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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.25  Caxias do Sul  2020

https://doi.org/10.18226/21784612.v25.dossie.12 

DOSSIÊ: FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO E PEDAGOGIA CRÍTICA: PREOCUPAÇÕES E TENDÊNCIAS ATUAIS

Contribuições críticas sobre a produção científica na atualidade

Contribuciones críticas en la producción científica en la actualidad

*Psicóloga. Mestra em Psicologia Social e da Personalidade. Doutora em Psicologia. Professora na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas. Líder do “Grupo Mariposas: minorias sociais, resistências e práticas de transformação”. E-mail: alineaccorssi@gmail.com

**Psicóloga. Especialista em Gestão de Pessoas, Mestranda em Educação pela Universidade Federal de Pelotas. E-mail: anedeanelise@hotmail.com

***Cientista Social, Mestranda peloo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pelotas, bolsista CAPES. E-mail: clasenjulia1@gmail.com


Resumo

O teórico Michael Löwy afirmou que o campo científico é social e politicamente condicionado, não sendo viável estabelecer um distanciamento entre ciência e ideologia. No atual momento, é possível visualizar a clareza dessa afirmação, na medida em que o campo científico se demonstra obstruído diante do cenário político vivenciado. O pensamento crítico e problematizador é tido como um perigo eminente perante a conjuntura conservadora e antidemocrática que se acentua. Com isso, a produção de pensamento crítico e o posicionamento de resistência, diante da formação conservadora, assume a denominação de doutrinação, e o debate gerador de reflexão tende a ser calado, sobretudo se não confirmar a lógica dominante. Ao compreendermos a necessidade de reafirmar o teor questionador da produção de conhecimento, como elemento central na formação social, entende-se sua relevância na construção de um caminho democrático do pensamento social. Neste trabalho, buscamos levantar reflexões a partir de uma revisão bibliográfica, procurando entender produção de conhecimento em um período de anti-intelectualismo. Em contraposição ao conceito positivista de neutralidade do conhecimento, pretende-se investigar a relação dialética entre representação política e formação intelectual. Nossa concepção de pesquisa científica situa-se em um campo que não é neutro, mas permeado de diferentes concepções de mundo, de ser humano e de conhecimento, bem como engendrada por relações que ocorrem entre sujeitos, que propendem a produzir conhecimentos científicos a partir do seu lugar social, um lugar suficientemente privilegiado. Este trabalho se propõe examinar essas questões, ao referenciar a formação social como aspecto determinante na produção de conhecimento. Aponta-se à figura do intelectual orgânico como elemento essencial para pensar essa questão, ao salientar a contraposição ao retrocesso científico imposto no último período e a valorização do pensamento crítico, mais do que nunca como pensamento que resiste no campo da pesquisa e diante do sistema produtivista que o concebe.

Palavras-chave Campo científico; Pensamento crítico; Produção de conhecimento

Resumen

El teórico Michael Löwy afirmó que el campo científico está condicionado social y políticamente, y no es posible establecer una distancia entre la ciencia y la ideología. En este momento, es posible visualizar la claridad de esta afirmación, ya que el campo científico está obstruido en la escena política experimentada. El pensamiento crítico y problematizador se ve como un peligro inminente frente a la coyuntura conservadora y antidemocrática que se está haciendo más pronunciada. Con esto, la producción de pensamiento crítico y la posición de resistencia, ante la formación conservadora asume la denominación de adoctrinamiento, el debate generativo de reflexión tiende a ser silencioso, especialmente si no confirma la lógica dominante. Al comprender la necesidad de reafirmar el contenido cuestionador de la producción de conocimiento como un elemento central en la formación social, su relevancia se entiende en la construcción de un camino democrático del pensamiento social. En este trabajo, buscamos plantear reflexiones a partir de una revisión bibliográfica, con la base de entender la producción de conocimiento en un período de antiintelectualismo. En contraste con el concepto positivista de neutralidad del conocimiento, pretendemos investigar la relación dialéctica entre la representación política y la formación intelectual. Al entender la investigación científica como un campo que no es neutral, sino que está permeado por diferentes concepciones del mundo, del ser humano y del conocimiento. Está engendrado por relaciones que ocurren entre sujetos, que tienden a producir conocimiento científico desde su lugar social, un lugar suficientemente privilegiado. Estas son preguntas que deben examinarse en este trabajo y que hacen referencia a esta relación como un aspecto determinante en la producción de conocimiento. Se señala la figura del intelectual orgánico como elemento referencial para pensar esta pregunta, enfatizando finalmente la contraposición a la regresión científica impuesta en el último período, manteniendo la valorización del pensamiento crítico, más que nunca como un pensamiento que se resiste en el campo de la investigación. Y ante el sistema productivista que la concibe.

Palabras-clave Campo científico; Pensamiento crítico; producción de conocimiento

1 Introdução

As produções científicas e os discursos que as compõem podem ser comparados a construções, os quais permitem estabelecer conexões com o mundo e com os processos históricos e sociais que engendram a realidade. Não os pensando como desígnios de verdades absolutas, mas como possibilitadores para estabelecer processos de reflexão e formação humana. Tendo em vista que os desenvolvimentos humano e político estão estritamente atrelados a uma condição de enfrentamento e contraposição de ideias, a divergência como composição do processo reflexivo é bem-vinda. Não sustentamos, aqui. a construção de unanimidades, mas defendemos esta faceta radiante do jogo democrático: o direito de ser/pensar diferente do outro.

Nesse enquadramento, destacamos para reflexão situações que têm cerceado a liberdade acadêmica, na medida em que essas se demonstram cada vez mais rotineiras. A frase “tudo vai ficar bem” nos ocorre em diálogos internos, mas a temida verdade é que não sabemos que futuro, em termos de produção intelectual, social e política, nos aguarda. Uma vida de possíveis silêncios está nos atravessando e nos colocando no papel de coadjuvantes irrecuperáveis diante de cenas compatíveis com a escola de realismo fantástico,1 ao tomarmos emprestada essa referência da literatura.

O propósito primordial do espírito pedagógico, o de estimular o pensamento e suscitar dúvidas, tem sido condenado a um patamar de “coisa abominável”, visto que não seria a produção de conhecimento um evidente ato político? Ao ser a produção de saberes formada em uma relação socialmente determinada e não em isolamento, o campo científico demonstra-se social e politicamente condicionado (LÖWY, 2008). De tal forma, é preciso um olhar atento às disputas que permeiam esse campo e incidem na construção social como um todo. Considerar os caminhos a serem traçados, diante das questões que fazem parte da formação social e que são necessárias à construção da pluralidade em ambientes que buscam fortalecer a democracia, se torna cada vez mais imprescindível.

Em um período no qual a produção de conhecimento científico é colocada em dúvida, afirmam-se concepções teóricas já há muito superadas como verdades universais, tempo em que se subestimam descobertas científicas que romperam com velhos paradigmas e trouxeram agudas mudanças sociais. Nessa linha de entendimento, nos perguntamos: A quem serve esse tipo de projeto nebuloso? A pesquisa científica é rechaçada, caracterizada em um ato de contravenção à ordem. Afirmações superadas e que carregam um teor conservador ganham espaço no atual momento político, sendo apresentadas como verdades absolutas: “A terra é plana; a ditadura não existiu; o holocausto não aconteceu; o nazismo foi um projeto de esquerda; os negros não foram escravizados; a homossexualidade é uma doença e tem cura”, entre tantas outras. É um movimento que se apresenta tanto no sentido saudosista do passado quanto de distorção dos seus fatos históricos. Conforme Scarparo e Hernandez (2014), esse movimento de saudosismo utópico do passado é movimento de recriação de ações humanas, no sentido de projeção de um tempo pretérito que nunca nos pertenceu.

O atual governo brasileiro, sob um manto neoliberal, assume uma face conservadora e autoritária em seus discursos. Tende a perceber as críticas como inimigas e busca homogeneizar qualquer linha de pensamento que se apresente como divergente de seu pensamento uno. Em um contexto suscitado por tais práticas e discursos, o pensamento científico-crítico é menosprezado e subestimado e como conseqüência, provoca a precarização das políticas públicas educacionais tão caras ao desenvolvimento social. O autor Mészàros (2008) assinala com precisão o que está em jogo no campo educacional diante da dinâmica do capital. Aponta, também, que a própria sobrevivência da humanidade está em jogo aqui e, diante de tal sistema de poder, nenhuma prática educacional formal tem potencialidade de superar suas práticas abusivas, na medida em que os saberes produzidos, no seu interior, estão condicionados pelo curso do poder dominante. Nesse sentido, é preciso retomar a Educação em seu sentido mais amplo, englobando, nessa reflexão, os saberes que resistem aos espaços de poder como forma de repensar a Educação e as relações humanas.

Projetar essa reflexão abarca um movimento de confronto às práticas de deslegitimação do conhecimento, em um contexto no qual não apenas os saberes oriundos dos movimentos sociais, em seu formato de resistência são criminalizados, mas a produção de conhecimento como aspecto inerente à soberania nacional é desfavorecida em uma constante afirmação de idolatria imperialista. Tempos nebulosos diante dos retrocessos apresentados. Encontramos o recorrente duvidar da permanência da Educação pública na qualidade de um direito universal e nos colocamos em temor diante dos ataques vivenciados. Nossos gritos são palavras de ordem já antes gritadas, tendo de ser reafirmadas diante de um programa que coloca o aniquilamento da Educação pública na ordem do dia. Aniquilamento que nada mais é que um projeto soturno à perpetuação do poder exercido pelas classes dominantes.

Em um período em que o intelectual é declarado inimigo universal, o pensamento crítico é aproximado da categoria de doutrinação, e o guru dos agentes sustentadores do poder da classe dominante é um astrólogo, nos indagamos acerca dos horizontes reservados à produção de conhecimento. As definições estão perdidas, as categorias deturpadas e nos perguntamos sobre quais são os nossos papéis nesse momento. Teríamos fôlego para manter nossas pesquisas em uma era na qual a reflexão é definida como sinônimo de balbúrdia?2 Estamos situados nesse tempo, com esses discursos nos rondando e nos encontramos imobilizados. Vamos dormir com medo do aniquilamento dos serviços públicos, acordamos com a notícia de novo corte na Educação e seguimos os dias prevendo o momento que, como parte de nossas pesquisas, irão nos enquadrar como contraventores. Quais são os significados desse período?

Nossa perspectiva, nestas linhas, é refletir sobre a emancipação do conhecimento em um tempo que afirma a criminalização do pensamento crítico. Buscamos traçar algumas reflexões sobre os significados desse período para o campo da Educação, no sentido de visualizarmos saídas e possibilidades de ação, em uma época em que educar, no sentido de instaurar o reconhecimento do aprendizado ao outro, é uma forma de resistir aos mitos da ideologia opressora. Paulo Freire alerta para essa questão:

No ato desta decretação, quem o faz, reconhecendo os outros como absolutamente ignorantes, se reconhece e à classe a que pertence como os que sabem ou nasceram para saber. Ao assim reconhecer-se tem nos outros o seu oposto. Os outros se fazem estranheza para ele. A sua passa a ser a palavra “verdadeira”, que impõe ou procura impor aos demais. E estes são sempre os oprimidos, roubados de sua palavra (1987, p. 180).

Ainda que seja negado a alguns o direito ao uso da palavra, como representação significante do seu lugar social, sempre há possibilidades de aprendizado para o enfrentamento dos domínios e o rompimento das asfixias impostas por determinado modelo de poder. Realocar ao debate essas possibilidades é reflexão aqui estabelecida, em movimento de superação aos enclausuramentos do pensamento.

2 O atual momento: poderemos resistir?

A fim de atingirmos uma produção de conhecimento para uma prática que percorra um sentido emancipador, temos muito a avançar. É tarefa imediata e essencial pensarmos formatos de resistência aos retrocessos que recaem diante dos nosso cotidiano. Ao afirmarmos um trabalho de pesquisa científica, que se propõe estar a serviço da construção de novo sujeito histórico, pretendemos o resgate do trabalho intelectual exercido mediante a atividade humana decorrente da vivência em sociedade. É através dessa dimensão, que concepções de mundo são desenvolvidas, as quais se colocam também em tarefa dialética de transformação das relações estruturantes da sociedade, ao ser este caminho necessário à sua modificação. Assim, a elaboração intelectual acerca de vivências em sociedade é um aspecto presente, em diferentes graus, na formulação de todo sujeito social, conforme nos apresenta o pensamento de Gramsci:

Mas a própria relação entre o esforço da elaboração intelectual-cerebral e esforço muscular-nervoso não é sempre igual; por isso, existem graus diversos de atividade específica intelectual. Não existe atividade humana da qual se possa excluir toda intervenção intelectual, não se pode separar o homo faber do homo sapiens. Em suma, todo homem fora de sua profissão desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, é um “filósofo”, um artista, um homem de gosto, participa de uma concepção de mundo, possui uma linha consciente de conduta moral, contribui assim para manter ou para modificar uma concepção do mundo, isto é, para promover novas maneiras de pensar (1982, p. 7-8).

É importante retomar, aqui, algumas categorias esquecidas, que definem, com precisão, os significados do atual momento político para o campo científico, como: a conceitualização de ideologia e suas determinações no curso da ordem social, que explicam os significados da obstrução do pensamento crítico. A ideologia é, aqui, empregada de acordo com um conjunto de concepções de mundo vinculado a determinada classe social, que caracteriza o constante percurso da dinâmica social de disputa de ideias. Para Gramsci (1982) os intelectuais orgânicos das classes sociais são formuladores dessa disputa ideológica, ao ser esse processo de formulação acerca da vivência em sociedade e constitutivo do curso da história. Concepções de sociedade que movimentam as massas, ao se contraporem ao papel ideológico de apassivamento e de assimilação das ideias dominantes exercido pelos intelectuais tradicionais e os centros de poder.

Ao pensarmos a formulação do processo de construção do conhecimento, precisamos olhá-lo mediante a lógica do poder político-econômico em voga, uma vez que ele revela a disputa de concepções de mundo. Nesse sentido, para compreender o atual contexto político, é relevante retomar aspectos ideológicos que sustentam a assimilação do poder. Conforme Marx e Engels (1998), em uma sociedade de classes, as ideias dominantes de cada época são ideias da classe reinante. É preciso, assim, compreender as ideologias prevalecentes e os reais significados que essas assumem no atual cenário político brasileiro, sem isolar as potencialidades e implicações do pensamento crítico na disputa de idéias, disputa essa que se insere no pensamento intelectual, permeia as relações sociais e forma os sujeitos históricos.

Essa constante disputa ideológica, que perpassa por diferentes esferas sociais, é questão definidora na construção de um pensamento emancipador, ao visar à contraposição à ordem e à construção da criticidade às estruturas capitalistas. Tal pensamento se situa como meio central para o processo de conscientização e tem interligação com a produção crítica de conhecimento. É no decorrer desse processo de formulação acerca da dinâmica social, que é possível captar seus abismos e contradições.

Possivelmente, todo ato de resistência esteja embrenhado na necessidade de decodificar os acontecimentos, de interpretá-los à luz da realidade e, também da história, a qual muito diz sobre o presente. Problematizar criticamente o mundo em que se vive é um potente ato político. Essa atitude é capaz de chamar os sujeitos a “assumir o seu papel de tomada de consciência de si e do mundo” (FREIRE, 1987, p. 20).

Diante das relações estruturais, em que se situam as concepções de mundo atuantes e, na mesma medida, as concepções contra-hegemônicas, é que se caracteriza a disputa ideológica presente nas diferentes esferas da vida social, lugar no qual podemos pensar e traçar os horizontes de uma pedagogia que resista e que também nos permita avançar em conquistas sociais ao não nos limitarmos a uma interpretação fechada em si mesma, mas que esteja e seja posta com a finalidade de refletir acerca da práxis social e política com o propósito de estabelecer movimentos de contraposição às perspectivas alienantes.

Portanto, a prática social pressupõe domínios teóricos e práticos e, assim sendo, quando o sujeito do conhecimento empreende um pensamento sobre a realidade, tendo em vista nela intervir, a qualidade de sua intervenção estará na dependência dos domínios conceituais que lhe estão disponibilizados, ou seja, o pensamento (como expressão da capacidade de conhecer) não é um bem espontâneo que se ativa automaticamente quando um indivíduo é exposto à realidade. Ele se desenvolve como conquista do ser social, em processos de ensino, cujo acervo resulta da história humana objetivada como riqueza pela ação práxica dos indivíduos que se apropriam dessas conquistas históricas. O indivíduo que pensa a realidade e sobre ela age, somente pode fazê-lo por meio da apropriação das conquistas históricas objetivadas

(OLIVEIRA, 2001, p. 319).

Unir o discurso à prática de forma a se produzir sentidos e interpretações entre o objetivo e o subjetivo, ao se considerar a dialética dessa relação, é parte essencial da compreensão de que ambos não podem ser analisados separadamente. A conjunção, que busca constituir de forma individual e coletiva uma consciência contra-hegemônica, que pense criticamente na sua condição na sociedade, diante da urgente necessidade de que possamos preservar direitos sociais duramente adquiridos, entre eles a defesa de uma Educação pública de qualidade, é primordial. Para tal processo, é preciso destacar a centralidade da construção de saberes de resistência como mecanismos para formulação de novas relações sociais, que não mais estejam assentadas na opressão e exploração estruturantes da sociedade.

Nesse sentido, ao refletirmos sobre o papel central da produção científica e do pensamento crítico na sociedade contemporânea, intencionamos uma reflexão constituidora desse processo transformatório das relações sociais. Recompor relações em um mundo que objetifica e desumaniza, perante um áspero projeto de dominação que foi imposto, sob o qual, alguns podem desfrutar deste Planeta com liberdade, enquanto outros apenas constroem com trabalho as estruturas do globo e só podem olhar para as oportunidades em que sujeitos “merecedores” podem desfrutar, continua a ser um enfrentamento indispensável para outras viabilidades de existência. Por essa lógica, descortinar criticamente esse ditame, quando pensamos na complexidade de sentidos que o termo resistir pode abarcar, é algo inadiável.

A discussão sobre os formatos de resistência que o pensamento científico assume no atual momento político vem acompanhada de um indagar-se sobre quem tem direito à produção do conhecimento na sociedade contemporânea. Diante de um profundo processo de privatização da Educação e, essencialmente, do ensino formal, ao ser este espaço reservado a uma exclusiva parcela da sociedade. A quem estaria entregue a tarefa de manutenção do conhecimento, amplamente aceito e reproduzido no sentido de “desenvolvimento social”?

O próprio conceito de desenvolvimento, diretamente relacionado no imaginário social, como decorrência da ciência, é produzido a partir de uma ótica, que deriva das relações produtivas e garante a manutenção da coesão social. Assim, formulado a partir da lógica de privatização de espaços e vidas, espera-se da tarefa intelectual o papel de assegurar as condições de manutenção da ordem das elites. Qualquer ação que não siga essa lógica será enquadrada como desviante e desqualificada. É reproduzida, nesse sentido, uma lógica de produção de conhecimento que atua no sentido de manutenção do status quo, de forma a ocasionar à população um conjunto de formas de pensar e agir ditado ao longo do tempo, através da formação condicionada por valores sociais dominantes, por meio das instituições que lhe são de acesso. “Aqui a questão crucial, sob o domínio do capital, é assegurar que cada indivíduo adote como suas próprias as metas de reprodução objetivamente possíveis do sistema” (MÉSZÁROS, 2008, p. 44). Descortinar essa lógica, certamente, é tarefa impreterível para nos levar a outros cenários.

3 Como existir criticamente?

O processo de reflexão crítica, visto como um processo que é coletivo e historicamente determinado, perpassa pelos sujeitos sociais em intrínseca relação de tensão com os aparatos do poder. Esse não ocorre de modo espontâneo, nem individual, mas é fruto das relações sociais formadoras da sociedade. É mediante esse processo que o sujeito social se constitui, em uma condição, conforme Freire (1987), de sujeito com vocação histórica, inserido em um processo de conscientização de sua humanização e da possibilidade de transformação social.

Refletir acerca do processo de conhecimento, pensado a partir das relações materiais historicamente constituídas e em constante transformação, significa, também, refletir sobre esse tal “sujeito histórico” do sujeito ou sujeitos,3 protagonistas desse movimento de transformação das estruturas de poder. Ao pensar na lógica de produção de conhecimento é preciso, também, levantar indagações acerca do processo de formação dos sujeitos, bem como sua localização no curso dos processos transformatórios.

O sujeito cognoscitivo é o ser humano, entendido como sujeito coletivo, social e histórico, que produz conhecimento num determinado modo social de produção da existência, que, na atualidade, é o capitalista. Neste modo de produção, imperam as relações sociais de dominação e se efetiva a contradição entre capital e trabalho, determinação histórica da qual faz parte a produção do conhecimento. O conhecimento humano produzido pelo ser social não está isento da tensão existente entre os pólos da citada contradição. No caso do materialismo histórico-dialético, busca-se a objetividade do conhecimento como contributo para a superação de uma realidade que, em sua essência, almeja acumular capital em detrimento do ser humano

(ABRANTES; MARTINS, 2007, p. 315).

Assim, o processo de conhecimento, na mesma medida em que não é espontâneo nem individual, não tem um fim em si mesmo, mas é construído a partir da constante relação sujeito-objeto. O processo de reflexão acerca da realidade que cerca o sujeito e define suas formas de ser e agir é permanente e atuante. Conjeturar sobre essa realidade é requisito para compreender suas contradições, uma vez que essa configuração é formada por relações sociais. Refletir acerca de seus processos de formação torna-se crucial para refletirmos sobre a atuação do sujeito sobre a realidade.

Por sua vez, o objeto a ser conhecido é a realidade na qual estão contidas as atividades humanas e as contradições internas essenciais que lhe determinam o movimento histórico. Embora o objeto possa se apresentar ao pensamento como dado e acabado, nele estão contidas as relações sociais de produção expressas na contradição ontológica entre aparência e essência, determinante da necessidade da ciência e do método de se conhecer o real. Portanto, a unidade sujeito objeto reitera o papel do pensamento no processo de conhecer a realidade, ao mesmo tempo em que afirma a primariedade da realidade em relação ao pensamento.

O conhecimento não emana nem do pólo concreto, representado pelo objeto (realidade), nem do pólo abstrato, representado pelo sujeito (pensamento), concentrando-se no movimento entre estes pólos, na relação entre a realidade e a consciência sobre ela. É na base desta tensão que se consolida o trabalho intelectual sobre a realidade, trabalho este que, ao colocar o real a descoberto, pela apreensão de suas múltiplas determinações sintetizadas na unidade aparência essência, o representa e o expressa teoricamente

(OLIVEIRA, 2001, p. 315-316).

Vislumbramos o intelectual na condição daquele que se propõe refletir sobre a realidade social, ao ser sujeito formador de determinado conhecimento, o qual não pode relacionar-se a um processo puramente instintivo de reflexão sobre a realidade, mas tem profunda atuação sobre ela. Na medida em que atua sob a formação do imaginário social, conduz a relação de disputa ideológica que opera o curso das relações sociais. Ele está, assim, situado diante da constante tensão entre poder e conhecimento, ambos sendo definidos pelo curso dessa relação. O poder, aqui, não visto como elemento estático e de maturidade extrema, mas passível de mudanças, que derivam principalmente dessa relação de tensão.

O curso dessa relação procede, no atual estágio do capital, a uma constante privatização da vida, mediante uma promessa de “liberdade individual” que demonstra suas impossibilidades na medida em que se insere em uma sociedade produtiva, que existe mediante uma desigualdade extrema. Essa forma de produção estabelece o público e as diferentes esferas que dizem respeito a ele, na condição de mercadoria, e o conhecimento na qualidade de um privilégio a ser comprado. Quem não tem acesso a essa compra é reduzido à condição de um receptor, com a tarefa de assimilar o conjunto de informações, cotidianamente transmitidas.

Do mesmo modo que as novas especializações criam universos restritos e circunscritos a novos detentores de novos saberes, a promessa de ampliação do espaço público e de interação com os intelectuais e com a busca do conhecimento começa a virar contra si mesma. As especializações começam a cercear o espaço da liberdade. Esse espaço da liberdade, da investigação passará a ser privilégio daqueles que detêm esses saberes; passará a ser privilégio de quem detém os códigos de acesso aos novos saberes

(OLIVEIRA, 2007, p. 126).

Mediante essa condição que privatiza o conhecimento, vendido em uma imagem de produção isolada que só pode ser efetiva com o fim da comercialização, retomamos o olhar aos saberes produzidos no seio da vida cotidiana. Os saberes oriundos de grupos sociais que não estão nos locais de poder, acabam por ter seu conhecimento desqualificado perante o “conhecimento válido” e afirmado como universal.

Com a intenção de reiterar qual saber nos interessa, quando pensamos seu intuito no movimento de transformação social, em contraposição à lógica de poder ditadora da validade do conhecimento, nos indagamos: Qual dos saberes incomoda tanto o poder público no atual momento político? As potencialidades da produção de conhecimento, como ato reflexivo sobre a realidade social, são temidas por aqueles que exploram a vida e saúde das massas sociais. Assim, refletir é um ato de contraversão quando a exploração e a desigualdade sociais escancaram os abismos do capital.

4 Conclusão

Quando consciências antes individuais organizam-se em grupos e assumem o fazer como algo que pode ser transformador, novas possibilidades podem surgir, e sujeitos que apenas percebiam as consequências do curso da história sem muito ter a fazer, tem como propensão romper com essa lógica e avistar seus papéis, à medida que são protagonistas conscientes e realizadores de novos cenários. “Ao Povo cabe dizer a palavra de comando no processo histórico-cultural. Se a direção racional de tal processo já é política, então conscientizar é politizar. E a cultura popular se traduz por política popular; não há cultura do Povo sem política do Povo” (FREIRE, 1987, p. 14).

Para pensar na trajetória apresentada, precisamos superar os medos que atuam, aliados a processos externos, mas que também de forma danosa nos impedem de avançar. Afinal, nem tudo está conduzido apenas por fatores exteriores histórico-sociais. Nos ensinaram a temer e, talvez, esse seja o primeiro desaprendizado4 a ser feito, para enfrentar os desafios que uma vida de luta oferece. Outra matéria a ser compreendida é aquela que diz respeito à atuação daqueles que ocupam e estão previstos para ocupar importantes cargos de poder no mundo. Eles apresentam um discurso que compreende a criticidade como inimiga e somam, aos seus enunciados, o desejo de controlar o pensamento dos sujeitos e o próprio tempo, ao apontar a volta ao passado como o caminho mais que ideal.

Rever nossas ações é condição preliminar para esse processo de construção de novos saberes, pois precisamos, segundo Mignolo (2007), desaprender para aprender. Precisamos desaprender toda uma formação social que enclausura nossos pensamentos e determina nossas ações, para, só então, repensar o local de onde produzimos nossas concepções de mundo e para quem estamos direcionando o conhecimento científico. Repensar esse lugar social é, também, repensar o aparato da consciência e a práxis política, entendendo que ambos estão atrelados e se formam dialeticamente. Precisamos atentar para quem serve nosso conhecimento, ao ser, esse, ponto de partida para pensarmos nossas ações diante do atual cenário político, que pode vir a revelar ações em um sentido de imobilismo ou de conscientização.

Assim, o processo de consciência coletivo, tão temido pelos centros de poder, é o condutor da práxis que deve ser assumida no atual cenário, resultado da construção de concepções de mundo produzidas pelos intelectuais de diferentes estratos sociais, ocupantes dos mais diversos espaços da vida coletiva. É mediante a compreensão já apontada por Gramsci (1982) de que todas as pessoas são intelectuais, produtoras de pensamento social, que direcionamos nossas conclusões. Por esse ângulo, uma valorização dos saberes não se restringe aos muros dos centros de conhecimento formal, mas se deve aproximar da busca constante por desaprender os “feitiços” do poder, significando a necessidade de reafirmar uma ciência atrelada à construção de uma práxis de enfrentamento das falácias do neoliberalismo, reprodutoras de um imaginário coletivo de merecimento do sofrimento social.

No sentido de superação dos abismos decorrentes da lógica de capital, é preciso colocar os significados que o sucateamento da Educação e o enfrentamento do pensamento crítico, assumidos no atual cenário, representam ao conjunto da sociedade. Os temores de abalo da ordem, em um período de profunda crise do capital, são traduzidos em um sancionamento do pensamento crítico. Quem se arrisca à reflexão é enquadrado como inimigo e todo um conjunto de retrocessos sociais é assumido, como única possibilidade de manutenção da ordem, em um ato da burguesia de desespero pelo poder.

Por fim, com a intenção de responder às indagações levantadas no início deste trabalho, afirmamos a necessidade de reconhecimento do papel do pesquisador brasileiro como construtor de uma soberania nacional, em um ato que, diante do projeto imperialista, demonstra ser uma prática de resistência, ratificando, nesse sentido, uma produção de conhecimento que esteja direcionada às classes populares e coloque os saberes dessas na condição de orientadores da construção de nova lógica de conhecimento, em um ato que é de enfrentamento da ordem do poder em voga, ordem essa que é, necessariamente, violenta ao povo.

Como ponto de partida na construção de novos cenários político-sociais, há a necessidade de assumir uma outra lógica de produção de conhecimento, com potencial gerador de relações que reflitam a autonomia dos grupos e camadas sociais populares. Entendemos, nesta reflexão, que assumir nova condição de produção de conhecimento e de mundo é construir um formato de resistência, essencial nesse e em outros cenários políticos.

1Corrente literária surgida no século XX, que é caracterizada por mostrar elementos irreais ou estranhos como algo habitual.

2Em declaração pública, em abril de 2019, sobre o corte de verbas às IFESs, o atual ministro da Educação Abraham Weintraub afirmou que as universidades federais são espaço de “bagunça, balbúrdia e evento ridículo”. Disponível em: https://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,meccortara-verba-de-universidade-por-balburdia-e-ja-mira-unb-uff-e-ufba,70002809579. Acesso em: 7 nov. 2019.

3Coloca-se a conceitualização de sujeito para uma necessária reflexão, na medida em que não é compreendido o sujeito histórico como uma categoria homogênea, mas com diferentes discrepâncias internas formadoras da sua coletividade.

4O autor Walter Mignolo (2007) vai apontar à necessidade de “aprender a desaprender” diante de todos os dogmas impostos em nosso processo formativo-social, para, assim, conseguirmos pensar numa identidade descolonial às epistemologias do conhecimento.

Referências

1 ABRANTES, A. A.; MARTINS, L. M. A produção do conhecimento científico: relação. A produção do conhecimento científico: sujeito-objeto e desenvolvimento do pensamento. Rev. Interface – Comunic., Saúde, Educ., v. 11, n. 22, p. 313-25, maio/ago 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/icse/v11n22/10.pdfLinks ]

2 DE OLIVEIRA, F. Intelectuais, Conhecimento e Espaço Público. Rev. Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 18, sept./dec. 2001. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-24782001000300013&script=sci_arttextLinks ]

3 FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. [ Links ]

4 GRAMSCI, A. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982. [ Links ]

5 LÖWY, M. Ideologias e ciência social: elementos para uma análise marxista. São Paulo: Cortez, 2008. [ Links ]

6 MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. Trad. de Luis Claudio de Castro e Costa. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. [ Links ]

7 MÉSZÀROS, I. Educação para além do capital. Trad. de Isa Tavares. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2008. [ Links ]

8 MIGNOLO, W. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de Identidade em Política. Revista Gragoatá, n. 22, p. 11-41, 2007. [ Links ]

9 SCARPARO, H. B.; HERNANDEZ, A. R. C. Psicologia política, arte e consciência política. In: SANDOVAL, Salvador A. Meireles; HUR, Domenico Uhng; DANTAS, Bruna S. do Amaral (org.). Psicologia política: temas atuais de investigação. Campinas, SP: Editora Alínea, 2014. [ Links ]

Recebido: 18 de Julho de 2019; Aceito: 28 de Novembro de 2019

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