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Conjectura: Filosofia e Educação

Print version ISSN 0103-1457On-line version ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.25  Caxias do Sul  2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v25.e020014 

ENTREVISTAS

Paulo Freire, um tesouro do Brasil: entrevista com Professor Dr. Carlos Alberto Torres

Paulo Freire, a treasure of Brazil: interview with Professor Dr. Carlos Alberto Torres

Mariana Parise Brandalise Dalsotto* 
http://orcid.org/0000-0003-4926-6320

*Pedagoga. Mestra e doutoranda em Educação pela Universidade de Caxias do Sul. E-mail: maripbrandalise@hotmail.com


Nascido em 1950, em Buenos Aires, Argentina, Carlos Alberto Torres Novoa é, atualmente, distinguished professor na Faculdade de Educação da Universidade da Califórnia, Los Angeles (Ucla). Sua formação acadêmica iniciou com graduação em sociologia, na Universidade de Salvador, na Argentina, e seguiu com o mestrado em Ciência Política, na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), no México. Realizou, na sequência, outro mestrado e seu doutorado em Educação para o Desenvolvimento Internacional, ambos na Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, além de estudos de pós-doutorado em fundamentos da educação, na Universidade de Alberta, no Canadá.

Entre as suas produções, circularam no Brasil, inicialmente, Diálogo com Paulo Freire (1979), A práxis educativa em Paulo Freire (1979), Leitura crítica de Paulo Freire (1981), Educação popular: utopia latino-americana (1994) e Estado e educação popular na América Latina (1992). O professor é considerado uma autoridade mundial nos estudos sobre a América Latina e educação para a cidadania, além de ser um dos principais biógrafos de Paulo Freire.1

Carlos Alberto Torres (como é comumente conhecido), ocupa a Unesco Chair on Global Learning and Global Citizenship Education, na Ucla, dirigindo, também, o Instituto Paulo Freire (IPF)2 nela sediado. Mundo afora, tem produção reconhecida e atua como professor visitante em outros países da América do Norte, além da América Latina, Europa, Ásia e África. A entrevista, realizada em Língua Portuguesa, uma das faladas pelo professor, ocorreu em dezembro de 2019, nas dependências da Ucla, e teve como tema principal a ligação da trajetória pessoal e de pesquisa de Carlos Alberto Torres com Paulo Freire e sua obra. O encontro tornou-se uma oportunidade para um diálogo a partir deste tema, uma das especialidades do entrevistado, tendo em vista a atualidade do pensamento de Paulo Freire e das discussões a respeito deste. Outro motivo para a escolha da temática foi o recente lançamento do Wiley Handbook of Paulo Freire, organizado pelo entrevistado.

Entrevistadora: Pensando em suas áreas de pesquisa, seria possível você nos contar como se aproximou de Paulo Freire, no âmbito teórico e no âmbito pessoal? Como suas trajetórias se cruzaram?

Carlos Alberto Torres (C.A.T.): Bom, eu escrevi muito sobre minha vida. Fiz o capítulo de um livro lançado aqui nos Estados Unidos sobre sociólogos da educação e, nesse capítulo, você vai encontrar muito de minha história de vida.3 Agora, como chega Freire à minha vida? Bem são duas ou três coisas simples. A primeira: como quase sempre as coisas muito importantes da vida chegam por uma mulher. Uma menina da qual eu gostava muito e que era muito bem educada, tinha uma formação muito boa e era colega minha da sociologia; quando eu era jovem, me presenteou com Educação como prática da liberdade. Eu li, gostei mais ou menos, não muito. Mas, claro, ela estava fascinada por Freire e eu não podia dizer algo de que ela não gostava. Então disse que era um bom livro e logo ela me presenteou com Pedagogia do oprimido, tempos depois. Eu li Pedagogia do oprimido várias vezes e francamente no princípio pensei que Freire era um pensador populista. E eu fui muito crítico à Pedagogia do oprimido. Mas, no decorrer do tempo e das leituras, quando esta mulher me perguntou o que eu pensava, eu já havia sido seduzido por Freire. Apesar de eu ter uma boa formação marxista e de teoria crítica, Freire tem um pensamento muito mais abrangente. E esse pensamento abrangente, entrando pelo lado do existencialismo, da fenomenologia, Hegel, Marx, me impressionou muito. Me pareceu que era uma excepcional síntese que teria um grande valor e comecei a estudar com mais calma. Uma circunstância da vida fez com que eu fosse secretário-geral do Instituto de Estudos da Ciência Latino-Americana (Ecla), na Universidad del Salvador, uma universidade jesuíta. E, quando houve o golpe militar, chega o editor de Paulo Freire que era Júlio Barreiro, um grande pensador das Igrejas Protestantes mais estabelecidas. Ele se apresenta e acontece que ele daria um curso no sábado pela manhã. E eu tomo o curso, era um curso sobre Freire. Eu fui muito crítico e Barreiro me disse: Bom, você foi muito crítico de Freire, por que não escreve um livro que chame “leitura crítica de Paulo Freire”? Eu tinha 24 anos e comecei a trabalhar nisso. Eu morava em uma comunidade cristã de teologia da libertação e, frente à crise que se estava apresentando na Argentina, decidimos iniciar uma migração até o sul, até a Patagônia, onde escrevi esse livro. Então, comecei a trabalhar muito mais seriamente, muito mais de perto com o pensamento de Paulo Freire e, nesse contexto, terminei o livro e entreguei-o a Barreiro. Entreguei-o quando ainda estava em Buenos Aires, poucas semanas depois do golpe militar – nesta conversa me convenci que devia exilar-me. Barreiro me disse: Vamos ver se publicamos na Itália e eu disse: O que tem de mal na Argentina? Ele disse: Bom, há uma ditadura militar e a ditadura não vai permitir que circule o teu livro. Freire é uma das pessoas mais criticadas por ela. Eu vivi toda a minha vida sob a ditadura militar, então me pareceu que Barreiro exagerava. Não, não exagerava. Barreiro tinha muito claro o que ia acontecer de 1976 a 1983. Assim, não foi publicado na Argentina. Mas, eu com esse primeiro livro escrevi um segundo, escrevi um terceiro, e escrevi um quarto.4 E muito dos livros eram uma análise do trabalho e do contexto de Freire. Assim, muita gente – quando esses livros foram publicados em 70, no Brasil, por Edições Loyola – chega a Freire pelo trabalho de Carlos Alberto Torres Novoa, que era um sujeito completamente desconhecido, diferente de Freire. Muita gente leu Freire por estes livros. E logo o conheci pessoalmente. Ele mandou uma linda carta dizendo que eu fui um dos que melhor o interpretou. E, com o decorrer do tempo, seguiu afirmando isso e ficamos muito amigos.

Entrevistadora: Percebes diferenças no entendimento sobre Paulo Freire na América Latina (especialmente no Brasil, país de nascimento do educador) e nos Estados Unidos (ou mundo afora)? Há diferenças em como ele é representado nestes locais? Quais são elas?

C.A.T.: Bom, claramente há muitas interpretações de Freire. Se estas são diferenças, há muitas diferenças. Há uma grande diferença na construção de um campo intelectual, a partir dos modelos ao estilo de Pierre Bourdieu, do capital cultural, e os impactos da violência simbólica. A violência simbólica existe na construção de narrativas. O problema é a questão das epistemologias. E Freire é um dos primeiros pensadores que, em sua prática teórica, cria algumas das bases da epistemologia do sul. Esta já é uma diferença muito importante. Agora, se você olhar o que se passa no Brasil, com Bolsonaro e a extrema direita que reside no Brasil... Aqui [i.e., nos Estados Unidos] também tem uma extrema direita e aqui também Freire poderia ser questionado, porém, as universidades públicas ou privadas têm uma autonomia e essa autonomia permite que os professores sugiram um material que considerem adequado, sem temor nenhum. E então o nível de liberdade, que há no interior da universidade americana, e os recursos que existem no interior da universidade americana criam diferentes condições para a recepção de Paulo Freire. Aqui tem uma universidade muito multicultural que incorpora os estudantes que vêm de áreas mais pobres e, sem dúvida, com mais problemas de subsistência. E essa população universitária requer uma resposta a sua vida. Freire é um pensador cuja postura política impacta nestas populações. Entretanto, aqui se ensina Freire; ensinar Freire, agora, no Brasil, é um imenso risco. Finalmente, as recepções de Freire foram mudando de acordo com a época. Ele primeiro chega aqui como um pensador revolucionário na educação de adultos. Logo é incorporado como um dos fundadores da pedagogia crítica. E, hoje, claramente, é um pensador que impacta muito profundamente a construção de imaginários sociais, utópicos e transformadores. Algo que ocorre em toda parte do mundo: Freire evoca a utopia.5

Entrevistadora: A partir de seus estudos sobre educação comparada, tomando como foco a América Latina e os impactos da globalização impostos à educação, poderias citar alguns dos novos desafios para a educação e para as pesquisas em educação na América Latina?

C.A.T.: Se falamos de uma disciplina como a Educação Comparada Internacional, o Brasil teve um momento, durante a ditadura militar, que se impulsionou esta disciplina pelo pensamento oficialista. E isso deixou uma marca de que a educação comparada foi impulsionada por autoritarismo. Assim, demorou muito tempo para que a educação comparada internacional pudesse ser reintroduzida no Brasil, em uma perspectiva científica. Mas logo foi reintroduzida. Só que o problema é que o Brasil é um continente. Duzentos e trinta milhões de habitantes que falam uma língua que os vizinhos não falam. E, por um lado, você tem o oceano Atlântico, por outro lado o Amazonas e por outro lado a Fronteira Sul. E não há muitas possibilidades para os brasileiros de – até muito recentemente – realmente saírem do dinamismo brasileiro. Então, nestas condições, a educação comparada nunca foi um produto altamente aceitável. Em parte porque o Brasil tem uma questão de olhar para seu próprio umbigo – apesar de ser um país muito querido na América Latina, tem um modelo autolimitante de estar olhando a si mesmo constantemente. Em outra parte pela língua. E, em outra parte, ainda, pelas definições do pós-guerra, quando o Brasil apoiou os Estados Unidos enquanto a Argentina, na guerra, se manteve neutra. Isso marcou muito a atividade de todos os países poderosos... Há três países poderosos na América Latina: estes dois e o México. México é outra história: ao lado dos Estados Unidos, recebe o modelo norte-americano, muitas vezes. A Argentina é um país que foi muito rico e caiu em decadência justamente porque os investimentos que fizeram durante a guerra não foram apropriados, e os ingleses não pagaram suas dívidas. A Argentina foi um país que deixou um pouco de lado a América Latina. No entanto, um dos primeiros comparativistas do mundo foi Domingos Faustino Sarmiento, que viaja por toda a Europa, por todos os Estados Unidos. Ele não gostava dos espanhóis que eram colonizadores. Ele gostava dos franceses e dos americanos. E volta à América Latina trazendo a imagem do modelo de educação pública que existia em Massachusetts. Ele é realmente um dos primeiros comparativistas, porque compara constantemente os modelos e cria – junto com outros, mas ele foi muito importante – a educação pública. Só que Sarmiento escreve um livro que se chama A educação popular. Quando ele se deu conta que o “popular” era muito arriscado, como liberal que ele era, o troca por “público”, mas o “público” também pode ser muito arriscado. Freire, por outro lado, falaria de “educação pública popular”. A construção da cidadania, na América Latina, a partir do modelo liberal foi ao redor de Sarmiento. E a construção, na América Latina, de um modelo radical democrático assumindo o elemento do liberalismo, mas trocando por um modelo ao estilo do modelo que empossou Lula, por exemplo, foi Freire. Mas Freire, curiosamente, sem pretender fazer um trabalho comparativo, se converte em um guru internacional e seu trabalho termina sendo impactante não só no Brasil, mas no mundo inteiro. Por isso parece a mim que a pergunta sobre a educação comparada que você faz, é uma pergunta que tem duas possíveis respostas. Uma é a partir dos impactos reais. E os impactos reais da educação comparada foram tomados a partir de Sarmiento e Freire. E uma outra são os trabalhos universitários e o que se chama tanto esta imagem de um grupo altamente privilegiado que utiliza recursos intelectuais para trabalhar e conversar entre eles mesmos, não é? Imagem esta da universidade como uma torre de marfim. Isso existe em toda parte. Existe em toda parte e existe também no Brasil. E, ao existir em toda a parte, há dois diálogos possíveis: um diálogo altamente especializado, que eu considero um diálogo que impacta a construção de narrativas, mas que, por sua vez, a gente fala com gente que já está educada nesse processo – este diálogo é circular e pode ou não ter muita vinculação com nossas academias. E um segundo diálogo, mais político que impacta na construção da democracia no contexto da sociedade civil. Esse segundo diálogo é o que as universidades não têm muita capacidade de impactar. Há um diálogo acadêmico da educação comparada que circula no mundo inteiro e há um diálogo não acadêmico, cujo aspecto comparativo é central para a reconstrução da democracia. Agora, quando os povos do mundo inteiro estão questionando a democracia, estão questionando os governos. E quando existe uma situação cada vez mais difícil, em grupos que estão confrontando-se com um processo de falta de diálogo, dentro do qual se criam “tribos” – e estas “tribos” impulsionam um modelo específico que querem defender, dentro de sua sensibilidade política – aí é onde poderia haver uma intervenção muito forte da educação comparada. No entanto, não há.

Entrevistadora: O que seriam os principais desafios para pensar a educação – de forma geral – de países latino-americanos, como o Brasil, que vêm ouvindo discursos de desvalorização da educação – falando em um termo muito amplo – por vários motivos? Para pensarmos a educação atualmente o que precisaríamos manter como foco de nossos pensamentos, para que pudéssemos, de alguma forma, mudar esse cenário?

C.A.T.: Eu devo dizer, inicialmente, que sou uma pessoa muito cética sobre a educação. Para o meu gosto, os grandes dilemas do mundo não são dilemas educativos, são dilemas de política pública. A educação é uma condição necessária, mas não suficiente para o desenvolvimento, a transformação. E, como condição necessária, é preciso tê-la, é preciso impulsioná-la, fazê-la com qualidade e com uma amplitude à qual todo mundo possa ter acesso. Mas existe, nessa defesa, um texto de 1991 de uma escola privada nos Estados Unidos. No primeiro dia de um novo ano escolar, todos os professores receberam a seguinte mensagem de seu diretor: “Queridos professores, eu sou um sobrevivente de um campo de concentração. Meus olhos viram o que nenhum homem deveria testemunhar: câmaras de gás construídas por engenheiros qualificados, crianças envenenadas por médicos instruídos, bebês assassinados por enfermeiras treinadas, mulheres e bebês baleados e queimados por estudantes formados em escolas de Ensino Médio e faculdades. Então, eu suspeito da educação. Meu pedido é: ajude seus estudantes a se tornarem humanos. Seus esforços nunca devem produzir monstros instruídos, psicopatas hábeis, especializados, Eichmanns6educados. Leitura, escrita, aritmética são importantes somente se servirem para tornar nossas crianças mais humanas.” Eu concordo plenamente com esses valores. Por isso em meus piores momentos eu penso que muito da educação nas universidades não serve para nada. Escola de educação não serve para nada porque estamos criando metodologias, teorias, políticas que frequentemente não são implementadas. Nossos resultados de pesquisa só funcionam quando são encontrados pela pessoa que tem a capacidade de implementá-los e que está no lugar correto no momento correto. Então este é um argumento que toda esta imensa quantidade de pesquisa, que nós realizamos termina sendo colocada em livros que ninguém lê ou termina sendo colocada em declarações que as pessoas leem, mas não aplicam. Em última instância, o grande dilema da educação está na política. Por isso Freire foi tão importante. Porque ele não aceitava este modelo tecnocrático. Ao contrário, questionava-o. E, se em algo Freire é uma grande contribuição, foi justamente como Habermas – lembre que eu tenho um livro Freire e Habermas7 – que veiculam o seu pensamento em duas grandes ideias. Se são originais ou não, não me interessa. A primeira ideia é o diálogo como um mecanismo de comunicação e essa comunicação é através de um modelo de circularidade onde um comunica e o outro é comunicado e vice-versa, como disse Habermas: o diálogo ideal de comunicação. E o segundo elemento é uma utopia. A imagem de que tudo o que fazemos na vida está fundado em um ato utópico e as grandes transformações acontecem, porque há atos utópicos. Não sei se posso dizer algo mais.

Entrevistadora: Nos últimos anos, no Brasil, a memória de Freire tem sido retomada por meio de discursos contrários e favoráveis, conforme podemos acompanhar na mídia e a partir de escritos como o de Sérgio Haddad – no perfil biográfico que escreveu sobre o educador, por exemplo. Muitos dos discursos contrários responsabilizam Paulo Freire pelos problemas da educação no Brasil. Parece ser uma repetição do passado que o exilou. Você poderia comentar qual a sua leitura desses movimentos que parecem levar Freire a um novo exílio, agora intelectual?

C.A.T.: Freire é um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores, então essa crítica é uma crítica política, que tem a ver com a posição do Partido dos Trabalhadores na política brasileira. Esta é a primeira observação. A segunda observação: é muito difícil aplicar a Freire. Freire necessita mediações. Na realidade, o que eu poderia afirmar é que se Freire tivesse sido aplicado, a educação seria muito melhor. Mas para que Freire fosse aplicado são requeridas outras condições que não existem na educação pública brasileira. Primeiro: professoras e professores com alta qualidade, bem formados. Segundo: recursos econômicos para implementar estas ideias. E terceiro: vontade política. Estes três elementos não existem na educação pública, mas existem em muitas escolas na educação privada. Se alguém quisesse conhecer onde está Freire, não deve olhar a educação pública, deve olhar a educação privada, porque a educação privada utiliza – mencionando ou não – muitos dos grandes princípios de Freire: autonomia, liberdade, capacidade de diálogo, todos os aspectos que têm a ver com a curiosidade epistemológica... Todos estes elementos, que são elementos teóricos e metateóricos muito importantes, estão nas melhores escolas privadas, mas não nas escolas públicas. Claro, as escolas privadas têm recursos e trabalham com um grande conjunto de jovens de classe média e média-alta, que também têm um capital cultural muito superior que o capital cultural das meninas e meninos das favelas. Com isso não estou, de nenhuma maneira, dizendo que as meninas e meninos das favelas não têm um conhecimento. Tem conhecimento, um conhecimento popular, e as pessoas de classe média tem um conhecimento que pode ser popular ou não, mas especialmente mais refinado. O grande diálogo no interior da escola deveria ser entre o conhecimento popular e o conhecimento das ciências sociais ou da ciência em geral, altamente refinado. Para isso é necessário um arquiteto, é necessária uma pessoa na sala de aula que seja capaz de articular esse diálogo. A maioria dos professores e professoras que eu conheci no Brasil, com toda a boa vontade deles, termina sendo uma extensão da família – por isso Freire escreveu “Professora sim, Tia não”. Não me parece mal, mas não faz o impacto que deveria fazer com um alto nível de conhecimento intelectual. Esses são os comentários gerais que eu faria a essa pergunta. E afirmaria uma questão mais: Freire é um tesouro do Brasil. Me parece ridículo que um sujeito, que deu tanto ao mundo e tanto ao Brasil, tenha morrido em 1997 justamente porque, digamos, o Brasil terminou por escandalizá-lo... Há uma conversa entre os amigos: Freire foi fazer uma pequena operação, nada mortal, era coisa séria, mas... E saiu bem e, logo após, morre de um ataque do coração, estando na sala de recuperação?! O que faltava a Freire nesse momento? Faltava-lhe o otimismo, esta imagem de pensar em um futuro possível. E por quê? Porque como muita gente, penso que Freire foi um dos dois que eu posso citar hoje... O outro é Humberto Eco. Gente famosíssima. Gente que com seu trabalho profissional fez uma intervenção imensa na vida das sociedades. Gente como Eco, que além em seu trabalho profissional tinha seu trabalho literário e O nome da rosa é um texto extraordinário, fantástico, bem-feito, bem-escrito, bem-pensado. E, no final de sua vida, havia perdido o entusiasmo, havia perdido a vontade, havia perdido a utopia. No final de sua vida, as últimas conversas de Humberto Eco foram trágicas. E, no final da vida de Paulo Freire, pouco antes de sua morte, este ato destes jovens, estes juniors que passaram com um carro e viram um senhor aposentado, preso em um umbral, tapado com seu casaco e lhe atiraram gasolina e atearam fogo.8 Era um chefe indígena que havia ido a uma reunião em Brasília e chegou tarde na casa onde estava hospedado e não soube como entrar. Como homem duro da montanha, duro da selva se encostou e começou a dormir. Não incomodava ninguém. Sabe qual foi a desculpa dos jovens? – E isso fez muitos danos a Freire. A desculpa foi “pensamos que era um vagabundo, não um chefe indígena”. Então talvez ele tenha morrido porque ele perdeu otimismo. Depois de tudo, quando pessoas perdem o otimismo, por que viver? E uma das razões pelas quais isso pode acontecer é quando a sociedade está tornando-se tão cruel, como o exemplo desses meninos que foram capturados e se desculpavam dessa maneira “pensávamos que era um vagabundo, uma pessoa sem valor, poderíamos queimá-lo para desfrutar”. Isso matou a Freire. Penso que isso foi um dos últimos grandes momentos de um homem apaixonado pela vida, que disse: Mas o que é isso? Esse é o Brasil que eu deixei? O Brasil com o qual eu me comprometi e me exilou? E olha que Freire era um brasileiro de pura cepa, um nordestino de pura cepa, uma pessoa que adorava a comida, a música, a dança, tudo. E estar exilado nunca foi muito agradável para ele, mas havia um projeto para impulsar, um modelo utópico para continuar e o continuou. Ao retornar encontrou que o Brasil pelo qual ele havia lutado não só não havia mudado, mas estava pior. Isso não ajudou.

Entrevistadora: Você está lançando um livro, o qual é organizador, chamado Wiley Handbook of Paulo Freire, pela editora Wiley-Blackwell. Gostaria de deixar um espaço para um comentário sobre a obra e frisar que esta publicação corrobora a importância do pensamento de Paulo Freire na atualidade e a importância de continuar estudando e produzindo conhecimento a partir dele?

C.A.T.: A realidade é que alguém pensaria que as coisas se fazem racionalmente, certo? Este não foi um ato racional [risos]. A realidade é que eu recebo uma ligação da Wiley-Blackwell, a editora, que queria fazer um livro sobre Freire, haviam investigado e pensaram que eu era uma pessoa qualificada. E a verdade é que eu trabalho muito, eu tenho muita energia, com o correr do tempo menos, mas tenho mais energia que uma pessoa mais normal [risos]. E eu pensei: “É uma homenagem ao maestro, ao mestre. Uma homenagem ao mestre.” Também pensei que era importante impulsionar um modelo de leitura crítica do Freire para a próxima década. Este livro marca e vai marcar a discussão nos próximos dez anos. Terceira coisa que pensei, havendo eu trabalhado tanto tempo nesta área eu tenho muitos amigos. Não era questão de só convidar meus amigos, mas muitos de meus amigos são especialistas muito importantes. A quarta coisa que eu pensei é que haveria de ser um texto que reunisse três ou quatro coisas diferentes. Primeiro: história. Todos os elementos históricos que haviam sido parte da história do Freire, os elementos que Freire levou à história e como estes elementos históricos impactaram países. Aí tem onze ou doze capítulos. Eu pensei que era muito importante ver os pensadores com os quais Freire poderia dialogar: Gramsci, Gandi, etc. Eu pensei que haveria de ter uma imagem de Freire e outros contemporâneos ou não. Gramsci morre antes que Freire o conhecesse pessoalmente, mas o conhece por leituras. Então esse também é importante. Agora, Freire é um pensador que é impactado tanto nas ciências sociais que gostaria de ver Freire e as raças; Freire e as classes sociais; Freire e o feminismo, gênero; Freire e a religião... E agregar um tema ao qual Freire mesmo vira agregado: Freire e a ecopedagogia. Esse tema era o mais difícil de todos, assim decidi fazê-lo com um estudante meu que é um especialista, agora já professor. Depois, os outros foram saindo por pessoas que eu fui conhecendo. E essa parte é muito importante porque é possível ver como Freire impactou em todas estas pessoas e em todos estes temas – inclusive, por exemplo, a conversa sobre feminismo é fantástica. E ficava uma quarta seção que é a importância de Freire hoje para a construção da democracia e da educação. Então aí entrou também toda outra área. Então essa é a missão, eu diria. A missão transversal é: Freire fez uma contribuição de tal magnitude que hoje, na educação contemporânea, se pode estar com Freire ou contra Freire, mas não sem Freire. E isso ficou claro na leitura desse livro. Esse livro tomou quatro anos. Os primeiros três anos para convidar as pessoas, ver o que escreveram e o quarto ano foi trabalhar com o editorial que foi muito difícil porque era muita coisa. Foi um trabalho muito intenso. Mas o que eu fiz sim, pois sou um grande “liberal”, foi não impor nada. Quando eu convidava alguém, eu dizia: Quero que você fale algo de Freire e religião, nada mais. E é um texto fantástico. Assim, da mesma maneira disse à Marcela Gajardo que foi a assistente de Freire no Chile. Eu lhe disse: Freire e Chile. Uma frase, nenhuma outra direção. Então eu me encontrei com um manuscrito imenso que teria que ter uma introdução. Eu a criei a partir de minha percepção de certas coisas e de modo a introduzir este manuscrito de maneira orgânica. Assim penso que vai ser uma contribuição importante ao menos por uma década, se não mais. A realidade é que as pessoas já não leem tantos livros, mas os livros são como uma pirâmide: você pode subir ou não a pirâmide. A pirâmide está aí. E essa pirâmide tem uma importância determinada, este livro tem uma importância determinada.

1Outras informações biográficas podem ser encontradas em suas páginas pessoais e profissionais. Ver, por exemplo: https://gseis.ucla.edu/directory/carlos-torres/.

2Além de fundar o IPF na Ucla, o professor também participou da fundação do mesmo Instituto na Argentina e no Brasil.

3O capítulo referido é “The making of a political sociologist of education.” (2016).

4Os livros aqui referidos são os já citados: Consciência e história: a práxis educativa de Paulo Freire (1979), Diálogo com Paulo Freire (1979), Paulo Freire: Educación y concientización (1980) e Leitura crítica de Paulo Freire (1981).

5A utopia, para Paulo Freire, está relacionada ao futuro possível a ser construído, à esperança e ao compromisso com a transformação da realidade e com a superação das injustiças, por isso é a tensão entre a denúncia e o anúncio. Freire (2008, p. 31) explica: “Para mim o utópico não é o irrealizável; a utopia não é o idealismo, é a dialetização dos atos de denunciar e anunciar, o ato de denunciar a estrutura desumanizante e de anunciar a estrutura humanizante. Por esta razão, a utopia é também um compromisso histórico. A utopia exige o conhecimento crítico. É um ato de conhecimento. Eu não posso denunciar a estrutura desumanizante, se não a penetro para conhecê-la”.

6A respeito disso, ver Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal (primeira publicação de 1963). Arendt aborda o julgamento de Adolf Eichmann em função de suas ações contra judeus no regime nazista. Este justificava seus atos dizendo que somente cumpria as ordens de seus superiores. Arendt explica, então, que Eichmann seria um homem comum, que simplesmente não refletiu nem se conscientizou sobre suas ações. Alienando-se da realidade, ele apenas não teria percebido o que estava fazendo. Era incapaz de enxergar do ponto de vista do outro, incapaz de levar em conta a pluralidade de realidades do mundo.

7O livro aqui referido é Reading Freire and Habermas (2002).

8Paulo Freire escreve sobre este episódio, em uma carta que foi posteriormente publicada em Pedagogia da indignação (2000).

Referências

ARENDT, Hanna. Eichmann em Jerusalém. Trad. de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Universidade Estadual Paulista – Campus Marília, 2000. [ Links ]

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HADDAD, Sérgio. O Educador: um perfil de Paulo Freire. São Paulo: Todavia, 2019. [ Links ]

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TORRES, Carlos Alberto (ed.). The wiley handbook of Paulo Freire. Hoboken: Wiley-Blackwell, 2019. [ Links ]

Recebido: 20 de Março de 2020; Aceito: 22 de Março de 2020

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