Considerações iniciais
No cenário educacional, inúmeros são os problemas captados nas nuances da prática pedagógica, implicando empecilhos que podem impossibilitar o desenvolvimento do saber no ambiente escolar. O filósofo e educador Paulo Freire, ao pensar a educação, evidencia alguns desses problemas presentes nas relações estabelecidas no ambiente escolar, que, muitas vezes, por não serem refletidos, passam despercebidos pelos docentes, dificultando ainda mais o fazer pedagógico. A concepção bancária, denunciada pelo autor, exprime um obstáculo presente em relação ao conhecimento, levando em conta o panorama estabelecido entre opressor/oprimido, ou melhor, professor/aluno.
Na concepção bancária freireana, estabelece-se uma analogia na qual o professor, como opressor, toma a si mesmo como um detentor de conhecimento, como superior, tendo somente que “depositar” o seu saber no aluno oprimido, como o autor salienta ao afirmar que “em lugar de comunicar-se, o educador faz “comunicados” e depósitos que os educandos, meros incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem” (FREIRE, 1981, p. 66). O aluno, na condição de oprimido, acredita não ter capacidade nem de conhecer e menos ainda de criar conhecimento, permanecendo, assim, na condição de mero ouvinte. Todo o esforço freireano para explicitar a condição opressor/oprimido na educação é fundamentado sob a perspectiva humana, na medida em que o autor busca uma pedagogia pautada na educação em geral, tendo por referência o processo de humanização. Afinal, a ação pedagógica deve ser pautada em um horizonte que se estabelece entre humanos, e, dessa forma, “uma ação pedagógica para a humanização em um contexto de opressão, para Freire, tem de ser primeiramente uma ação pedagógica do oprimido” (BALBINOT, 2006 p. 109).
Tendo em vista tal contexto, é possível prospectar quais seriam as possibilidades de reverter essa concepção perversa da Educação bancária e a alternativa para ousar ultrapassar uma educação que visa meramente ao depósito de conhecimento, relatada pelo autor. Tendo a crença no diálogo como pressuposto, utilizamos a Escola X como objeto de pesquisa, na qual o presente trabalho evidencia a necessidade de colocar o seguinte problema: é possível exercer o diálogo como um princípio ético na concepção dos docentes da Escola X? Todavia, a hipótese de que possam existir dificuldades de exercer o diálogo como um princípio ético por parte dos docentes surge como uma premissa investigativa, considerando que os professores podem ter uma concepção distorcida desse conceito, o que inviabilizaria a prática pedagógica. Ademais, é preciso considerar que os docentes raramente pensam/refletem sobre os princípios éticos norteadores da prática pedagógica bem como a prática dialógica e a sua relação com os discentes no ambiente de sala de aula.
Com o objetivo de investigar em que medida o diálogo faz-se presente ou não como princípio ético na concepção dos docentes da escola em questão, o texto desenvolve-se com base numa pesquisa de cunho analítico-hermenêutico, adotando a metodologia descritiva, qualitativa e de observação participante. A produção de dados para o desenvolvimento dos resultados das discussões, às quais o presente texto propõe-se, é elaborada por meio de observações e percepções realizadas com docentes da Escola X a respeito da compreensão do diálogo como um princípio ético e do modo como esse conceito apresenta-se no fazer diário docente. Trata-se de uma pesquisa inicial básica, exploratória, ancorada numa investigação bibliográfica, a qual objetivou dar conta de mapear conceitos teóricos que pudessem fundamentar o texto com relação ao tema abordado, tendo em vista o seu vínculo com o ensino-aprendizagem, sem os quais não seria possível exercitar o processo de descrição e análise decorrente da metodologia da observação participante.
A presente pesquisa é resultado parcial da Iniciação Científica desenvolvida no Curso de Licenciatura de Filosofia da Universidade de Passo Fundo e da atuação dos autores junto ao Grupo de Ensino e Pesquisa em Educação Superior – GEPES/ UPF. A produção de dados e observação participante foi realizada na Escola X no ano de 2019. Tendo como ponto de partida a metodologia de observação participante4, foram designadas visitas de observação na escola em questão, a fim de captar de que forma a equipe gestora, os docentes e a comunidade escolar desenvolvem a prática pedagógica bem como em que momentos o diálogo está presente como um princípio ético. Posteriormente, a produção de dados foi realizada a partir das percepções observadas no ambiente escolar da Escola X, nas falas dos docentes proferidas nos diversos ambientes escolares (sala dos professores, conversas informais, sala de aula), com a intenção de identificar em quais momentos o diálogo é desenvolvido como princípio ético no que tange à prática pedagógica e à relação entre professor e aluno na construção do conhecimento.
No processo de escolha de textos, optamos pelos escritos de Freire (1981) e Benincá (2010), por considerarmos que tais autores complementam-se e têm uma dimensão aprofundada da temática, fazendo uma leitura crítica do cenário educacional brasileiro. O texto base para o desenvolvimento do tema será a Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire (1981), analisando sua concepção de diálogo como meio para superar uma Educação “bancária”. Do educador e filósofo Elli Benincá (2010), buscaremos elucidar o conceito de diálogo como princípio ético da prática pedagógica. A metodologia da observação participante leva em conta a postura ética que deve ser assumida pelo pesquisador com relação ao ambiente a ser investigado.
Considerando os aspectos a que o presente texto busca ater-se, é possível justificar sua relevância no que tange à relação professor-aluno no ambiente de sala de aula. Acreditamos que tal produção acadêmica pode acrescentar na formação tanto do curso de Filosofia quanto das demais licenciaturas, devendo-se ao fato de que o tema é importante, pois demonstra a viabilidade do diálogo na escola. Tal temática explora dois dos principais problemas da Educação no Brasil, que é a falta de diálogo no ambiente escolar e a carência de princípios éticos na prática pedagógica, principalmente na relação entre professor e aluno.
Da mesma forma, pensar a relação entre aluno e professor no ambiente escolar implica conceber a formação desse docente, com a aplicação de conceitos, fundamentos e percepções de sua prática, as quais vão implicar um processo de escuta, empatia e diálogo com esse aluno. Nesse sentido, já defendemos em outros escritos a visão alargada do docente em relação aos seus alunos, de forma a amplificar o olhar e reconhecer no outro, de forma empática, suas necessidades, seus desejos, suas peculiaridades e suas subjetividades de modo que isso represente o processo de colocar-se no lugar daquele indivíduo (FÁVERO et al., 2021). Promover essa empatia, essa formação para reconhecimento do outro, também é promover o diálogo, de forma ética, em sua prática pedagógica, da forma como aqui defendemos.
Essa formação docente empática, para favorecimento do diálogo, perpassa também a percepção da defesa das humanidades nos currículos (NUSSBAUM, 2015) e da própria Filosofia (FÁVERO; CENTENARO; SANTOS, 2020), as quais têm resistido arduamente nos currículos, em contrapartida à ofensiva contemporânea de uma educação neoliberal, empreendedora (FÁVERO; TONIETO; CONSALTÉR, 2020), inserida nos currículos e na Educação, que molda sujeitos (AGOSTINI, 2018) e traduz-se na manutenção de um ensino tecnicista e padronizado, num formato bancário, como definiu Freire (1981). Essa defesa é indispensável para pensar uma forma de educação mais humanizada e pautada no diálogo e na ética envolvida na prática pedagógica docente.
Assim, o texto é composto por três momentos, sendo que a primeira seção aborda o diálogo na perspectiva freireana sob a ótica benincaneana, buscando evidenciar a concepção de diálogo de Paulo Freire na perspectiva do filósofo Elli Benincá, destacando as principais aproximações das concepções trabalhadas pelos autores, além de concepções contemporâneas que abordam esses conceitos, de forma direta ou indireta, ressaltando a sua importância e atualidade. A segunda seção enfoca o conceito de diálogo como princípio ético da prática pedagógica, procurando apontar as dimensões do diálogo na prática pedagógica e o modo como pode reger o fazer docente, na medida em que é exercitado no processo de formação docente. A terceira e última seção desenvolve a noção de diálogo como um caminho a ser percorrido para alcançar uma Educação libertadora. Trata-se de uma possibilidade de superação dos moldes autoritários em que a escola tradicionalmente tem se constituído. O desenvolvimento dos principais conceitos estará em consonância com os dados coletados por meio da observação na escola e das análises efetuadas, buscando identificar em que pontos o diálogo está presente ou não na concepção dos docentes da escola em questão.
1. O diálogo na perspectiva freireana sob a ótica benincaneana
O conceito de diálogo desenvolvido na obra Pedagogia do Oprimido (FREIRE, 1981) trata de evidenciar a relação de diálogo que há entre professor/aluno fundamentada na concepção eu/não eu. Assim sendo, busca apontar o diálogo como um princípio que norteia as relações na prática pedagógica, por quebrar com certas concepções engessadas presentes na tradição do ambiente escolar, em que, por vezes, opta-se por formar um aluno acrítico, sem posicionamento para dialogar com o professor ou, muito menos, buscar um enfrentamento direto. No desenvolvimento do conceito de diálogo como uma possibilidade na perspectiva freireana, o filósofo Benincá (2010) pensa ser a falta dele que acaba possibilitando a postura assumida por um professor autoritário. Trata-se da noção de primazia do educador em relação ao educando, tomando a postura opressora como docente que detém o conhecimento e apenas deposita no educando as informações que julga serem possíveis, sem ao menos tentar estabelecer um momento de troca de informações com o aluno.
O diálogo deve ser concebido, nesse sentido, como um pilar responsável por permitir a reflexão, implementando o desenvolvimento de habilidades cognitivas, raciocínio e interpretação lógica, como também a construção de pensamentos e reflexões superiores a temas que interessam os envolvidos (FÁVERO et al., 2007). Todavia, esse desenrolar dialógico precisa de bases e fundamentos, possibilitados pela Filosofia que, enquanto componente curricular reflexivo por excelência, oportuniza aos indivíduos a tarefa de pensar reflexivamente de forma crítica e pode fornecer aos educadores um incentivo adicional para tornar suas salas de aula um palco de diálogo investigativo. Mas a Filosofia e as disciplinas de artes e humanidades têm sido, sumariamente, atacadas e rechaçadas dos currículos escolares nos últimos anos, por meio de sucessivas reformas curriculares, relegando-as à condição de um componente transversal das ciências humanas (FÁVERO, CENTENARO, SANTOS, 2020). Esse processo acompanha a avançada narrativa ideológica neoliberal, o assim chamado neoliberalismo educacional, pautado em uma formação mais tecnicista, reduzida, voltada para o mercado de trabalho e o empreendedorismo, além do cumprimento massivo de metas avaliativas determinadas pelos organismos internacionais (NUSSBAUM, 2015; FÁVERO; TONIETO; CONSALTÉR, 2020; PINHEIRO; AGOSTINI, 2021).
Por vezes, o diálogo não é tomado como um princípio pelo motivo de ele carregar em si a missão primordial de tirar da zona de conforto o sujeito que busca a ação dialógica. Para Freire (1981, p. 92), “a existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo”, portanto não basta somente existir, tem de haver um esforço para modificar o mundo por meio do pronunciamento entre os homens, ou seja, do diálogo.
No entanto, é bem mais complexo do que parece, pois, para se preparar, enquanto professor, para assumir essa postura, é indispensável que se tenha segurança com relação ao domínio da teoria em conceder os direcionamentos para que se estabeleça, de fato, o diálogo enquanto pronunciamento de mundos com propósito de mudança, não somente como uma simples conversação (FÁVERO et al., 2007). Tal postura deve ser assumida igualmente pelos alunos que, por vezes, se encontram em uma posição de inércia com respeito ao conhecimento, faltando preparo e abertura para dialogar, sem possuir o hábito de questionar, buscar, investigar, enfim, acomodam-se na mera cópia e repetição de conteúdo. O filósofo Benincá (2010) afirma ser necessário que os alunos se interessem em pesquisar assuntos e tenham conteúdo para que seja viável o diálogo – em suma, é necessário que se tenha um aluno leitor para que ocorra o diálogo.
A busca por uma ação dialógica como princípio é orientada por modificações metodológicas que devem ser adotadas na sala de aula, na medida em que tanto professor quanto o aluno tem de mudar sua maneira de comunicarem-se, criando condições de possibilidade para que haja, de fato, diálogo. É comum apresentar certa resistência de ambas as partes, principalmente dos professores, que, em muitas ocasiões, se queixam das dificuldades encontradas em relação à escrita, à leitura e à interpretação dos alunos, o que se torna o motivo pelo qual alguns docentes nem ousam propor uma atividade que envolva o diálogo e os alunos acabam por aceitar o que lhes é imposto. Há clareza nesse trecho em que Benincá (2010, p. 113) afirma a condição de possibilidade para o diálogo:
Para haver diálogo é necessário que as partes se pronunciem. A ocultação e a mudez na relação opressor-oprimido podem ser atitudes tanto de um quanto de outro. O opressor quando não deseja sair de si mesmo e compartilhar seus bens, nega-se ao diálogo e emudece, em outras palavras, omite-se para não dialogar. Por sua vez, o oprimido também pode se ocultar e se negar ao diálogo, e várias causas, muito bem observadas por Paulo Freire, concorrem para esse tipo de atitude. Uma delas é quando o oprimido é tido como ignorante e assim se aceita.
O conceito de diálogo freireano é tomado como uma manifestação recíproca entre pessoas por meio da palavra (BENINCÁ, 2010, p. 110), de modo que a palavra é a via pela qual o diálogo faz-se acontecer. Pretendemos encarar aqui o diálogo com vestes daquilo que Lipman (1995) denomina como o “paradigma reflexivo da prática crítica”, o que já foi alvo de estudos anteriores (FÁVERO et al., 2007) e circunscreve as práticas educacionais contrárias à Educação bancária, neoliberal, de empresariamento de si ou neotecnicista que já denunciamos. Esse paradigma compreende a educação, o conhecimento, como resultado direto das contribuições dos indivíduos em uma comunidade de investigação, como uma sala de aula, por exemplo, na qual esses resultados são obtidos conjuntamente no grupo como a orientação do professor. Nesse sentido, o objetivo da Educação amparada por esse paradigma envolve o desenvolvimento de uma compreensão e de um julgamento adequado das problemáticas propostas, estimulando o pensamento reflexivo dos alunos (FÁVERO et al., 2007).
As concepções de Lipman (1995) acompanham a crítica exarada por Freire (1981) em relação à Educação bancária, revestida hoje na Educação neotecnicista, na qual a formação de forma mecânica, acrítica, transforma meros sujeitos reprodutores e, portanto, sem liberdade. O sistema de dominação, por meio dessa forma de educação, implica tornar o subordinado mais fácil de ser coagido e adequado ao sistema, não havendo oportunidade para que ele possa pensar criticamente sobre a realidade que o cerca. A Educação dialógica quebra com essas barreiras de opressão, como prática da liberdade, humanizando o oprimido, instigando-o a pensar sobre os problemas que o cercam, identificando esses problemas como deles, e promover a busca por respostas, ou seja, construindo criticidade.
Entretanto, a concepção é um pouco distorcida no ambiente da sala de aula na relação professor/aluno por ser, não raras vezes, mal interpretada e desenvolvida de forma precária pela falta de uma metodologia voltada ao conceito enquanto uma ação dialógica. Dessa forma, torna-se problemático o emprego da prática dialógica na sala de aula, por isso é necessário que se aspire por uma mudança metodológica que seja refletida em grupo, pensando numa melhor forma de criar condições para a prática.
É preciso compreender, portanto, que “os sujeitos afetados pelo diálogo estão envolvidos de tal forma que juntos buscam o entendimento e constroem uma compreensão comum de mundo” (FÁVERO et al., 2007, p. 47) e que, por isso, estimular o espaço para que ele ocorra torna-se fundamental, tanto ao professor quanto ao aluno, os quais podem, dessa forma, prover o reconhecimento de si mesmos e construir conhecimento conjunto. A problematização em sala de aula, esquematizada pelo diálogo, contribui para pensar mais apurado em relação a uma situação e promover uma escolha de resultado comum de enfrentamento ao problema. No limite, o refletir, estimulado pelo diálogo, promove o pensamento de forma crítica de nós mesmos e da realidade que nos cerca, sendo, por isso, indispensável na contemporaneidade. Nesse sentido:
Enquanto falamos com os outros, vamos refletindo sobre o nosso próprio pensar e, no confronto de idéias, aprendemos a pensar num patamar superior, ou seja, o ato de refletir nos possibilita obter um pensamento lógico-abstrato, atingindo, assim um nível que nos permite desenvolver um pensar mais cuidadoso, criterioso, crítico e criativo
(FÁVERO et al., 2007, p. 53).
No entanto, é comum observar, na concepção dos professores no ambiente escolar, que qualquer tentativa de pensar uma aula voltada ao diálogo acaba em “folia” por parte dos alunos, dado o fato de que os professores concordam que os alunos não possuem a capacidade de ouvir e saber o momento de falar. Essa reclamação, em geral, é recorrente por parte dos docentes. Todavia, é possível perceber que, em média, os docentes da escola em questão têm a noção da importância do diálogo no ensino, como uma metodologia que favorecesse a captação do conteúdo por parte do aluno. Ao que parece, ainda paira sob o ambiente de sala de aula a concepção de que os alunos em geral não se interessam pelo diálogo. Benincá (2010, p. 113) evidencia a sala de aula como um ambiente privilegiado para estabelecer-se o diálogo, em função de seu espaço e tempo para dialogar, levando em conta que “cabe ao professor a iniciativa de desencadeá-lo [...], concebendo, para tanto, a sala de aula como um palco de debates e consumindo o tempo que passa nesse palco na alimentação e orientação desses debates”.
Contudo, é possível constatar que falta uma mudança prática de metodologia que tenha o diálogo como cerne da prática pedagógica na sala de aula. Igualmente, é de imensa importância lembrar que o diálogo faz-se entre homens, mediados pelo mundo e “se não amo o mundo, se não amo a vida, se não amo os homens, não me é possível o diálogo” (FREIRE, 1981, p. 94). Em outras palavras, é preciso nutrir-se de esperança nos docentes, nos alunos, na escola como um todo, para que haja diálogo, em vista de que nenhum destes é autossuficiente, e sim partes de um todo em processo contínuo.
2. O conceito de diálogo como princípio ético da prática pedagógica
O diálogo é, sem dúvidas, parte inerente da prática pedagógica, uma vez que sem ele não se tem prática pedagógica. No âmbito da teoria, há situações de relação de aproximação desses dois conceitos, no entanto eles não devem ser tomados como sinônimos no que se refere à prática. “Assim como o diálogo é pedagógico, a pedagogia seria também dialógica” (BENINCÁ, 2010, p. 180), entretanto, a Pedagogia pode servir tanto ao diálogo quanto ao antidiálogo. Em melhores palavras, é possível que a prática pedagógica leve em conta princípios que sejam voltados à prática dialógica, assim como pode optar por princípios que levem ao autoritarismo, nesse caso, a negação ao diálogo. Onde a ética entra nisso? Assim como qualquer outra profissão, ser professor implica a adoção de uma postura ética, que vise a princípios que regem a prática profissional. E por que não ser o diálogo um princípio ético?
Antes mesmo de indicar o diálogo como uma possibilidade, é necessário que se tenha uma visão contextualizada da instituição escolar como uma fonte de poder. A relação estabelecida entre professor/aluno no contexto escolar é tratada como hierárquica, dado ao fato de o professor ser visto como uma figura de autoridade com relação ao aluno. Nesse sentido, é importante salientar que a escola, mesmo com a tentativa recorrente de modernização, ainda é uma instituição que opera de modo tradicional, tendo uma visão engessada de autoridade máxima do professor em relação ao aluno, já pressupondo a inexistência de um ambiente aberto à troca de ideias (FAVERO; DALQUIAVON; FARIA, 2020). Trata-se de polos distintos, em que um possui primazia em relação ao outro em determinadas situações. Isso ocorre de forma natural na escola, dado que “a instituição, na medida em que estabelece a diferença entre professor e aluno, caracteriza a desigualdade entre um e outro e impõe ao primeiro a investidura da autoridade” (BENINCÁ, 2010, p. 182). O trecho explicita que há uma disparidade entre professor e aluno na sala de aula, o que torna conflituoso instaurar o diálogo, na medida em que rompe com tal relação de autoridade do professor no ambiente escolar.
A tentativa de pensar o diálogo como um princípio ético da prática pedagógica não significa diminuir a importância do papel do professor na sala de aula, mas melhorar sua relação com o aluno e dar sentido ao seu fazer. Exige profunda reflexão de si e de suas ações enquanto educador, dado o fato de que a prática dialógica não se estabelece tão rapidamente, tratando-se de um processo que deve ser reflexivo. De todo modo, o professor deve, primeiramente, desmistificar a concepção de que todo o seu conhecimento é verdadeiro e imutável, criando abertura para dialogar com os alunos. A mudança para uma postura que vise a princípios éticos no fazer do professor tem de levar em conta a disparidade que há na relação professor/aluno, buscando uma forma de dialogar, objetivando condições subjetivas de igualdade, meio para que, mesmo na disparidade, seja possível a troca de saberes. Isso só ocorre por intermédio do diálogo.
Sobre esse ponto, é preciso considerar também que, para a promoção do diálogo, “o professor não deve apresentar-se como a ‘fonte de informação’ ou a ‘autoridade do conhecimento’, pois com isso estaria ‘minando’ a noção de ‘comunidade de investigação’” (FÁVERO; CENTENARO, 2017, p. 41). O docente, ao instituir o pensar na escola enquanto um processo de criação de uma comunidade de investigação e diálogo, deve colocar-se na posição de coprodutor de conhecimento com o aluno, para além de uma visão autoritária ou superior. Nesse sentido, toda essa construção dialógica, em busca de um conhecimento coletivo e implemento do pensar, pode também contribuir para o “fortalecimento de processos democráticos nas escolas, tanto na investigação filosófica, quanto na busca de padrões éticos e responsáveis em conjunto com as crianças e jovens” (FÁVERO; CENTENARO, 2017, p. 43).
É indispensável, todavia, que não sejam levados em conta os inúmeros obstáculos para pensar no diálogo como princípio ético na prática pedagógica. É necessário que os docentes tenham uma concepção clara acerca dos princípios éticos que norteiam sua prática pedagógica para que possam, com base neles, refletir acerca da possibilidade do diálogo. Não obstante, é necessário tempo para que o façam. Vem sendo instaurada nas escolas uma espécie de burocratização da Pedagogia, na qual o professor acaba utilizando o seu tempo pedagógico, de pesquisa ou até mesmo de lazer para dar conta de processos burocráticos, fora as demais atividades que englobam a ação pedagógica, como elaborar aulas, avaliações, notas de trabalhos, chamada etc., e, ainda assim, prestar contas do rendimento de seu tempo (MASSCHELEIN; SIMONS, 2013, p. 142). Há necessidade de que o professor disponha de um tempo destinado à reflexão de seu fazer, visando a uma melhora no modo como estabelece suas aulas, ressignificando sua prática pedagógica.
Toda ação humana deve, ou deveria ser refletida. A ação refletida, mais precisamente denominada de práxis, é entendida como “a reflexão e ação dos homens entre si, buscando construir o mundo e transformá-lo num contexto de convivência solidária” (MÜHL, 2011, p. 14), e isso demanda tempo. O tempo disposto à reflexão é indispensável na prática pedagógica, tendo em vista que o docente deve dispor de um momento para pensar suas práticas, suas ações, sua postura. A concepção de que é essencial para o fazer docente um tempo para reflexão deve ser presente no âmbito escolar, na medida em que ele deve dispor de um tempo para debates, conversações, reflexão conjunta etc.
3. A prática dialógica como possibilidade de superação da Educação Bancária
Até este ponto do texto, destacamos como a adoção do diálogo como princípio ético pode facilitar a prática pedagógica e ultrapassar a forma de Educação autoritária que tem sido o modelo regente da relação professor/aluno, denominada de Educação Bancária. Buscando uma possível solução que intenta superar essa concepção, apostamos no diálogo como meio de alcançar a Educação libertadora apontada por Freire em suas obras. Segundo Cunha (2003, p. 45), “o educador transmite conhecimentos acumulados e selecionados, prescreve condutas, dirige a reflexão acerca do homem e do mundo. Ao mesmo tempo, o educador forma seus educandos através de sua conduta, da forma como procede”. Por conseguinte, faz-se necessário que a dimensão ética esteja atrelada ao que concerne à relação professor/aluno, como instigar o aluno a ter uma postura ética, assim como o professor, diante do estudo. Portanto, o conceito de diálogo freireano enquanto prática é tomado como uma possibilidade de superar a Educação Bancária na sala de aula. No entanto, de que forma é possível estabelecer o diálogo em sala de aula?
Ao longo de algumas de suas obras, especialmente na Pedagogia do Oprimido, Freire (1981) busca denunciar o modelo bancário de Educação, como visto nos tópicos anteriores. Toda a preocupação freireana relacionada à Educação tem, como pano de fundo, a noção de humanização de indivíduos por meio da palavra. O pronunciamento do mundo sempre foi, para Freire, a ação humana mais louvável. O professor que consegue ensinar o aluno a pronunciar o mundo e aprender junto a ele é o que Freire denominava de educador-educando, dialógico e problematizador. Ao mesmo tempo em que ensina, o educador-educando aprende com seus alunos, diferentemente do educador-bancário, que vê seus alunos como meros objetos, ouvintes acríticos. O diálogo emerge com a função primordial de ser o modo de comunicação e pronunciamento do mundo entre os homens. É no confronto de ideias que surgem homens que se sentem “sujeitos de seu pensar” (FREIRE, 1981, p. 141), pois o diálogo deve ser problematizado e posto em confronto com outras visões de mundo. Esse é o cerne da proposta freireana para superação da concepção bancária de Educação, investindo no diálogo, na medida em que a “dialogicidade empresta relevo para a compreensão de que é por meio da palavra atuante e reflexiva que os homens se constituem, se formam, se inserem no mundo” (CUNHA, 2003, p. 148).
A prática dialógica como uma metodologia na escola pouco é desenvolvida, devido ao fato de tirar da zona de conforto, colocando o ensino à prova. Isso gera certo temor tanto para o professor quanto para o aluno. O confronto fruto do diálogo é, para Freire, o momento no qual se dá o conhecimento, que se faz pela troca. O professor que opta pela prática dialógica em suas aulas não pode pensar que o diálogo vai se constituir de forma imediata. O diálogo sempre implica certa resistência em se pronunciar e expor ideias. É necessário captar o momento em que se torna possível dialogar com as partes.
Assim, concebemos que estabelecer o diálogo na sala de aula é uma tarefa possível de ser realizada, segundo Benincá, devendo ser uma função do professor encorajar o aluno a dialogar, envolvendo o conteúdo e as suas vivências (BENINCÁ, 2010). Tendo em vista a função do professor em auxiliar o aluno a pronunciar o mundo por meio do diálogo, identificamos, com base na observação dos professores da Escola X, com relação ao ambiente de sala de aula favorável ao diálogo, certo medo de buscar novas metodologias que propiciem uma interação mais dialógica com os alunos.
Como referido já no início deste estudo, o método de abordagem escolhido foi a observação participante, cujo processo consiste na inserção do participante no local, no grupo, no objeto de estudo declarado, para que faça parte dele e vivencie a experiência estudada como se fosse parte atuante dele. Consideramos que essa metodologia é de grande valia para observação do exercício do diálogo em ambiente escolar enquanto tarefa possível e executável. Assim, é preciso descrever que a Escola X localiza-se em bairro central de uma cidade de médio porte no interior do estado do Rio Grande do Sul, sendo uma escola pública de Ensino Básico, que possui turmas do fundamental I e II que conta com cerca de 440 alunos, atuando nos turnos de manhã e tarde. A observação deu-se no primeiro semestre do ano de 2019.
Os encontros foram realizados, primeiramente, com a equipe gestora da escola, da qual obtivemos informações sobre quais são os momentos de reflexão dos professores, como são aplicados os princípios éticos que a escola busca desenvolver e de que forma é compreendido o conceito de diálogo no ambiente escolar bem como a sua importância. Em um segundo momento, os encontros foram direcionados aos professores dos Anos Finais da escola, os quais, de imediato, apresentaram certa timidez em dialogar a respeito do assunto, por julgarem que não compreendem do que se trata o conceito de diálogo. Mesmo com certa timidez, pudemos observar situações que elucidaram, de certa forma, o misto de vontade em promover o diálogo com a frustração de não conseguir manter uma aula dialógica sem virar “bagunça”. A escola, vista de modo geral, segue uma organização tradicional, tendo grande prestígio na comunidade na qual está inserida por manter tradições e hierarquia no modo como conduz o funcionamento escolar.
Tendo em vista tais aspectos, foi possível perceber que a primeira reação quando se comenta sobre a temática é de espanto ou surpresa. Assim que buscamos identificar ou observar a concepção e o exercício do diálogo na sala de aula nos encontros com os docentes, houve um certo ar de preocupação, um temor, uma mudança de feição. Muitas vezes, essa busca serviu de estopim para encerrar o diálogo. Essa reflexão evidencia como o conceito de diálogo ainda é sombrio no âmbito escolar, por se ter uma concepção vaga do que se trata o conceito e de sua viabilidade de fato. Quando se procura investigar a viabilidade do diálogo em sala de aula, muitas das reações são negativas. Notamos também que muitos dos professores parecem confundir o diálogo com conversação. Por vezes, em nossas análises participativas, observamos que o professor parece pensar que está promovendo diálogo na sala de aula quando, na verdade, trata-se de uma simples explanação de opiniões em que não há troca, somente afirmativas.
Durante as observações feitas na Escola X, foi possível perceber que a instituição preza por esse tempo de troca e reflexão. É de comum acordo que há momentos destinados a isso, geralmente no período de formações e reuniões pedagógicas. Existe a importância de o docente dispor de um tempo de troca com seus pares e refletir consigo mesmo, enquanto educador, sobre suas práticas e metodologias. Caso não aconteça nesse momento, há uma perda de sentido no fazer diário do docente, que se torna algo mecanizado, mera narrativa e reprodução. Todavia, no espaço de sala de aula com os alunos, o que ocorre é que não se oportunizam espaços para que haja diálogo nem temáticas que possibilitem uma reflexão mais aprofundada. A narrativa de que propor uma aula diferente que vise a uma ação dialógica traria brigas em sala, pois os alunos são jovens que possuem opiniões diferentes e, por vezes, não possuem a capacidade de ouvir os demais colegas, acaba sendo contraditória, dado ao fato de que, se houvesse uma espécie de contrato social entre os alunos, um preparo anterior à atividade, o diálogo seria efetivo como uma estratégia didática para desenvolver a capacidade de escuta e empatia entre os alunos. O fato é que tal preparo exige que o professor também tenha a capacidade de ouvir o aluno e adentrar seu universo cultural para descobrir do que seu aluno gosta, de qual comunidade ele faz parte, quais são os seus valores familiares e condições sociais etc. Inúmeras vezes a recusa ao diálogo vem do próprio professor, que, como portador do conhecimento, julga não ser necessária essa troca dialógica. É relevante destacar que, mesmo que a instituição disponha de um tempo de reflexão da prática pedagógica e de princípios éticos que norteiam o fazer docente, não há garantias de que este será feito visando à melhoria e à qualidade. Por isso, é importante que se tenha clara a necessidade de um tempo de reflexão dos seus alcances.
Outro fato observado na escola, quando levantado o assunto sobre o tempo disposto para pensar práticas pedagógicas que objetivem uma ação dialógica, foi a percepção de que os conceitos de diálogo e as práticas que visem especificamente à ação dialógica são raras vezes abordadas nesses momentos. Em geral, o diálogo é trabalhado somente em situações de conflito ou intervenções em que ele seja uma solução viável. Esse ponto demonstra como a falta de desenvolvimento do diálogo enquanto princípio ético na escola acaba sinalizando um dos principais motivos para uma concepção precária do conceito de diálogo nesse ambiente. Portanto, é de suma importância que momentos destinados à reflexão de ações pedagógicas abarquem os princípios éticos norteadores da prática pedagógica, procurando aportar uma maior compreensão de conceitos, como o de diálogo como possibilidade, seus alcances e limites.
Há a possibilidade de estabelecer uma prática dialógica de qualidade apostando na superação da concepção bancária de Educação, mas acreditamos, que antes de pensar nessa viabilidade, é necessário um trabalho formativo para tal. É de suma importância que se retome a teoria visando à melhoria na prática, clarificando metodologias e mostrando que elas são possíveis dentro de certas condições. Há necessidade de um esforço coletivo, uma mudança de postura, para transformar a Educação em uma prática libertadora.
Considerações finais
A pesquisa busca evidenciar o conceito de diálogo enquanto um princípio ético que possui extrema importância para pensar a Educação no cenário atual brasileiro. Levantando aspectos denunciados por Paulo Freire (1981), de uma Educação dita bancária, sinalizamos a prática dialógica como uma possibilidade de superação da concepção de Educação que visa somente à mera reprodução de conteúdo. Portanto, é possível afirmar, com base nos desdobramentos feitos no texto, que há, de fato, certa dificuldade por parte dos docentes da Escola X em exercer o diálogo como princípio ético, dado ao fato de eles disporem de uma concepção ainda vaga do conceito, inviabilizando a sua prática, mesmo dispondo de tempo para refletir sobre sua prática pedagógica em sala de aula, bem como os princípios éticos que norteiam o fazer docente.
Contudo, consideramos que o alcance da pesquisa ainda não está esgotado, na medida em que há possibilidade de propor práticas dialógicas que apontem uma maior interação entre professor/aluno, amenizando imposições autoritárias no ambiente escolar. É necessário fazer uso dos dados coletados como uma maneira de ressignificar o papel do professor assim como fomentar o debate acerca de princípios éticos que devem ser assumidos pelos docentes em seu fazer diário.
Em tempos marcados pelo ataque à Educação pública, pelo desrespeito aos professores e pela imersão violenta das políticas neoliberais na Educação, apostar no diálogo como princípio ético e possibilidade de problematizar os desafios educacionais contemporâneos pode mostrar-se promissor para construir processos formativos libertadores. No entanto, tal intento não será exitoso se não houver, de um lado, políticas públicas que fortaleçam a escola pública de qualidade e, de outro, urgência de processos formativos dos próprios professores para que possam sentir-se protagonistas de suas práticas e construtores de projetos pedagógicos que tornam o diálogo investigativo uma prática cotidiana.