Introdução
Há um renascimento do interesse pelo religioso na cultura contemporânea. Essa é uma constatação feita pelo filósofo italiano Gianni Vattimo em suas obras Crer que se crê (2018a) e Depois da cristandade (2004). No entanto, esse “retorno” do religioso constatado por Vattimo não significa, exatamente, uma volta das grandes religiões tradicionais, com sua fé e moral dogmáticas, isto é, seus ensinamentos rígidos e verdades da fé em sua literalidade. O que se tem, ou pelo menos, o que se espera e tolera com relação às religiões hoje, em um mundo marcado pela pluralidade, é um religioso enfraquecido, uma ideia de Deus esvaziada, uma (fé kenótica), cujo cerne de vivência é a constante interpretação, o exercício hermenêutico ininterrupto, das mensagens religiosas. É esse, à primeira vista, o sentido do “cristianismo não religioso” posto por Vattimo.
Muito se foi dito a respeito das causas desse renovado interesse pela religião.3 Desde causas sociais e políticas a causas de ordem ambiental e existencial. O próprio Vattimo ensaiou um apontamento dessas causas ao determinar os fatores externos do retorno do religioso destacando três pontos, a saber: 1) a experiência do limite humano; 2) o enfraquecimento da razão técnico-científica e, por fim, 3) a mudança na concepção de transcendência de Deus. Com relação à experiência do limite humano, Vattimo refere-se aos limites físicos (fisiologia do envelhecimento) e sociopolíticos. “Acreditávamos poder realizar a justiça na Terra, vemos que não é possível, e recorremos à esperança em Deus. A morte ameaça tal ocorrência inescapável e nos evadimos do desespero dirigindo-nos a Deus e à sua promessa de nos acolher em seu reino eterno” (VATTIMO, 2018a, p. 12-13).
A razão técnico-científica inaugurada na modernidade não foi capaz de solucionar ou explicar diversas questões vitais para o ser humano, além de ter criado outros problemas que põem em risco sua existência.
O mesmo fenômeno do retorno da religião em nossa cultura parece estar hoje ligado à enormidade e à aparente insolubilidade, com os instrumentos da razão e da técnica, de muitos problemas apresentados ao último homem da Modernidade tardia; questões relativas especialmente à bioética, da manipulação genética às questões ecológicas, além de todos os problemas ligados à explosão da violência nas novas condições de existência da sociedade massificada
(VATTIMO, 2018a, p. 13).
Já no que diz respeito à mudança na concepção de Deus, o indivíduo contemporâneo encontrou um novo modo de fazer a experiência do sagrado. Não mais como aquele ser distante, vigilante, severo e punitivo, mas como um Deus próximo, amigo. Deus não é apenas um “tapa buracos”, sempre pronto para resolver nossos problemas. Tampouco é uma força ameaçadora. Ele é alguém que vive com os seus, que compartilha a existência cotidiana, uma transcendência imanente que não se opõe à racionalidade humana. É sobre essa terceira causa que nosso texto pretende se deter.
Nosso objetivo é entender como o ser humano pode fazer a experiência de Deus na contemporaneidade, marcada pela pluralidade cultural e religiosa, sem que essa experiência conflite com outras formas de experiências religiosas ou mesmo não religiosas. Como as religiões podem conviver harmoniosamente Kénosis o sentido existencial, moral e social dessa experiência?
Para tentar dar cabo a essas questões, retomamos as considerações de Vattimo sobre os conceitos de Kénosis, Caritas e a ideia de cristianismo não religioso. Nossa hipótese é que essa tematização pode ajudar a uma reflexão sobre a experiência de Deus hoje, uma experiência que não desemboque em violência, fundamentalismos, intolerâncias e que respeite e preserve a vida em sua diversidade de manifestações.
Sagrado, religião e violência: a necessidade de nova concepção de Deus
O século XX foi marcado por uma série de acontecimentos catastróficos que revelou uma “tendência letal e autodestrutiva do espírito moderno” (ARMSTRONG, 2009, p. 232). Embora a principal motivação que desencadeou os conflitos não fosse de ordem religiosa, mas política e econômica, a humanidade sentiu a necessidade de mudar sua concepção de Deus, eliminando as visões tradicionais do sagrado, de divindade, que não eram mais capazes de explicar os acontecimentos seculares e, por conseguinte, conferir algum sentido religioso à vida humana.
A ideia de Deus propagada pelas grandes religiões mundiais não se sustentava mais, já não funcionava para a maioria das pessoas. Na segunda metade do século XX ocorreu uma mudança fundamental no modo como os indivíduos concebiam Deus. O Deus personalista, antropomórfico, das grandes religiões tradicionais monoteístas, perdeu espaço para as concepções, as percepções, mais pessoais, baseada numa experiência subjetiva e misteriosa, onde Deus (aqui entendido mais como um estado de espírito ou uma força, uma energia) pode ser encontrado pela imaginação e pela sensibilidade. Tal percepção teve implicações diretas na forma como as pessoas passaram a vivenciar sua religiosidade, não mais vinculada aos conjuntos de crenças e práticas das religiões tradicionais
(OLIVEIRA, 2017, p. 46).
Essa reviravolta no modo de conceber e se relacionar com Deus, porém, não foi ponto pacífico. Uma parcela considerável de intelectuais, artistas e escritores “[...] visava à criação de uma espiritualidade sem Deus ou o sobrenatural” (ARMSTRONG, 2009, p. 233). Não obstante, o medo e o vazio existencial que as guerras, as catástrofes atômicas e o extermínio étnico causaram na humanidade exigiam a “busca de um sentido intangível que conseguisse salvar os seres humanos do desespero, mas que não se podia alcançar pelos processos normais do pensamento lógico discursivo” (ARMSTRONG, 2009, p. 234). A religião, embora duramente atacada desde o período do Iluminismo e relegada ao plano da vida privada com a emancipação política moderna, fomentou, ao lado da arte, da literatura e da psicanálise um sentido existencial para a humanidade. Mas de que modo? Através de novas formas de religiosidade.
A espiritualidade conservadora, que ajudara os homens a adequar-se às limitações essenciais e aceitar as coisas como elas são, não os ajudaria naquela atmosfera iconoclasta e futurista. Todo o teor de seu pensamento e de sua percepção havia mudado. Muitos ocidentais, que receberam uma educação inteiramente racional, não estavam preparados para os rituais míticos, místicos e litúrgicos que no passado evocaram um senso de valor transcendente. Não havia volta. Se queriam ser religiosos, teriam de inventar ritos, crenças e práticas que fizessem sentido em suas circunstâncias radicalmente modificadas
(ARMSTRONG, 2009, p. 234).
Novas formas de religiosidade vêm acompanhadas de novas concepções de sagrado, transcendente, de Deus. E essa nova concepção se fazia necessária no contexto cultural e social do século XX, extensiva ao atual.
Para o filósofo judeu-alemão Hans Jonas (1903-1993), o acontecimento do holocausto judeu, por exemplo, com destaque para a experiência de Auschwitz, colocou em questão o sentido da experiência humana de Deus e criou uma nova dinâmica da relação humana com o sagrado. Tal acontecimento assentou “[...] um problema moral muito específico, aquele do ‘sentido’ do mal radical no seio de um mundo do qual ele compromete, portanto, o valor” (ROMMIER, 2016, p. 7).
Auschwitz marcou de tal forma Hans Jonas, o qual teve que se refugiar na Inglaterra em 1933 devido às ameaças do Partido Nazista e perdeu sua mãe que morreu no campo de concentração, que o filósofo se questionou acerca da permissibilidade de Deus com relação a esse acontecimento.
E, entretanto, paradoxo dos paradoxos, foi o antigo povo da “aliança”, na qual já não acreditava nenhum dos envolvidos, nem assassinos nem vítimas, mas, no entanto, apenas esse povo e nenhum outro que, sob a ficção da raça, tinha sido escolhido para essa indiscriminada aniquilação, a mais monstruosa inversão da eleição em maldição que desafiou toda possível atribuição de sentido. De fato, então, apesar de tudo, existe uma conexão de um tipo totalmente perverso entre os seguidores de Deus e profetas de outrora, cujos descendentes foram assim reunidos fora da diáspora e reunidos na unidade da morte conjunta. E Deus deixou isso acontecer. [Mas] Que Deus poderia deixar que isso acontecesse?
(JONAS, 2016, p. 20).
Pergunta forte que vai de encontro à imagem do Deus providente, onipotente e benevolente que marca o Ocidente judaico-cristão. Então, por que não abandonar esse Deus? Por que não abandonar qualquer concepção de Deus que, em muitas ocasiões, é usada para obstar a autonomia humana, para causar medo e para abonar barbaridades? É nesse sentido que Camus (1913-1960), citado por Armstrong (2008, p. 467), “[...] incita-nos a rejeitar Deus, para dedicarmos toda a nossa solicitude à humanidade”. O Deus tradicional não faz mais sentido. Contudo, isso significa que se deve viver em um mundo sem Deus?
O teólogo Judeu Richard Rubenstein não conseguia entender como eles podiam estar tão seguros sobre a humanidade sem Deus logo após o Holocausto nazista. A seu ver, a divindade concebida como Deus da história morrera para sempre em Auschwitz. Mas os judeus não podiam jogar fora a religião nem abandonar seu passado, depois de quase ter sido extinto na Europa. O Deus decente e moral do judaísmo liberal de nada servia, porém. [...] Hans Jonas considera impossível acreditar na onipotência de Deus depois de Auschwitz. Quando Deus criou o mundo, limitou-se voluntariamente e assumiu a fraqueza humana. Não pode fazer mais nada, e cabe a nós restaurar a plenitude da divindade e do mundo mediante a prece e a Torá
(ARMSTRONG, 2008, p. 471).
Portanto, “[...] a religião constitui uma tentativa de encontrar sentido e valor na vida” (ARMSTRONG, 2008, p. 8), e isso faz milhões de pessoas buscarem formas diversas de experienciar Deus.
Para entendermos o porquê de a humanidade não abandonar Deus e as religiões, é preciso termos em mente que os acontecimentos catastróficos do século XX não puseram em dúvida apenas a ideia de Deus, mas também o próprio ideal humanista e iluminista. Em outras palavras, o progresso racional e moral da humanidade foi posto em xeque. Desse modo, as guerras, o holocausto, o extermínio atômico, etc. põem em dúvida a crença humana em Deus, mas, ao mesmo tempo, estende-se a própria humanidade e suas crenças na razão e na moral, o que, de certo modo, faz os indivíduos manterem sua fé no sagrado e sua vivência religiosa, como esperança de uma vida melhor, no aquém ou no além. Gesta-se, por conseguinte, um paradoxo. Na medida em que a concepção de Deus é questionada, simultaneamente, as pessoas sentem a necessidade de se relacionarem com uma dimensão sagrada. Assim, não foi a total rejeição de Deus o que ocorreu, mas uma mudança na sua percepção.
Qual sentido tem Deus para nós hoje? Diante dessa mudança na percepção do divino, como pensar, na contemporaneidade, uma experiência, uma crença em Deus que não desemboque em violência, em fundamentalismo ou intolerâncias? Entendemos que a partir da fé kénotica (o chamado esvaziamento de Deus) e a vivência das Caritas (da caridade, do amor, do altruísmo) a experiência religiosa do ser humano pode ganhar uma autêntica dimensão sacra da vida num sentido mais amplo, marcada pelo respeito às diferenças, pela vivência da pluralidade, pela defesa da vida. Assim, pode-se, perfeitamente, conciliar a crença religiosa com o mundo secular. Ante a concepção kenótica de Deus, os crentes podem conciliar sua fé com os novos conhecimentos produzidos pela humanidade.
Não é preciso abandonar Deus e a fé para ser um homem secular. Se Deus é imanente ao mundo, se eu posso experienciá-lo subjetivamente na realidade efetiva, então, a minha crença se constitui numa inserção nesse mundo. Na visão do homem religioso hodierno, “é errado contrapor a ordem sobrenatural ao mundo natural de nossa experiência” (ARMSTRONG, 2008, p. 475).
Para tanto, Deus precisa ser repensado. A partir de quais critérios ou conceitos podemos repensá-lo? Tentar responder a essa questão é o objetivo do próximo tópico.
Kénosis, Caritas e cristianismo não religiosos em Vattimo: uma proposta de experiência de Deus na contemporaneidade3
Antes de partirmos para as considerações de Vattimo acerca da Kénosis4 e da Caritas,5 é preciso traçar o percurso do filósofo até chegar à ideia da “[...] secularização como um traço constitutivo de uma experiência religiosa autêntica” (VATTIMO, 2018a, p. 9). Para Gianni Vattimo a secularização é a realização do cerne sagrado presente nas religiões. É retirado do sagrado todo o véu que o encobria, toda a sua majestade, eliminada a distância que havia em relação à humanidade. O sagrado é reduzido a termos mundanos. Sagrado e profano convivem, confundem-se, e a vivência do divino pode se efetivar no mundo secular. É, portanto, um resgate do mundo, pois para falar de secularização como experiência religiosa autêntica não podemos fazer abstração da história, da vida concreta, do lugar por excelência onde acontece a existência dos indivíduos.
O que Vattimo propõe ao tratar da secularização é o retorno à realidade histórica dos homens contemporâneos sem perder, contudo, a possibilidade de uma experiência com Deus, o Deus kenótico. Desse modo, do ponto de vista de Vattimo, o cristianismo pode colaborar com a construção de um futuro viável para a humanidade. Pensar no cristianismo não religioso requer uma superação da cristandade, pois essa se mostra violenta, incapaz de praticar a caridade de maneira eficaz, cindindo os cristãos com seus dogmas e regras. Já o cristianismo não religioso faz transpor o amor dos homens uns pelos outros, de um plano institucional, fundado em mandamentos e regras, para o plano das relações, da convivência, do consenso e das realizações práticas.
Um dos principais fatores que contribuiu para a revitalização do debate sobre a religião e, consequentemente, da experiência de Deus, foram as transformações no campo do pensamento. Ocorreu a dissolução das principais teorias filosóficas que tinham por pretensão liquidar a religião. De um lado, o Positivismo cientificista, que defendia que a verdade era fruto exclusivo da ciência experimental e, por outro, o Historicismo hegeliano-marxista, que defendia que a história se desenvolve na direção de uma plena emancipação do homem com relação a qualquer autoridade transcendente.
[...] hoje aconteceu que, tanto a crença na verdade “objetiva” das ciências experimentais quanto a fé no progresso da razão rumo ao seu pleno esclarecimento, apareçam precisamente como crenças superadas [...]. O desencantamento o mundo também produziu um desencantamento radical da própria ideia de desencanto [...] a desmitificação se voltou finalmente contra si mesma
(VATTIMO, 2018a, p. 18).
Associado a esse fator, a modernidade, com os pensamentos de Nietzsche e Heidegger, desemboca no fim “da crença no ser e na realidade como dados ‘objetivos’ que o pensamento deveria se limitar a contemplar a fim de se conformar a suas leis” (VATTIMO, 2018a, p. 19). E este é o ponto de partida do discurso de Vattimo, que se inspira nas ideias de Nietzsche sobre a morte de Deus e o niilismo e de Heidegger sobre o fim da metafísica.
Vattimo (2018a) desenvolve uma análise da morte de Deus nietzschiana a partir da ideia do fim da metafísica de Heidegger, objetivando examinar os aspectos teóricos e históricos que conduzem a uma concepção de ser como evento e como destino do enfraquecimento do ser, desembocando no niilismo.
O pensamento chega à consciência de que aquilo que é verdadeiramente real, como dizem os positivistas, é o fato “positivo”, ou seja, o dado certificado pela ciência, mas justamente a certificação é uma atividade do sujeito humano [...], e a realidade do mundo que estamos falando se identifica com aquilo que é “produzido” pela ciência, em seus experimentos, e pela técnica, com seus aparatos. Não existe mais “mundo verdadeiro” algum, ou melhor, a verdade reduz-se toda àquilo que é “posto” pelo homem, ou seja, à vontade de potência
(VATTIMO, 2018a, p. 19).
Essa seria uma síntese do niilismo moderno, que consiste na tomada de consciência de que o ser e a realidade são produtos do sujeito e não algo objetivo que se sobrepõe e se impõe ao homem, que se coaduna com a tese do fim da Metafísica, segundo a qual o ser, a realidade, tornou-se algo relativo, produzido. A objetividade do ser é relativizada, subjetivada. Portanto, a ruptura realizada por Nietzsche e Heidegger fomentou o surgimento do chamado “pensiero debole”, famosa ideia vattimiana que significa a consumação das estruturas fortes tanto no plano teórico quanto no plano existencial.
Esse enfraquecimento do pensamento, das estruturas teóricas, favoreceu o renascimento da religião na era pós-metafísica. Será a partir dessa constatação que Vattimo examinará a experiência da dissolução do ser, da morte de Deus, voltada à herança cristã, pois acredita que “[...] são muitos os sinais que parecem indicar que foi a própria morte desse Deus [o “Deus moral”] que abriu o caminho para uma vitalidade renovada da religião” (VATTIMO, 2004, p. 24). Mas, estando o Deus moral e metafísico morto e enfraquecido, qualquer fundamento filosófico que se pretende objetivo, como conjecturar a possibilidade do retorno do religioso e da experiência de Deus?
O enfraquecimento do ser atrelado à herança cristã determina o esvaziamento de Deus (Kénosis). A partir desse esvaziamento, Deus aproxima-se da humanidade. Isso é o “reencontro niilista do cristianismo” (VATTIMO, 2018a, p. 24). Essa comparação entre o enfraquecimento heideggeriano do ser e a herança cristã desemboca na questão da encarnação e, consequentemente, para Vattimo, da secularização, cujo sentido autêntico é um fato próprio do cristianismo, é um efeito positivo da encarnação de Deus. É, nesse sentido, que a secularização é um traço da experiência religiosa autêntica.
A secularização, para Vattimo (2004), realiza o parentesco entre a mensagem bíblica da história da salvação na encarnação de Deus em Jesus Cristo e o enfraquecimento do ser que a filosofia estabelece como traço característico da história metafísica do ser. Assim, a secularização “abrange todas as formas de dissolução do sacro que caracterizam o processo de civilização moderno (VATTIMO, 2004, p. 35).
O processo de civilização moderno impôs à humanidade a ideia do Deus onipotente, castigador, violento, fonte dos fundamentalismos. Esse Deus compromete o pluralismo, a diversidade, que marca a contemporaneidade e não é capaz de explicar os acontecimentos catastróficos que marcam o século XX.7 O “reencontro niilista do cristianismo” enfraquece esse Deus “Senhor dos senhores”,
para seguir no caminho de um reencontro niilista do cristianismo basta ir um pouco além de Girard, admitindo que o sagrado natural seja violento não apenas enquanto mecanismo vitimário supõe uma divindade sedenta de vingança, mas também enquanto atribui a essa divindade todas as características de onipotência, absolutismo, eternidade e “transcendência” com relação ao homem, que são os atributos conferidos a Deus pelas teologias naturais, inclusive aquelas consideradas preâmbulo da fé cristã. Em suma, o Deus violento de Girard, nessa perspectiva é o deus da metafísica, aquele a quem a metafísica chamou também de ipsum esse subsistens, que sintetiza em si, de forma eminente, todas as características do ser objetivo como ela o concebe. A dissolução da metafísica é o fim dessa imagem de Deus, a morte de Deus de que Nietzsche falou
(VATTIMO, 2004, p. 30-31).
As estruturas metafísicas são violentas porque anulam o ser humano, fazendo este se adequar ao ser, ao absoluto, à divindade. Por isso, pensar numa ética da não violência requer o enfraquecimento do ser, requer pensar pós-metafisicamente: “[...] da ontologia fraca, [...] ‘decorre’ uma ética da não violência” (VATTIMO, 2018, p. 37-38).
Para Vattimo, portanto, a encarnação de Deus, ou seja, o seu abaixamento ao nível do homem, seu esvaziamento (Kénosis), deve ser entendida como a marca de que o Deus não violento é o autêntico Deus que deve ser experienciado pela humanidade como forma de superar o fundamentalismo religioso e a intolerância.
O que, então, reencontro se e quando [...] reencontro o cristianismo? Decerto não sou posto diante de um patrimônio de doutrinas e preceitos claramente definidos, que resolveriam todas as minhas dúvidas e me indicariam claramente o que fazer [...] esse cristianismo dogmático e disciplina não tem nada a ver com o que meus contemporâneos e eu “reencontramos”; não é dessa forma que o ensinamento de Cristo se mostra capaz de nos chamar novamente e falar. É só culpa nossa, ou esse fato não deveria levar os que se consideramos depositários da verdade da fé da missão de pregá-la ao mundo a refletir? O cristianismo que eu reencontro ou que nós, fiéis pela metade, reencontramos, inclui, decerto, também a Igreja oficial, mas somente como parte de um evento mais complexo, que também compreende a questão da reinterpretação contínua da mensagem bíblica [...]. O que eu reencontro é uma doutrina que possui sua pedra angular na kénosis de Deus e, portanto, na salvação entendida como dissolução do sagrado natural-violento [...]. É por isso que insisto tanto no “não se deixar afastar do ensinamento de Cristo” por causa do escândalo do ensinamento oficial da Igreja”
(VATTIMO, 2018a, p. 59-60).
Pensar o ser para além da metafísica da objetividade, na qual o indivíduo deve conformar-se às estruturas do ser, tem implicações éticas. Essas implicações, atreladas à tradição da herança cristã, desembocam no princípio da caridade e de sua rejeição à violência. “Moldado pelo mito da Encarnação e pelo subsequente enfraquecimento dos poderes absolutos, o cristianismo traz, em seu bojo, o princípio da cáritas. O Deus não violento e não absoluto da época pós-metafísica é fruto da encarnação, da kénosis” (BARREIRA, 2017, p. 121).
Assim, a herança cristã que retorna no pensamento fraco é também, para Vattimo (2018), a herança do preceito cristão da caridade e de sua rejeição à violência. Na medida em que a tradição cristã concebe Deus próximo do homem, como um amigo, essa concepção de Deus abre espaço para uma religiosidade mais tolerante, aberta ao diálogo, que associado ao princípio da caridade, abre-se ao reconhecimento do outro, seja religioso ou não religioso, como ser de dignidade e que merece respeito.
O cristianismo transmite uma mensagem de amor e de caridade em sua acolhida do outro. De acordo com Vattimo, Jesus Cristo nos revela que a religiosidade não consiste no sacrifício, mas em amar a Deus e ao próximo. Nesse sentido, o debilitamento do divino e o acolhimento do outro balizaram indelevelmente a posterior tradição cristã. Dessa forma, no âmago da matriz mítica cristã, a kénosis divina teria rompido com a lógica vitimária para acolher caritativamente o outro, dando início a um longo processo que, no Ocidente, veio a desembocar na secularização democrática
(BARREIRA, 2017, p. 121).
Quando afirmamos que há uma abertura ao diálogo, à tolerância, estamos reforçando a assertiva de Vattimo segundo a qual o cristianismo “fraco” está fundado na não objetividade da mensagem de Jesus, no caráter não definitivo da sua doutrina, como querem os teólogos e as autoridades doutrinais das igrejas. A mensagem de Jesus deve dar-se como evento, como acontecimento aberto à descoberta e à redescoberta dos crentes. Isso é o cristianismo não religioso defendido por Vattimo. Uma religiosidade, uma experiência de Deus afastada das estruturas da cristandade, das instituições religiosas tradicionais. É uma religiosidade menos rígida, uma experiência de Deus que acontece na mundanidade dos fatos, devido à purificação das estruturas objetivas, metafísicas do sagrado. Em consequência dessa purificação, no mundo secularizado, a revelação é um fato contínuo, ou seja, ela depende de nossa interpretação de cada evento na história.
[...] não é de modo algum escandaloso pensar na revelação bíblica como uma história que continua, na qual estamos envolvidos e que, portanto, não se oferece à “redescoberta” de um núcleo de doutrina dado de uma vez por todas e sempre igual (e disponível no ensinamento de uma hierarquia sacerdotal autorizada à sua preservação). A revelação não revela uma verdade-objeto; fala de uma salvação em andamento. A história da salvação e a história da interpretação estão muito mais ligadas estreitamente do que a ortodoxia católica quer admitir [...]. A salvação desenvolve-se na história também mediante uma interpretação cada vez mais “verdadeira” das Escrituras, na linha do que acontece na relação entre Jesus e o Antigo Testamento [...]. O fio condutor da interpretação que Jesus dá ao Antigo Testamento é a nova relação mais intensa de caridade entre Deus e a humanidade, e também, por consequência, dos homens entre si. Nessa perspectiva [...] a secularização, ou seja, a dissolução progressiva de toda sacralidade naturalista, é a essência mesma do cristianismo
(VATTIMO, 2018a, p. 44-45).
A existência de doutrinas e posicionamentos morais fortes, exigentes, é o que marca a cristandade e suas instituições. A secularização é um questionamento desses posicionamentos e, portanto, não significa um abandono da religião, mas um abandono do caráter fidedigno da mensagem religiosa, da universalização da mensagem cristã como afirmação de uma verdade única. A Kénosis de Deus inaugura a dissolução da sua transcendência, o que pode soar estranho para um religioso fundamentalista, mas que para o cristão não religioso soa como liberdade de crença e vivência da fé. Não podemos mais viver numa era de interpretação literal das Escrituras e numa vivência rígida de dogmas criados em eras distintas da história, como se valessem para todas as realidades.
O teólogo José Comblin sintetiza a ambiguidade e buscar fora da Igreja a vivência dos valores cristãos nos seguintes termos:
Agora, o sentimento é de que aquilo que atrai as pessoas fora das Igrejas são valores cristãos. Pode-se perceber a ambigüidade desse conceito. Existe um certo paradoxo em querer buscar o Cristianismo fora das Igrejas que, histórica e dogmaticamente, são seus intérpretes oficiais. E, no entanto, isso não deixa de ter fundamento, pois existem, efetivamente, valores cristãos fora dos limites das instituições eclesiásticas
(COMBLIN, 1970, p. 143).
É preciso sair dos quadros estreitos das Igrejas tradicionais para dar um sentido positivo ao cristianismo na pluralidade do mundo contemporâneo. Devemos viver na era de uma interpretação espiritual, simbólica, hermenêutica das Escrituras, da mensagem cristã, sendo anacrônico conceber uma leitura literal das narrativas bíblicas como eventos reais ou como profecias a acontecer. Portanto, a “Bíblia não deve mais ser interpretada em termos literais” (VATTIMO, 2004, p. 42).
É interessante como, no sentido de uma superação da cristandade como forma de uma vivência autêntica da mensagem cristã, Vattimo interpreta a filosofia de Gioacchino de Fiore, para quem a história da humanidade está dividida em três idades, a do Pai, a do Filho e a do Espírito, sendo esta última aquela que marcaria a era pós-moderna, pós-metafísica, “[...] principalmente por ser uma leitura dos ‘sinais dos tempos’ que provém do interior do processo, mas que consegue ler estes sinais porque, pelo menos em parte, já se encontra na idade que intui como iminente” (VATTIMO, 2004, p. 44). Essa leitura da Filosofia de Gioacchino de Fiore faz Vattimo entender que a história da salvação não está consumada e que, talvez, nunca chegue ao seu termo, tendo, assim, a revelação uma historicidade constitutiva. Isso é fundamental para a destituição das interpretações da Escritura como exclusividade de uma autoridade eclesial, estabelecendo, por conseguinte, o reino da liberdade e da caridade e o ressurgimento de uma religiosidade autêntica, marcada pela secularização como “correlato do Deus encarnado” (VATTIMO, 2004, p. 51), o Deus presente, o Deus conosco (Emanuel).7
O sentido positivo da secularização continua no processo kenótico [encarnação de Deus], em direção do abandono do sagrado violento, ou seja, Vattimo sustenta que a espiritualização de Deus vai em direção da “[...] liquidação do sacro, também no sentido da diminuição da violência, do sofrimento, dos problemas insolúveis que evocam, em seguida, a necessidade do sacro como necessidade de soluções absolutas” (VATTIMO, 1990, p. 73). Ou ainda, despede-se, à luz da encarnação de Deus, da religião natural, pois “[...] a secularização, isto é, a dissolução progressiva de toda sacralidade naturalista, é a própria essência do cristianismo” (VATTIMO, 1998a, p. 43).
O cristianismo não religioso significa, portanto, a vivência de uma religiosidade, de uma experiência de Deus, marcada pela Kénosis, cujo cerne da vivência é a constante interpretação da mensagem das Escrituras e o acolhimento caritativo do outro. É, por isso, que Vattimo insiste tanto no “não se deixar afastar do ensinamento de Cristo por conta do escândalo do ensinamento oficial da Igreja” (VATTIMO, 2018, p. 60). Nesse sentido, propõe que a verdade do cristianismo radica no niilismo pós-moderno, na dissolução dos metarrelatos, isto é, a dissolução da concepção metafísica da verdade representa a verdade do próprio cristianismo expressa, por exemplo, na Kénosis, onde se le: “[...] a encarnação como renúncia de Deus à própria soberana transcendência” (VATTIMO; RORTY, 2006, p. 72).
Considerações finais
Vattimo interpreta a natureza kenótica do cristianismo como secularização, como religião do amor, da caridade, ou seja, a kénosis é a abertura incondicional ao outro, a alteridade, permitindo a Rorty sustentar que a estratégia de Vattimo “[...] é tratar a encarnação como sacrifício de todo poder e autoridade de Deus, tão bem quanto todas as outras passagens. A encarnação é um ato de kénosis, o ato em que Deus trocou tudo com os seres”. (RORTY. VATTIMO, 2006, p. 54).
Vattimo adota a kénosis de Deus como a condição de se pensar a experiência religiosa na época pós-metafísica que “[...] muito mais do que buscar o triunfo de uma fé sobre outra, a tarefa que todos temos pela frente é reencontrar – depois da época ‘metafísica’ dos absolutismos e da identidade entre verdade e autoridade – a possibilidade de uma experiência religiosa pós-moderna, na qual a relação com o indivíduo não seja mais poluída pelo medo, pela violência, pela superstição” (VATTIMO, 2018b. p. 310).
O processo de secularização deve significar a dissolução das razões fortes/absolutas da Metafísica e permite reconhecer a presença da herança cristã – em particular, o preceito da Caritas e a recusa da violência. Vattimo declara que “a única verdade que as Escrituras nos revelam, aquela que não pode, no curso do tempo, sofrer nenhuma desmistificação – visto que não é um enunciado experimental, lógico, metafísico, mas um apelo prático – é a verdade do amor, da Caritas (VATTIMO. RORTY, 2006. p. 71). Segundo sublinha Monaco (2006, p. 68), “para Vattimo, a dissolução da metafísica pode ser conduzida às suas consequências extremas apenas reconhecendo-se como guiada pelo princípio da caridade e como resposta ao apelo, ao evento, cristão”.
A narração de Vattimo é uma história que começa apresentando a secularização como o cumprimento da mensagem central cristã, preparando-se para uma re-apropriação do cristianismo. Nesse sentido, a secularização não representa um acontecimento antirreligioso, mas um fato positivo que significa a dissolução das estruturas sagradas da sociedade cristã, a passagem a uma ética da autonomia, à laicidade do Estado, a uma literalidade menos rígida na interpretação dos dogmas e dos preceitos. Isso compreendido como uma realização mais plena da verdade do cristianismo e não deve ser entendida como um decréscimo ou uma despedida do cristianismo. Na esteira dessa reflexão, encontramos, no pensamento de Vattimo, sempre a pensar o fenômeno religioso para além do secularismo e da crítica ilustrada moderna que pretenderam excluir a religião de todos os aspectos da vida pública.