O ser humano é um ser peregrino e, também, um ser fronteiriço. Ele é um que há de buscar sua autoconstrução. Trata-se de um ser que é um ser-em-si e um ser-para, ou seja, um ser estrutural e relacional. O ser humano é, pois, dotado de uma essência que deve ser atualizada na existência, sendo essa atualização o que Lima Vaz conceitua, enfim, como movimento do tornar-se uma existência a caminho da realização, uma vez que tal processo dialético se faz de maneira progressiva e contínua.
O ser humano se dá conta de que a realização da própria vida é um desafio constante e uma tarefa nunca acabada. Ele precisa ser entendido como um ser aberto e inacabado sob a égide limiar do risco tanto iminente quanto longínquo, entre ser e não-ser e de vir a tornar-se o que, em princípio, estaria em seu horizonte de vir-a-ser. Ele não tem, de antemão, a garantia e a segurança de que ele terá uma vida realizada e feliz. E isso ocorre exatamente no domínio do sentido da vida, compreendido, aqui, como ideia de fim (princípio e fundamento), de propósito (projeto de vida), de valor (valer a pena ser vivida) e, também, de inteligibilidade (razão e inteligência). “Efetivamente, quando a vida tem um fim que lhe dá sentido, ela se torna inteligível, clara, como que explicada. Ela ganha sua razão de ser: tornou-se compreensível, seu significado é entendido” (BOFF, 2018, p. 14).
O sentido da vida, segundo Lima Vaz, é o domínio da existência que se desenrola sob o signo da insegurança e da incerteza, pois ninguém tem assegurada, de antemão e por decreto prévio, a realização de sua existência como tal, não havendo, por conseguinte, frustração maior para o ser humano daquela de não ver sua vida realizada. Com outras palavras, o ser humano corre, continua e constantemente, o risco de não ver sua vida unificada e realizada a partir de um viés de crescimento, de continuidade. Tal processo, ainda que permeado de conflitos e desafios, desatinos e superações, encontros e desencontros, quando integrado, é dado à harmonia processual de progressão. Trata-se, enfim, da experiência de vida existencial que se vê e se encontra, por conseguinte, ante o contínuo desafio da busca pela realização pessoal.
1 Ser estrutural e relacional que busca realizar-se
Segundo Lima Vaz, a concepção acerca do que é o ser humano, assim como a definição da realização de sua vida, não está circunscrita apenas no terreno da vida pessoal, como indivíduo singular e único de acordo com as categorias de estrutura e de relação da antropologia filosófica. Por conta da definição do ser humano à luz de suas estruturas e relações fundamentais, o existir humano precisa ser pensado em vista dos atos que descrevem o viver humano como unificação progressiva do seu ser, a saber, a partir de e com seus atos éticos, ou ainda, tomando em conta o seu agir ético e sua vida ética. Portanto, o ser humano, assim como a realização de sua vida, não se constitui apenas em ser, mas se define, necessariamente, também como dever-ser. Nesse sentido, a autorrealização, segundo Lima Vaz, caracteriza-se do seguinte modo. Trata-se de uma passagem longa, mas muito significativa e explicativa do processo de autorrealização.
A concepção do homem como expressividade ou como movimento intencional de passagem do dado ou da natureza à forma pela mediação do sujeito, tal como vem sendo desenvolvida na Antropologia Filosófica, propõe-se justamente a evitar o escolho, seja do essencialismo estático de uma substância que permanece imóvel sob suas propriedades, seja do puro dinamismo de uma existência sem sujeito. Na concepção do homem como expressividade, o sujeito é pensado como movimento incessante de passagem ou mediação entre o ser que é simplesmente e o ser que se significa seja na sua constituição em-si (estrutura), seja na sua conversão ao outro (relações). Operar é, pois, necessariamente, movimento de automanifestação que procede do próprio ser e o constitui como sua existência em ato (enérgeia). Compreende-se, pois, que o termo dessa automanifestação seja a efetivação da existência como auto-realização, vem a ser, como síntese entre estruturas e relações eu tem lugar na ordem do operar propriamente humano. A realização se mostra, portanto, como passagem do ser que é (identidade ou unidade = indivisum in se) ao ser que se torna ele mesmo pela negação dialética do outro no ativo relacionar-se com ele, o que implica suprassunção do outro no desdobrar-se da unidade fundamental (alteridade ou unificação = divisum ab omni alio). A dialética do mesmo e do outro tal como é proposta aqui em ordem à compreensão filosófica da realização humana inspira-se no modelo da dialética da ideia exposta por Platão no Sofista exatamente para superar o monismo imobilista da tradição eleática. Aqui o mesmo e o outro, juntamente com o movimento e o repouso, são os gêneros fundamentais que se entrelaçam no ser para formar a mais elementar rede conceptual que nos permite pensar o ser e o devir ou o ser e o não-ser (relativo). Analogamente, no terreno da realização humana, ipseidade e alteridade, opondo-se dialeticamente como estrutura e relação, são suprassumidas no movimento da realização, no qual o ser é existência que se efetiva como operação. O ser-em-si da estrutura e o ser-para-outro da relação são suprassumidos no ser-para-si da realização na conquista, pelo sujeito, da unidade profunda que ele é como essência, mas que deve tornar-se como existência (AF II, p. 164-165, grifos do autor).1
Tem-se, pois, o encontro e, ao mesmo tempo, a passagem da antropologia filosófica à ética filosófica. Lima Vaz, no discurso filosófico sobre o ser (antropologia) e no discurso ontológico sobre seu agir (ética), estabelece, portanto, como uma correspondência entre a antropologia (ser) e a ética (Bem). O ser humano, pela mediação do eu sou para o bem, dirige o discurso sobre sua humanidade e sobre a realização de sua humanidade para um cenário propriamente ético, expressando-se, assim, como sujeito ético (EF V, p. 92). Ou seja, o ser humano manifesta, por meio dos seus atos, sua essência estrutural e, sobretudo, relacional, vindo a existir concretamente em sua unidade, expressando e conquistando o próprio ser por meio do agir, isto é, por um agir conforme o Bem e para o Bem.
Tendo em vista esse papel da antropologia de Lima Vaz, na definição de ser humano e na conceituação da realização humana como unificação das estruturas e relações fundamentais, cabe, agora, compreender o papel da ética no que tange à compreensão da autorrealização do sujeito. A ética filosófica precisa demonstrar, por sua vez, de que modo o ser humano se torna efetivamente aquilo que ele é, a saber, como ele realiza, em sua existência singular, o processo de integração e de unificação da própria vida. A passagem à ética supõe, portanto, pensar não mais em uma definição para o ser do ser humano, mas, muito mais, refletir sobre o dever-ser que torna possível sua realização concreta e existencial.
À luz da compreensão de Lima Vaz é, pois, na práxis, ou seja, no agir ético, que o indivíduo experimenta-se e comprova sua independência, a sua posse de si mesmo (autárkeia) (EF II, p. 14). Autoafirmando-se como eu sou que o constitui, o ser humano poderá atualizar sua essência, e sua interioridade poderá ser exteriorizada pelo agir, sendo sua ação uma contínua atualização daquilo que ele é. Não obstante, seja pela ação ética que o indivíduo manifeste o conteúdo moral que o constitui como ser estrutural e relacional que é, ele se autoexprime enquanto se constitui como ser aberto e dado às relações. Nessa perspectiva, sendo o ethos a morada, “a casa do homem” (EF II, p. 12, grifo do autor), isto é, seu lugar de habitação e acolhimento, é, portanto, no interior da comunidade ética que o ser humano irá exprimir-se.
A ação humana só recebe o atributo de ação ética na medida em que se dá a continuidade dos atos, com os quais e nos quais o indivíduo realiza objetivamente seu ethos, ou seja, ele adota como atitude, estilo de vida e ação os valores de seu ethos, adquirindo, assim, uma disposição de caráter para agir de acordo com o ethos. Consoante Lima Vaz, “é, pois, no espaço do ethos que o logos torna-se compreensão e expressão do ser do homem como exigência radical de dever-ser ou do bem” (EF II, p. 13). Noutras palavras, é no espaço do ethos que a ética sinaliza a passagem do ser que é ao ser que deve-ser, em um processo constantemente dialético, isto é, no agir do sujeito de acordo com o ethos, por um lado, e, por outro, do próprio sujeito avaliar o êxito da ação na forma de razão imanente ao próprio agir (EF V, p. 25). Logo, segundo Lima Vaz,
[...] o eu caracteriza o agir ético, objeto da Ética, é a presença de uma forma de razão na qual se exprimem as normas e os fins do próprio agir. A razão é, então, essencialmente prática, ou seja, ordenação à ação (práxis) e não simplesmente ao conhecimento. A Ética, pois, sendo a ciência do ethos, é a ciência da razão prática”
(EF V, p. 25, grifos do autor).
Lima Vaz anuncia que esse progressivo “tornar-se aquilo que se é” efetiva-se através de atos próprios, a saber, dos atos da própria pessoa. Trata-se, pois, de um progressivo tomar posse de si mesmo e de todas as peculiaridades e atributos essenciais através da ação no horizonte do existir, lembrando a ideia de que o que caracteriza a existência humana como existir concreto, é justamente a ação na qual o sujeito se manifesta e se torna ele mesmo. A personalidade humana aponta para a progressiva aquisição e reflexão dialética sobre o plano operativo de qualidades que pertencem à pessoa enquanto fluem de sua essência, mas, ainda e também, que não, necessariamente, acompanham, desde o início, a existência da pessoa. Logo, ser pessoa envolve um processo contínuo de realização pelo qual o ser humano exprimirá, em atos, ao longo de sua existência vivida, o ser que é e que se tornou.
O ser humano é, constitutivamente, uma pessoa pela operação sinérgica da inteligência, a da vontade, isto é, pelo ato inteligente e livre, o sujeito que é essencialmente, torna-se existencialmente pessoa. Eis como se expressa Herrero acerca da compreensão da pessoa moral em Lima Vaz:
Sendo por essência uma pessoa moral, o ser humano deverá tornar-se o que é, e deverá desenvolver em sua existência o núcleo dinâmico que o constitui como tal em sua ipseidade, ou seja, deverá manifestar-se dinamicamente, num processo contínuo de autorrealização em formas distintas de personalidade. E se antes descrevemos a formação da personalidade moral à luz de dois parâmetros: a passagem do livre-arbítrio à liberdade (adesão ao Bem) e o aprofundamento constante da consciência moral, será a partir desse duplo dinamismo da personalidade moral que poderemos avaliar a autenticidade humana das outras formas da personalidade, sobretudo, a psicológica e a social. Elas irradiam do próprio núcleo da pessoa que é, em sua significação ontológica, identicamente pessoa moral
(HERRERO, 2012, p. 432).
Portanto, enquanto é automanifestação, a pessoa, ou mais especificamente, a pessoa moral, mostra-se como uma constitutiva abertura e correspondência com o Ser. Ora, se, por um lado, a pessoa é afirmada como ser-em-si (fechada em si mesma), por outro, ela também é constitutivamente ser-para, ou seja, abertura para as relações. É através desse movimento contínuo de automanifestação, movimento dialético entre o seu ser-em-si e ser-para, que o ser humano atribuirá, enfim, significado ao próprio ser por meio das “relações que o constituem” e pela “realidade que o circunda” (OLIVEIRA, 2013, p. 208).
É nesse movimento dialético de subsistência e manifestação que a pessoa “[...] transcende, então, o puramente natural e confere ao próprio ser e à realidade [um] sentido propriamente humano” (OLIVEIRA, 2013 p. 208), e vai constituindo e realizando sua unidade em progressiva passagem do ser que é ao ser que se torna. Portanto, tem-se, aqui, a prerrogativa para se pensar na pessoa moral em sua integralidade e unidade. Ora, o ser humano é um ser essencialmente relacional e, dessa forma, sua realização pessoal deve ser pensada, indubitavelmente, a partir e em vista de seus próprios atos.
Como mencionado, a tarefa de realização pessoal e a missão de autoconstrução do ser de cada ser humano é contínua, singular e intransferível. Trata-se de uma tarefa nunca acabada e caracterizadora do viver humano. Os atos que operarão a passagem da essência (identidade) para a existência (ipseidade) são exatamente os atos éticos. O sujeito que realizará sua vida, exercendo concretamente sua identidade é o sujeito capaz de viver uma vida ética, sendo essa a vida que exprimirá sua essência moral, ou seja, aberta às relações. Para Lima Vaz a primeira afirmação do eu sou primordial, ou a primeira afirmação da subsistência e manifestação do sujeito, só é possível através do agir ético. Esse, como automanifestação e autoafirmação do ser que é, supõe, necessariamente, uma consecução de atos nos quais o sujeito exprimirá o seu ser e se realizará como pessoa, no caso, pessoa moral. Nos atos próprios da pessoa, o sujeito se abre, pela inteligência e pela vontade, à universidade do ser e do Bem como ser aberto e generoso.
“A pessoa é um todo, mas justamente porque, no ápice de sua constituição ontológica, ela se abre, pela inteligência e pela liberdade, à universalidade do Ser e do Bem, é, paradoxalmente, um todo aberto. ‘Aberto e generoso’, na expressão de Jacques Maritain” (EF V, p. 237). Ora, tal abertura implica a descentralização do ser, isto é, um sair de si mesmo, num ato de se perder ou de se doar ao Bem, enquanto é o momento áureo da autoexpressão e realização da pessoa (AF II, 208). Trata-se, pois, do ato propriamente ético por meio do qual o sujeito, ao viver eticamente, alcança a totalidade de seu ser.
2 Agir ético e vida ética na comunidade
O agir ético, assim como o viver ético, constitui-se como uma das formas mais elevadas de expressão do eu, sendo o agir ético um ato próprio da pessoa a partir do qual, enfim, define-se a personalidade moral do sujeito como autêntica realização da vida humana. Segundo Lima Vaz, se o agir ético é um ato humano no qual o indivíduo se empenha a partir das camadas mais profundas de seu ser e no exercício de suas intransferíveis capacidades de pensar e decidir, então, ele é um ato total, isto é, um ato eminentemente pessoal (EF V, p. 45).
Nessa perspectiva, é importante recordar que, ao recuperar a noção aristotélica de práxis, Lima Vaz pensa no agir ético a partir das seguintes considerações: o agir ético é um ato do sujeito, tem lugar no seio da comunidade e assume como fim (telos) o horizonte do Bem no qual o sujeito ético alcança sua realização. Dito de outro modo, não obstante o agir ético seja um ato, eminentemente, do sujeito, Lima Vaz compreende a dimensão subjetiva do ato ético a partir de três momentos dialéticos, a saber, da universalidade, da particularidade e da singularidade.
A universalidade da razão prática é o ponto de partida na ética filosófica de Lima Vaz para a compreensão da realização humana vista como uma tarefa fundamentalmente ética. A razão é entendida como prática, ou seja, ela se dirige à ação (práxis) e não ao conhecimento somente. Logo, se, por um lado, “o êxito ou o resultado do fazer ou produzir (poieîn) mede-se pela perfeição do objeto produzido” (EF V, p. 25, grifos do autor), por outro lado, “o êxito ou resultado do agir (práttein) é avaliado segundo a maior ou menor perfeição que dele resulta para o sujeito que age” (EF V, p. 25, grifos do autor). Desse modo, “[...] a causalidade, segundo a forma e a causalidade segundo o movimento, a primeira exercida pela inteligência, a segunda pela vontade, não procedem separadamente, mas se entrelaçam num processo de causação recíproca” (EF V, p. 51, grifos do autor), ou seja, “a inteligência informando a vontade, a vontade movendo a inteligência” (EF V, p. 51).
Assim, essa sinergia de inteligência e vontade ou da causa formal e da causa eficiente “[...] constitui propriamente a razão prática, segundo a qual o agente ético, como racional e livre, é causa sui, ou seja, se autodetermina a agir em razão de si mesmo, dando-se a si mesmo as razões de seu ato” (EF V, p. 51, grifos do autor). Para Lima Vaz, racionalidade e liberdade são os dois atributos fundamentais do espírito que especificam os dois princípios constitutivos de sua atividade: a inteligência e a vontade, que são “[...] as duas faces da autoexpressão do ser humano impelido pelo dinamismo do Eu sou” (EF V, p. 34, grifos do autor). Essas duas faces entrecruzam-se na unidade da atividade espiritual, pois o espírito teorético conhece o bem, e o espírito prático realiza a verdade. Logo, verdade e Bem são polos intencionais da Razão prática em sua universalidade subjetiva.
A dimensão subjetiva do ato ético, no entanto, não pode ser pensada apenas a partir do momento da universalidade, pois, se isso fosse assim, então, segundo Lima Vaz, dar-se-ia, em última análise, uma mera abstração. O ser humano não é caracterizado apenas como abertura infinita à verdade e ao Bem, uma vez que, como ser situado e finito, ele orientará a intencionalidade de seu espírito pelo dinamismo da razão e da vontade para o horizonte de sua particularidade, isto é, de sua situação concreta. A universalidade da Razão prática é negada, por intermédio do movimento dialético, pelo momento da particularidade, ou seja, o sujeito, por conta de sua constitutiva ordenação ao Bem e por conta de sua situação histórica concreta, tem, no momento da particularidade, a responsabilidade de deliberar e escolher bem em vista do melhor, já que está em jogo e em risco a própria realização do sujeito ético como tal. E isso significa afirmar que o sujeito precisa deliberar bem dentre os diversos bens da vida e diante dos fatores condicionantes que integram sua existência finita e situada do ser humano sem buscar desculpas espúrias. Esse poder de deliberar racionalmente e o poder de escolher livremente em vista do Bem são chamados de sabedoria prática (phrónesis) e livre-arbítrio. Conforme Lima Vaz, “[...] a phrónesis exerce uma função mediadora entre a universalidade dos princípios e a singularidade da ação” (EF V, p. 51, grifos do autor).
Desse modo, pode-se afirmar que o juízo último da Razão prática imanente à ação e que prescreve o agir em face do objeto deve ser precisamente um juízo prudencial, ou seja, que assegure ao agir a qualidade de ser um agir virtuoso. Agindo virtuosamente, o agente ético se torna e se realiza ele mesmo como pessoa. Esse juízo prudencial deverá definir, pois, a ação ética como ato concreto, ou seja, como deliberação prudente, ou seja, a phrónesis, que se dá no horizonte da particularidade, à luz da universalidade dos princípios, deverá se singularizar na ação concreta do sujeito que age deliberadamente.
Por isso, ao efetivar-se na ação singular, no ato moral, a Razão prática exerce a reflexão sobre seu ato, a qual é própria e específica de todo conhecimento racional, na forma de um juízo sobre a conformidade do ato com a norma objetiva do Bem. Esse juízo, por conseguinte, “não somente prescreve a ação imediata, mas julga igualmente a decisão final da vontade segundo o critério estabelecido pela própria razão em seu conhecimento do bem objetivo que se torna, então, norma da retidão moral do ato ou razão reta” (EF V, p. 52, grifos do autor). Essa reflexão concomitante à ação ética foi designada pela tradição como “consciência moral”. Segundo Lima Vaz,
do ponto de vista do movimento dialético da Razão prática, a consciência moral se mostra como termo do movimento e como suprassunção, na singularidade de seu ato, da universalidade dos princípios e da inclinação ao Bem como normas do seu julgamento, e da aplicação dessas normas à particularidade das condições que tornam possível o mesmo ato. Nesse sentido, deve-se afirmar que a consciência moral é o ato por excelência da Razão prática
(EF V, p. 52).
Portanto, a primeira experiência do sujeito ético, ao exprimir o eu sou que o constitui, tem lugar segundo a forma da consciência moral, cujas manifestações, ainda balbuciantes na infância, antecedem à aparição dos fatores de natureza psíquica ou sociocultural que irão agir sobre ela no curso da vida. De acordo com Lima Vaz, “[...] a consciência moral deve ter como primeiro passo a aceitação do pressuposto da identidade entre ato moral e consciência moral” (EF V, p. 58, grifos do autor). Essa identidade deve ocorrer de tal forma que
o componente reflexivo, essencial ao mesmo tempo ao ato moral como ato da Razão prática, e à consciência como julgamento sobre a moralidade do ato, se cumpra na imanência do mesmo ato, de sorte que se possa compreender a distinção em razão, ou segundo o respectivo conceito, entre o ato, a reflexão e a consciência moral, como fundada na identidade real do próprio ato como ato do sujeito
(EF V, p. 58, grifos do autor).
Na esfera do conhecimento prático, a reflexão que se desenvolve na imanência do ato, “[...] volta-se sobre o objeto próprio do ato que é a conformidade da ação com o bem” (EF V, p. 58, grifo do autor). Com efeito, tem-se uma reflexão que participa da ação como instância julgadora da própria ação, ou seja, a reflexão, nessa perspectiva, acaba “[...] assumindo a forma de um juízo imanente ao próprio ato sobre a realização, ou não, de sua destinação essencial ao bem” (EF V, p. 58, grifo do autor). Trata-se de uma reflexão que, ao julgar o ato, não se vê limitada ao próprio ato, mas o julga-o também em relação à sua ordenação ao Bem como fim, tornando-se, assim, consciência moral. Em sendo assim, portanto, “[...] a consciência moral é o momento terminal que ratifica o ato como absolutamente singular, ato do sujeito em sua inalienável identidade” (EF V, p. 61, grifos do autor).
Aqui emerge uma ponderação importante a ser referenciada. A questão a respeito do que define o ato, por meio do qual o ser humano pode alcançar a realização, encontra uma primeira e eminente consideração. O agir ético deve ser compreendido como um ato consciente e livre, ou ainda, como ato da consciência moral. É, pois, do agir concreto, iluminado pela consciência moral, que o sujeito forma sua identidade e caminha rumo à realização como pessoa. Isso significa afirmar que a realização do ser humano efetiva-se por meio do seu operar e no processo deliberativo do seu agir nas diferentes formas que expressam sua identidade, e, nesse caminho processual contínuo de autorrealização, o ato moral não é senão o ato humano por excelência, justamente, porque expressa sua reflexividade racional e livre.
Contudo, a ação ética, entendida como um ato concreto do sujeito ético, só pode ser pensada à luz e a partir do encontro com o outro. Para Lima Vaz “[...] o indivíduo humano monadicamente isolado em quaisquer das manifestações de sua existência, é uma abstração” (EF V, p. 67, grifo do autor). E, assim, em sua gênese e desenvolvimento, o indivíduo está envolto numa rede de relações, desde as relações elementares com a natureza até as relações propriamente interpessoais que definem as condições de possibilidade de sua autoafirmação como eu, a saber, um eu que é, portanto, indissoluvelmente, um nós, sem, no entanto, perder-se e se negar enquanto é eu.
O ser humano está sempre envolvido numa rede complexa de relações, e, nesse sentido, a ação ética só pode ser pensada como expressão de um sujeito situado em relação com o outro, emergindo, por conseguinte, dessa constatação a noção de intersubjetividade como noção fundamental, intrinsecamente presente na ideia de agir ético (OLIVEIRA; CARDOSO, 2008, p. 407). Assim sendo, “[...] o primeiro passo para a efetivação concreta da autoafirmação do sujeito como Eu é seu encontro com o Outro.” (EF V, p. 67, grifo do autor). Logo, a ação ética tem lugar, necessariamente, no seio da comunidade. Em consequência disso, Lima Vaz propõe avançar para além da dimensão subjetiva do agir e pensar na também dimensão intersubjetiva da ação ética a partir, justamente, dos momentos dialéticos da universalidade, da particularidade e da singularidade.
A dimensão intersubjetiva do agir ético, no momento da universalidade, é pensada a partir de duas categorias indispensáveis para a realização humana, a saber: o reconhecimento e o consenso. A relação de encontro com o outro é uma relação estruturalmente recíproca, fundada no reconhecimento. Desse modo, o encontro com o outro, como ato ético, exige, como primeira condição de possibilidade, o reconhecimento do horizonte comum de universalidade do Bem, à luz do qual o eu acolhe o outro como outro eu e não como espelho ou reflexo do eu. Essa exigência está no fundamento de uma autêntica comunidade ética e constitui, assim, o desafio permanente de sua realização na história e na cultura como as formas superiores de convivência humana. Portanto, segundo Lima Vaz, “[...] as comunidades humanas são, por natureza, comunidades éticas” (EF V, p. 70).
O reconhecimento do outro, em sua acepção filosófica, é uma dimensão essencialmente ética do ato da Razão prática, dado que o outro, tanto como outro eu, como também como outro do eu, só pode ser reconhecido como tal no horizonte do Bem ao qual nossa Razão prática é necessariamente ordenada. O “Tu só se revela como tal no horizonte universal do Bem, ao qual o Eu necessariamente, se abre no exercício da Razão prática” (EF V, p. 74), sendo, pois, o reconhecimento “[...] obra da Razão prática enquanto cognoscente” (EF V, p. 75), e procedendo, por sua vez, o consenso “[...] da mesma Razão prática em sua atividade volitiva” (EF V, p. 75). O reconhecimento do outro no horizonte do Bem, acompanha, pois, a inclinação da vontade “[...] para consentir na comunidade entre o Eu e o Outro sob o signo da bondade” (EF V, p. 75, grifos do autor). Então, do ponto de vista ético da obra sobre a Razão prática, se o reconhecimento é obra da Razão prática cognoscente, isto é, enquanto reconhece no outro não uma imagem do eu, ou espelho do eu, mas, precisamente, outro eu, singular, único e aberto às relações, então, a adesão da vontade ao Bem é a definição da liberdade, sendo, por conseguinte, o consenso um ato eminentemente livre, dando-se e tendo lugar, pois, entre sujeitos éticos.
O reconhecimento, ato expressivo da razão, e o consenso, ato expressivo da liberdade, são atos espirituais. Por trás das noções de reconhecimento e consenso, estão os conceitos de inteligência e vontade, ou então, as noções de razão e liberdade, as quais compõem a estrutura subjetiva do agir ético (OLIVEIRA; CARDOSO, 2008, p. 408). Logo, se o reconhecimento faz pensar na Razão prática como cognoscitiva, o consenso leva a considerá-la como uma atividade volitiva, isto é, em outras palavras, o consenso pressupõe o reconhecimento do outro no horizonte do Bem (OLIVEIRA; CARDOSO, 2008, p. 410). Lima Vaz entende, “[...] ao conhecimento teórico-prático do Bem universal corresponde o reconhecimento do Outro no horizonte do Bem; e à inclinação da vontade para o Bem corresponde o consenso na participação do Outro no Bem segundo a mesma estrutura de racionalidade e liberdade com que o Eu dele participa” (EF V, p. 71). Assim, ambos apontam para à realização da própria vida como objetivo do agir humano. Porém, essa ordenação essencial se particulariza na esfera das causas e condições que configuram a situação na qual o reconhecimento e o consenso devem exercer-se concretamente. Como se sabe, a passagem do indivíduo ético abstrato para o indivíduo ético concreto, realizada no seio da comunidade ética, tem sua condição de possibilidade no nível da universalidade do reconhecimento e do consenso, ou seja, dentro do horizonte universal do Bem.
Entretanto, conforme Lima Vaz, para que a passagem da universalidade da relação intersubjetiva para a particularidade de sua efetiva realização nas situações concretas dos indivíduos e das comunidades, aconteça, segundo a dialética que rege o movimento do agir ético, é imprescindível que se mantenha a nítida distinção entre a estrutura causal do movimento e os fatores condicionantes que o tornam possível.
Desse modo, o conjunto de condições explica o lugar social, o quando, o como, ou seja, as circunstâncias do agir ético. Lima Vaz lembra que “[...] é essa ordenação essencial que se particulariza na esfera das causas e condições que configuram a situação na qual o reconhecimento e o consenso devem exercer-se concretamente” (EF V, p. 84, grifos do autor), pois, segundo Lima Vaz, “[...] o reconhecimento como causa formal específica o consenso que resulta do movimento da vontade, e o consenso, como causa eficiente, move o reconhecimento no sentido da aceitação ativa do outro” (EF V, p. 79).
Assim sendo, o reconhecimento, procedendo da inteligência ordenada ao universal do Bem, particulariza-se mantendo sua natureza de causa formal, e, como tal, precisará informar as condições para assegurar a essência ética do ato. O consenso, por sua vez, “[...] fruto da vontade inclinada ao universal do Bem, age como causa eficiente ao realizar a especificidade ética do encontro na complexidade da situação” (EF V, p. 79, grifos do autor). Dessa maneira, a dialética do agir ético intersubjetivo, passando pela universalidade e mediatizada pela particularidade das situações, procede no sentido de alcançar a plena concretude do ato e se dá quando a particularidade é, por sua vez, suprassumida no momento da singularidade, momento no qual todo o movimento é interiorizado na consciência moral-social dos participantes da comunidade ética.
Trata-se, pois, do momento em que o sujeito se singulariza em seu ato concreto, isto é, sua ação concreta realiza-se como ato de sua consciência moral-social, assegurando-lhe, por conseguinte, a realização como sujeito ético virtuoso na vida propriamente ética da comunidade. Acerca da reciprocidade que deve existir entre os sujeitos da comunidade ética a partir das categorias de reconhecimento e de consenso, assevera-se que essa precisa mover os sujeitos a consentirem um com o outro em dada situação, tendo sempre em vista o horizonte intencional do Bem, e, por sua vez, aquela deve informar as condições nas quais os agentes se encontram envolvidos na complexa rede de relações e condições (OLIVEIRA; CARDOSO, 2008, p. 412). Para esses comentadores, consoante Lima Vaz, o ethos adquire muita importância para a reflexão ética. Acenam os mesmos a respeito do ethos:
[...] sua estrutura invariante permite que as comunidades humanas se orientem para além da contingência das situações particulares. Toda comunidade humana é sustentada e regida pelo seu ethos, o qual tem suas origens na Razão prática, mediante a forma do reconhecimento. Por sua vez, a eficácia do ethos, que unifica a comunidade, provém da mesma Razão prática que age como consenso. Tal intercausalidade entre reconhecimento como forma e consenso como ação remonta àquela condição de reciprocidade que essencialmente faz parte da relação intersubjetiva. Em outras palavras: só pode haver intersubjetividade quando há reciprocidade. Isso confere ao Outro, que aparece ao Eu como Outro-Eu, dentro do horizonte do Bem, caráter normativo de dignidade, que faz vê-lo sempre como fim em si mesmo e dá ao encontro recíproco entre os sujeitos um significado também normativo
(OLIVEIRA; CARDOSO, 2008, p. 413).
Percebe-se, pois, que o agir ético é um ato humano com duas características essenciais, a saber, é um ato racional e livre. Ele é um ato autoexplicativo na medida em que contém suas próprias razões e autodeterminativo na medida em que o sujeito-agente determina os fins do agir (HERRERO, 2012, p. 400). Nesse sentido, segundo Herrero, o que caracteriza a práxis, diferentemente da theoria e da poiesis, é o tipo de conhecimento racional que a acompanha. Acentua-se que se
trata de um conhecimento reflexivo e judicativo do sujeito que deve agir. Reflexivo, porque não precisa da mediação de um objeto exterior ao ato, a reflexividade é imediata. Judicativo, porque da apreensão do fim do agir e da avaliação das suas condições passa ao juízo prático que prescreve a realização (ou não) da ação. É conhecimento de um dever-ser imanente à práxis. E a obra humana por excelência é a realização plena da própria vida orientada pela RP [Razão Prática]. Como tal é considerada inicialmente na sua universalidade, que é dita subjetiva porque é predicado do sujeito ético
(HERRERO, 2012, p. 400, grifos do autor. RP: Razão Prática).
Logo, a práxis, tanto no contexto do agir ético, como autoexpressão do sujeito, quanto no contexto da vida ética, como manifestação do sujeito, no âmbito de sua existência concreta, é estruturalmente tridimensional. E isso se dá dessa forma, precisamente, porque ela é uma ação do sujeito ético, ou seja, em sua dimensão subjetiva, porque ela é cumprida no seio de uma comunidade ética, ou seja, em sua dimensão intersubjetiva, e, porque ela tem como norma o conteúdo histórico de determinado ethos, ou seja, em sua dimensão objetiva (HERRERO, 2012, p. 398).
Todo esse movimento demostra, portanto, que seu dinamismo intencional aponta para uma realidade objetiva, cuja inteligibilidade transcende às razões imanentes ao sujeito singular e à comunidade ética, uma vez que a estrutura teleológica da Razão prática estabelece ao agir o finalismo do Bem. A partir desse primeiro momento da universalidade subjetiva da Razão prática, que tem como referência o horizonte universal do Bem, segundo Herrero, na concepção de Lima Vaz, é possível pensar na pluralidade dos ethea históricos e as diferentes imagens do Bem em cada um deles (HERRERO, 2012, p. 401).
As categorias que exprimem o horizonte objetivo ao qual se refere o agir ético no momento da universalidade, são as categorias de fim, de Bem e de valor. O fim, idêntico ao Bem, pode ser aproximado, portanto, a partir de três direções, a saber: a) a direção da autorrealização (ou da eudaimonia) do indivíduo, na qual o fim é assumido no dinamismo total do agir ético que move o indivíduo para o melhor, isto é, o fim-para-o-indivíduo; b) a direção do fim como objeto real para o qual tende o movimento da Razão prática, isto é, o fim em-si; c) a direção do fim como síntese ou identidade dialética do fim para-o-indivíduo e do fim-em-si, isto é, o fim real e, como tal, formalmente assumido, no ato moral que lhe confere seu perfil eidético ou sua especificação.
A estrutura objetiva da ação ética (no seu nível de universalidade) define-se na influência das três direções citadas acima. É exatamente do convergir a essas três direções que emerge o ato ético, que, em consequência, deve ser ulteriormente determinado segundo as condições de sua execução. Para Lima Vaz, será sob o signo do valor que a Razão prática, ordenada estruturalmente para o Bem na sua universalidade, realizar-se-á na particularidade das situações. Logo, segundo Lima Vaz, “[...] no exercício concreto da ação moralmente boa, a Razão prática é movida por um poderoso componente afetivo e condensa numa simples intuição do bem a ser feito” (EF V, p. 12, grifos do autor).
Em sendo assim, por um lado, tem-se a complexa estrutura da razoabilidade que sustenta seu ato, e, por outro, aparentemente, em inextricável entrelaçamento de condições naturais e históricas que podem configurar determinada situação, tem-se o universo ético objetivo em face do qual o sujeito deve agir. E em tal intuição absolutamente original está profundamente comprometida a consciência moral-individual e social, sendo que “[...] é essa intuição que define para o sujeito o kairos ou momento oportuno para agir moralmente, momento fugidio que só a intuição moral capta e faz surgir diante da consciência” (EF V, p. 126, grifos do autor).
3 Dignidade e pessoa moral
A realização do sujeito surge como objetivo ou finalidade não só da ação humana, no seio de sua comunidade, mas se mostra como fim de todo o seu viver ético. Ao descrever a sua compreensão a respeito da vida ética, Lima Vaz, na estrutura subjetiva, afirma que a categoria segundo a qual é pensada a universalidade da Razão prática operando na vida ética do sujeito individual e da comunidade é a categoria de virtude. A virtude ocupa, então, um lugar importante na ética de Lima Vaz, e, no caso da realização humana, ela se mostra como categoria indispensável.
Como relata Ribeiro, a obra humana por excelência “[...] é a realização da própria vida orientada pela Razão prática. Razão prática que pode ser pensada operando na vida ética do sujeito e da comunidade a partir das virtudes” (RIBEIRO, 2013, p. 168). Viver conforme a virtude anuncia a vida humana, portanto, como vida no Bem e para o Bem. Trata-se de uma vida em progressiva identificação com o Bem, de cuja efetivação se dá pela prática das virtudes. Lembra-se, entretanto, que, nesse processo de efetivação da ação e atitude virtuosas, a universalidade da virtude é negada, dialeticamente, pelo momento inerente e imprescindível da particularidade da ação, momento, esse, no qual têm lugar, inevitavelmente, fatores condicionantes, que surgirão, tanto como condição de possibilidade, mas também como obstáculos para a concretização da vida virtuosa.
Nesse viés, Lima Vaz, o ser-em-situação é a primeira e fundamental determinação, isto é, a particularização da natureza universal do ser humano como ser racional e livre. Dito de outro modo, como ser, cuja finitude é atestada pelo seu estar-no-mundo e pelo seu estar-com-o-outro, o ser humano é um ser estrutural e inegavelmente situado. Por ser assim, “[...] a situação é o fundamento ou terminus a quo subjacente à nossa estrutura relacional” (EF V, p. 159, grifos do autor). O momento da particularidade da vida ética deve ser definido pela suprassunção ou elevação dialética do estar-no-mundo e do estar-na-história do sujeito ético para o nível do movimento da Razão prática em ordem à singularidade do ato virtuoso como ato da vida no Bem.
Desse modo, operar essa suprassunção é a própria razão de ser da Razão prática agindo pelos “[...] atos da boúlesis (deliberação e discernimento) e proaíresis (escolha) e atuando sua capacidade de passar da ordenação abstrata ao Bem à efetivação concreta dessa ordenação no aqui e no agora da vida vivida” (EF V, p. 165, grifos do autor). Os momentos da universalidade e da particularidade devem, finalmente, ser suprassumidos no momento da singularidade.
A singularidade da vida ética, por sua vez, manifesta-se no vir-a-ser concreto por meio do qual o indivíduo se realiza eticamente. Sendo assim, é no contexto particular que a vida ética adquire seu conteúdo concreto, ou seja, é no horizonte da situação histórica do sujeito que esse se realiza na vida virtuosa, como sujeito ético, agindo e vivendo em conformidade com o Bem. Logo, a situação pode ser entendida como o momento mediador através do qual a virtude, pensada inicialmente na sua universalidade abstrata como hábito (hexis) ou intensidade qualitativa sempre maior da potência ativa (energéia) do sujeito torna-se a forma concreta de seu existir ético. Por sua vez, conforme Lima Vaz, o existir ético apresenta, assim, a liberdade moral e a personalidade moral como “[...] dois conceitos que se articulam para formar o núcleo inteligível do existir ético ou da vida ética na sua singularidade” (EF V, p. 168, grifos do autor).
Sendo a realização da própria vida caracterizada, portanto, pelo existir ético no qual o sujeito tem um aprofundamento de sua personalidade moral, seu existir ético deverá enxergar o outro, considerando, pois, que a vida virtuosa deverá ser concretizada, e, assim, evidenciada pela vida propriamente justa. Tem-se, então, o momento da intersubjetividade da vida ética, a qual também precisará ser pensada a partir dos momentos dialéticos da universidade, particularidade e singularidade.
Como foi analisado brevemente acima, o momento universal da vida é pensado a partir da noção de virtude. Agora, cabe analisar qual é a virtude que melhor caracteriza o momento da passagem da universalidade à singularidade.
De acordo com Lima Vaz, a prudência e a fortaleza, operadas precisamente no interior da comunidade, deverão supor a justiça como virtude superior, ou perfeita. E, como explica Lima Vaz, é formalmente na relação com o outro, no espaço simbólico da vida em comum que a virtude, isto é, a excelência do agir individual, faz-se justiça, vindo a ser excelência do agir na relação com o outro, ou seja, no agir comunitário. A justiça se apresenta, portanto, como a categoria ética fundamental que nos permite pensar, no nível de universalidade lógica e no princípio do movimento dialético da sua constituição inteligível, a vida ética segundo a estrutura intersubjetiva na qual ela é concretamente vivida. “O conceito de justiça é, pois, a categoria que exprime a universalidade da vida ética na sua estrutura intersubjetiva ou vivida comunitariamente. A vida ética, como vida virtuosa, é, primeiro, uma vida na justiça” (HERRERO, 2012, p. 426, grifos do autor). De acordo com Ribeiro, para Lima Vaz, a justiça é a categoria que preside inteligivelmente o exercício da vida ética na sua dimensão intersubjetiva. “A vida ética, enquanto vida vivida em uma comunidade humana que se quer ética, só o será quando vivida como vida justa” (RIBEIRO, 2011, p. 74). Eis como se expressa Ribeiro a respeito do que significa viver uma vida ética na relação com o outro:
Para Lima Vaz, a comunidade ética é o espaço por excelência da vida em comum onde se dá formalmente a relação com o outro. Desta forma, será na comunidade ética que a justiça se caracterizará como excelência do agir com relação ao outro. Portanto, a justiça será a estrutura intersubjetiva na qual a vida ética se concretizará numa comunidade ética. Viver uma vida ética com os outros será, primeiramente, viver uma vida justa. Viver eticamente é viver uma vida justa
(2011, p. 71).
O momento da universalidade é superado dialeticamente pelo momento da particularidade. E, segundo Lima Vaz, no terreno das situações, “[...] a vida ética se encontra, pois, diante do problema de manter a exigência universal da justiça presente nas respostas eticamente especificadas que cabe ao indivíduo formular em face das circunstâncias as mais variadas nas quais ele é chamado a agir” (EF V, p. 186, grifo do autor).
Trocando em miúdos, significa sublinhar a relevante tarefa reflexiva de cada indivíduo na relação com os outros presentes na vida ética de ponderar e tomar em consideração, de um lado, os imprescindíveis princípios universais que sustentam a exigência universal da justiça, e, doutro lado, a situação concreta e real dos indivíduos chamados a responder ante os desafios que lhes são apresentados e lhes são próprios em cada situação e realidade específicas, lembrando que são os desafios e as respostas aos chamamentos específicos, circunscritos e fechados a ponto de não terem repercussão e incidência que transcendam os sujeitos e as circunstâncias envoltas em cada chamado a agir eticamente.
Desta forma, se o outro só pode ser reconhecido e aceito como sujeito ético no horizonte do bem, horizonte ao qual a comunidade ética também deve estar direcionada, então, será neste horizonte que a vida ética deverá ser vivida como vida justa. Ora, é neste exercício concreto da vida ética dentro da comunidade ética que o momento da singularidade receberá seu conteúdo ético da categoria de dignidade humana. Assim, a vida justa será efetivamente vivida no reconhecimento da dignidade do outro
(RIBEIRO, 2011, p. 76).
Do exercício da vida ética na comunidade concreta, surge a singularidade. Logo, a universalidade e a particularidade são suprassumidas pelo momento da singularidade do agir ético. Mediatizada pela situação da mundaneidade histórica do sujeito, a singularidade é determinada pela sua inteligibilidade intrínseca, isto é, pela situação e pela sua condição de ser humano, a saber, a dignidade humana. Essa se configura como valor intrínseco à sua existência enquanto a mesma se refere, estruturalmente, ao horizonte do Bem universal. A dignidade designa, pois, um atributo essencial e inalienável do ser humano, e, nessa perspectiva, só haverá, de fato, justiça, quando, na comunidade ética, houver o reconhecimento recíproco entre os sujeitos. Assevera Lima Vaz:
A dignidade tem sua origem e o seu fundamento no estatuto que denominamos metafísico do indivíduo e da comunidade e que decorre da sua ordenação transcendental ao bem. Longe, pois, de ser um fruto da convenção ou do costume de uma determinada sociedade, ela atesta a singular grandeza e a unicidade ontológica do ser humano no seu ser-para-si e no seu ser-para-o-outro. É, portanto, indissoluvelmente, um predicado do indivíduo e uma qualidade essencial do vínculo que une os indivíduos na comunidade. O exercício concreto da vida ética comunitária é o exercício da dignidade vivida na vida de cada um e reconhecida na vida de todos
(EF V, p. 203, grifos do autor).
Nesse contexto, Lima Vaz, na perspectiva ética, o reconhecimento e o consenso, isto é, a aceitação entre os sujeitos do conceito de dignidade resume a ideia de singularidade do ser humano atestada pelo fato universal da cultura e pelas concepções antropológicas ao longo da história da filosofia ocidental. Acerca do conceito de dignidade, como fato universal da singularidade do ser humano, acentua-se:
Ora, é justamente no exercício concreto da vida ética intersubjetiva, ou seja, logicamente e dialeticamente no momento da singularidade que o conceito de dignidade recebe o conteúdo ético mais profundo e, de alguma maneira, dissolve o paradoxo aparente da relação entre os sujeitos nascida da sua mais radical interioridade: da liberdade e da consciência moral. Com efeito, a dignidade só é tal se é reconhecida. É somente o reconhecimento recíproco da dignidade entre os parceiros da ralação do Nós como constitutiva da comunidade ética pode elevar essa relação ao nível da equidade e da igualdade: torná-la, em suma, uma relação de justiça
(EF V, p. 203, grifos do autor).
Portanto, a dignidade só é tal se for reconhecida. E, desse modo, somente o reconhecimento recíproco da dignidade entre os parceiros da relação como constitutiva da comunidade ética pode elevar essa relação ao nível da equidade e da igualdade e, assim, torná-la, em suma, uma relação de justiça. “Entendida como inter-relação dos sujeitos pela aceitação recíproca da dignidade de cada um, a vida ética é uma vida na justiça” (EF V, p. 204, grifos do autor). Na vida ético-comunitária, cada um deve reconhecer no outro a mesma dignidade e deve, também, consentir na tarefa de construir uma vida ética em comum. Sublinha-se, pois, que
é justamente no exercício concreto da vida ética intersubjetiva, i. é, no momento dialético da singularidade, que o conceito de dignidade recebe o conteúdo ético mais profundo. O exercício concreto da vida ética comunitária é o exercício da dignidade vivida na vida de cada um e reconhecida na vida de todos. Essa é uma exigência absoluta que permanece como ideia reguladora e como critério julgador da efetivação do projeto histórico, humanamente mais radical, da constituição de uma comunidade ética
(HERRERO, 2012, p. 428, grifos do autor).
Por fim, cabe discorrer, ainda que, brevemente, sobre a estrutura objetiva da vida ética em seus três momentos: universalidade, particularidade e singularidade. No capítulo sobre a estrutura objetiva do agir ético, o horizonte último da Razão prática apresenta-se sob uma dupla razão formal: do fim, enquanto é pensado pela inteligência, e, do Bem, enquanto é almejado pela vontade. Por conseguinte, na vida ética, a ideia de Bem que é, igualmente, o fim, deve ser compreendida como valor fundamental. A vida ética, conforme Lima Vaz, é dotada de uma estrutura objetiva na medida em que se refere, primeiramente, à universalidade objetiva do mundo ético, ou seja, do ethos.
A ideia de Bem, almejada pela vontade, apreendida como fim pela inteligência e avaliada pela Razão prática como valor, se manifesta em um grupo humano, armado com seu ethos, em determinado tempo e lugar. Contudo, no momento objetivo, as ideias transcendentais de fim e de Bem permanecem como mera abstração. Faz-se, pois, necessária a suprassunção dessa categoria, para que o próximo passo seja dado, e que a concretização do horizonte objetivo se efetive na particularidade da situação do indivíduo e da comunidade ética.
No momento da particularidade, tem-se a cultura como expressão do ser propriamente humano. A estrutura essencial do ethos é intrínseca à cultura. Aceitar uma leitura ontológica da cultura supõe, evidentemente, admitir, como pressuposto, uma antropologia de alcance metafísico. Noutras palavras, sendo a cultura a forma específica de realização histórica do ser humano, ela deve levar em conta o pressuposto antropológico, ou seja, uma explicação acerca do desafio do ser humano realizar-se no tempo.
Portanto, conforme Lima Vaz, “[...] a cultura obedece a um dever-ser fundamental que tem em vista a verdade e o Bem para o ser inteligente e livre que a produz; e o ethos oferece à cultura um corpo histórico para esse dever-ser” (EF V, p. 224, grifos do autor). A cultura, na imensa variedade de suas formas, é o terreno concreto no qual se particulariza a universalidade objetiva da vida ética. A cultura deve, por isso, indicar o caminho para a “[...] eudaimonia, isto é, da auto-realização do nosso ser, que só pode ser uma auto-realização no Bem” (EF V, p. 225, grifos do autor).
Assim sendo, a síntese da estrutura objetiva da vida ética encontra o seu momento final na história. A passagem do momento da particularidade para a singularidade ocorre em decorrência da categoria da história. Lima Vaz menciona que é no existir e no agir históricos que se abre ao ser humano o espaço de concretização de sua unidade na singularidade da vida ética. Ao se particularizar na cultura e se singularizar na ação histórica, a Razão prática permanece ordenada transcendentalmente à ideia de Bem. Ademais, conforme Lima Vaz, não há nenhum desafio histórico mais radical para o ser humano do que a decisão que só a ele compete em face dos bens, dos fins, dos valores do ethos, em suma, de sua autorrealização.
O conceito de realização, em Lima Vaz, anuncia o homem exatamente como pessoa, isto é, ele está em processo contínuo, permanente e progressivo de integração e tentativa de unificação da sua essência no horizonte da existência. A categoria de pessoa e a de pessoa moral coroam a antropologia e a ética de Lima Vaz respectivamente. Se o que define o nosso ser mais próprio é a noção de pessoa, a passagem do ser que é (antropologia) para o ser que deve ser (ética), característica do processo de realização, supõe a exigência fundamental de nos tornarmos na ordem cronológica aquilo que já somos na ordem ontológica.
Em outros termos, realizar a própria vida supõe, fundamentalmente, um apelo ao ser humano para tornar-se, no plano do dever ser, ou seja, no plano da ética, aquilo que já se é no plano ontológico, a saber, pessoa. Seguindo a tradição, como, por exemplo, Aristóteles e Hegel, segundo Lima Vaz, o ser humano percorre o caminho cronológico na ordem do vir-a-ser para se tornar o que, na ordem ontológica, o que já está como fundamento, ou seja, o que aparece por último já está posto desde o início como fundamento.
Ao se abrir às relações, o ser humano exprimirá o ser que é, ou seja, ele manifestará o eu sou como instância ontológica, autoafirmando-se em sua essência, conquistando-a por meio do seu esforço hercúleo de autoconstrução de si e por meio, também, das relações estabelecidas em seu existir concreto e de sua situação existencial-cultural e histórica. Então, é exatamente a passagem do ser que é ao ser que se torna ele mesmo que define a concepção de Lima Vaz de pessoa moral.