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Conjectura: Filosofia e Educação

versión impresa ISSN 0103-1457versión On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.25  Caxias do Sul  2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v25.e020034 

ARTIGOS

Uma breve reflexão sobre o direito à preguiça

A brief reflection on the right to laziness

*Graduado em Filosofia e História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste). Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Atualmente é diretor do Instituto Ciência e Fé e professor no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCPR. E-mail: fabiano.incerti@yahoo.com


Resumo

Tendo por base os pensamentos de dois importantes intelectuais franceses do século XX, este trabalho pretende perguntar pelo lugar da preguiça em tempos em que todos são cobrados por sua alta performance. Foucault mostra, em diferentes momentos, que tanto do ponto de vista moral como em relação aos processos econômicos, a preguiça foi reprovada, vigiada, controlada. Vemos isso, por exemplo, em seu curso “A sociedade Punitiva” (1972-1973), que a preguiça clássica dos séculos XVII e XVIII, vista como vício indolente e antiprodutivo e combatida com força policial, passa, a partir do século XIX, para um tipo complexo de ilegalismo, que compromete a maximização da produção e do lucro e é contida com trabalho intenso e contínuo e com a vigilância moral sobre o trabalhador. Como se vê em Vigiar e punir (1975), é a sociedade disciplinar e vigilante, que, atuando sobre os corpos, deve eliminar todo tipo de preguiça, a fim de que se possa extrair deles a maior utilidade possível. Já no curso “Nascimento da biopolítica” (1978-1979), ele nos ajuda a perceber que o modelo neoliberal deve banir a preguiça, na medida em que o que se busca, na economia de mercado, é a máxima eficiência. Concomitantemente aos cursos de Foucault, dedicados a questões do liberalismo e do neoliberalismo, Roland Barthes, numa entrevista intitulada “Ousemos ser preguiçosos”, de 16 de dezembro de 1979 ao jornal Le Monde, nos provoca a pensar que houve, no Ocidente, a perda da “instituição preguiça” em vista, principalmente, de certa obrigação de diversificação do tempo. Por isso mesmo, para nós, torna-se intolerável o “não fazer nada”; é preciso, a todo momento, inserir algo à vida.

Palavras-chave Preguiça; Tempo; Michel Foucault; Roland Barthes

Abstract

Based on the thoughts of two critical French intellectuals of the twentieth century, in this article, we intend to ask about the place of laziness, when everyone has been charged for their high performance. Foucault shows us at different moments of his thinking that from both, a moral point of view and concerning economic processes, laziness was disapproved, watched, controlled. We see this, for example, in his course The Punitive Society (1972-1973), in which the 17th and 18th centuries classic laziness, seen as indolent and unproductive addiction and fought by the police force, changes from the 19th century to a sophisticated type of illegalism, which compromises the maximization of production and profit and is contained with intense and continuous work and with moral vigilance over the worker. As seen in Discipline and Punish (1975), it is the disciplinary and vigilant society that, acting on bodies, must eliminate all kinds of laziness to extract the highest possible use from them. In the course entitled The Birth of Biopolitics (1978-1979), he helps us realize that the neoliberal model should ban laziness, since what is sought in the market economy is maximum efficiency. Concomitant to Foucault’s courses, dedicated to the issues of liberalism and neoliberalism, Roland Barthes, in an interview entitled Let us dare to be lazy, from December 16, 1979, to Le Monde, makes us think that there was in the Western society a loss of the “institution laziness” due mainly to a specific obligation to diversify time. For us, “doing nothing” is intolerable. Thus, it is always necessary to insert something into life.

Keywords Laziness; Time; Michel Foucault; Roland Barthes

Introdução

Da breve entrevista dada por Roland Barthes ao jornal Le Monde, em 16 de dezembro de 1979, intitulada “Ousemos ser preguiçosos”, podemos extrair, inicialmente, correndo certo risco, que a preguiça se insere na literatura ocidental, em dois diferentes registros: o político e o moral. Em relação ao primeiro, diante da estrutura de constrangimento que, segundo ele, a escola representa, a preguiça significa, exatamente, uma forma de o aluno driblar tal repressão, não de modo direto, mas como algo que pertence a um código de aula, a “uma língua natural do aluno”: “A preguiça pode ser uma resposta a essa repressão, uma tática subjetiva para assumir-lhe o tédio, minimizar-lhe a consciência e, de certo modo, assim, a dialetizar” (BARTHES, 2004, p. 473). Sobre o segundo registro, ele parte do significado etimológico da palavra preguiça, sendo que piger é o termo latino de que deriva prigritia, precisamente porque é lento, indolente, lascivo. Trata-se, nesse caso, para ele, da representação de que algo se realiza de maneira triste, malfeita, praticada a contragosto.

Mas não é difícil descortinarmos, com a ajuda de Foucault, alguns motivos pelos quais a problematização moral foi determinante para a compreensão da preguiça como uma palavra maldita e um comportamento condenável. A dessacralização da pobreza, a partir do século XVII, abriu caminho para que ela fosse associada à vagabundagem e à errância, e figuras como a do louco, do mendigo e do vagabundo transformaram-se num empecilho para uma organização social na qual, em nome de uma uniformização moral, não se compreendesse mais a miséria como uma dimensão mística. O problema que se coloca é de ordem pública, pois há “uma classe da sociedade que vive na desordem, na negligência e quase na ilegalidade” (FOUCAULT, 2008a, p. 488). A preguiça, dessa forma, é reconhecida como um vício, e aquele que a pratica, ou pelo menos aquele que não tem as forças ou as condições necessárias para derrotá-la, converte-se numa personalidade que precisa ser corrigida. Correção, essa, que se promove por meio do trabalho.

Dessa forma, aproximando os pensamentos de dois importantes intelectuais franceses do século XX, este trabalho pretende perguntar pelo lugar da preguiça em tempos em que todos são cobrados por sua alta performance e que, diante de certa obrigação de diversificação do tempo, torna-se intolerável, também para os intelectuais, o “não fazer nada”.

Preguiça e cristianismo

Se parece quase inevitável aos nossos olhos de hoje correlacionar preguiça e trabalho, ou, se quisermos, a preguiça e a pouca vontade para o trabalho, sabemos que a vigilância e a contenção desse vício têm suas raízes fixadas bem antes do encarceramento da loucura e da pobreza no século XVII ou mesmo do modo capitalista de produção do século XIX. Elas já se encontravam numa literatura particular nascente, própria do modo de vida monástico-cristão, que se modulava de forma extremamente regrada e com uma distribuição rigorosa, calculada e exaustiva do tempo.

Mantendo parentesco com a noção de acídia, que nos pecados capitais propostos por Evágrio Pôntico se refere a um misto de tristeza (tristitia) e de aborrecimento (abhorrescere) e se configura, no interior da vida religiosa, como o mais “pesado” de todos os vícios (PONTIQUE, 1971, p. 521), talvez possamos dizer, à primeira vista, que a preguiça adquire, no decorrer da história do Cristianismo, contornos ambíguos. Da mesma forma que o trabalho, que se tornou valor obrigatório (2Tes. 3,10-12) sem deixar de ser uma maldição (Gen. 3,17-19), também o ócio foi santificado (Mt. 6, 26) e, simultaneamente, visto como prescrição (Ex. 20, 8) ou, mesmo, com reprovação (Rm, 12,11).

Mas não foi somente Evágrio quem alertou sobre os riscos espirituais e antropológicos desse “demônio meridiano”,2 “que ataca o monge por volta da quarta hora e faz o cerco à sua alma até a oitava hora”, pois “primeiro, ele faz com que o sol pareça lento ao se mover, ou mesmo imóvel, e que o dia pareça ter cinquenta horas” (PONTIQUE, 1971, p. 521). João Cassiani (1846, p. 364), no século IV, recorda que é “perto do meio-dia” que o monge se inquieta e, dois séculos depois, João Clímaco, autor de A escada santa, indica, inclusive, os momentos nos quais os monges estão mais vulneráveis ao ataque desse inimigo. Ataques que, superando em muito somente a letargia da alma, geram, sobretudo, indisposição física, pois “três horas antes da refeição, o demônio da preguiça causa calafrios, dores de cabeça, febre e dores intestinais” (CLÍMACO, s/d, p. 98). O que vemos é como a preguiça está, junto com outros pecados, no centro de todo um importante debate que se desenvolve em torno do combate interior (CASSIANI, 1863, 671; 1.250-1.252) ou seja, de uma luta contra os “próprios demônios”, pois como escreve Clímaco, “a vida monástica resiste à preguiça; mas, por outro lado, a acídia é tão perpétua companheira do monge solitário, que não o deixaráe o combaterá em todos os dias de sua vida” (CLÍMACO, s/d, p. 97).

Outro exemplo se encontra nas regras beneditinas. Com o lema ora et labora, elas reservam todo um capítulo (SÃO BENTO, 1899, p. 140-145) para a necessidade de ocupação do tempo cotidiano, propondo que as horas não preenchidas com trabalho manual devam ser empregadas na oração e na leitura espiritual. A confluência dessas duas dimensões no cerne da vida monástica – a atividade laboral e a vida espiritual – será para Agamben uma primeira experiência de sobreposição íntima, “a ponto de quase coincidirem” (2014, p. 35), entre tempo e vida, pois “à minuciosa regulação cronológica de cada ato exterior corresponde uma escansão temporal igualmente meticulosa do discurso interior” (2014, p. 36). Dessa forma, essa “pretensão totalitária da instituição monacal” (2014, p. 37), que descreve, entre outras coisas, detalhadamente, a divisão que o monge precisa adotar da primeira à última hora do dia, não deixa de ser, certamente, uma batalha contra a ociosidade e a preguiça, pois essas são, como destaca o texto de São Bento, “inimigas da alma” (SÃO BENTO, 1899, p. 140).

Os Exercícios da meditatio e da prosochè traduzem, dessa forma, a hibridez contida no cruzamento entre trabalho e oração, pois, diferentemente da liturgia, que separa a oração, os afazeres e o repouso, a vida monacal será tomada pela totalidade da existência medida pelo tempo. A primeira delas, compreendida de maneira distinta da ideia de meditação que conhecemos hoje, se configura como a prática de decorar algum texto, em especial, das escrituras, para depois recitá-lo e utilizá-lo de acordo com a necessidade que se imponha para cada ocasião. Como os preceitos vitais já estão na memória do anacoreta, a leitura espiritual (lectio) torna-se dispensável, fazendo com que o exercício possa ser praticado integralmente no decorrer de todas as atividades diárias do monge. A vigilância (prosochè), por sua vez, trata-se da atenção total no presente e sobre si mesmo, evitando, dessa forma, todo tipo de distração ou devaneio. Da mesma forma que a prática anterior, essa também implica cuidado com cada momento da existência, correlacionando, de maneira inseparável, tempo interior e tempo exterior.

Contudo, no mundo cristão, talvez não tenha havido experiência mais ordenadora e exaustiva do tempo do que a da Companhia de Jesus, com seus Exercícios espirituais. Escritos por seu fundador, Inácio de Loyola, a própria estrutura textual do manual, como nos recorda Barthes, expressa tal intencionalidade, na medida em que há uma obsessão temporal, pois tudo é meticulosa e imediatamente dividido, subdividido, organizado em semanas, dias, horas, momentos, meditações. E, por trás disso, está o obstinado conceito de discernimento, cuja finalidade é distinguir, separar, apartar, limitar, enumerar, avaliar e reconhecer a diferença (BARTHES, 2005, p. 52). Por consequência, aquele que pratica os Exercícios tem um árduo e metódico trabalho a realizar. Depois de “esvaziar-se” de tudo que é mundano, é pela escrita, permeada de protocolos e condições materiais, que será possível, para ele, “captar o signo da divindade”. O que temos, então, é uma luta incessante, verdadeiramente diabólica e dramática, na qual se constrói a experiência do labor da escritura e do pensamento, que exige concentração, esforço e dispêndio de tempo.

Será no interior desse texto, no qual tudo é contabilizado, que a preguiça, citada por pelo menos três vezes na fórmula inaciana,3 será, associada tanto à desolação da alma (LOYOLA, 1966, p. 194), ou seja, à perturbação, à inclinação às coisas baixas e terrenas e à inquietação, quanto ao desleixo na execução de boas obras (LOYOLA, 1966, p. 217). Por um lado, a preguiça continua mantendo uma estreita relação com a acídia, por conta, exatamente, do risco da letargia espiritual, ou seja, ela é um inimigo que sequestra um indivíduo vulnerável, que se esforça, por meio de uma série de práticas, para ter algum controle sobre suas paixões e sentimentos. Contudo, o que a tradição inaciana ressignifica, de forma bastante sutil, mas decisiva, é a ideia de que a preguiça é uma forma de indisposição, de certa maneira voluntária, consciente; uma escolha. Por isso mesmo, nos Exercícios, não se trata somente de um problema da realização de obras, mas algo que se relaciona com a constituição de uma sofisticada racionalidade de perscrutação de si e o compromisso com um método de aproveitamento do tempo em relação ao que se pensa e ao como se pensa.

Manual de ascese universalmente apreciado, a influência dos Exercícios, seguramente, extrapolou a dimensão religiosa, pois não é preciso nem ser jesuíta, nem católico, nem cristão, nem crente, nem humanista para interessar-se por ele (BARTHES, 2005, p. 37).

Foucault oferece um exemplo bastante significativo quando o assunto é a “plena ocupação do tempo” como herança do modelo espiritual inaciano.

Trata-se das reduções jesuíticas no Paraguai, as quais o pensador francês considera um microcosmo disciplinar. Nelas, os guaranis estavam submetidos a “um esquema de comportamento absolutamente estatutário” (2006, p. 86) que continha, para cada hora, sua respectiva atividade – as refeições, o trabalho, o descanso – e, ademais eles eram despertados à noite “para que pudessem fazer amor e filhos na hora marcada” (2006, p. 86).

Controle do tempo, disciplina dos corpos e contenção da preguiça. Tal modelo de vigilância e controle da preguiça era regido por um sistema de punição, que, diferentemente do modelo europeu da época, que atuava com a pena de morte ou com o suplício, se dava, entre os padres e os indígenas, de maneira mais orgânica e permanente; algo que se estendia por toda a vida do indivíduo e que, “a cada instante, em cada um dos seus gestos ou das suas atitudes, era capaz de identificar alguma coisa que indicasse uma má tendência, uma má propensão, etc.” (2006, p. 87).

Se a preguiça é, então, uma “indisposição voluntária” significa que ela pode e deve ser educada. Foucault mostra que, a partir do século XVII, no bojo das escolas cristãs, que ofereciam aos filhos dos pobres a educação que seus pais não haviam recebido, se desenvolve uma pedagogia de combate à preguiça, que se entende, naquele momento, ser um defeito moral. Ela, junto com a ignorância sobre Deus, é a causa de que uma tropa de mendigos corteje a bebedeira, a impureza, os furtos, o banditismo, que enchem os fundos do Hôtel-Dieu (FOUCAULT, 2000, p. 173).

Com a Revolução, a função da escola mudará, pois deixará de ser esse lugar de correção e passará a constituir um espaço normatizador em vista da produção de um bom aluno. Com isso, a preguiça continuará sendo um problema que deve ser confrontado, mas agora por outros motivos. Da correção do vício se passa à ideia de que é preciso, por um conjunto de pressões insistentes e contínuas, produzir um corpo útil, disciplinado, que tem por finalidade, como lembra Foucault, fortificar, desenvolver, dispor a criança “para qualquer trabalho mecânico no futuro”, dar-lhe “uma capacidade de visão rápida e global, uma mão firme, hábitos rápidos” (FOUCAULT, 2000, p. 174). Logo, a preguiça novamente se cruza com o tempo, para gerar o que Frédéric Gros (2012, p. 255) denomina de uma “cronopolítica”, ou seja, “uma ocupação completa, exaustiva, sistemática e racional do tempo da vida”. O estudante não deve perder nem um minuto de sua formação, tampouco o operário em sua jornada na fábrica, pois cada instante desperdiçado, por distração ou ociosidade, significa uma produção menor de riqueza, quer econômica, quer intelectual, quer moral.

Preguiça e produção

Se em nome de uma cruzada contra a preguiça o mosteiro e a escola se tornaram instituições reguladoras e otimizadoras do tempo, o mesmo acontecerá com mais intensidade quando o problema passa a ser, a partir do século XVIII, os processos produtivos. Desde então, sabemos, o preguiçoso será considerado um empecilho à produção e ao lucro, e, por isso mesmo, passível de condenação, não mais somente do ponto de vista moral, mas sobretudo, sob uma ótica jurídica. Isso é o que nos mostra Foucault em seu curso de 1972 e 1973 no Collège de France: “A sociedade punitiva”.

Em suas aulas, ele analisa, na obra do economista francês Le Trosne, Mémoire sur les vagabonds e sur les mendiants de 1764, como nasce entre os fisiocratas a intrínseca ligação entre a preguiça, a economia e a criminalidade. Duas perspectivas novas se apresentam nesse momento e se opunham ao modelo de assistência herdado da Idade Média, que, para a redução do problema da pobreza e da mendicidade, se utilizava de meios privados, eclesiásticos e legislativos. A primeira perspectiva “fixa a posição, o papel e a função da delinquência, não em relação ao consumo de massa de bens disponíveis, mas em relação aos mecanismos e processos de produção” (2018, p. 43). Disso decorre a segunda, pois, na medida em que a delinquência passa a ser demarcada pelo problema da produção, não se trata mais de compreender o delinquente imputado nessa espécie de erro econômico, no qual ele compartilha uma parcela de consumo sem precisar dar nada em troca, mas passa a ser concebido como um inimigo público; aquele que, para subsistir, precisa roubar.

Há, nesse contexto, dois lugares específicos que a obra de Le Trosne demarca, teoricamente, e que serão decisivos para corroborar a ideia de preguiça que povoa o imaginário ocidental. Primeiramente, o fato de que a ociosidade é considerada a mãe de todos os vícios. Não mais percebida como um pecado individual, ela passa a ser “um traço psicológico ou a falta de que derivam todas as outras formas de desvios ou crimes” (2018, p. 43). Por isso, menos que por uma característica singular de personalidade, o vagabundo é um errante pertencente a um grupo social – o conjunto dos errantes – e “que se apresenta como uma contrassociedade” (2018, p. 43). Para os fisiocratas (como Le Trosne), a terra é generosa, pois oferece a todos a oportunidade de nela produzir sua subsistência, mas o ocioso é aquele que decidiu, por vontade própria, recusar tal generosidade e partir mendigando e vagando pelas cidades. Dessa forma, o vagabundo é alguém que toma a decisão deliberada de se tornar antiprodutivo. Como lembra Foucault, “há, pois, uma identidade primordial e fundamental entre vagar e recusar trabalho: é nisso que, para os fisiocratas, reside o crime do vagabundo” (2018, p. 45).

Dessa ideia decorre o segundo lugar demarcado por Le Trosne (2018), no qual a delinquência provém diretamente da vagabundagem. O vagabundo deve ser punido porque se converte num errante, sem endereço fixo ou sem um trabalho regular. Não tendo a posse de uma localização geográfica, ele perambula, invadindo plantações e roubando o gado. E, quando esses recursos naturais se tornam escassos, rouba as casas, na maioria das vezes, com violência. Disso, Foucault entende que

nas análises do século XVII, partia-se do desemprego para explicar a mendicidade e a delinquência; para os fisiocratas, o organizador já não é esse par. E os criminosos aparecem como inimigos sociais em virtude do poder violento que exercem sobre a população e de sua posição no processo produtivo como recusa ao trabalho

(2018, p. 46).

Se, por um lado, vagabundear e perambular mantêm, entre si, uma estreita relação do ponto de vista jurídico, é verdade, por outro lado, que esse par acarretará, igualmente, segundo Le Trosne (2018), uma série de consequências econômicas. Entre elas, a rarefação de mão de obra nas regiões mais pobres, com o consequente aumento de salários; redução de produtividade; diminuição dos rendimentos da população local, pois, na medida em que vagueiam, os ociosos não pagam seus impostos e imputam essa carga tributária aos que têm endereço fixo; crescimento da população que extrai uma parte do consumo global, dado que, por onde passam, os vagabundos deixam seus filhos naturais ao léu, os quais, consequentemente, serão consumidores. Por isso, já não se trata de compreender o ocioso somente como aquele que retira sua parte do que é produzido sem devolver nada para o sistema econômico ou social, mas é o de vê-lo como alguém que perturba e impacta os mecanismos de produção.

Qual é, então, a solução proposta por Le Trosne (2018) para a vagabundagem? Associada a um modelo de escravização, no qual o vagabundo deve trabalhar exaustiva e coercitivamente, cria-se todo um aparato jurídico que o torna criminoso e o faz perder toda forma de proteção legal. Mas o que realmente o economista francês espera, de maneira utópica, como lembra Foucault, é uma “sociedade inteira dedicada ao trabalho, que teria o direito de abater, à primeira vista, qualquer pessoa que vagasse” (2018, p. 48). O campesinato armado, em substituição ao insuficiente poder estatal, teria o poder de criar para os ociosos uma “grande reclusão no local de trabalho” (2018, p. 48), condenando à morte todo aquele que se negasse a essa espécie de fixação. Não obstante, se o sistema selvagem proposto por Le Trosne não encontra, pelo menos em seu tempo a plena realização, sob outras formas, ele “vai ocorrer meticulosamente quando as instituições e as medidas capitalistas forem instaladas” (2018, p. 48).

Já no século XIX, em pleno desenvolvimento do capitalismo, o problema será o de fixar o corpo do operário à máquina, em vista da maximização da produção. Contudo, para essa nova fase da organização do sistema produtivo surgem, igualmente, novas formas de preguiça, que não correspondem, como lembra Foucault, “à maneira como a ociosidade foi codificada, institucionalizada, certa maneira de distribuir o não trabalho ao longo dos ciclos de produção, de integrar a ociosidade na economia, assumindo-a e controlando-a dentro de um sistema de consumo” (2018, p. 173), mas dizem respeito, sobretudo, ao que ele chama de “ilegalismo de dissipação”, ou seja, os diferentes modos de como o trabalhador se recusa a entregar seu próprio corpo ao corpo da riqueza.

Tal recusa pode assumir variados contornos, como a clara decisão pela ociosidade, na qual o operário nega oferecer sua força à livre-concorrência do mercado ou com uma forma de irregularidade, uma vez que ele deposita seu labor onde e quando achar mais viável. Mas havia também o risco de ele dispensar sua energia naquilo que não era útil à produtividade, como, por exemplo, em festas ou se entregar à devassidão, na medida em que, no lugar de criar seus filhos, garantindo, assim, a renovação da máquina produtiva, ele optava pelo concubinato. Assim, a preguiça assume esse caráter de nomadismo, exatamente porque rompe com a fixação territorial e a familiar e se caracteriza, cada vez mais, por um tipo de “mobilidade no espaço” (2018, p. 173).

Contra essa “força perturbadora” que é a preguiça, com seus inúmeros desdobramentos considerados danosos por aqueles que regiam o capital, Foucault constata o nascimento de uma literatura que denunciava a postura indolente da classe operária e que tinha, por objetivo, moralizá-la.4 Juntamente com algumas taras próprias do proletariado (como a intemperança, a renúncia em qualificar sua força de trabalho e a falta de higiene), tais textos condenavam principalmente o mau uso do tempo e da folga, que para os patrões, em nome de uma organização, deveria ser algo regido por eles. O tempo do trabalhador é, então, um problema moral, mas principalmente econômico, dado que os empresários, que faziam altos investimentos em estrutura, maquinário e mão de obra, viam seus lucros diminuírem cada vez mais.

Nesse sentido, diferentemente dos séculos XVII e XVIII onde a preguiça, como recorda Foucault, é definida como ociosidade (2018, p. 173) e combatida, por um lado, pela pressão quase individual e enérgica que o mestre-artesão exercia sobre o aprendiz e, por outro, pelo poder estatal, que coloca todos para trabalhar em vista do aumento da produção, utilizando, para isso da força policial, o século XIX vê nascer, junto com as fábricas e centros industriais, um tipo de recusa ao trabalho que é mobilizadora da coletividade e que pressiona os empregadores: as greves. Da preguiça clássica – vício indolente e antiprodutivo – passa-se a um complexo tipo de ilegalismo que tem como característica não só afastar o corpo do trabalhador da máquina, mas incentivar seu nomadismo físico e moral, e o mais desafiador para os patrões era promover a dispersão do tempo do operário; tempo, esse, fundamental para a maximização da produção e do lucro. Que saídas havia para os empregadores? Conter essa forma de preguiça por meio de trabalho intenso e contínuo, da vigilância moral e da ocupação orgânica do tempo dentro e fora das fábricas.

Marcelo Jasmim, em seu texto A moderna experiência do progresso (2012, p. 461-462) refere que a passagem do mundo camponês-artesão para o da sociedade industrial exigiu uma radical reestruturação dos hábitos de vida, demandando mentes e corpos, que, ora submetidos à disciplina, ora ao incentivo em vista da produtividade, tiveram que se adequar às condições do trabalho fabril. A despeito, inclusive, de aspectos como o clima local, a idade do indivíduo ou a atividade que se realiza, o sistema determina que se deve trabalhar um número fixo de horas por dia, no qual o tempo está submetido ao relógio, contabilizado até mesmo em suas frações, como horas, minutos e segundos. As antigas medições temporais, como o terremoto que não durou o tempo de dois credos ou o ovo que deveria cozinhar no espaço de uma reza, em voz alta, da Ave-Maria, e que marcavam a orientação do trabalho por tarefas, cede lugar, então, à orientação do trabalho no qual a produtividade é o indicador temporal.

Foucault acrescenta mais um importante elemento a esse debate. Em seu curso de 1978-1979, proferido no Collège de France, intitulado o Nascimento da biopolítica, ele mantém um diálogo atento com as teorias do economista americano Gary Becker, e mostra que, com o neoliberalismo, se redefine a figura do homo oeconomicus, mas com um importante deslocamento. Se, na concepção clássica de economia, trata-se de um dos dois parceiros no processo de troca, no neoliberalismo, ele é um empresário de si, um gestor de si, sendo, como afirma o pensador francês, “ele próprio seu capital, sendo para si mesmo seu produtor, sendo para si mesmo a fonte de [sua] renda” (2008b, p. 310). Tudo passa a ser uma mercadoria; tudo deve ser pensado como empresa. Mesmo a educação dos filhos, que, por muito tempo, se fundamentou na transmissão de uma herança cultural clássica, para que eles pudessem se transformar em cidadãos responsáveis, passa, agora, pelo crivo da noção de capital humano, pois também esse aspecto da vida deve ser bem-administrado, com a espera de resultados rentáveis. Nesse sentido, a educação familiar tem igualmente sua notação abstrata medida pelo relógio, mas não somente por ele, mas também em termos econômicos, pois, é preciso, no processo educativo, a inversão de tempo por parte dos pais, cuidados educacionais e investimentos financeiros (FOUCAULT, 2008b, p. 335-336).

Estamos diante, então, de um sujeito do desempenho. Por ter se transformado em seu próprio capital, em seu próprio produtor e em sua própria fonte de renda, é ele mesmo quem deve se disciplinar, equalizar seu tempo, mercantilizar suas relações, ampliar seus rendimentos, potencializar sua eficiência. Do sujeito que prescinde de vigilância, bem como do sujeito que deve controlar suas paixões e afetos, passamos ao sujeito que tem como obrigação ser um bom administrador de si, ou, se quisermos, em termos contemporâneos, um coaching de si mesmo. Isso se comprova, por exemplo, se levarmos em conta o desenvolvimento tecnológico, com a proliferação de uma série de aplicativos para celulares destinada à gerência de si. Em nome de uma organização pessoal, que parece indispensável à sobrevivência em nossa época, eles oferecem infinitos modelos de agendas, planilhas para autocontrole financeiro e a possibilidade de aplicação em fundos de investimento com um único toque e que, não por acaso, estão distribuídos sob uma categoria, no interior dos sistemas operacionais, denominada de “produtividade”.

A preguiça, que deixa de ser pecado, defeito moral, ou mesmo signo de improdutividade – ou, quem sabe, continua sendo um pouco disso tudo – reassume, novamente, sob o crivo de certa desconfiança e ambiguidade, diante do novo paradigma laboral que se impõe na atualidade, um lugar de valorização. Isso porque, ainda que tenhamos um enorme contingente de trabalhadores braçais e uma precarização das condições de trabalho em diferentes partes do mundo, é verdade, também, por conta principalmente da automação e da robotização de processos e de postos de trabalho, que uma série de tarefas, que se realizavam somente com o esforço humano passa, a partir de agora, a ser desnecessária. Assim, a preguiça volta ao debate, relacionada, principalmente, ao problema: o que fazer com o “tempo livre”. Ela passa a ser um importante ativo, desde que enquadrada e gerida de maneira útil do ponto de vista social e produtivo para o modo de produção econômico. Em síntese: eu posso ter acesso a ela (ou a um espectro dela), na medida em que isso me ajude a alcançar a maximização da minha produtividade.

À guisa de conclusão: e os intelectuais?

Tais aspectos nos levam novamente à entrevista de Barthes e para algo que ele denuncia. Não há mais, no Ocidente, a possibilidade do “não fazer nada”. Por preguiça, hoje se compreende, na melhor das hipóteses, certo corte no tempo, ou melhor, uma diversificação dele. Sempre é preciso inserir algo à vida; uma nova atividade, uma nova coisa a fazer. Fala-se constantemente do direito ao lazer, mas não de um direito à preguiça. A verdadeira ociosidade, aquela dos zeladores parisienses que antes da guerra colocavam suas cadeiras na rua e se sentavam sem fazer nada, desapareceu. Como recorda o linguista francês, “essa é uma visão de preguiça que se apagou. Não a encontro mais na vida. Na Paris atual, não há mais tantos gestos de preguiça. O café é, mesmo assim, uma preguiça com rodízios: há conversas, um ‘parecer’ também. Não é a verdadeira preguiça” (BARTHES, 2004, p. 477).

Nem política nem moral, a verdadeira preguiça em Barthes se aproxima das cintilações do Neutro.5 Trata-se, sobretudo, da possibilidade de “não decidir” ou de somente “estar presente”, como “um sujeito que está alijado de sua consciência de sujeito” (BARTHES, 2004, p. 478). Ela tem a forma de aniquilamento, ou seja, a possibilidade de fugir do encadeamento, do tecido das deliberações, que nos obriga constantemente a agir e a responder. Encontramos já os primeiros traços dessa preguiça em seu livro de 1977, Fragmentos de um discurso amoroso, no qual ele aponta que

as situações que, por sorte, não me impõem nenhuma responsabilidade de conduta, por mais dolorosas que sejam, são recebidas numa espécie de paz; sofro, mas pelo menos nada tenho que decidir: nesse caso, a máquina amorosa (imaginária) anda sozinha, sem mim; como um operário da idade eletrônica ou como o péssimo aluno do fundo da sala; só tenho que estar lá: o karma (a máquina, a aula) faz barulho diante de mim, mas sem mim. Na própria infelicidade, posso, por um rápido instante, me arranjar um cantinho de preguiça

(BARTHES, 2018, p. 95).

Por isso, lembra Barthes em seu penúltimo curso no Collège de France, entre os anos de 1978-1979, que a ociosidade tem um parentesco com o retirar-se, com um recolher-se, com uma certa saída do mundo, como Rousseau em Bienne, que se devota inteiramente ao não fazer nada: “Nada de livros, nada de escrivaninha: suspensão da escrita: substituição por uma atividade tranquilizadora, porque sem responsabilidade: herborizar: resolver fazer a flora-petrinsularis: descrever todas as plantas da ilha; interessar-se principalmente pela sexualidade das plantas” (BARTHES, 2003, p. 286-287).

Refere-se a uma ociosidade em relação a tudo que é próprio do intelectual e a substituição por um saber irênico – uma fantasia insular, uma abolição do tempo e uma alteridade ligeira e banal que se expressa

pela anotação curiosa e sutil... o recebedor, a mulher e os criados, que eram todos na verdade gente muito boa e nada mais. Isso quer dizer o quê? Suportável, que não desfaz o retiro, porque insignificantes, pois não eram intelectuais, escritores, políticos: a “ideosfera”, a “ideologia” deles não interferia na de Rousseau”

(BARTHES, 2003, p. 286-287, grifos do autor).

É verdade, também, como lembra Barthes ao evocar Proust, que a escrita – e quiçá isso sirva também à pesquisa – não é um ofício preguiçoso (BARTHES, 2004, p. 480). Inicialmente nos enamoramos com as lembranças, com os incidentes, com as sensações, com os autores e seus textos para, em seguida, sentarmo-nos à mesa em que se escreve. Há, nessas duas atividades – da escrita e da pesquisa – um prazer, mas que é sempre atravessado por zonas muito duras, propensas a certos riscos, como os cansaços, as tentações de desistir e as revoltas (BARTHES, 2004, p. 481).

Por isso mesmo, há muito, a preguiça se tornou inimiga do labor intelectual, em especial, no meio acadêmico. Mesmo que ela se mantenha na cabeça de alguns (ou de muitos), a ideia do pesquisador-escritor como um ocioso, muitos deles inclusive sustentados pelo Estado, constatamos que a produção intelectual, principalmente nas últimas décadas, se transformou numa experiência regrada, monitorada, metrificada; a exigência é que sejamos sempre mais produtivos. Não por acaso, por vezes, o intelectual é comparado, com algum nível de orgulho, mesmo entre os próprios intelectuais, a um operário.

Se, em tempos como os nossos, em que somos cobrados e avaliados pela nossa alta performance não temos mais o direito à preguiça (LAFARGUE, 2000, p. 28), como o fez Sêneca, com sua tranquilidade da alma (2014, p. 227; 229-230), Michel de Montaigne com o ócio produzido no cantinho da solidão (2000, p. 172) ou Nietzsche com sua amizade à lentidão (2004, p. 12-13), resta-nos, diante de todo rigor, austeridade e desempenho, que os ofícios da pesquisa e da escrita, hoje, nos exigem, a possibilidade de, pelo menos, fazermos uma filosofia sobre ela.

2Demônio meridiano (δαιμόν μεσηβρινός) é uma expressão tirada por Evágrio Pôntico do Salmo 91 (90), que, em português, foi traduzido da seguinte forma: “[...] Você não temerá o terror da noite, nem a flecha que voa de dia, nem a epidemia que caminha nas trevas, nem a peste que devasta ao meio-dia.”

3Números 317.3; 322.1; 368.2.

4Em sua aula de 14 de março de 1973, Foucault cita duas obras: De la moralisation des classes laborieuses, publicada em 1851 por Alphonse Grün e La santé des populations dans les grands centres manufacturiers, publicada em 1847 nos Annales d’Hygiène Publique por J. P. Thouvenin.

5De acordo com Barthes: “Defino o Neutro como aquilo que burla o paradigma, ou melhor, chamo de Neutro tudo o que burla o paradigma. Pois não defino uma palavra; dou nome a uma coisa: reúno sob um nome, que aqui é Neutro” (BARTHES, 2003, p. 16-17). Ou ainda: “Dou uma definição do Neutro que permanece estrutural. Quero dizer com isso que, para mim, o Neutro não remete a “impressões” de grisalha, de “neutralidade”, de indiferença. O Neutro – meu Neutro – pode remeter a estados intensos, fortes, inauditos. “Burlar o paradigma é uma atividade ardente, candente” (BARTHES, 2003, p. 18-19).

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Recebido: 28 de Julho de 2020; Aceito: 09 de Setembro de 2020

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