Apresentação
O artigo aqui apresentado é o recorte de uma pesquisa de Dissertação de Mestrado, concluída em 2018, que teve como objetivo problematizar algumas discursividades que circulam na mídia, em geral, mas especialmente na revista AnaMaria, e que subjetivam os sujeitos para que persigam o que parece ser o padrão estético de beleza contemporânea, que é a obtenção/manutenção de um corpo magro. O objetivo do recorte aqui apresentado é realizar uma discussão teórico-conceitual acerca de uma política de corpo como alvo das tecnologias de poder em Michel Foucault (1979), bem como tensionar discursos de emagrecimento presentes no corpus empírico.
Para tanto, organizamos o texto em seções: primeiramente, apresentamos as motivações para a elaboração deste trabalho, em que anunciamos o objetivo e o problema de pesquisa, bem como algumas pistas metodológicas. Logo a seguir, empreendemos um mapeamento do conceito de corpo como alvo das tecnologias de poder, a partir de alguns estudos do filósofo francês Michel Foucault (1979, 2001b, 2008b, 2014). Em seguida, apresentamos o material empírico e algumas análises, com a finalidade de demonstrar de que modo as discursividades que aparecem nas edições semanais da revista AnaMaria parecem provocar efeitos subjetivantes.
Com esse movimento analítico, objetivamos demonstrar de que modo somos incitados a adotar, em nossas práticas, rotinas que colaboram para que obtenhamos um corpo magro e condizente com os padrões estéticos vigentes. Por fim, trazemos algumas provocações, problematizando o discurso de emagrecimento, convidando nosso leitor a pensar sobre os ditos hegemônicos subjetivantes, que reverberam nos mais diversos ambientes por onde circulamos.
1 Anúncios iniciais
Neste estudo, estamos problematizando um discurso de emagrecimento, que está presente na mídia contemporânea, e que, sutilmente, nos convida para que vivenciemos modos de ser que correspondam à aquisição de corpos magros. Desse modo, tensionamos alguns ditos hegemônicos, que circulam pelos mais diversos artefatos midiáticos com os quais nos deparamos recorrentemente, e que contribuem para a fabricação do que parece ser um padrão corporal estético vigente na atualidade. Este trabalho tem como referencial teórico- metodológico alguns conceitos do filósofo francês Michel Foucault (2001a, 2008a), tais como modos de subjetivação, poder, biopoder e discurso, os quais utilizamos como ferramentas analíticas.
Desse modo, este artigo situa-se em compreender de que modo somos interpelados por algumas fabricações discursivas que são tomadas com força de verdade e que nos ditam modos de ser e de viver. Nos contextos histórico e social em que vivemos, temos vivenciado uma eclosão de mudanças a uma velocidade inimaginável, e as discursividades que reverberam pela e na mídia estão carregadas de significações que nos subjetivam e incitam, para que vivamos de um modo e não de outro. Nessa perspectiva, temos observado a existência de uma forte propagação da preocupação com questões relacionadas ao corpo, com apelos que variam, ora pela saúde, ora pela estética, mas, em geral, tratam de fortes estratégias de convencimento para que todos sejamos magros, mas, além de magros, também que sejamos belos, saudáveis e felizes.
Assim, o problema de pesquisa da dissertação, à qual este artigo se refere, delineou-se da seguinte forma: De que modo o discurso midiático contemporâneo participa da produção de um discurso de emagrecimento? Na correnteza de alguns autores do campo dos Estudos Culturais, entende-se a mídia como uma pedagogia cultural, que fabrica sujeitos e subjetividades. Além disso, a mídia, na contemporaneidade, tem sido um lugar potente, em que discursividades dos mais diversos segmentos têm sido proliferadas. Conforme Costa e Andrade (2015, p. 7), “o conceito de pedagogias culturais tem sido uma ferramenta importante para que pesquisadores articulem cultura, educação e comunicação em estudos que visam problematizar a fabricação de sujeitos do tempo presente”. Assim, é também através dos artefatos midiáticos que os sujeitos são informados e aprendem sobre diferentes temáticas de sua vida.
2 O corpo como alvo das tecnologias de poder
Como apontamos, nosso objetivo é realizar uma discussão teórico-conceitual acerca de uma política de corpo como alvo das tecnologias de poder em Michel Foucault (1979). Com esse aporte teórico, visamos problematizar alguns ditos acerca de emagrecimento, os quais nos incitam a adotar, em nossas rotinas, práticas que promovam a obtenção de um corpo magro. Tais discursividades estão nos mais diversos ambientes que frequentamos e nos interpelam de modo muito sutil, porém eficaz e convidativo. Para tanto, nos debruçamos em obras do filósofo, tais como nos livros: Vigiar e punir; Microfísica do poder e A arqueologia do saber, nos cursos no Collège de France: “Segurança, Território e População”; “Em defesa da sociedade” e “Os anormais”, bem como na aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970, intitulada “A ordem do discurso”. Assim, procuramos apontar de que forma, ao longo dos séculos, Foucault mostra o quanto nossos corpos têm sido alvo das tecnologias de poder.
Começamos retomando o primeiro capítulo de Vigiar e punir, em que Foucault (2014) nos brinda com um relato detalhado de um rito de suplício do corpo de um condenado, que ocorrera no ano de 1757. Em seguida, apresenta o regulamento da “Casa dos Jovens Detentos de Paris”, redigido em 1838, como exemplo de castigos aos corpos, de suplício e de utilização de tempo. Foucault traça esse histórico, para que possamos compreender como a justiça penal moderna vem sendo, ao longo dos séculos, reformada, reinventada e repensada. Hoje não são empreendidas técnicas de violência, nem tampouco de sofrimento físico, porém vivenciamos a existência de castigos que privam os sujeitos infratores de seus bens ou de seu direito à liberdade.
Desse modo, para pensarmos sobre os deslocamentos que ocorreram ao longo dos séculos a respeito da forma como têm se estabelecido os castigos dos corpos dos sujeitos, precisamos compreender, também, como emergiram as tecnologias de poder. Assim, Foucault (2008b) se ocupa em explicar aos leitores a lógica cristã do poder pastoral, um poder que se exercia do pastor em relação ao seu rebanho, um poder que se exercia sobre uma multiplicidade de sujeitos, mas que, também, era individualizado, pois o pastor pastoreava, cuidava e zelava pelas ovelhas do seu rebanho, e tal rebanho, comumente, encontrava-se em movimento. Era um poder que agia efetivamente sobre as almas! “O pastor guia para a salvação, prescreve a lei, ensina a verdade.” (FOUCAULT, 2008b, p. 221).
Quando trata sobre o poder soberano, Foucault (2008b) demarca que o foco da soberania estava centrado no território e na relação dos súditos com esse território. Assim, se tratava de uma forma de poder político que era exercido pelo soberano/rei em relação aos seus súditos, com o objetivo de governar um território.
No século XVI, emergiram alguns problemas relacionados ao governo de uma multiplicidade de sujeitos, que passaram a ocupar um território e a viver organizados em cidades e famílias. Questões referentes ao cotidiano dos indivíduos passaram a ser observadas, tais como higiene, educação das crianças, entre outras. Estamos falando de um período em que a pastoral cristã era a maior instituição que conduzia as condutas e, inclusive, a alma dos sujeitos. Porém, uma “razão governamental” teve que ser pensada e inventada, foi o primeiro deslocamento observado por Foucault (2008b) da pastoral das almas ao governo político dos homens.
Nesse período, temos o exercício de um poder soberano, que, em dado momento, passou a ocorrer concomitantemente ao exercício do poder pastoral. Tais tecnologias de poder, conforme apontou Foucault (2008b), se exercem de modo articulado, pois não há sucessão, mas atravessamentos.
O soberano era o rei, aquele que governava o território, as riquezas e os bens produzidos pelos súditos. Segundo Castro (2016), a relação de soberania entre os pares era vertical e exploradora, visto que o soberano se utilizava daquilo que era cultivado e produzido pelos súditos. Além disso, havia uma relação de ameaça e de violência do soberano para com seus súditos, já que o seu corpo era único, perfeitamente identificável e visível, e o dos súditos não, pois o súdito é um sujeito múltiplo que não passa de um corpo assujeitado. O corpo do súdito é, portanto, o local de aplicação do poder do soberano, no qual se reafirma a desproporção entre quem detém e quem não detém forças... (FOUCAULT, 2014). Nessa perspectiva, é importante compreender que o criminoso condenado ao suplício do corpo atenta contra o poder do soberano, que é quem o castiga. Os castigos são públicos para que se delineie a verticalidade do poder e para que os demais súditos se sintam intimidados a não cometer atos ditos ilícitos.
Desse modo, o poder do soberano se exercia, pois o rei tinha o direito de matar, foi o que Foucault (2010) denominou de “Direito de Espada”. Porém, do século XVII ao XVIII, emergiram novas tecnologias de poder, compreendidas por Foucault como disciplinas, essas também voltadas ao corpo individual dos sujeitos; no entanto, as punições e seus objetivos passam a ser impressos no corpo dos indivíduos de modo diferente. Nesse viés, “se não é mais ao corpo a que se dirige a punição, [...], sobre o que, então, se exerce? A resposta dos teóricos [...] é simples, quase evidente. Dir-se-ia inscrita na própria indagação. Pois não é mais o corpo, é a alma” (FOUCAULT, 2014, p. 21).
Assim, na soberania, os castigos, os suplícios e as condenações estavam centrados no direito de vida e de morte do soberano sobre os súditos, e o sujeito infrator acabava sendo extinto do corpo social, pois cometia um crime contra o soberano. Por outro lado, com as disciplinas, a punição passou a ser diferente: os castigos não eram mais direcionados ao suplício do corpo, mas ao controle, à reforma, à cura e à reinserção dos apenados no seio do corpo social, tendo em vista que seus crimes eram cometidos contra a sociedade e não mais contra um sujeito específico.
É relevante demarcar que compreendemos que estamos constantemente entramados em algum regime disciplinar, começamos a ser docilizados na nossa família, ocupamos os bancos escolares, frequentamos algum culto religioso, temos nosso trabalho, enfim, nos mais diversos locais sociais por onde circulamos, temos nosso corpo treinado, docilizado, subjetivado, ainda que esse processo ocorra sutilmente. Quando escapamos daquilo que é considerado normal somos capturados por outras instâncias disciplinares, como a prisão ou o hospital psiquiátrico, por exemplo.
Nessa perspectiva, tomamos como sujeito anormal ou à margem, não somente o criminoso, mas também o doente, o leproso, o louco, ou seja, todo aquele que não é normal, todo aquele que necessita de reforma e de cura. Nessa perspectiva, um sujeito normal será aquele que se encontra em consonância com a norma, considerando que norma “é um elemento a partir do qual determinado exercício de poder encontra-se fundado e legitimado”. (FOUCAULT, 2001b, p. 62).
Assim, o conceito de “corpo dócil” é extremamente importante para a compreensão da relação de utilidade e treinamento do corpo dos sujeitos. Foucault (2014) discorre sobre essa teorização explicando que é dócil o corpo passível de reforma e transformação. Nossos corpos são as exterioridades, visíveis, dos discursos pelos quais somos capturados, das tecnologias de poder em que estamos intrincados, que nos subjetivam e conduzem sutilmente nossa conduta.
Nessa perspectiva, em Foucault (2014), observamos a existência de três grandes mecanismos disciplinares: a vigilância hierárquica, a sanção normalizadora, e o exame. A vigilância hierárquica é um mecanismo que disciplina o corpo pelo olhar de quem vigia, ou seja, o vigiado sujeita-se e, de forma autônoma, realiza as tarefas que está destinado a executar, se autodisciplinando e autorregulando. Percebemos, então, o poder funcionando em uma engrenagem na qual o domínio sobre o corpo do outro se dá de modo sutil e sem necessidade do uso de violência.
Além disso, o que Foucault denominou de “exame” é uma estratégia disciplinar de suma importância, já que consiste em observar, no nível das minúcias, os indivíduos, visando a reconhecer similaridades e recorrências, bem como discrepâncias e diferenciações entre os sujeitos, com o objetivo de homogeneizar os corpos e normalizá-los. Para tanto, faz-se necessário conhecer os sujeitos cada vez mais, percebendo diferenças entre eles, as quais definem quem são os normais e os anormais, ou ainda, “[...] se estabelece a demarcação entre os que serão considerados inaptos, incapazes e os outros. Ou seja, [...] se faz a demarcação entre o normal e o anormal” (FOUCAULT, 2008b, p. 75). Já a sanção normalizadora versa sobre as penalizações e se dá no sentido da observância de um regulamento, com o intuito de corrigir “imperfeições” de conduta de alguns sujeitos, fazendo com que todos os indivíduos se pareçam entre si.
Assim, o foco das disciplinas é o corpo, que é trabalhado em busca da maximização de sua utilidade, que é reformado e transformado tornando-se, cada vez mais, dócil. Desse modo, o poder disciplinar funciona de forma producente, pois, empreendendo mecanismos disciplinares e tendo como objeto de estudo o corpo do homem, observou-se também a emergência de alguns saberes, como, por exemplo, das ciências humanas. As disciplinas agem no corpo individual dos sujeitos, visando a torná-los dóceis e úteis para o bom funcionamento das engrenagens de poder/saber.
A partir da segunda metade do século XVIII, observamos um novo deslocamento, conforme Foucault (2010), emergindo uma nova tecnologia de poder, que não exclui as demais, mas que as complementa: a “anatomopolítica do corpo humano” para a “biopolítica da espécie humana”. Tal deslocamento parece estar articulado com a emergência de uma nova organização social e da necessidade de governar múltiplos indivíduos, uma sociedade disciplinar que passa a ser compreendida como uma sociedade de normalização.
Considerando que tomamos o conceito foucaultiano de sociedade de normalização, que é uma forma de andamento da sociedade, “que descreve o funcionamento e a finalidade do poder” (CASTRO, 2016, p. 309), vemos, portanto, funcionando, conjuntamente, tecnologias disciplinares e regulamentadoras, atuando sobre os corpos individuais e sobre a população. Importante é demarcar que por tecnologias regulamentadoras compreendemos todas as práticas que buscam aproximar, cada vez mais, a população de uma norma.
Nesse cenário fica evidenciado um novo corpo: o corpo social, a população. Esse novo corpo, compreendido por uma série de indivíduos “sob a ação econômico-política do governo” (FOUCAULT, 2008a, p. 55). Assim, com o aparecimento desse novo corpo social, surge a necessidade de conhecer, hierarquizar, categorizar e quantificar: a população, com o objetivo de desenvolver modos de controle da coletividade. Nessa esteira, se dá o advento de alguns saberes, que emergem em decorrência da necessidade de conhecer e compreender a sociedade, para que se possa governá-la. Transformar o coletivo em numerável e quantificável foi uma estratégia que, desde o século XVIII, vem sendo empreendida e que oportuniza a existência de uma racionalidade governamental.
Nesse sentido, a estatística se instituiu como um saber que viabilizou uma tecnologia de poder que numera, quantifica, busca encontrar fragilidades e rupturas, para que se governe uma população buscando, cada vez mais aproximar todos os indivíduos de uma norma, encontrando, nos números, regularidades e desvios. Assim, as estatísticas “constituem informações sobre os diferentes aspectos da vida da população, delimitando principalmente os espaços considerados problemáticos” (TRAVESSINI; BELLO, 2009, p. 137).
Nesse contexto, há a necessidade de articularmos essa forma de quantificação de uma sociedade à norma, que é um conceito foucaultiano fundamental para se compreender, de algum modo, como somos governamentalizados e governamentalizáveis. A partir da norma, os indivíduos são balizados como normais ou anormais, utilizando-se, para tanto, uma ferramenta estatística para categorizar, hierarquizar e numerar a população no que tange aos fenômenos próprios da vida, tais como nascimentos, óbitos, enfermidades.
Nessa perspectiva, a norma visa a encontrar uma média, comparando os sujeitos entre si, e a tal média normal, então, deve ser perseguida pelo maior número possível de sujeitos. Com isso, passamos a ser uma população, cada vez mais, uniforme e semelhante. O poder sobre o corpo, nesse viés, não é individualizante, mas massificante, “que se faz em direção não do homem-corpo, mas do homem-espécie” (FOUCAULT, 2010, p. 204). Além disso, o poder que se inscreve sobre o homem-espécie é um poder que age por intermédio de tecnologias regulamentadoras e tem por objetivo a vida dos sujeitos, ou segundo Foucaul (2010), é a política do fazer viver e deixar morrer somente em última instância.
Assim, estratégias biopolíticas emergem em torno de uma prática governamental que preza pela longevidade e pela preservação da vida dos indivíduos. São estratégias que fabricam modos de ser mais saudáveis, potencializando, portanto, um estado de vida da população. Com isso, questões relacionadas à higiene passam a ser observadas, bem como o advento da medicina moderna.
Nesse viés, um exemplo que podemos tomar como estratégia biopolítica da atualidade são as campanhas de vacinação, que atuam na ordem da prevenção de doenças. Porém, é importante ressaltar que todas essas preocupações para o prolongamento da vida dos sujeitos da forma mais saudável possível, são estratégias biopolíticas, a partir das quais torna-se possível o exercício do biopoder. Um poder que funciona atacando problemas inerentes a uma população, medicalizando, precavendo e antevendo fatores que, futuramente, poderão diminuir a força produtiva dos sujeitos.
Assim, a vida dos sujeitos é preservada e mantida, também pelo prisma neoliberal que rege nossa modernidade. Corpos produtivos, saudáveis, felizes, disciplinados e eficientes são o cerne para o funcionamento pleno da sociedade em que vivemos. Desse modo, o biopoder opera através de estratégias biopolíticas, sob uma lógica biológica, medicando, prevenindo, curando e extinguindo do corpo social apenas, em última hipótese, aquele que apresentar riscos para a coletividade ou que, inevitavelmente, for a óbito, compreendendo que esse óbito é retardado o máximo possível, para que o sujeito contribua produtivamente, no seio social, por maior tempo. Assim, não existe uma benevolência pairando na sociedade de normalização, que preze pela vida salutar dos cidadãos, mas estratégias biopolíticas que têm como foco o prolongamento e a manutenção da vida, corroborando, portanto, o funcionamento do biopoder no sentido da manutenção da ordem social.
Assim, demarcamos nosso entendimento sobre o conceito de corpo numa perspectiva foucaultiana, pois compreendemos que o nosso corpo é disciplinado, docilizado e conduzido a partir dos discursos que por nós passam e das relações em que estamos entrecruzados. Nosso corpo, portanto, é subjetivado, e o alvo das tecnologias de poder é produzido e fabricado desde os séculos passados até os dias atuais.
3 A fabricação do corpo magro na revista AnaMaria
Para a operacionalização das análises desta investigação, tomamos como corpus empírico do trabalho as reportagens da seção “Dieta” de alguns exemplares das edições semanais da revista AnaMaria. Compreendemos a relevância de articular alguns conceitos foucaultianos, que estamos utilizando como ferramentas analíticas, com discursividades extraídas desse artefato midiático, para que possamos pensar como se dá pela e na mídia a fabricação de um corpo. Com esse trabalho, objetivamos colocar sob suspeita alguns ditos hegemônicos que aparecem na revista AnaMaria, mas que também podem ser observados na mídia contemporânea em geral, os quais versam sobre a construção do que nos parece ser um modelo estético corporal vigente na atualidade, que é um corpo magro.
Dessa maneira, entendemos que há uma produção discursiva acerca de modos de ser e de viver na mídia da atualidade, que parece ser evidenciada em revistas femininas. Especialmente nas edições semanais da AnaMaria, temos nos inquietado com a sutileza de um discurso de emagrecimento, e parece existir um discurso que é produzido e repetido semanalmente, convidando as leitoras a adotarem um modo de ser voltado ao emagrecimento.
Compreendemos a revista AnaMaria como um artefato midiático emblemático para análise nesta pesquisa, pois se trata de uma mídia prescritiva em diferentes abordagens, que atinge um público consideravelmente grande. Temáticas femininas variadas aparecem nessa mídia, ensinando modos de ser e de viver. O termo manual “caracteriza-se, em geral, pelo predomínio do discurso instrucional e didático, em que as orientações são dadas usando-se o imperativo, o infinitivo, sempre numa interlocução direta com o leitor” (COSTA, 2008, p. 131).
Dessa forma, parece que a revista AnaMaria dialoga com suas leitoras e se constitui quase como uma espécie de manual de felicidade e realização pessoal da mulher moderna. Além disso, outra potência do artefato parece ser o fato de as consumidoras dos conteúdos veiculados, possivelmente, não estarem apenas interessadas nas reportagens acerca do emagrecimento, mas também pelas outras tantas disponíveis nas edições semanais, perfazendo uma interpelação sutil que atinge, quase imperceptivelmente, mas que leva um convite incisivo à busca do corpo ideal.
Nesse passo, compreendemos que, na revista AnaMaria, encontramos algumas enunciações recorrentes que incitam as leitoras para que vivam um modo de ser pautado por práticas que corroborem a aquisição e/ou manutenção de um corpo magro.
Uma das recorrências que observamos, nas reportagens analisadas, é que o emagrecimento tem sido atrelado a um discurso legitimado por profissionais da área da saúde, que incentivam as leitoras a adotarem, em sua rotina algumas práticas ditas saudáveis. Assim, nutricionistas, médicos, nutrólogos, educadores físicos, e afins são convocados a uma interlocução com as leitoras, ratificando um discurso de emagrecimento apresentado na revista, através de seus conhecimentos cientificamente comprovados. Em uma das edições, a chamada de capa da revista é a seguinte: “2 Kg a menos por semana com alimentos que te livram do estresse.” Na reportagem, encontramos uma argumentação que relaciona o cortisol – hormônio do estresse – à dificuldade de emagrecimento.
Nessa reportagem, a voz autorizada a proferir um discurso científico é a da nutricionista, que explica de que modo o hormônio age nos nosso corpo, quais são os alimentos anticortisol que devem ser consumidos para emagrecer e, ainda, sugere a prática de atividade física: “[...] Se você ingerir os alimentos certos, caminhar 30 minutos três vezes por semana e praticar atividades relaxantes, é possível controlar o hormônio e, de quebra eliminar peso.” (AnaMaria, nov. de 2017, p. 22).
Nos trechos extraídos da reportagem, vemos que existem sujeitos autorizados a proferir um discurso científico acerca de emagrecimento. Podemos observar quantos discursos existem que são atribuídos a pessoas ditas aptas a falarem sobre algumas temáticas. “Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa” (FOUCAULT, 2001a, p. 9).
Nessa perspectiva, torna-se importante nos remetermos a pensar sobre quanto o discurso da ciência vem atravessando e auxiliando no funcionamento de um discurso de emagrecimento. Percebemos, nas reportagens em análise, o modo incisivo com que a voz da ciência é recorrentemente chamada para legitimar uma dita verdade. Nesse caso, a ordem discursivo-científica legitima a necessidade de emagrecimento, para que se almeje, também, um corpo saudável.
Desse modo, é importante assumirmos o conceito de discurso a partir de Michel Foucault (2001a), compreendendo que os discursos são produzidos e nos produzem como sujeitos, bem como a realidade em que estamos inseridos. Os discursos científicos dos quais tratam os excertos da reportagem fabricam uma verdade que está situada em demonstrar para as leitoras o quanto elas necessitam manter uma alimentação balanceada, praticar atividades físicas regularmente, combater o estresse, entre outras, pois, com essas ações, é possível perder peso, portanto, adquirir ou manter um corpo magro e, nessa perspectiva, um corpo também saudável.
O discurso científico, nesse âmbito, é uma estratégia sutil, porém eficaz, que faz funcionar uma tecnologia biopolítica de prolongamento da vida dos sujeitos. Desse modo, não é mais somente para fins estéticos que somos incitados a emagrecer, mas também para que nos mantenhamos saudáveis e ativos pelo maior tempo possível, corroborando o funcionamento da sociedade neoliberal em que vivemos.
Observamos, também, que há, nos excertos, um apelo para a consciência dos indivíduos, que, autorregulados, autocontrolados e autodisciplinados, irão responder a essa urgência de emagrecimento. Desse modo, um discurso científico que fabrica verdades acerca de corpo magro e saudável, é colocado em funcionamento a partir de tecnologias disciplinares de autogoverno e autodisciplinamento que exercemos sobre nós mesmos.
Em outra edição da revista, destacamos a chamada de capa que convida para a leitura da reportagem da seção “Dieta”: “Perca 3 Kg em 1 semana. Você fica magra em 22 dias com a dieta livre de proteína animal.” Na reportagem intitulada “Magra em 22 dias”, encontramos um texto que afirma que “abrir mão dos alimentos de origem animal faz perder peso”. A reportagem utiliza como base para suas considerações o estudo científico realizado em uma instituição reconhecida e legítima. Nele são apontados dados estatísticos, ratificando com números que a diminuição do consumo de proteína animal emagreceu e melhorou a saúde dos pacientes observados. “[...] pacientes que cortaram ou reduziram drasticamente o consumo de carne diminuíram em 93% o risco de desenvolver diabetes, 81% o perigo de sofrer um ataque cardíaco, 50% as chances de derrame, e 36% a ameaça de ter câncer. E emagreceram 2,5 kg mais!” (AnaMaria, nov. de 2017, p. 22).
Elencamos essa reportagem para abordar outra recorrência observada nas edições semanais da revista AnaMaria, a qual versa sobre o saber estatístico. A estatística aparece legitimando informações científicas e convencendo, de modo eficaz e sutil, sobre a veracidade do discurso de emagrecimento ali proferido. Compreendemos, conforme Travessini e Bello (2009), que as estatísticas fabricam a realidade em que vivemos e reforçam o funcionamento do biopoder, um poder que age sobre a vida da população. Desse modo, sujeitos convencidos de que se encontram em alguma situação de risco, a exemplo do excerto retirado de reportagem da revista, podem ser subjetivados, disciplinados e conduzidos a tentarem viver mais e melhor e a adotarem, portanto, condutas, tais como as que aparecem na revista, que dizem sobre saúde, mas uma saúde que é atrelada ao corpo magro.
Assim, o poder funciona sobre nosso corpo, através de estratégias biopolíticas que efetivam a operacionalização do biopoder em nosso cotidiano, considerando que elas são da ordem biológica, da prevenção, medicalização e manutenção da nossa vida. Importante é marcar que não existe benevolência de um ser superior prezando pela nossa integridade, nem somos ingênuos a ponto de pensar que isso existiria. Sabemos que as engrenagens do poder estão engendradas em prol da governamentalidade e do andamento dessa sociedade de normalização em que habitamos, que tem em seu funcionamento mecanismos regulamentadores e disciplinares atuando concomitantemente e em plena atividade.
Além disso, o poder disciplinar parece estar presente em nossa rotina, conduzindo, de algum modo, nossa conduta e nosso corpo. Em “Poder-corpo”, Michel Foucault (1979) fala sobre estratégias de poder voltadas ao corpo de um modo emblemático e que consideramos relacionado com o que temos tratado nesta pesquisa, um poder “que não tem mais a forma de controle-repressão, mas de controle-estimulação: ‘Fique nu... mas seja magro, bonito, bronzeado!’” (FOUCAULT, 1979, p. 147). Então, nos dispomos a pensar sobre nosso cotidiano e em como somos, de algum modo, capturados por estratégias que nos disciplinam e nos controlam.
O controle-estimulação de que fala Foucault parece ser a forma de poder que funciona, por exemplo, através do corpus empírico deste trabalho, e podemos observar o quanto a revista AnaMaria veicula, semanalmente, ditos emblemáticos, que se situam nessa estratégia de estimulação das leitoras. Uma estratégia significativa que a revista utiliza recorrentemente é a apresentação de modelos (que não são famosas), nas imagens apresentadas na seção “Dieta”. São pessoas comuns que foram disciplinadas, perseguiram alguma prescrição apresentada na revista e, portanto, conseguiram alcançar o emagrecimento.
Além disso, temos mais um exemplo potente de controle-estimulação que são as imagens do “antes e depois” de pessoas que emagreceram após um tratamento realizado. Essa tecnologia de poder funciona quando olhamos para a imagem do corpo dito gordo, em contraste com a do dito magro, obtido pelo sujeito da imagem e, com isso, somos estimulados a emagrecer.
Assim, com essas análises estamos nos remetendo a pensar sobre algumas estratégias de poder que funcionam na mídia contemporânea, especialmente na revista AnaMaria, que nos interpelam e que, de algum modo, nos subjetivam. Pensar no mundo com base nos estudos deixados por Michel Foucault, nos possibilita que consigamos olhar não só para o nosso material empírico, para nosso objeto de pesquisa, mas também para os mais diversos ambientes por onde circulamos, de forma questionadora, interrogando o absolutismo das certezas.
4 Provocações finais
Trabalhar com a inspiração do filósofo Michel Foucault nos encoraja a fazer articulações de seus conceitos com a nossa vida, pois compreendemos que estudar filosofia e fazer pesquisa a partir de um referencial teórico, tão emblemático como o foucaultiano, desacomoda e movimenta o pensamento. Estudar filosofia desse modo nos incita a questionar o mundo em que habitamos, a nos perguntar sobre tantas verdades totalizadoras com as quais nos deparamos diariamente. Estudar por esse viés nos motiva a pensar sobre tudo o que está dado e que é tantas vezes somente replicado e reproduzido por muitos de nós.
Assim, nos perguntamos: Por que será que sofremos por não estar vestindo um corpo magro, esguio e condizente com os modelos fabricados pela e na mídia? Quando percebemos que estamos fora dos padrões vigentes do século XXI e que não queremos, ou não conseguimos obter um corpo magro, será que não fomos tão disciplinados como deveríamos ser? Por que nos submetemos a adotar, em nossa rotina, práticas que, algumas vezes, nos geram desconforto, visando ao emagrecimento? Quando nos submetemos a dietas alimentares objetivando alcançar um corpo magro, não precisamos ter conduta de disciplina e autocontrole?
Quando nos vemos almejando o emagrecimento, estamos pensando em um padrão estético vigente, que se encontra em revistas, na televisão, nas redes sociais, um padrão de corpo magro, torneado, saudável, será que pensamos que assim seremos mais produtivos, mais ágeis, mais rentáveis em nossas atividades laborais? Será que pensamos que talvez sejamos incitados a perseguir a obtenção de um corpo magro para corroborar um sistema neoliberal que se instaure ainda mais, pois quanto mais magros, saudáveis e ágeis, mais produtivos seremos?
Será que pensamos sobre nossas escolhas pessoais quando optamos por perseguir o objetivo de emagrecimento? Ou, quem sabe, autorregulados, vamos, disciplinadamente, visitar profissionais como nutricionistas, nutrólogos, educadores físicos, por acreditarmos que ser magro é melhor para a nossa saúde e para a nossa vida? Compreendemos que a sociedade em que vivemos também é uma fabricação discursiva? Será que quando decidimos nos aproximar de uma norma que mensura que o normal é o magro, pensamos que essa norma também é fabricada, e que esse conceito de magreza é tão subjetivo quanto tantos outros conceitos com que o seio social nos rotula constantemente?
Tais questionamentos não têm respostas, são problematizações para que pensemos no quanto as tecnologias de poder funcionam e nos capturam de algum modo, para que vivamos de uma forma e não de outra. Importante é demarcar que não estamos aqui fazendo nenhum tipo de juízo de valor sobre quaisquer práticas, não nos interessa pensar se são boas ou ruins, podemos fazer dietas, praticar exercícios, buscar o emagrecimento, ou não! Podemos fazer do nosso corpo o modelo que considerarmos melhor para cada um de nós! Entendemos que vivemos em uma ampla gama de escolhas discursivas e que podemos optar por umas em detrimento de outras.
Desse modo, entendemos a relevância de tensionar a existência de uma produção discursiva tão recorrentemente tomada como verdadeira e que constitui hegemonias. Com este trabalho, queremos motivar as pessoas para que pensem sobre tais escolhas, entendendo que somos sujeitos subjetivados/subjetivantes, produzidos por discursos que por nós passam engendrados nas relações de poder/saber, tão producentes, que fabricam as estruturas sociais em que vivemos.