma, à cultura” (TÜRCKE, 2010, p. 22).

Sonhos são primícias do aparato psíquico, das narrativas e da linguagem escrita. Condensação e deslocamento são os contramestres da totalidade do pensamento humano. O sonho, segundo Freud (2005), também é uma atividade de pensamento primitivo e continua sendo uma dimensão de revelações e de produtos culturais. Será que o Homo de hoje é diverso do Homo sapiens3 de ontens? Por que abordar a docência-pesquisa em educação como um sonho?

É uma forma de arqueologia mental4 o estudo dos sonhos. O sonho é um tipo de especulador daquilo que produzimos do pensamento. Reabilitar essa especulação aproxima-nos do entendimento pré-linguagem contido na aparente desrazão onírica. Especular é fazer uma ciência investigativa e inventiva, narrando uma micro-história pelas associações e pelos detalhes que se mostram diante dessa arqueologia: “speculari é entrever algo, isto é, aquilo que não aflorou abertamente”. Uma vida pulsional para sonhografar nesse processo em que “o sonho fala, mas também a linguagem sonha” (TÜRCKE, 2010, p. 24-25).

Beradt (2017) percebeu, em sua amostra de cerca de 300 sonhos recolhidos no Terceiro Reich, que serviram como um tipo de testemunho do mecanismo daquele regime, regime que afetou e motivou cada pessoa a fazer parte dele, respondendo, em suas ações cotidianas, à ordem discursiva. O trabalho do sonho aproxima-se, portanto, do trabalho da escrita. Os sonhos inscrevem, no corpo, as amplificações das percepções sentidas interna e externamente, diante de uma dada realidade. Afetado por tais signos, o corpo sonhográfico elabora suas interpretações e traduções, anúncios sensíveis das forças em tensão, traduções de mundo capazes de potenciar modelizações de um porvir:

[...] parecidos com diários noturnos, por um lado, precisam registrar minuciosamente como sismógrafos, o efeito, no interior da pessoa, acontecimentos políticos externos; por outro lado, derivam de uma atividade psíquica involuntária. Dessa forma, sonhos poderiam ajudar a interpretar a estrutura de uma realidade prestes a se tornar um pesadelo

(BERADT, 2017, p. 34).

Os sonhos coletados por Beradt (2017, p. 35), relacionados à realidade política, eram “particularmente intensos, relativamente descomplicados e coerentes, pois, claramente, determinados”. O conteúdo era quase sempre “coeso, anedótico, e até dramaticamente ordenado, tornando-se fácil de ser memorizado”. Desse relato podemos problematizar o quanto essas forças do discurso e do poder político afetam os corpos, mesmo um corpo dormindo. Tal tensionamento externo avança no sujeito a ponto de o espaço de imaginação do sonho e de descanso do sono ser, de certa forma, interrompido, dominado, orquestrado. A via régia ao inconsciente é organizada por uma imposição regradora. Nessa perspectiva pela sua função social, os sonhos tratam não apenas de conflitos particulares, mas das complexas relações humanas imersas nas perturbações do meio. Tais sonhos, “quase concretos”, apresentaram um pano de fundo muito claro e visível que prescinde de uma interpretação freudiana, “o que está em sua superfície constitui a sua base. Nenhuma fachada oculta o contexto, e ninguém precisa estabelecer para o sonhador as relações entre incidência do sonho e existência; ele mesmo faz isso enquanto sonha” (BERADT, 2017, p. 39).

Sonho, ficção do social

Os sonhos são uma artesania própria cuja interpretação, segundo Dunker (2017), não é uma tradução de sentido, mas uma tentativa em caminhos retrógrados à origem dos quadros vivenciados em sonho. Ao decompor o labor onírico, o pensamento tenta entendê-lo nas imagens e símbolos que evoca, e o sonhador busca restaurar o trabalho de seu desejo. O mesmo autor indica que há rupturas quando do exame de um sonho: ele ocorre nesse interstício vigília/sono, sendo que seu restauro é realizado à luz do dia, na “descontinuidade entre a realidade e o desejo” (DUNKER, 2017, p. 11). Há uma ponte paradoxal entre duas margens, encharcada pelas sensações do sonhador: uma margem é o sonho buscando restos da vigília; e a outra, reserva entre uma memória ou cultura, o passado, o presente. Desse fluxo de forças um efeito corre a um futuro desejado.

Nessa realidade insensata, onde não há paredes entre o público e o privado, o que o trabalho onírico realizou? Na ausência de liberdade individual, em que não há segredos, o sonho criou “não-lugares ou lugares impossíveis: esconder-se entre duas cadeiras, esconder-se no chumbo [...]” (DUNKER, 2017, p. 11).5 E quando a falta de sentido é insuportável? O sonho torna-se conflito e pesadelo? Na estratificação da consciência social, há um adestramento e um apaziguamento dessa falta de sentido pelas “explicações fantasmáticas”, como “a existência de judeus, traidores da pátria” (DUNKER, 2017, p. 12). Na esteira dessa discussão, os sonhos são perigosos, portanto espaços mentais que devem ser colonizados, imaginário que precisa ser expulso ou negado pela cultura dita racional. Isso, porém, atesta o quanto os sonhos representam a dinâmica social. Ou seja, negar o sonho para autenticar uma realidade sem sentido. Os sonhos articulam o nonsense em seus testemunhos de uma realidade de falta de sentido por códigos, neologismos, ocultamentos, trocadilhos, ressemantizando a realidade e a linguagem. Todavia, os signos dos sonhos não admitem sinônimos, e sua semantização ocorre pelas associações muito particulares ao sonhador. A ficção dos sonhos é uma luz contundente (elemento virtual) que atualiza a realidade, inventando-a, pois um sonho é feito de tudo aquilo que o sonhador extrai de sua realidade e não de uma outra realidade. A unidade onírica é composição de existência real, cuja experiência se inscreve no corpo e não pode ser anulada por não encontrar uma correspondência imediata nas fórmulas lógicas da linguagem: o sonho, espaço que inventa profundidades estrangeiras é espaço da experiência. Pensando ainda com Dunker (2017): uma viagem em um país estrangeiro, onde não lemos as placas e nem falamos os idiomas não significa que não estamos experenciando aquela vivência.

O sonho é o estranho que perturba a concepção de que a realidade é constituída apenas de fatos afirmativos e atuais. Como a realidade onírica é uma existência da qual a consciência só pode capturar os enigmas fugidios e com certa dificuldade, esse real é ainda mais difícil de ser apreendido. Talqualmente na loucura, desde a modernidade, admite-se que a razão está suspensa também nos sonhos. Mas tais condições, sonho e loucura, fazem parte do real, “assim como o sistema totalitário nazista” (DUNKER, 2017, p. 17). Por exemplo, a dramatização da angústia nos sonhos do Terceiro Reich decorre da tentativa de eliminar, no inconsciente, o desejo de resistir, quer pela salvação, quer pela exposição ao perigo.

Seriam os sonhos uma das maneiras de acesso ao que denominamos realidade (incluindo a política)? Seriam a via régia ao conteúdo latente de nossas crenças, valores e demais divisões subjetivas? Para Dunker (2017, p. 17) a resposta é positiva, sendo a loucura a forma como “tratamos politicamente o real de nossa divisão subjetiva”. Sonho e loucura são acontecimentos transindividuais, ocorrem no hiato entre o público e o privado, entre o individual e o coletivo, em revezamentos constantes entre essas realidades. O sonho, em sua transalucinação, como produção privada de imagens em movimento (pré-cinema) exagera, deforma, condensa a realidade. Nos sonhos do Terceiro Reich, houve, segundo Dunker (2017, p. 18), a suposição de um sujeito, tais sonhos foram ficções – no sentido etimológico, do latim, hipóteses – tramadas em exercício de empatia: colocar-se na pele do sonhador, fazer suas próprias associações, defrontando-se com experiências tão distantes que podem tornar-se inquietantes e insuportáveis. A função social do sonho ora interpretada é um método de prática de si, inscrição que não cansa de transcriar um corpo em revezamento entre sua micro-história (individual) e um tempo histórico (coletivo, passado e porvir). Seguindo ainda na esteira do pensamento de Beradt (2017) e Dunker (2017): se sonho e loucura são absurdos, a pergunta inquietante que nos prontifica a repensar a tendência de racionalizar e aceitar o real, independentemente do que possamos dizer acerca dele, poderia ser: como traduzir uma realidade que nos parece absurda, incoerente e nonsense? O que devemos sonhar diante do absurdo? O que um sonho pode nos ensinar? Assim como o não sentido de um sonho (ficção, hipótese futura) pode parecer-nos evidente e lógico apenas muito tempo depois, também uma realidade nonsense poderá ser constatada apenas com o porvir.

Considerando os sonhos como ficções, Dunker (2017, p. 21) classifica-os em dois tipos: a) o tipo negação da realidade em uma miríade nonsense, semelhante a uma obra de arte: o sonho relaciona-se com uma realidade insuportável quando nega partes daquilo que é necessário, para que, diante de uma realidade absurda, possamos passar a encará-la como dotada de ordem e sentido; e b) do tipo absurdo: sonho que atualmente é absurdo, mas que será compreensível no porvir, quando o mundo estiver diferente.

A vida vígil6 também é uma bifurcação, pois podemos estar levando uma vida como zumbis, sonâmbulos, “desprovida de consequências com a sua própria verdade” (DUNKER, 2017, p. 23). O trabalho do sonho é uma forma de tradução, ou seja, é forma de expressão do inexprimível. Beradt descreve que esse labor imagético que ficcionaliza real e virtual fora constatado em muitos sonhos do Terceiro Reich, como, por exemplo, por apagamentos dos limites entre o trágico e o cômico, pela transformação de estranhamentos diante da realidade em “parábolas, paródias e paradoxos; [o trabalho do sonho] enfileira situação por situação em registros instantâneos e em rascunhos, a partir dos quais o eco do dia ressoa de forma terrivelmente alta, terrivelmente baixa, radicalmente simplificada ou exagerada” (2017, p. 41).

A partir dessa unidade multirreferenciada de autores, formamos diversas perspectivas onirofílicas deslocadas pela Filosofia da Diferença, e, nessa desterritorialização, a educação sonhográfica é uma maneira de se traduzir criticamente. A interpretação da existência perspectiva-se como uma prática de vida na construção singular de um sujeito, inerentemente vinculada a novas modelizações do real. O pensamento que sonha diante dessa lucidez (realidade aparente) passa a questionar o contexto de uma única realidade ou discurso. Nessa via, a escrita-tradução sonhográfica é elaborada pelo rigor da consciência que avalia e traz esse inconsciente como uma forma de tensionar o aprendizado atual,7 e não apenas como uma representação alegórica de mensagens incógnitas.

O estudo dos sonhos funciona como operatório empírico pela vontade de potência de educar, “como se disséssemos, pela primeira vez, as palavras que fazem aparecer sua energia (no sentido físico); seu impulso (como sensação); sua tendência (como eterno retorno); e sua disposição (como qualidade)” (CORAZZA, 2016, p. 3). Vontade que nos expande acepções de vida e de relações com a realidade, bem como de prática de si. Uma interiorização que aceita o inconsciente e não o transporta a um nível de desrazão desimportante. Estudar e escrever nossos sonhos prontifica-nos a uma experimentação do real via revezamentos com a vida psíquica, e tal dinamismo é um tipo de recurso ao amadurecimento das relações entre o social e o coletivo. O trabalho da imaginação ativa proporcionado pela restauração de um sonho afirma uma singularidade inventiva, a de um sujeito que está diante do discurso. Um sonho construído com os restos de um real que é discursado pelo poder pode ser traduzido como um alerta simbólico que mostra graus de dominação do sonho alheio (poder) sobre uma vida (imanência, menor). Nesse percurso, o sonho move-nos a repensar as relações de uma forma transindividual e não apenas entre indivíduos.

A captura de afrescos oníricos

As imagens dos sonhos, quando evocadas na elaboração secundária (FREUD, 2005), são ficções tramadas por sutis retoques conscientes que modulam o informe inconsciente que emerge. Segundo Beradt (2017), a descrição de um sonho depende de quando foi registrado. Por exemplo, se for na mesma noite, deterá “um caráter documental mais forte”. Registrado muito depois de sua evocação, ou simplesmente relatado a partir da lembrança, as imagens oníricas tendem a ser “representações de uma consciência desperta [daquilo que mais corroborou à composição do sonho]” (BERADT, 2017, p. 35). Imediatamente ao acordar, para conseguir capturar ao menos uma imagem do sonho, podemos ficar à espreita justamente daquilo que a consciência desperta está a decantar no lago do esquecimento. Para esgotar essa realidade oniroide, rabiscamos em um diário os seus detalhes ínfimos, e tal gesto inclui a emoção que acompanhou essa vivência. Kerouac (2013, contracapa) relata que escrevia os quadros oníricos logo ao levantar-se e, nessa meditação, ainda deitado, via os quadros sonhados desfazendo-se em sua mente. Capturava-os velozmente e à lápis em sua agenda, após erguer-se de suas horas de sono. Tipificou essa escrita como agitada e fluida. Para o famoso Beatnik, é a dispersão do sonho aquilo que teria um valor para se avaliar o mistério da mente (KEROUAC, 2013).

Após a apreensão de imagens oníricas, podemos seguir o curso indutivo sem deixar de fluir pela escrita consciente, porém conectada com um tipo de crivo pensamental que se dilui e se emancipa, ou seja, muito próximo do pensamento informe da filosofia da diferença:8 “É como pegar um rato pela ponta da cauda, quando ele tenta escapulir por algum canto. Se você consegue pegar a ponta, pode trazer à tona toda a sequência do sonho de volta. Em seguida, deixo meus pensamentos e sentimentos acomodarem-se tranquilamente” (SIGNELL, 1998, p. 36).

Métodos para sonhar a escrita

O método freudiano usado para a interpretação de sonhos é o da associação livre: à imagem original do sonho unem-se imagens ou pensamentos que emergem do inconsciente.9 Na sequência associativa, cada parte vai tomar sempre o último termo da série (imagem, palavra, pensamento, etc.) até formar uma sequência que normalmente leva a lembranças infantis (SIGNELL, 1998). Cabe ressaltar que Freud (2005) não se deteve exclusivamente em lembranças infantis no trabalho das associações. Portanto, a interpretação dos sonhos usa as relações e lembranças do sonhador em relação não apenas ao seu passado, já que é imprescindível a semantização do contexto atualizado pelo sonhador.

Já pelo método junguiano, a ampliação utiliza, inicialmente, a associação livre evitando censuras10 às manifestações e aos significados que emergem do inconsciente. A diferença em relação ao método freudiano é a de que há, na ampliação, o retorno a uma imagem do sonho. Retorna-se repetidas vezes àquela imagem elegida pelo sonhador como a imagem original (nesse caso, admitida como uma pequena cena que se repete, ou um quadro “congelado”, que é examinado várias vezes). Essa imagem é considerada, nessa perspectiva junguiana, como dotada de significados importantes para o indivíduo e, ao mesmo tempo, contém pistas culturais da humanidade. A imagem original deverá, então, ser ampliada pela invenção, pelo desdobramento de outra imagem. Elaborada a segunda imagem, retorna-se à primeira (original), até que uma terceira imagem seja revelada. Repete-se o retorno à primeira imagem e, assim, sucessivamente. Segundo Signell (1998), tal método assemelha-se à meditação oriental “Lótus de mil pétalas”, no qual, a partir de um símbolo central, imagens emergem em multiplicidades e circularmente. Esse retorno à imagem original faz florescer não apenas outra imagem, mas pensamento, sentimento, lembrança. Essa exploração é indicada até que a imagem passe a significar ao indivíduo. Essa unidade múltipla torna-se um signo que afeta o corpo que sonha e pensa. Nesse plano traçado, surge a necessidade de traduzir o signo procedendo sob as mais variadas formas de expressão, passando o sonho a dobrar-se na realidade (como, por exemplo, um poema, um desenho, uma aula-sonho).

A imaginação ativa é outro método que se agrega à ampliação. Trata-se de um recurso auxiliar ao método de ampliação que opera o acesso ao material inconsciente no estado de vigília. Seu teórico principal foi o junguiano Robert Johnson, segundo a junguiana Signell (1998, p. 43). Como as emoções são informes, dar-lhes as formas em imaginação ativa é um recurso à tradução criativa dos sonhos, buscando, nesse encontro com o material inconsciente não “dados como resultados”, mas maneiras de imaginar potências à invenção. Na imaginação ativa mental, realizamos a tradução de uma emoção do corpo para o espaço mental da imaginação.

Um exercício sugerido por Signell (1998): permitir-se adentrar em sua paisagem interna e travar diálogo com um personagem que você cria. A seguir, dar uma forma física a uma emoção interna e meditar ativamente sobre essa emoção até que ela aflore. Na sequência, definir ações sobre um objeto, já que as diversas formas de expressão artística são parte das atividades da imaginação ativa. Diferentemente das técnicas de visualização em que o ego resolve problemas usando recursos inconscientes, a imaginação ativa usa o inconsciente e o consciente, porém sem subjugar nenhum deles. Nesse exercício, um drama interno requer ações sobre o que evoca, e não apenas uma recepção passiva (não se trata de assistir a um filme interno). Signell (1998) admite que a linguagem inconsciente é alarmista, pois exagera para ser ouvida. Desse modo, cabe a ressalva de que os exercícios propostos, que mergulham no informe do inconsciente, terão pouca eficácia quando esse contato emotivo passa a impedir o desenrolar da vida diária. Nesse caso, a autora entende que uma pausa se faz necessária a tais acessos ao inconsciente, ou seja, devemos voltar ao porto seguro da consciência. A linguagem do inconsciente requer paciência e escuta com o corpo todo, já que para Signell (1998) a voz do sonho quanto mais elaborada tornar-se-á também cada vez mais “expressiva e sensível”. Essa voz não fala o que exatamente gostaríamos de ouvir, mas nos fala aquilo que sabe.

Segundo a mesma autora, em relação à evocação de imagens de sonhos nos quais há arquétipos femininos desenvolvidos, trata-se de um acervo ainda não muito significativo. A maioria dos arquétipos sonhados está intrincada por imagens da nossa cultura ocidental, em especial a grega e patriarcal: “Refletem muitas vezes a psicologia e a política do poder que detêm” (SIGNELL, 1998, p. 37). Para transmutar essas imagens, a autora indica contos de fadas, lendas populares, baladas e rituais advindos de pessoas comuns, pois essas narrativas estão mais próximas da natureza feminina,11 da vida cotidiana, do amor e do desconhecido. Resgatar o sensível dessa sabedora nos vincula a uma tradução geofilosófica de relação com a matéria.12 A eclosão dessas imagens depende, em parte, da libertação do ego em relação aos tipos sentimentais da culpa, da opressão, do medo, da raiva. Embora dependente de uma entrega pessoal, traduzir tais imagens é uma forma de resistência e de transformação sutil da realidade coletiva, já que tal interpretação está realizando uma perspectiva de afirmação. O imaginário feminino banha-se naquilo que afirma e potencializa devires no corpo. É regeneração lenta das cicatrizes culturais: na função social dos sonhos de mulheres analisados por Signell (1998), a maioria não se tratava de repetição dos papéis de mãe e de esposa, mas de quadros compensatórios referenciais a realizações pessoais e relações de infância. Para a mesma pesquisadora, a interpretação dos sonhos não é uma chave pronta a decifrar determinado enigma; é um tipo de saber adquirido pelo sonhador durante a vida, trama da experiência entre os próprios sonhos (um mesmo tema estará costurado entre inúmeros enredos oníricos), é conhecimento urdido pela aprendizagem de cultivo à imaginação e de confiança em si.

Contar o pesadelo é traduzi-lo em sonho

Os sonhos são considerados, pela teoria junguiana, um tipo de ressonância dos espaços sagrados, os chamados temenos (tem’-e-nos), onde rituais sagrados eram realizados. Círculos mágicos ou áreas interditadas nas cerimônias dos povos originários são áreas de contemplação, adoração e sacrifícios. Nesses rituais, há a representação e a vivência dos temores naturais. Segundo Türcke (2010), o susto diante daquilo que hodiernamente chamamos de fenômenos da natureza está materializado na compulsão à repetição. As formas de sacrifício primitivas, como nos povos neolíticos, mostram que o sacrifício era a força central das narrativas. O verbo rezein denota “oferecer sacrifício”, mas também “agir, estar ativo” (TÜRCKE, 2010, p. 82-83), como é ativa a atividade humana por excelência. Para esse filósofo, somente a compulsão à repetição pode explicar essa expressão de forma em rituais exclusiva do homem. Como forma representativa da minimização do susto recebido da natureza, os rituais, criados ao longo do desenvolvimento de uma consciência e de uma cultura, usam da repetição organizada a fim de que, naquele espaço de elementos do mundo de fora em novo arranjo num microcosmo, aconteçam a segurança e a correção do elemento de pavor. O susto é enformado no círculo ritualístico rta (do Índico antigo), que significa “existência, apoio, verdade, direito”. No espaço ritualístico, encontramos múltiplas maneiras de deslocamento e condensação do susto, do mesmo modo ocorreu nos primórdios de pré-pensamentos acerca das imagens da natureza que apavoram. A condensação e a inversão13 são manifestações do trabalho de transformar o susto em seu contrário, por meio de repetição. Para Türcke (2010, p. 85) o sacrifício introjeta o susto coletivo e o enforma num espaço de conservação, sendo que essa contração espacial do susto é a forma arcaica da imaginação. Um tipo de teatro coletivo que desdramatiza o susto numa forma alucinatória assustadoramente concreta. Nesses movimentos musculares dos rituais, a memória presentifica o rebuscamento: ela é a representação que desloca o susto a um passado, a um repouso, para que o susto nela se dilua ou nela se transforme. Todavia, o surgimento de uma memória poderia ser um mecanismo mental para esquecer paradoxalmente. Ritualizar é vivenciar o sonho como algo real. É uma forma de imaginação alucinatória, com a qual a mente mapeia objetos reais e os desloca aos mapas de objetos imaginários. Essa compensação do desejo é vivenciada pelo sonhador no estado de vigília quando se recorda, por exemplo, de que vivenciou alguma coisa: vultos, cores, atmosferas. A elaboração secundária não é uma vivência de pura subjetividade, já que, para vivenciar algo, é preciso tomá-lo como real no momento de sua realização, pois “o sonho não quer ser apenas sonho” (TÜRCKE, 2010, p. 73).

Imagens, espaços de sonho

Um recurso para criar um território de acesso aos movimentos do próprio pensamento, a partir do restauro dos sonhos, pode ser o ambiente onde o corpo possa, pela meditação ativa, acessar partes resultantes dessa atividade profunda do inconsciente, garantindo que a evocação esteja em sintonia com esse espaço significativo no mundo do sonhador (um espaço de ritual). Um círculo imaginário poderá reterritorializar um ambiente silencioso ou ruidoso. A solidez de um corpo que sempre chega também é um espaço que pode ser criado como atmosfera de segurança ao sonhador. “Contar um sonho a qualquer pessoa, [...] mesmo que esta não faça nenhum comentário, imprime o sonho na psique e ele passa a ganhar vida” (SIGNELL, 1998, p. 36). Nessa perspectiva, a da educação pelo sensível, a aula-sonho desdobra-se como um espaço de transvivência, um não lugar cujos signos do inconsciente podem processar suas repetições em mensagens obsessivas, ouvir e repetir esquizovozes, verter gemidos que tendem a imagens de alta velocidade e, portanto, informes quando o pensamento está em a-traduzir.

O estudo do sonho dimensiona o pensamento em perspectivas cuja unidade em heterogênese dramatiza o informe inconsciente pelo processamento que alucina entre um mundo interno e seu ato tradutório. Ato também indutivo (psíquico) que acaba por deslocar o pensamento até o sonho. A sonhografia não vai traçar apenas necessidades elementares, mas dramatizar uma escritura de sonho como uma necessidade ao pensar. A originalidade das imagens oníricas tende a evocar uma tradução do tipo primitiva, imediata e original (TÜRCKE, 2010, p. 57): é poema feito de palavras traduzidas das imagens que estranham a vigília, portanto, possibilidade de ato de criação. Contar um sonho é narrar um complexo – a tradução de muitas partes intraduzíveis quando narramos um sonho afeta nossas emoções, mesmo que isso não seja imediatamente percebido pela mente consciente como uma história que detenha um sentido. Ao narrar um sonho, trabalhamos com a riqueza incomensurável da imaginação ativa, semelhante às narrativas de contos de fadas, aos mitos de criação de mundos. São fundamentais ao estudo dos sonhos suas imagens, obviamente, mas não apenas as imagens visuais, como também as auditivas, e todas as sensações e os sentimentos que afetam o corpo durante a elaboração secundária.14 A narrativa onirofílica amplifica pelas micropercepções retidas no corpo, que são pré-verbais, e nos traz inúmeras formas de traduzir e criar, num processo de liberação de energia vital e de recordações a partir do corpo. As palavras como imagens, como traição das imagens: na famosa obra de René Magritte (1989-1967), há a imagem da frase Isto não é um cachimbo15 (1929), escrita sob a pintura de um cachimbo. Essa obra não supera a incapacidade das imagens em ser autonegáveis, mas nos mostra, como nossos sonhos, que as imagens podem dizer não a elas mesmas. Esse conflito interno entre sim e não é inerente a muitas imagens oníricas. O simples fato de pensar em nossos sonhos e aprender com eles traz novos significados à mente consciente, estado da mente que tende a ser “arrogante16 e acostumada a deter o controle, [a] ouvir apenas o que quer ouvir ou apenas aquilo que confirma o que já sabe” (SIGNELL, 1998, p. 40). Para Türcke (2010, p. 41) a alucinação é “a primeira forma de atividade do pensamento, ou seja, ancestral original de toda a consciência desperta e de toda a razão”. O recuo da mente ao estado de vigília não é algo completamente livre do estado onirofílico. Por mais distante que a elaboração da excitação possa recuar diminuindo, ela, porém, não deixa de agir. Somos, mesmo, feitos de sonhos? Talvez, pois estudar o sonho é uma maneira de acessar formas de pensar o pensamento, o pensamento é formação mental que não é uma outra coisa separada do corpo.

Sonhos, lugares irrealizáveis onde a alucinação move-se e modifica a consciência vígil. Abrem-se espaços de imaginação que traduzem os estímulos externos, deslocando aquilo que chamamos de mente consciente para “dentro”, condensando as imagens da mente desperta em “impressões significantes” (TÜRCKE, 2010, p. 42). Para Türcke (2010) o sonho não é apenas cópia ou rearranjo da realidade e não se sonha apenas por prazer, mas também para descartar algo. Na topologia do labor onírico, a construção imagética é centrífuga, isto é, emerge de um centro obscuro (umbigo do sonho). Neste trabalho da elaboração, a condensação e o deslocamento – os contramestres do sonho segundo Freud17 – aproximam-se do método junguiano da ampliação, aplicado sobre uma única imagem escolhida de um sonho contado, narrado, sonhografado.

Proposições em aulas-sonho

Propomos, a seguir, exercícios de escrita para a elaboração secundária de aulas-sonho. São também começos de sonhografias (REIS, 2019). Sonhografar é um tipo de transcriação que trata o arquivo18 da educação pelo labor onírico, isto é, como se fosse um sonho. Transcria novas maneiras de expressão do pensamento via Filosofia da Diferença. Nesses exercícios, a produção das imagens é escrita, mas aberta à criação de outras formas de expressão, outros tipos de atividade e problematização, que possam desdobrar-se em outras maneiras de expressão que não a da representação ou da recognição. São exercícios para acionar despertadores afetivos que produzam signos didáticos, que acordem os afetos que hibernam em nosso corpo docente, deixando rastros a-traduzir em ressonâncias oniropotentes.

  1. Exercício sonhográfico amplificativo: em um grupo de 5 a 6 pessoas, cada qual evoca um sonho. Então, uma imagem é retida, imagem que condense de modo nítido as emoções sentidas na vivência da elaboração. Descrever essa imagem até que os detalhes se esgotem em uma folha de papel ou ficha (cada um identifica sua escrita). Dar início à roda de sonhos: cada qual passa sua primeira descrição ao sonhador mais próximo, e esse passará a escrever a partir de associações que surgirem quando da leitura desse original. Todos formam uma segunda imagem descritiva a partir do sonho original alheio. Quando todos encerrarem a segunda etapa, novamente passam os papéis. A cada sonho recebido, voltar sempre à primeira imagem (a original) e dela ampliar outras (ou seja, uma série será criada, ampliando o sonho original). Não ler as sequências ampliadas pelos demais participantes. Uma série de cinco a seis associações já é suficiente para cada grupo parar e realizar uma leitura de cada sonho com as associações dos demais.

  2. Exercício sonhográfico de recolhas de sonhos: de um grupo, dois integrantes são escolhidos como sonhografistas, que anotarão todas as impressões e excertos dos sonhos contados em roda. Os participantes começam a contar seus sonhos livremente, durante uma hora, no mínimo. De cada sonho contado, o participante extrai uma frase que seja a síntese do sonho. Frase escrita e entregue aos sonhografistas. Escolha (sorteio) do grande sonhador, ou seja, o sonhografista que vai levar o material recolhido e realizar a escrita de um Grande Sonho a partir dos sonhos de todos. Podem ser eleitos até quatro sonhografistas, que devem compartilhar todo o material recolhido dos sonhos para a escrita individual ou coletiva. A narrativa, ou leitura em voz alta do sonho, preferencialmente, deve ser realizada ao grupo num próximo encontro com o intervalo mínimo de três dias.

  3. Exercício sonhográfico de polinização cruzada interpretativa livre: em um grupo, cada qual conta um sonho ou escreve um sonho, e outra pessoa (ou um grupo de pessoas) interpreta o sonho de acordo com sua livre associação. Assim, o sonho de cada um será polinizado por outras traduções possíveis. As interpretações são compartilhadas. O sonhador poderá entender sua narrativa de outra perspectiva ou reescrever seu sonho, mudando as abordagens e redimensionando-se em relação à sua primeira tradução e interpretação do sonho. Essa roda de sonhos passa a ter um efeito dinamizador entre o individual e o coletivo, mas o ideal é que seja realizada ao longo de alguns encontros, já que os sonhos poderão dar repostas, incorporar, refutar, ressemantizar as vivências ou trazer novas abordagens às narrativas iniciais individuais e coletivas. Na interpretação polinizada, não há vinculação com regimes de símbolos ou teorias, cada um interpreta o sonho do outro de acordo com seus repertórios culturais e emotivos. É prática de escuta e implica novos quadros sociais, já que os sonhos ali envolvidos poderão realizar-se de forma a sonharem-se/sonhografarem-se entre si.

  4. Exercício sonhográfico poetador: num grupo, cada qual identifica uma folha ou ficha e escreve um sonho, começando com uma das fórmulas: “Sonhei que”, “Foi um sonho”, “Acordava, mas voltei a dormir e sonhei”, “No meu sonho”, “Foi um pesadelo, eu estava”, “Acordei cansado(a), porque sonhei que”, “Nunca me lembro dos sonhos, mas posso tentar dizer o que sinto sobre isso”, “No sonho”. Após, misturar os sonhos e sorteá-los entre todos, de modo que ninguém fique com seu sonho. Em outra ficha ou folha, após ler o sonho recebido, cada qual escreve, na forma de expressão de um poema, sua tradução. Recomenda-se desprender-se de uma tradução original em relação ao sonho alheio, buscar sensações, suas lembranças evocadas na leitura, e também vivenciar cada palavra do sonho anotado por mais curto que seja. Cada qual poderá mudar o contexto, retirar palavras, escolher palavras, inverter aspectos, dar outro caráter. Seguir à risca e/ou rimar, criticar, brincar com o sonho recebido, ou se concentrar em uma imagem principal que o sonho tenha evocado e, a partir dela, escrever sua versão em um poema. Quando todos tiverem reescrito o sonho alheio, cada um lê o sonho original e recita sua versão dedicada ao sonhador alheio, na roda de sonhos.

  5. Exercício sonhográfico com a palavra do sonho alheio: num grupo, cada qual escreve seu sonho. Concentrando-se na sua narrativa escrita, vai retirar dela uma palavra que condense a parte mais obscura sonhada. Preferencialmente, a palavra deve remeter a uma ação (poderá ser um substantivo, pois nomear algo significa afrouxar a tensão em relação àquilo a que esse nome nos remete). Cada qual entrega sua palavra a outro sonhador. A partir de seu sonho original, cada qual amplia sua narrativa incorporando a palavra do sonho alheio. É importante sentir, no corpo, como, sutilmente, a palavra afeta ou promove um gesto ou emoção, antes de incorporá-la em seu sonho. Na roda, cada qual narra seu sonho ampliado com a palavra alheia.

Desejo que extrai o que cria

O corpo sonhografa o sensível antes de significá-lo diante daquilo que traduz. Sonhar um sonho alheio, extrair sonhos do arquivo da educação, transcriar sonherias a partir de uma realidade estéril à fantasia são maneiras que usamos para manipular métodos de dramatização no corpo educador que sonha o informe. A aula-sonho é a tradução onirocrítica desse arquivo, é o estranho didático que transcriamos do currículo familiar. Escapam-nos, avessos à linguagem, os a-traduzir. Signos que não cansam de sonhografar o sensível no educador, tipo de personagem que

considera criação como a liberdade de inventar os próprios problemas; [...] sabe que criação é sempre processo de autocriação; ou seja, um diferenciar, diferenciando-se. [...]. Exercita se interrogar se tudo o que disse, [viu, pensou, sentiu, traduziu] até então, é tudo o que pode dizer [ver, pensar, traduzir(-se)] até agora [...].

(CORAZZA, 2018, p. 23).

O a-traduzir da aula-sonho dobra aquilo que interpreta, rebentando conceitos.

3Na compleição básica do Homo sapiens: há 200 mil anos (paleolítico é nosso pano de fundo, um precipitado que pode ser revolvido), temos a massa de sonhos de 2,5 milhões de anos (TÜRCKE, 2010, p. 13).

4Mental, do latim mens, “quer dizer sentido interno ou força imaginativa e, daí derivado também mentalidade ou espírito” (TÜRCKE, 2010, p. 98).

5 Dunker (2017) não cita ou relaciona o termo não lugar aos estudos de Marc Augé, etnólogo e antropólogo que cunhou esse conceito para os espaços “dos outros sem a presença dos outros, o espaço constituído em espetáculo” (AUGÉ, 1994 apud SÁ, 2014). Nessa perspectiva, os não lugares sinalizam funções. Grosso modo, são exemplos de não lugares: os aeroportos, os shoppings centers, as passagens, etc., isto é, grandes áreas de arquiteturas semelhantes e universalizantes. O conceito de não lugar, em nosso estudo sonhográfico, forja-se no informe do pensamento sem imagem, da velocidade caótica da ideia deleuziana, da intraduzibilidade da imagem do sonho, de sua capacidade de construir um não lugar (ou impossíveis espaços, como em citado de Dunker (2017). Não lugar do sonho: quando uma imagem não é o que diz. Não lugar da elaboração secundária: espaço dispositivo onde o pensamento não representa ou reproduz um silogismo via narrativa linear. Nos estudos da aula-sonho (REIS, 2019), o não lugar surgiu do próprio método da pesquisa: quando contamos um sonho, o sonho já não é mais espaço do sonho, não se trata de identidade, mas de diferir em bifurcações fugidias de a-traduzir na elaboração secundária. Porém, o não lugar do sonho pode ser relacionado aos estudos de Augé: se perspectivamos que os não lugares (de nossa “realidade”), construídos a partir de uma ideologia massificadora, são um sonho alheio que nos devora (sobre o qual Deleuze nos alerta). Lançado o sonho na discussão do não lugar de Augé, pela ressemantização do espaço criado pelo observador, problematizamos outro tipo de função social do sonho na formação do imaginário contemporâneo: “Os espaços físicos transformam-se em meios que possibilitam a interação no espaço virtual: nunca estamos onde estamos fisicamente – contatos, informações, publicidade (celulares, computadores, cartazes, monitores, alto-falantes) –, tudo isso nos transporta para outras realidades, problemas, alegrias, desejos, nos faz sonhar sem o sonho” (SÁ, 2014, p. 212). Referência ao artigo consultado: (SÁ, Teresa. Lugares e não lugares em Marc Augé. Tempo Social – Revista de Sociologia da USP, v. 26, n. 2, p. 209-229, 2014). Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/ts/v26n2/v26n2a12. Acesso em: 18 maio 2020.

6Para aprofundar a discussão do sonho como existência que permanece subliminar na vigília, sonho como condição à imaginação e não resultado dessa, indicamos o ensaio do filósofo Michel Foucault (1926-1984), Sonho, imaginação e existência, publicado em 1954, na introdução de Sonho e existência, escrito do psiquiatra suíço Ludwig Binswanger (1881-1956), pioneiro na psicologia existencial.

7Sobre virtual e atual na Filosofia da Diferença, a referência básica é: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Percepto, afecto e conceito. In: DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Trad. de Bento Prado Júnior e Alberto Alonso Muñoz. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 1997.

8Acerca do método do informe: o pensar por manchas, que não podem ser “reduzidas a uma lei única nem ter o todo deduzido de suas partes, tampouco ser reconstruídas por operações racionais” (CORAZZA, 2013, p. 63). Referência completa: (CORAZZA, Sandra. Método Valéry-Deleuze: um drama na comédia intelectual da educação. O que se transcria em educação? Porto Alegre: UFRGS: Doisa, 2013. p. 41-70).

9O inconsciente, pela teoria dos sonhos de Freud, é acessível e conhecido e de forma tão intensa que atormenta, sendo o recalque um pensamento reprimido, ou seja, os chamados pensamentos latentes do sonho, que são tomados como desejos. O desejo possui, portanto, uma forma no pré-pensamento, isto é, versões dos difusos impulsos da excitação (TÜRCKE, 2010, p. 69).

10A censura, quase um arquétipo onipresente em nossa mente, tem como caso-modelo o daimonion, isto é, o semelhante a Deus, a voz interior de Sócrates segundo Platão. Também os Dez Mandamentos, as regras sociais, e a influência da mídia possuem conteúdos censuradores subliminares. “Censura é um costume que está mais profundamente assentadodo que a reflexão” (TÜRCKE, 2010, p. 47), por isso a censura ocorre também nos sonhos.

11Uma ressalva deve ser feita: não estamos eliminando a separação simbólica “feminino e masculino”, pois funciona na imaginação ativa como forma de expressão (mormente no pensamento mítico, que é parte do onírico). Esse par de contrastes opera no tratamento e amadurecimento psíquico das imagens do sonho via processo de individuação, como por exemplo na interpretação alquímica de Jung (1954).

12Matéria, pela Filosofia da Diferença, é tudo o que existe em extensão no plano estratigráfico do “caosmos”, um plano extenso formado pelo conjunto de imagens que temos do mundo. O princípio da matéria é distensão cuja força intrínseca, prolonga-se no espaço. “A matéria não tem representação, tudo o que se obtém dos corpos materiais são sensações, vibrações intensas provocadas pelas substâncias incorporais implicadas na matéria” (ZORDAN, 2019, p. 38).

13A inversão é outro modo de deslocamento, no qual, na corrente associativa, um elemento é trocado por outro ou troca a redação de sua palavra por outra. Para Türcke (2010, p. 71) trata-se de outro modo de deslocamento, “que troca a esfera da palavra pela imagem, em vez de substituir um elemento por outro apenas no interior da esfera da imagem”.

14Temos, aqui, um processo de imaginar o pensamento sem imagem, como a não imagem deixada por Deleuze quando disse que o pensamento é um vampiro em frente de um espelho.

15Imagem e descrição da obra disponível em: https://collections.lacma.org/node/239578. Acesso em: 19 jun. 2020.

16Arrogância na acepção tratada por Türcke (2010), a ser a primeira tentativa da memória em rebuscar uma ação alucinatória. Einbildung é, atualmente, utilizada no sentido impreciso de ficção e presunção, arrogância; pura imaginação.

17Esquema freudiano do labor onírico: conteúdo latente + (deslocamento*condensação) + censura = conteúdo manifesto (narrável). (Nota das autoras).

18Uma das sonherias de arquivo pela diferença é que “a superfície desse arquivo-estrutura – como espelho defeituoso, não ideal, mas produtor da dessemelhança e da diferença – é, assim, não só fronteiriça, tanto aos corpos como à linguagem, mas lhes dá sustentação” (CORAZZA, 2018, p. 11-12).

Referências

BERADT, Charlotte. Sonhos no Terceiro Reich: a origem da ideia. In: BERADT, Charlotte. Sonhos do Terceiro Reich. Trad. de Silvia Bittencourt. São Paulo: Três Estrelas, 2017. p. 29-55. [ Links ]

CORAZZA, Sandra. Uma introdução aos sete conceitos fundamentais da docência-pesquisa tradutória: arquivo EIS AICE. Pro-Posições. http://dx.doi.org/10.1590/1980-6248-7 conceitos EA, 2018-0042, 2018. [ Links ]

CORAZZA, Sandra. Currículo e didática da tradução: vontade, criação e crítica. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 41, n. 4, p. 1.313-1.335, out./dez. 2016. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/2175-623658199. Acesso em: 19 jan. 2019. [ Links ]

DELEUZE, Gilles. O ato de criação Trad. de José Marcos Macedo. São Paulo: Folha de São Paulo, 1999. Palestra dada em 1987. [ Links ]

DUNKER, Christian. O sonho como ficção e o despertar do pesadelo. In: BERADT, Charlotte. Sonhos do Terceiro Reich. Trad. de Silvia Bittencourt. São Paulo: Três Estrelas, 2017. p. 8-26. [ Links ]

FREUD, Sigmund. Dream Psychology Psychoanalysis for Beginners. Trad. de M. D. Eder. The Project Gutenberg: EBookk#15489. 2005. 237 p. Disponível em: http://www.gutenberg.org/ebooks/15489. Acesso em: 19 jul. 2019. [ Links ]

JUNG, Carl Gustav. Consideraciones generales sobre la psicología del sueño. In: JUNG, Carl Gustav. Energética psíquica y esencia del sueño. Trad. de Ludovico Rosenthal e Blas Sosa. Buenos Aires: Paidós, 1954. p. 108-163. [ Links ]

KEROUAC, Jack. O livro dos sonhos. Trad. de Milton Persson. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2013. [ Links ]

REIS, Marina dos. Sonhografias de aula. São Paulo: Pimenta Cultural, 2019. 140 p. [ Links ]

SIGNELL, Karen A. Entendendo os sonhos. In: SIGNELL, Karen A. A sabedoria dos sonhos: para desvendar o inconsciente feminino. Trad. de Carmen Fischer. São Paulo: Ágora, 1998. p. 35-64. [ Links ]

TÜRCKE, Christoph. Palavra. In: TÜRCKE, Christoph. Filosofia do sonho. Trad. de Paulo Rodi Schneider. Ijuí: Ed. da Unijuí, 2010. p. 213-299. (Coleção filosofia, 36). [ Links ]

ZORDAN, Paola. Matérias. In: ZORDAN, Paola. Gaia educação: arte e filosofia da diferença. Curitiba: Appris, 2019. p. 33-38. [ Links ]

Recebido: 21 de Julho de 2019; Aceito: 25 de Junho de 2020

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.