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Conjectura: Filosofia e Educação

versión impresa ISSN 0103-1457versión On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.25  Caxias do Sul  2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v25.e020036 

ARTIGOS

Cisnormatividade, violência e instituição escolar

Cisnormativity, violence and school institution

Lindamar Alves Faermann* 
http://orcid.org/0000-0002-1622-6202

Silvio Luiz da Costa** 

Catarina Couto*** 

*Assistente Social, Mestra em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Doutora em Serviço Social pela PUCSP. Professora na Universidade de Taubaté (Unitau). Atua como docente no Curso de Graduação e na Pós-Graduação da Unitau. E-mail: lindafaermann@yahoo.com

**Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Graduado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUCMG). Professor na área de filosofia e ciências sociais na Unitau e na Faculdade Dehoniana. E-mail: siluco@uol.com.br

***Profissional da área de Letras. Graduada em Letras pela Universidade de Taubaté (Unitau). Atua na Rede Estadual de Ensino do Estado de São Paulo. E-mail: catarinacoutoletras@gmail.com


Resumo

Este artigo tem como objetivo elucidar as diversas formas de violência vivenciadas pela população transgênera no Brasil, centrando-se nos desafios e nas dificuldades que encontram no âmbito educacional. Estudos comprovam reiterados processos de discriminação, ódio, preconceito e abandono familiar e social envolvendo esse grupo, o que o expõe a situações degradantes de vida e viola a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), construída sob a premissa de que a sociedade deve ser capaz de garantir justiça, vida e liberdade. Contudo, na contramão desse tratado, a violência contra a população trans tem se manifestado em todos os espaços da sociedade brasileira de modo implícito e/ou explícito, reproduzindo-se nas instituições educacionais. Em que pese a natureza dessa instituição – locus por excelência do estímulo à pluralidade de ideias, culturas, jeitos de ser e fazer, portanto, lugar de encontro, acolhimento e formação humana – a escola tem reproduzido a cisnormatividade, ou seja, validando normas, regras e valores considerados adequados e normais pela sociedade burguesa, infringindo, dessa forma, o respeito à diversidade sexual e de gênero, à transgeneridade. Esse cenário requer esforços contínuos dos movimentos sociais, das instituições e da sociedade civil para garantir os direitos sociais e o respeito à população transgênera, além de nos provocar a seguir questionando as hipocrisias, criando transgressões e filosofando, como sugere Noel Rosa em sua composição “Filosofia”.

Palavras-chave Cisnormatividade; Violência; Desafios educacionais; População transgênera

Abstract

This article aims to elucidate how various forms of violence experienced by the transgender population in Brazil, focusing on the challenges and difficulties they encounter in the educational sphere. Studies have demonstrated repeated processes of discrimination, hatred, prejudice and family and social abandonment involving this group, which exposes it to degrading situations of life and violates The Universal Declaration of Human Rights (1948), built on the premise that the Society must be able to guarantee justice, life and freedom. However, contrary to this treatise, violence with the “trans” population has manifested itself in all the spaces of the Brazilian society in an implicit and/or explicit way, reproducing itself in educational institutions. In spite of the nature of this institution – locus per excellence of the stimulus to the plurality of ideas, cultures, ways of being and making, therefore, a place of encounter, welcoming and human formation-the school has reproduced the “cisnormativity”, that is, validation of norms, rules and values considered adequate and “normal” by the bourgeois society, thus infringing respect for sexual, gender and transgender diversity. This scenario requires continued efforts of social movements, institutions and civil society to ensure social rights and respect for the transgender population, as well as provoking us to continue questioning the hypocrisies, creating transgressions and philosophizing, as Noel Rosa suggests in his composition “Philosophy”.

Keywords Cisnormativity; Violence; Educational challenges; Transgender population

Introdução

O objetivo central deste artigo pauta-se pela discussão acerca do processo de violência que envolve a população transgênera no Brasil, explorando a complexa e histórica relação entre gênero e violência e os desafios que esse grupo enfrenta nas diversas instâncias sociais, notadamente no contexto educacional.

Considerando que as questões de transgeneridade e sexualidade estão caminhando a passos lentos nas escolas, são enormes os obstáculos que os transexuais vivenciam para acessar seus direitos e ter sua dignidade respeitada nesse ambiente, sendo recorrentes as manifestações de violência de gênero no cotidiano escolar.

Cabe ressaltar que a violência de gênero é um tipo de violência física, psicológica ou moral exercida contra qualquer indivíduo sobre a base do seu sexo ou gênero e que impacta, negativamente, na sua sociabilidade e identidade. Sua existência e reprodução é fruto da construção de papéis de gênero no âmbito da sociedade capitalista, patriarcal e conservadora. Com base em uma visão biologicista e reducionista, os papéis de gênero foram utilizados para funcionar como um mecanismo de controle sobre os corpos, formas de vida e hierarquias, de modo que, a partir de suas diferenciações, fossem criadas posições que estabelecessem superioridade do homem em relação à mulher e os comportamentos de cada sexo como práticas reguladoras da dinâmica social. Com efeito,

esses discursos legitimam a ordem estabelecida, justificam a hierarquização dos homens e do masculino e das mulheres e do feminino em cada sociedade determinada. São sistemas de crenças que especificam o que é característico de um e outro sexo e, a partir daí, determinam os direitos, os espaços, as atividades e as condutas próprias de cada sexo

(GARCIA, 2011, p. 19).

Nesses termos, os papéis de gênero e a violência que atravessa essa construção perpassam por questões econômicas, sociais e culturais da sociedade burguesa com vistas à manutenção do status quo, à dominação dos homens sobre as mulheres e à continuidade das normas morais e sexuais, inclusive, pela via do casamento heterossexual e da monogamia, sob a premissa de interesses econômicos e de alegações de que os problemas da sociedade moderna resultam das relações familiares tidas como “desestruturadas”. Nesse caso, segmentos conservadores defendem a existência de uma estrutura adequada para a família, isto é, um modelo de sociedade no qual predomina uma ordem patriarcal de gênero, cuja hierarquia e estrutura de poder atravessam as relações sociais. Para Saffioti (2004, p. 122) “nem mesmo homossexuais masculinos e femininos, travestis e transgêneros ficam fora do esquema de gênero patriarcal”.

Nesse contexto, tanto mulheres quanto gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transgêneros ficam à mercê das diferentes formas de violência presentes na sociedade capitalista, muitas vezes camuflada, invisibilizada ou mesmo ignorada por setores massivos da sociedade, ampliando processos de opressão, humilhação e discriminação contra essa população e de forma ainda mais cruel sobre as pessoas trans.

Tendo por base essas reflexões, o presente artigo foi construído por meio de revisão teórica com o fito de reunir informações e aprofundar conhecimentos acerca do objeto estudado. Como esclarece Gil (1999, p. 162), a revisão teórica objetiva esclarecer os pressupostos que fundamentam o trabalho e as contribuições das investigações realizadas sobre o tema estudado, devendo se constituir em uma “discussão crítica do ‘estado atual da questão’”.

Diante disso, este texto situa historicamente o debate em torno de questões de gênero, buscando compreender essas formas de violência e suas manifestações nas instituições, sobretudo no ambiente da família e da escola. Nessa perspectiva, apresenta-se, inicialmente, a evolução histórica em torno da compreensão do conceito de gênero tanto o plano teórico quanto as repercussões no movimento feminista. Destacam-se, no debate teórico, as contribuições de Stoller (1968) e de Butler (2009) distinguindo sexo e gênero e mostrando ambos carregados de uma performatividade, com manifestações distintas em diferentes contextos e épocas. Ao tratar o gênero não mais como um atributo fixo, mas como uma variável fluida, abre-se espaço para uma análise da cisnormatividade e as consequentes manifestações de violência contra a comunidade trans na atualidade, a começar no próprio ambiente familiar. Finalmente, se prioriza a análise de situações de violência contra a comunidade trans nas instituições escolares, realçando, a partir das contribuições da sociologia da educação de Bourdieu (2003), a ambiguidade da escola, como locus privilegiado de desenvolvimento do sujeito e da sociedade, mas também carregado de mecanismos de reprodução e legitimação de uma cultura cisnormativa. Portanto, o objetivo da reflexão proposta é chamar a atenção para a problemática da cisnormatividade, sobretudo no espaço escolar, ponto de partida para a construção de práticas e ambientes mais acolhedores.

1 Gênero e as faces da violência contra a população trans no Brasil

As discussões acerca do conceito de gênero vêm sendo impulsionadas pelo movimento feminista a partir dos anos 70, passando por importantes revisões e mudanças conforme as transformações sociais em curso e os avanços do próprio movimento feminista. Tais discussões apresentam o capitalismo e o patriarcado como molas propulsoras da opressão sobre a mulher e como mecanismos reprodutores de desigualdades, sobretudo as de gênero e, como consequência, da violência contra a população transgênera.

O psicanalista norte-americano Robert Jesse Stoller foi o primeiro teórico a criar um conceito de gênero, em 1968, em sua obra Sex and gender. Nesse livro, apresenta um estudo de casos de pessoas intersexo, considerados, à época, hermafroditas ou que tinham os genitais escondidos, evidenciando como eram desenvolvidas as intervenções cirúrgicas com essas pessoas, no intuito de adequar a anatomia genital ao gênero desejado, isto é, ao grupo com o qual se identificavam. Para Stoller (1968) a complexidade não estava em mudar o sexo, mas em compreender o gênero humano. Assim, voltava-se também a estudos antropológicos, para analisar como as identidades sexuais se constituíam e como se dava a expressão dos diferentes papéis de gênero em outras culturas. Após suas contribuições, as feministas passaram a utilizar esse conceito de gênero no desenvolvimento de teses, debates e posições.

Anteriormente aos seus estudos, as pesquisas e produções nessa área apresentavam o conceito de sexo vinculado, eminentemente, a componentes biológicos, referindo-se ao sexo masculino ou ao feminino e aos caracteres fisiológicos que os distinguiam. Contudo, Stoller (1968, s.p.), opõe-se a essa concepção ao enfatizar que essa “definição não abarca certos aspectos essenciais da conduta – a saber, os afetos, os pensamentos e as fantasias – que, mesmo estando ligados aos sexos, não dependem de fatores biológicos”. Daí a utilização do termo gênero,

[...] para designar alguns destes fenômenos psicológicos: assim como cabe falar de sexo feminino e masculino, também se pode aludir à masculinidade e à feminilidade sem fazer referência alguma à anatomia ou à fisiologia. Desse modo, mesmo que o sexo e o gênero se encontrem vinculados entre si de modo inexpugnável na mente popular, este estudo propõe, entre outros fins, confirmar que não existe uma dependência biunívoca e inelutável entre ambas as dimensões (o sexo e o gênero) e que, ao contrário, seu desenvolvimento pode tomar vias independentes

(STOLLER, 1968, s. p.).

Nesse sentido, estava claro para Stoller (1968) que era preciso ampliar a discussão biologicista de sexo, abarcando as dimensões culturais, psicológicas e sociais da sexualidade humana, o que demandava conceitos diferentes. A partir de então, as reflexões sobre gênero, levantadas por ele, foram levadas adiante pelo movimento feminista, diferenciando gênero de sexo e apreendendo o gênero não como determinismo biológico, mas como construção social, visto que “existe uma diferenciação básica entre esses dois atributos, defendendo-se rigorosamente a dimensão social, política e histórica do gênero” (LANZ, 2015, p. 54). Ademais, passou-se a utilizar o termo mulher em oposição ao vocábulo universalizado homem.

Avançando no debate sobre gênero, Judith Butler (2009), em sua obra Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade, traz o conceito de performatividade de gênero e da teoria queer. A autora afirma que gênero nada mais é que uma performance criada ao longo da história da sociedade, em que os indivíduos agem de acordo com o papel que lhe foi designado no nascimento. Assim, segundo a autora,

[...] como estratégia de sobrevivência em sistemas compulsórios, o gênero é uma performance com consequências claramente punitivas. Os gêneros distintos são parte do que “humaniza” os indivíduos na cultura contemporânea; de fato, habitualmente punimos os que não desempenham corretamente o seu gênero. Os vários atos de gênero criam a ideia de gênero, e, sem esses atos, não haveria gênero algum, pois não há nenhuma essência que o gênero expresse ou exteriorize [...]. Assim, o gênero é uma construção que oculta normalmente sua gênese

(BUTLER, 2009, p. 199).

Para essa autora, o sexo, assim como o gênero, não existe fora de seus significados sociais e culturais, já que os padrões de comportamento humano são impressos nos corpos normativamente. Assim, segundo ela, a ânsia de definir o sexo como um sexo em vez de outro advém da “organização social da reprodução sexual, através da construção de identidades e posições claras e inequívocas dos corpos sexuados em relação uns aos outros” (BUTLER, 2009, p. 161).

A demarcação masculino-feminino explicita, nas palavras da autora, a “remodelação da matéria dos corpos como efeitos de uma dinâmica de poder, de tal forma que a matéria dos corpos será indissociável das normas regulatórias que governam sua materialização” (BUTLER, 2003, p. 155). Desse modo, o sexo não se refere a um conjunto de características que alguém possui, mas a uma das normas pelas quais esse alguém é produzido. Seu papel social será definido pelo seu sexo. Ao mesmo tempo que o gênero não deve ser visto como um atributo fixo de uma pessoa, mas como uma variável fluida, que se movimenta temporalmente, apresentando distintas configurações em contextos e épocas diferentes.

Com essa discussão, Butler (2009) questiona o próprio conceito de sexo no seu pressuposto de naturalidade e objetividade, apontando a reflexões críticas acerca da separação de sexo e gênero, indicando uma desnaturalização da diferença sexual pela interrogação do conceito de sexo.

Com esses avanços, esperava-se enfrentar alguns estigmas envolvendo a pessoa trans, pois ciente de que a construção de sua identidade de gênero ocorre socialmente, independentemente de seu sexo biológico, a tese de patologização dessas identidades tornou-se falaciosa.

Contudo, o cenário atual revela que a cisnormatividade é um fator presente e dominante nas relações sociais. Salienta-se que a cisnormatividade refere-se ao comportamento/poder vigente na sociedade de regulamentar e idealizar o gênero, o sexo e a sexualidade baseando-se, exclusivamente, em estruturas corporais biológico-genéticas, o que estigmatiza indivíduos sob marcos discursivos morais. Ao priorizar os fatores biológicos, desconsidera-se que masculino e feminino sejam, também, construções históricas e culturais. Assim, busca-se a formação e a manutenção de uma identidade humana que dialogue linearmente com o sexo, repetindo-se permanentemente ritos que legitimam a masculinidade ou a feminilidade, pautados por uma genitália supostamente natural. Noutras palavras: o normal para essa sociedade é ser heterossexual e cisgênero.4 Aqueles que escapam desse protótipo são rotulados e desrespeitados, quando não cerceados de viver.

Dessa forma, em que pese à existência de documentos, leis e tratados como a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948), que se constitui em uma referência mundial ao estabelecer valores universais como a liberdade, a democracia e a justiça – nem sempre esses valores são efetivados e incorporados socialmente. Como bem esclarece Vieira, há uma distância entre as

declarações de direito e a sua real efetivação, pois ainda em cada esquina do mundo, ouve-se um sujeito de boa vontade desfiar a celebrada lista de direitos, que começa no direito à vida e à dignidade moral da pessoa e termina nos direitos econômicos

(2004, p. 33).

Diante disso, a população transgênera é alvo direto do descaso do Estado que se omite quanto ao necessário investimento em serviços e políticas públicas que atendam às suas demandas (uma vez que o setor econômico é priorizado em detrimento do social), violando seus direitos e ampliando processos de marginalização e preconceito.

A população trans carrega um estigma por fugir de padrões sociais estabelecidos como normais e/ou naturais, confrontando, dessa forma, a cisnormatividade imposta pela sociedade, o que a expõe a situações de preconceito desde muito cedo. A primeira forma de violência geralmente acontece dentro da própria casa, quando a família não reconhece sua identidade de gênero, menosprezando sua condição, negando-lhe um tratamento adequado ao seu gênero, como, por exemplo, chamá-la pelo nome escolhido. Quando a forma de tratamento é essa, a começar por quem poderia acolhê-la, a pessoa trans já é posta numa situação de exclusão pelo simples fato de manifestar sua transgeneridade, e essa exclusão tende a se refletir nos demais espaços de sua vida social.

Portanto, ao refletirmos sobre os elementos que constituem a origem da violência contra pessoas de gênero divergente, nos remetemos às relações historicamente construídas em uma sociedade fundada sob estruturas patriarcais e machistas. Em razão dessas circunstâncias, os papéis de gênero foram claramente determinados e distintos entre os sexos. Conforme Graciano (1978), antes mesmo do nascimento de uma criança, criam-se expectativas sobre ela e se projeta sua maneira de viver: as cores e tipos de roupa, os modelos de brinquedo, as formas de se comportar e até mesmo seus sentimentos.

Na medida em que esses papéis são aceitos e naturalizados, seu desvio gera repulsa mesmo no âmbito familiar. Como é na própria infância que se manifestam as primeiras curiosidades e explorações acerca do corpo, e isso naturalmente envolve sexualidade, já na infância, a criança divergente é reprimida. Se um garoto passa a se interessar por brincadeiras ditas de menina ou a se identificar menos com outros meninos no comportamento ou na aparência, por exemplo, a própria família tenderá a corrigi-lo e reprimi-lo como uma intervenção corretiva. A esse respeito, esclarece Connell:

Os organismos de socialização não podem produzir efeitos mecânicos numa pessoa em crescimento. O que se faz é convidar a criança a participar de práticas sociais dentro de certos limites e condições. Talvez o convite seja coercitivo – como geralmente é – uma vez que é acompanhado de forte pressão para sua aceitação, sem oferecer nenhuma outra alternativa

(1987, p. 33-34).

Esse tipo de reação coercitiva por parte da família provoca a perda de espontaneidade da criança, impactando a subjetividade e a identidade, causando, até mesmo, certo bloqueio de sua criatividade, uma vez que seus objetos de interesse e desejo são negados. Conforme explica Lanz (2015, p. 234), é no meio familiar que ocorrem as primeiras formas de violência, discriminação e estigmatização das pessoas trans, sendo a família “a primeira instância social de contenção, repressão e dissuasão da livre expressão de identidade de gênero”. Infelizmente, esse tipo de reação preconceituosa por parte da família é recorrente, pois predomina a cultura sexista e conservadora.

Em toda a minha infância e adolescência fui sistematicamente “desaconselhada” (leia-se impedida, bloqueada, reprimida e interditada) de assumir minha condição de pessoa transgênera como uma manifestação absolutamente normal e espontânea do meu “ser no mundo”. Ao contrário, ensinaram-me a ver minha identidade de gênero como algo vergonhoso e a me sentir culpada por querer desrespeitar as normas

(LANZ, 2015, p. 232).

Em um contexto heterossexual e cisnormativo, a criança transgênera é submetida a um ambiente hostil e excludente, já que ela não pode se comportar como prefere, pois, assim, será desaprovada. Essa violência persistirá em outras áreas de sua vida, pois seu ambiente familiar é apenas um reflexo da sociedade. Ou seja, a pessoa gênero-divergente sentirá não só dentro de casa o preconceito e a exclusão, mas os vivenciará fora também.

Não faltam pesquisas que apontem ao processo de marginalização e violência em que são expostas. A Transgender Europe (TGEU, 2015), instituição que monitora casos de assassinato de pessoas transgêneras pelo mundo, apresentou um gráfico em que indica os países com maior número de casos entre 2008 e 2014. Nele, o Brasil ocupa o primeiro lugar com mais que o triplo do número de mortes do México.

Além da violência brutal contra pessoas trans, outra problemática enfrentada deve-se à dificuldade de inserção no mercado formal de trabalho. Dados do ano de 2018 da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) revelam que cerca de 90% dessa população tem a prostituição como única fonte de renda, em decorrência da discriminação e dos obstáculos para sua formação profissional somados à exclusão familiar e escolar. E é justamente dentro desse cenário que se encontra a maioria das vítimas, que, expostas e vulneráveis socialmente, são impelidas para a prostituição, contribuindo, ainda mais, para reforçar uma visão pejorativa sobre esse grupo (ANTRA, 2018).

Assim, as diferentes formas de violência contra a população trans estão presentes em grupos de convivência social e de formação de identidade, e suas manifestações são visíveis na escola, na família, no ambiente de trabalho, na mídia e nas instituições em geral, traduzindo-se em reiterados processos discriminatórios. Como lembra Ianni (2004, p. 8), a “violência é um evento heurístico de excepcional significação. Revela o visível e o invisível, o objetivo e o subjetivo, no que se refere ao social, econômico, político e cultural, compreendendo o individual e o coletivo, a biografia e a história”.

Desse modo, pode-se falar em muitas faces da violência, pois ela contém uma linearidade na vida do indivíduo trans, começando, geralmente, no ambiente familiar e seguindo pelos diferentes espaços cisnormativos por onde venha a circular.

Os muitos casos de violência física noticiados (ou não) acabam por ser apenas a ponta de um iceberg. Fugindo dos padrões socialmente estabelecidos, a construção de sua identidade passa a acontecer em uma tensão entre suas disposições individuais e a expectativa social. A diferença causa estranhamento, e a experiência da diferença não é tranquila para o próprio sujeito que a realiza. É um caldo cultural de muitas faces, com dificuldades no ambiente familiar, na vida educacional, nas relações de amizade e na inserção no mundo do trabalho. Nesse contexto, qual é o papel da instituição escolar?

2 Desafios da população trans nas instituições educacionais

Não de modo diferente do ambiente familiar, a escola também é palco de marginalização da população transgênera. Nela, se reafirma a cisnormatividade, o que contribui com a repressão a esse grupo. Em pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro Trans de Educação, no ano de 2018 (CANTELLI et al., 2019), envolvendo 250 estudantes trans, evidenciou-se uma série de violações produzidas pela própria escola. Na pesquisa, metade dos entrevistados afirmou ter abandonado a escola tendo como principal queixa a transfobia, seguida de depressão e de problemas financeiros.5

No tocante à pergunta relacionada aos obstáculos encontrados no ambiente escolar, os entrevistados mencionaram preconceito, agressões físicas e verbais, assédio moral e dificuldade de aprendizagem. Tais violências foram provocadas, em grande parte, pelos próprios colegas, somando 37% das respostas. Na sequência, 27% vieram dos professores, 20%, dos gestores e, por fim, 16%, da equipe pedagógica.

Em relação aos encaminhamentos dessas ocorrências, os entrevistados pontuaram que elas foram destinadas, majoritariamente, à direção escolar e à Secretaria de Ensino, mas, infelizmente, não foram tomadas atitudes assertivas quanto às suas queixas, pois, na maioria das vezes, a violência partiu da própria escola.

Ainda foram elencadas outras formas de negação de direitos no ambiente escolar: 39% do grupo pesquisado relatou o impedimento do uso do banheiro adequado ao seu gênero, o que é bastante grave, pois, além de ter sua identidade desrespeitada, a pessoa pode ter complicações de saúde por reter a urina, como: infecção urinária ou pedra nos rins, por exemplo. Varella (2016) adverte que os constrangimentos vivenciados pelos transexuais quanto à questão do banheiro, além de violar os direitos civis, interferem em funções biológicas essenciais à manutenção da saúde, aumentando, também, os riscos de obstipação crônica e hemorroidas, impedindo a hidratação adequada, uma vez que muitos evitam beber água para conter a urina.

A segunda maior violação refere-se ao desrespeito ao nome social ao qual a pessoa trans tem garantia. O direito ao uso do nome social é, além do direito de autoafirmação de sua identidade, uma mediação para o reconhecimento da pessoa trans, que, por tanto tempo, esteve invisível atrás de um nome que não a representava.

Sendo assim, não diferente dos ambientes anteriormente citados, a escola também é palco de marginalização. Apesar de ser um lugar privilegiado para tratar da diversidade, discutir questões que envolvem papéis de gênero, instigar a pluralidade e acolher todos, permanece com traços conservadores e práticas excludentes, pois, no ambiente escolar, também se reafirma a cisnormatividade, o que só contribui para aumentar as atitudes de discriminação e violência a alunos transgêneros. A esse respeito, Lanz recorda, com base em suas próprias vivências, que

ao reprovar, por inúmeras vezes, os meus atos infantis de brincar de boneca, andar de salto ou “rebocar” a boca de batom, a ordem social estava me dizendo, através da instituição família e da instituição escola, que essas coisas não tinham a aprovação e muito menos o reconhecimento e o aplauso da sociedade

(2015, p. 232).

Embora o respeito à diversidade humana seja um compromisso precípuo da escola e possa demonstrar seu empenho com o direito social do qual todos os sujeitos são portadores, tais princípios são incompatíveis com um tecido sociocultural embebido de preconceitos e intolerâncias, substratos de relações hostis e assimétricas.

Bons projetos, carregados das melhores intenções não são suficientes para superar esse caldo cultural cisnormativo, construído há séculos, sob a égide da superioridade tradicional, de um lado, em detrimento das manifestações culturais da diferença. Avança-se em um discurso politicamente correto, o qual afirma e tolera a diversidade, propõe o diálogo, o multiculturalismo, mas ele não se efetiva na prática cotidiana. Duschatzky e Skliar (2001, p. 118) denominam esse processo de travestismo discursivo, que parece ser uma das marcas mais habituais dessa época. Com a mesma agilidade na qual se processam “as mudanças tecnológicas e econômicas, os discursos sociais se revestem com novas palavras, se disfarçam com véus democráticos e se acomodam sem conflito às intenções dos enunciadores do momento”.

Uma das estratégias e expressão desse processo é a amplitude da incorporação do discurso da diversidade. Cabe em qualquer lugar e não gera tensões. Entretanto, ao mesmo tempo, a diferença causa estranhamento. Sua presença incomoda, gera desconforto, traz insegurança. Assim, no politicamente correto do discurso, reconhece-se o diferente, não o ignora, tolera-o e o coloca no seu lugar. A simples tolerância abre espaço às manifestações de uma indiferença pura e insensível. Duschatzky e Skliar (2001, p. 123) ressaltam, inclusive, que “necessitamos do outro, mesmo que assumindo certo risco, pois, de outra forma, não teríamos como justificar o que somos”. Essa necessidade de um outro que não se enquadra nos padrões é destacada por Louro no interior de uma prática educacional voltada à maioria:

[...] os sujeitos que, por alguma razão ou circunstância, escapam da norma e promovem uma descontinuidade na sequência sexo/ gênero/sexualidade serão tomados como minoria e serão colocados à margem das preocupações de um currículo ou de uma educação que se pretenda para a maioria. Paradoxalmente, esses sujeitos marginalizados continuam necessários, pois servem para circunscrever os contornos daqueles que são normais e que, de fato, se constituem nos sujeitos que importam

(2004, p. 27).

Nessa direção, podemos compreender melhor as muitas faces da violência e a amplitude dos obstáculos enfrentados pela população trans. Não se trata, simplesmente, de um ato deliberado. As atitudes de discriminação e preconceito perpassam por todos os grupos da comunidade escolar, de colegas, de professores e do corpo administrativo.

Como poderá, então, a escola, nesse ambiente cisnormativo, desenvolver práticas acolhedoras e respeitosas da diferença? Partimos de uma convicção antropológica: é possível. O homem é capaz para tanto. Não faltam experiências pessoais e institucionais que fizeram e fazem da diversidade não apenas um discurso elogioso, mas a concretizam no cotidiano.

Apontando para essa possibilidade e suas dificuldades, afirma Bauman (2001, p. 123) que a capacidade “de conviver com a diferença, sem falar da capacidade de gostar dessa vida e beneficiar-se dela, não é fácil de adquirir e não se faz sozinha. Essa capacidade é uma arte, que, como toda arte, requer estudo e exercício”.

Seria a instituição escolar um lugar privilegiado para o desenvolvimento da arte de acolher e respeitar a diferença? Sendo a escola, na opinião de Bourdieu (2003), o locus principal da manutenção e legitimação da desigualdade, a resposta à questão acima, em um primeiro momento, só pode ser negativa. Ou seja, o ambiente escolar é lugar propício para a reprodução do preconceito e de discursos discriminatórios, como a chamada prática do bullying e de outras ações excludentes, mas a escola é também lugar de reflexão, de construção do conhecimento, espaço onde as práticas podem ser refletidas e ressignificadas.

Consideremos, primeiramente, que crianças e adolescentes seguem muito cedo os caminhos da escola e nela permanecem muito tempo de sua vida. Para muitos a pessoa adulta de maior convivência e, às vezes até mesmo de maior proximidade, é a figura do(a) professor(a). Então, ao lado da família, é nesse lugar que acontece a descoberta e a construção de sua identidade, inclusive, a sexual. Nesses espaços, experimentam acolhida, respeito, tolerância, estranhamento, hostilidade, violência.

Estamos falando de escola, lugar do conhecimento. Retomando Bauman (2001), a arte da capacidade de conviver com a diferença requer estudo e exercício. Se nos projetos político- pedagógicos da escola a temática da diversidade é pressuposto e perpassa pelo currículo, a efetivação de um ambiente acolhedor será consequência de “estudo e exercício”.

Portanto, esse processo requer um trabalho de formação continuada, não apenas dos professores, mas de toda a equipe escolar, incluindo os funcionários, uma vez que estamos tratando de um caldo cultural que atravessa toda a sua estrutura. Entre os elementos dessa formação, destacamos o diagnóstico da cisnormatividade presente, o reconhecimento das manifestações da diversidade, a sensibilização para a diferença e, consequentemente, a construção de práticas significativas no sentido do exercício de conviver com a diferença.

A instituição escolar é um espaço resistente à mudança. Sua estrutura e prática atravessam os séculos. Porém, como notabilizou Bauman (2001), estamos na modernidade líquida. Nada resiste ao movimento de liquidificação. Não é diferente com a escola. As ventanias da mudança batem à porta, e as estruturas ficam abaladas. As instituições estão sendo reinventadas, a direção do processo cabe aos protagonistas. A escola poderá continuar sendo um locus privilegiado de manutenção da cisnormatividade, mas também reúne condições para se abrir às demandas do tempo e se tornar espaço acolhedor.

Evidenciando tais demandas e afirmando que pessoas trans também necessitam de cotas, Jesus comenta sobre a importância de ações afirmativas no espaço escolar, mediante

[...] o acréscimo de pontuação, em determinadas provas seletivas, para pessoas oriundas de grupos ou regiões desprivilegiadas; ou ainda, entre outras iniciativas possíveis a reserva de vagas para grupos sociais específicos (cotas), em instituições das quais são historicamente apartados

(2016, s. p.).

Essas ações afirmativas, juntamente com o direito do uso do nome social, possibilitam à pessoa trans afirmação e visibilidade de sua identidade. São conquistas importantes, mas, para que não incorram em mais discriminação e violência, precisam estar ancoradas em ambientes que tenham como preocupação precípua o reconhecimento e o respeito à diferença. Espaços nos quais a afirmação do outro não desemboque em sentimentos de ódio, mas na convicção de que todos ganham e crescem quando cada qual pode ser intenso no seu modo de ser, pensar e agir.

Em síntese, se podemos falar de uma universalidade do acesso, as garantias de permanência em uma educação de qualidade para grupos historicamente desfavorecidos e pouco valorizados no ambiente escolar, é um processo que passa por políticas públicas de inclusão e uma instituição escolar acolhedora das mais diversas necessidades de seu corpo discente, em especial, daqueles que mais necessitam.

A formação continuada é ponto de partida para um processo reflexivo acerca das práticas, construindo indignação no lugar da indiferença, reconhecimento e respeito no lugar da tolerância pura e fria, e, finalmente, a hostilidade cedendo espaço à hospitalidade.

3 Considerações finais

As reflexões, ao longo deste artigo, permitem-nos afirmar que a violência de gênero tem como alicerce relações sociais historicamente construídas na sociedade capitalista sob estruturas patriarcais, machistas e sexistas. Nos papéis definidos para o homem e para a mulher, se atravessam interesses econômicos e sociais, normas reacionárias e excludentes que buscam selar padrões de comportamento humano nos corpos e nas mentes.

Nesse sentido, a cisnormatividade e a heteronormatividade presentes no cotidiano social, sustentadas por uma visão de mundo altamente conservadora, têm corroborado práticas violentas, desqualificadoras e, muitas vezes, letais contra a população trans, pois, conforme demonstrado, além de sofrer opressão e marginalização social, essa população também é vítima de agressões, humilhações e violência física simplesmente por expressar sua condição humana, sua identidade de gênero.

Sem o apoio da família, do Estado e da sociedade, muitas vezes, essas pessoas são levadas a viver em situação de rua, suscetíveis a crimes de ódio, precisando recorrer à prostituição como única fonte de sobrevivência. Tal situação contribui para ampliar a violência contra esse grupo e aumentar o estigma que atravessa sua realidade de vida.

Outra problemática que a população trans enfrenta deve-se à dificuldade de inserção no mercado formal de trabalho pela discriminação e pelos diferentes entraves para sua capacitação profissional. Não de modo diferente, a escola também tem se constituído em um espaço de exclusão e de reiteração da violência cotidiana. São muitos e complexos os obstáculos encontrados no âmbito escolar, desde preconceito, agressão física e verbal, assédio moral, desrespeito ao nome social, até as dificuldades de aprendizagem associadas também à violência psicológica e ao processo de marginalização vivenciado.

Embora a população transgênera tenha alcançado conquistas importantes na sociedade, como a legalização do casamento gay, do nome social, da adoção por casais homossexuais, da cirurgia de redesignação sexual, além da visibilidade midiática e da inserção na cena política, etc., são enormes os desafios que ainda enfrenta, sobretudo pelo preconceito vigente. Para enfrentar esse quadro, é necessário investir, em todos os setores da sociedade, em políticas que fortaleçam uma cultura de respeito à diversidade sexual e de gênero.

Considerando, segundo Machado (2013, p. 108), que a construção social de gênero “se faz arbitrariamente em relação à diferenciação de sexos de homens e mulheres”, é fundamental desconstruir esse imaginário, visto que o gênero é uma construção social. As ideias do que é ser masculino e feminino são constructos histórico-culturais moldados pela cisnormatividade e heternormatividade.

Mudar esse cenário conservador e violento é um enorme desafio, o que exige a construção de olhares respeitosos e generosos, além de políticas públicas para o atendimento efetivo das demandas da população trans.

Exige, ainda, escolas abertas, dialógicas e humanizadoras que estimulem práticas educativas para as sexualidades e identidades de gênero, apoiadas na compreensão dos direitos humanos, dos direitos de igualdade, de ser e viver como se quer.

O mundo me condena, e ninguém tem pena

Falando sempre mal do meu nome

Deixando de saber se eu vou morrer de sede

Ou se vou morrer de fome

Mas a filosofia hoje me auxilia

A viver indiferente assim

Nesta prontidão sem fim

(Noel Rosa)

4 Cisgênero é o termo utilizado para caracterizar o indivíduo que se reconhece e se identifica com todos os aspectos do seu gênero de nascença. Quanto ao prefixo cis, sua origem etimológica (em latim) significa “do mesmo lado” ou “ao lado de”, portanto, assinala a identidade de gênero do indivíduo com sua configuração hormonal e genital de nascimento.

5 A depressão e os problemas financeiros podem ter sido agravados pela transfobia, pois o preconceito dificulta a inserção da pessoa trans no mercado de trabalho e impacta sua vida pessoal e profissional.

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Recebido: 25 de Maio de 2020; Aceito: 10 de Setembro de 2020

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