Nota de abertura
Este texto situa-se no âmbito de um projeto de pesquisa em que visa discutir as condições de proveniência e emergência dos discursos em dissertações e teses defendidas em Programas de Pós-Graduação em Educação sobre o brincar das crianças em tempos digitais e perscrutar os dispositivos agenciados por tais discursos e seus potenciais efeitos. Desse modo, este ensaio é resultado do primeiríssimo esforço empreendido com o objetivo de compreender os modos com que historicamente as brincadeiras foram se estabelecendo com funções educacionais na modernidade. Para tanto, elegemos para análise Friedrich Fröebel, conhecido como pioneiro do uso educativo das brincadeiras para a educação na infância. Sua teoria inspirou muitas práticas nas instituições de Educação Infantil do século XIX no Brasil.
Esse tipo de exercício nos parece importante para compreender como, nos discursos modernos, foi se naturalizando a defesa benéfica do brincar relacionada ao desenvolvimento cognitivo da criança. Nas palavras de Kishimoto (1998a, p. 61), “[e]mbora não tenha sido o primeiro a analisar o valor educativo do jogo, Fröebel foi o primeiro a colocá-lo como parte essencial do trabalho pedagógico, ao criar o jardim de infância com uso dos jogos e brinquedos”.3 A partir disso, destacamos que nossa intencionalidade aqui não consiste em realizar um juízo de valor sobre as concepções de Fröebel ou ponderar sua pertinência ou não, mas trata-se de uma tentativa de compreender de que modo foram produzidas, como se disseminaram e quais práticas se originaram em relação ao uso do brincar para finalidades educacionais.
De acordo com Brougère (2004), diante de práticas e sugestões, é possível considerar brincadeiras e jogos como ferramentas da sociedade contemporânea. Em termos do impacto das práticas sobre o que deve ser feito, elas podem ser consideradas frutíferas, porque executam modelos, direções, melhorias e operações para educar os indivíduos e seus corpos. Os discursos se proliferam e mudam de foco e temática, produzindo impactos contínuos nas crianças. Assim, os discursos pedagógicos devem ser vistos como resultado de uma operação constitutiva, produtora de sujeitos, quando estes constroem e modificam as experiências consigo mesmos e com os outros. Desse modo, percebemos que o sujeito infantil, no interior do dispositivo pedagógico que envolve teorias e práticas, se produz e é produzido.
Na primeira parte, apresentamos Friedrich Fröebel e seus preceitos educacionais, destacando que as escolas são instituições que se dedicaram (e se dedicam) a difundir que o brincar e os jogos são educacionais. Em seguida, encaminhamos uma análise foucaultiana de tais preceitos, apontando o brincar como mecanismo de controle do espaço, do tempo e do corpo em Friedrich Fröebel. Por fim, tecemos uma tentativa de pensar o brincar como forma de resistência a formas disciplinadoras, mostrando que, onde há poder, isto é, modos de conduzir o brincar como algo que tem finalidade pedagogizante, existe resistência, o brincar como ato de fruição, sem utilidade; uma despedagogização do ato de brincar.
Fröebel e sua Educação pelo brincar
Friedrich Wilhelm August Fröebel (1782-1852) foi um alemão que, na primeira metade do século XIX desenvolveu o Kindergarten, Jardim de Infância, cujas ideias foram executadas em diversas partes do mundo, incluindo o Brasil. Jardim de infância faz referência a uma comparação de Fröebel da criança como uma planta, que necessita de cuidados para se desenvolver, e as jardineiras (professoras) são pensadas, nessa lógica, como as regadoras desse jardim. O pensador compreende a mãe como a primeira educadora nata da criança, que de forma afetiva e paciente educa o filho, desempenhando um papel decisivo ao realizar atividades que explorem as potencialidades. Nas suas palavras: “[a]s mães devem intervir nos jogos, assim como o pai deve observá-los e vigiá-los. [...] Toda a vida futura do homem – até seus últimos passos sobre a terra – tem sua raiz nesse período” (FRÖEBEL, 2001, p. 48).
Sob influência do romantismo, Fröebel parte dos princípios de Rousseau, Pestalozzi, Schiller, Scheelling, Krause, Fichte e Richter para construir um arcabouço teórico próprio com sugestões práticas. Tendo em vista a necessidade de um novo ordenamento social, houve uma aceitação integral dos seus jardins de infância, tendo vista sua função constitutiva e formadora. A partir das ideias de Fröebel, pode-se perceber como sua compreensão das crianças e da educação estabeleceu regimes de verdade sobre como a educação deveria ser organizada e como deveria acontecer. Sob esse aspecto, Foucault (1971/2002a) compreende que os discursos se situam na ordem das leis e estão relacionados ao desejo de poder, nesse caso, dos adultos diante das crianças (e ambos estão perpassados por relações de poder). Assim, as grandes modificações científicas, como, por exemplo, a visão de criança apresentada pelo romantismo tendo como sustentação a Psicologia, podem ser entendidas como o surgimento de novas formas da vontade de verdade.
Vários relatos biográficos publicados ao longo do século XX relatam que Emília Faria de Albuquerque Erichsen abriu o primeiro Jardim de Infância particular no Brasil em 1862, na cidade de Castro, estado do Paraná, baseando-se na Pedagogia de Fröebel (NASCIMENTO, 2006). O primeiro Jardim de Infância público do Brasil, por sua vez, foi estabelecido por decreto, vinculado à Escola Caetano de Campos em São Paulo, e nasceu no modelo educacional de Fröebel em 1896. Inicialmente, foram acolhidas, no Jardim de Infância anexo à Escola Normal, 102 crianças entre 3 e 7 anos de idade (KISHIMOTO, 1988; ARCE, 2002). A partir da experiência educacional no Brasil baseada na teoria de Fröebel, dos Jardins de Infância, percebe-se que se destacava a necessidade de dar um novo valor à infância, entretanto as práticas e atividades do Jardim de Infância deveriam, em alguma medida, controlar as crianças, tornando-as obedientes e disciplinadas, atuando sobre elas para produzir o comportamento desejado (ARCE, 2002). De acordo com Foucault (1978/2001a), os regimes de verdade se apoiam nas instituições.
Ainda que se declarasse a bondade da criança, era necessário cuidar e velar para garantir que seu espírito não fosse corrompido e exercitasse seu corpo e espírito conforme a ordem moral. Para tanto, Fröebel (2001, p. 28) elegeu Jesus Cristo como um modelo a ser seguido:
Só o impulso interno, o espírito, a vida de modelo devem ser imitados, deixando sempre livres a forma manifestação. [...] Essa vida exemplar deve ser reproduzida em todos os homens de maneira que cada um se converta também em um modelo para si mesmo e para os demais, manifestando-se segundo a lei eterna, com liberdade, vontade e determinações próprias.
Fröebel, vivendo em uma sociedade moderna em plena expansão, testemunhou desenvolvimento da ciência, gerando influência nas suas ideias para a educação das crianças. Procurou enfatizar o pleno desenvolvimento humano de forma abrangente e, num entendimento que se convencionou chamar de romantismo, marcado por características ideológicas, enxergava as crianças com um valor positivo, como portadoras do melhor que poderia existir no mundo natural, mas que estariam sendo corrompidas pela sociedade. Dessa forma, o romantismo promoveu a ideia de que a criança tem espontaneidade, liberdade, que as brincadeiras e os jogos seriam a melhor maneira de expressão e de educação. Percebe-se a intenção de promover uma educação voltada para uma infância idealizada, reconhecendo na criança o vir a ser, investindo ostensivamente, sendo os Jardins de Infância utilizados pelo seu potencial efetivo da reforma moral (KUHLMANN JR., 1998).
Esse tipo de investimento nas crianças está enraizado no discurso que as colocam no centro do processo que irão realizar e no centro das atividades que realizam ou poderiam realizar, inserindo-as em um discurso que as valoriza e que seja igualmente construído. Nas palavras de Brougère (2001, p. 90) “[f]oi preciso, depois de Rousseau, que houvesse uma profunda mudança na imagem de criança e de natureza, para que se pudesse associar uma visão positiva às suas atividades espontâneas”, entre elas, as brincadeiras e os jogos. A formação de Fröebel em Filosofia e Ciências Naturais influenciou consideravelmente na sua pedagogia, na medida em que insistiu na importância de trabalhar com as crianças a harmonia que seria concretizada nos dons. Acreditava no pressuposto da unidade e da conexão, insistindo na relação entre homem, natureza e Deus, na qual os brinquedos e os jogos teriam a função de intermediário, possibilitando que as crianças externalizassem seu interior (KISHIMOTO, 1998a). Para isso, a função da escola seria de
[...] dar ao menino o conhecimento e a consciência da natureza e da vida interna das coisas e de si mesmo; ensina-existem entre as coisas, as relações dessas com Deus, fundamento vivo, unidade consciente de todas elas. Assim, a finalidade do ensino consiste em fazer com que o aluno se dê conta da unidade de todas as coisas e de que todas existem, descansam e vivem em Deus [...]
(FROEBEL, 2001, p. 86).
Fröebel, portanto, seria um grande promotor de uma visão de criança como ser criativo e ativo, que desenvolve a autoconsciência com a ajuda do adulto. Postulava a união entre interiorização e exteriorização: “[e]xteriorizar o interior, interiorizar o exterior, unificá-los ambos, é essa a fórmula geral do destino do homem” (FRÖEBEL, 2001, p. 43). Percebe-se como o seu pensamento estava em sintonia com a abordagem de Rousseau no que diz respeito ao modo de perceber a criança e educá-la. Com suas origens rousseaunianas, Fröebel é o pensador que melhor caracteriza e relaciona as práticas educativas às crianças de pouca idade. Ao se referir à necessidade de externalizar qualidades infantis, como gentileza e harmonia, sugere usar o brincar e o jogo enquanto princípios educativos. Assim, Fröebel contribuiu na disseminação de discursos que vinculam infância às brincadeiras, aos jogos e ao desenvolvimento, movimentando experiências voltadas para a normalização dessas relações e práticas, bem como na regulação das crianças. Ao sugerir diversos materiais, cujo uso era restringido por práticas previamente estabelecidas, o pensador iniciou uma série de novos controles sobre o espaço, o tempo e as atividades que passaram a fazer parte das instituições de Educação Infantil.
Para fins metodológicos, a Pedagogia de Fröebel defendia que o trabalho com brinquedos e jogos, por mostrar-se como atividades oriundas do universo infantil, possibilitaria que a criança se expressasse espontaneamente e seria útil para a educação. Suas ideias são relevantes para reconhecer a conexão entre a imagem da criança construída pelo romantismo e a infância posteriormente construída pela Psicologia como representação da idade do brincar. Possibilitou, por meio do seu sistema de Educação Infantil e muitos outros que se embasaram nele, a ideia de educar crianças pequenas por meio de brincadeiras, jogos e outros materiais lúdicos, amenizando, desse modo, a participação acentuada do adulto. Nesse sentido, o mundo externo proporcionaria a formação e o desenvolvimento, que deveria ser internalizado pela criança em um processo contínuo, das coisas mais simples às mais complexas, do concreto ao abstrato. Nas suas próprias palavras:
O ensino, assim como o educador mesmo, deve apresentar o individual e o particular como geral, e o geral como particular e individual, comprovando-os na vida; deve exteriorizar o interior e interiorizar o externo e mostrar a necessária unidade de ambos; deve considerar o finito em seu aspecto infinito, e o infinito em seu aspecto finito, fazendo ver como um e outro se unem na vida; deve contemplar o divino no humano, e a essência do homem em Deus, tendendo a que na vida se manifestem justamente
(FRÖEBEL, 2001, p. 30).
Suas representações dão ênfase para o papel da ação nessa mediação, ou seja, do aprender fazendo. Outro aspecto muito presente nas ideias de Fröebel é a divindade enquanto modelo da busca humana pela perfeição. A orientação para os educadores é que estes encaminhem as crianças para uma vida santa e pura, pois a infância enquanto fase mais importante da vida, contém os germes de pureza e bondade (ARCE, 2002). Para concretizar esses preceitos, Fröebel propôs objetos, ou seja, dons, por meio dos quais, a partir de diversas modalidades de atividades, desenvolveriam o que acreditava haver de inato na criança.
Fröebel criou o Fröbelgaben, conjunto de instrumentos pedagógicos de formas geométricas. Fröbelgaben foi traduzido para o inglês como gifts, em espanhol como regalos e em português como dons, que seriam os brinquedos educacionais como dádivas com dois sentidos: eles poderiam ser presentes para crianças bem como ferramentas para que os adultos identifiquem os dons das crianças. Sua filosofia é de que as crianças cultivassem o estilo de vida com a natureza, o conhecimento e a beleza. Cada dom abriria possibilidades para esses três eixos e todas as atividades eram desenvolvidas em forma de brincadeiras. Eram os brinquedos e materiais para ajudar as crianças a se desenvolverem. Assim, Fröebel elegia os brinquedos e os jogos como exercícios de construção, como principais ferramentas de expressão e desenvolvimento infantil. Na proposta de Fröebel, os dons representam o que ele denominava de materiais, ocupações, atividades com os dons sob orientação de uma jardineira, os jogos enquanto atividades livres com os dons e os brinquedos para as atividades de imitação livre. Nesse âmbito, Fröebel começa a defender a necessidade da existência de regras para os jogos e de seus materiais que representariam estruturas perfeitas, como cubos e bolas (KISHIMOTO, 1998a).
Esses objetos, juntamente com as combinações e as atividades propostas, constituíram os principais materiais didáticos utilizados por Jardins de Infância em todo o mundo. Contudo, a apropriação da teoria de Fröebel se deu de maneiras diferentes em cada país, de acordo com os interesses de seus organizadores. De acordo com Kishimoto (1998a, p. 57), embora Fröebel tenha desejado a expressão da natureza infantil por meio de brincadeiras espontâneas, “[...] relatos da prática pedagógica froebeliana emolduram um quadro mais próximo da coerção, de jardineiras comandando a conduta infantil a partir de orientações minuciosas, destinadas à aquisição de conteúdos escolares”.
Segundo Kishimoto (1998a), as atividades eram tediosas, de adestramento, conduzidas pela orientação e pela autoritariamente das professoras, que revelavam a superioridade em direcionar instrutivamente o ensino e o uso dos jogos. Na primeira experiência pública de Educação Infantil no Brasil, predominou o uso de materiais (ocupações, sempre por meio da orientação da “jardineira”, professora). O trabalho com os dons e as ocupações por meio da supervisão da jardineira “[...] enquadra-se na categoria de meios e instrumentos da educação, enquanto as brincadeiras livres representam o poder que a criança dispõe de conquistar a natureza” (KISHIMOTO, 1998a, p. 71).
Kishimoto e Pinazza (2007, p. 57) afirmam que a relação do jogo com a primeira infância situado por Fröebel não o considera “[...] um material para ‘aquisição de conteúdos’, mas para exploração livre e espontânea”. Contudo, a valorização das ações conduzidas pelas próprias crianças, conforme afirmado por Fröebel, se perdeu, o que “[...] levou a maior parte das experiências a uma pedagogia mecanicista e repetitiva” (KISHIMOTO; PINAZZA, 2007, p. 59). Nessa perspectiva, autores como Kishimoto (1996) e Pinazza (1997) compreendem que, nas próprias instituições desenvolvidas por Fröebel, o papel das brincadeiras como meio de desenvolvimento simbólico foi negligenciado. Essa questão se espalhou na maioria das instituições infantis em que, na prática pedagógica, predomina o direcionamento do professor. Essa questão é, em parte, explicada pelo fato de o Brasil ter copiado o modelo teórico americano Fröebel, que é centrado no uso instrumental dos dons, permitindo que os professores atuem como organizadores, como proponentes e como condutores das atividades. De acordo com Kishimoto (1998b), a experiência com os Estados Unidos é a base para a criação dos Jardins de Infância brasileiros, nos quais os jogos supervisionados também são encorajados, incentivando o controle e a uniformização das práticas nas instituições.
No Brasil, como em outros países do mundo, na aplicação da teoria de Fröebel não foi efetivada a ideia de tornar brincadeiras e jogos usados pelas crianças uma oportunidade de ação espontânea e livre, portanto sua aplicação ficou incompleta (ARCE, 2002). Pela experiência do Jardim de Infância da Caetano de Campos/SP, por exemplo, espalharam-se muitas outras instituições de Jardim de Infância no Brasil, que, apesar de sustentar até os dias atuais a ideia de privilegiar as brincadeiras no trabalho com a primeira infância, na verdade utilizam instruções para operá-las, descaracterizando o sentido do brincar (KISHIMOTO, 1996).
De acordo com Kishimoto (1996), a valorização do modelo escolar que se inseriu nos Jardins de Infância se sobrepõe ao jogo simbólico e às possíveis contribuições para o seu desenvolvimento, pois tem, na sua centralidade, a utilidade da brincadeira no seu uso instrumental, no disciplinamento e no adestramento de corpos e espíritos. A pesquisadora aponta que as teorias nem sempre são apropriadas adequadamente. Em relação a Fröebel, o que acabou ganhando espaço nos Jardins de Infância foi a ideia dos dons, que serviram para ensinar por meio de brincadeiras e jogos. Assim, deixou-se de lado, nas ideias de Fröebel, que, enquanto ação coordenada e uso diretivo dos dons, tal instância estimularia o agir livre das crianças. Como assinala Bujes (2002a, p. 65), os pressupostos de Fröebel sobre as crianças e seus princípios educativos podem ser encontrados nas pedagogias modernas para a infância e nos preceitos da Psicologia, isto é: “a visão de uma essência infantil positiva, uma ideia melhorista do desenvolvimento, a espontaneidade da progressão intelectual, o ideal de liberdade nas práticas com a criança pequena”.
Bujes (2002a) situa Fröebel como representante da Escola Nova com seus propósitos de pedagogia científica, cujo objetivo era o controle interno e não mais o externo, como anteriormente. Fröebel, utilizando-se da concepção romântica e dos dons das crianças, posiciona a tendência da Escola Nova como influência marcante na Educação Infantil escolarizada que estava emergindo, oferecendo novas técnicas, métodos, materiais e modos de utilizá-los na educação das crianças. Aqui podemos identificar a compreensão das brincadeiras e dos jogos que marcaram o século passado. Nas práticas adotadas por Fröebel e seus seguidores, é possível identificar a atenção aos detalhes, às pequenas coisas, sendo o principal traço de sua teoria. Além disso, as brincadeiras, os jogos, as atividades e os materiais indicados faziam parte de um discurso educacional que se reforçava e se intensificava no cenário educacional (BROUGÈRE, 2003).
O movimento da Escola Nova ajudou a estabelecer e sedimentar a modernidade da educação, incluindo as brincadeiras e os jogos. Com base na Psicologia, a educação moderna apresenta uma justificativa quase biológica (natural) para o papel do brincar e do jogar nas escolas, abrindo espaço para satisfazer as crianças e sendo pensada como valor educacional. Nas palavras de Brougère (2003, p. 136), “Fröebel incorporar-se-á fácil e retroativamente a esse movimento: liberdade, atividade, espontaneidade, naturalismo e individualização descrevem perfeitamente a atividade lúdica que não é mais considerada uma recreação [...]”.
Isso mostra como os enunciados da Psicologia moldam o discurso pedagógico, o que Foucault (1969/1995) caracterizou de campo de concomitância, ou seja, suas colocações são aceitas para o raciocínio e válidas como um construto de analogia. Assim, as estratégias de reforço e descentralização descrevem “[...] o papel desempenhado pelo discurso estudado em relação aos que lhe são contemporâneos e vizinhos [...]” (FOUCAULT, 1969/1995, p. 74), que podem ter uma relação complementar com outros discursos. Com essa compreensão, as instituições de ensino, em implantação e constante expansão, começam a investir em atividades práticas, inserindo as crianças no centro das atividades. Servem a esses propósitos as brincadeiras e os jogos, porque fazem parte de um ambiente de liberdade, voluntariedade e diversão.
O brincar como instrumento de controle do espaço, do tempo e do corpo
Um dos aspectos mais recorrentes nas proposições de Fröebel é a atenção contínua aos limites do espaço e do tempo, o que se reflete no horário compartimentado no Jardim de Infância e nas divisões espaciais definidas para desenvolver as atividades de cada grupo etário. O controle do espaço e do tempo pelas instituições educacionais da modernidade recebe destaque devido ao seu potencial regulatório, tendo impacto nas crianças, permitindo-lhes agir em distintos momentos e lugares. Nas instituições educacionais, a vida das crianças é dividida em horários rígidos, sob vigilância contínua, em um mesmo espaço controlado e delineado. Segundo Foucault (1975/2002b), a partir do século XVIII, a organização e o controle do tempo e do espaço possibilitaram dividir, modificar, transformar.
A partir dessa ideia, a escola passa a pensar sobre os momentos de brincadeiras livres e percebe que as crianças não podem estar totalmente livres, precisando ser vigiadas. Para isso, têm-se os jogos educacionais, por meio dos quais os professores ensinam mesmo que as crianças não saibam, pois “é preciso que, sem ter consciência disso, ela se desenvolva enquanto se diverte” (BROUGÈRE, 2003, p. 111). Brougère (2003, p. 112) entende o jogo educativo como “agir, aprender, educar-se sem saber através de exercícios que recreiam, preparando o esforço do trabalho propriamente dito”. Os exercícios educacionais passam a ser denominados de jogos educativos. Nesse sentido, parece-nos não haver um brincar propriamente dito, mas um jogo com a finalidade de aprender “sem sentir” que está aprendendo. Gradualmente, as instituições educativas foram percebendo o valor dos jogos educativos para a aprendizagem e o controle das crianças. Nesse processo, o brincar passou a ser institucionalizado nas escolas, mas necessitaria ser contemplado com objetivos e conteúdos. Trata-se da escolarização do brincar!
O ajuste do tempo institui durações, suprime irregularidades e economiza nos esforços, apresentando uma ideia de tempo que é virtuoso e benéfico. O tempo opera aqui como agente das forças, e a duração das ações deve possibilitar que os sujeitos atuem na região de ação do outro. O espaço também faz parte do aparelhamento regulatório institucional, dividindo por faixas etárias e atividades. Assim, tempo e espaço atuam como modos de coação calculada, possibilitando um padrão limitado que organiza o poder e o torna atuante. As práticas regulares ocorrem pela distribuição das atividades, via divisão dos horários, por meio dos movimentos obrigatórios em cada sinal, forjando sujeitos que obedecem às regras, hábitos e comandos constantemente orquestrados em torno das crianças (BUJES, 2002a).
Nesse sentido, o controle das atividades e das ações bem como a divisão do tempo caracterizam um espaço no qual prevalecem as práticas de controle e disciplina, sempre com a vigilância atuante. A partir de Foucault (1975/2002b), podemos compreender que a disciplina é o elo entre o poder e o saber, que se constitui em uma espécie de economia política, na qual a manifestação é condicionada e o sujeito constituído. “A disciplina fabrica indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos do seu exercício. Não é um poder triunfante [...]”, mas “é um poder modesto, desconfiado, que funciona a modo de uma economia calculada, mas permanente” (FOUCAULT, 1975/2002b, p. 153). As rotinas externas rigorosas e ordenadas também correspondem à vida íntima, ao aprimoramento do controle interior que almeja a regulação moral, o controle de si. Trata-se, portanto, de uma ação gradual e lenta, que garantiria que determinado objetivo fosse alcançado e a subjetivação se efetivasse.
Em relação às atividades envolvendo brincadeiras e jogos, eram exercitados o treinamento e a manipulação. Apesar da, no cotidiano dos Jardins de Infância, utilização de materiais e brincadeiras que dificilmente podem ser considerados brincadeiras (tendo em vista que abafam a organização e a iniciativa das crianças), estes precisam ser considerados como atividades que os educadores compreendiam dessa forma, tendo como inspiração os estudos de Fröebel. De acordo com Brougère (2003), as brincadeiras e os jogos na Educação Infantil geralmente são vistos como uma espécie de suporte educacional controlado, em que as iniciativas das crianças são rejeitadas sob a justificativa da necessidade de fornecer roteiros e conteúdos para atingir determinados objetivos do ensino.
Trata-se de capturar, produzir e ajustar pedagogicamente a relação da pessoa consigo mesma e ter sua transformação como um objetivo declarado. Os rituais fazem parte do poder disciplinar e possibilitam a produção da subjetividade obediente e dócil, para que o olhar docente não cesse e produza a padronização do comportamento com vistas à regulação das condutas. A submissão não é uma opção, mas a única escolha para o sucesso no campo institucional. De acordo com Foucault (1976/1988), esses comportamentos são extraídos dos corpos por meio de diversos dispositivos de poder, que são de forma constante solicitados, instalados e incorporados. A norma estabelece hábito, regularidade, e é produtiva, relacionando-se com o saber e o poder na medida em que estabelece critérios racionais que se expressam como objetivos e, ao mesmo tempo, está enraizada no poder, porque constitui os princípios da regulação da conduta nas quais atuam as práticas sociais de disciplina.
O perfil autoritário do comportamento da comunidade educativa no ambiente educacional revela que a regularidade na repetição de movimentos e gestos era predominante, revelando um modelo educacional que visava a sujeitos dóceis, supervisionados e submissos. Não são coincidência essas semelhanças com os direcionamentos apresentados por Foucault (1975/2002b). Se analisados pelo pensador, considerando, por exemplo, a divisão do tempo, na restrição das atividades ordenadas, “[a] exatidão e a aplicação são, com a regularidade, as virtudes fundamentais do tempo disciplinar [...]. O tempo penetra no corpo, e com ele todos os controles minuciosos do poder” (FOUCAULT, 1975/2002b, p. 129). Podemos mencionar alguns dos aspectos normativos e disciplinares experienciados pelas crianças nas instituições escolares, pois na escola nada se faz a qualquer hora e lugar. O espaço é cuidadosamente esquadrinhado, o tempo é marcado por um horário preciso, regular e regulado, e a aprendizagem é organizada em etapas para que em cada período possam ser exercitados tipos específicos de competências. Um conjunto de formas reguladas de comunicação, com comandos, admoestações e sinais codificados de obediência, questionários, lições e um conjunto de práticas de poder, com exames e recompensas, constituem o campo do que é possível pensar, dizer, perceber e fazer nas instituições escolares.
É principalmente nas instituições de ensino que a operação do poder se dá para produzir, nos corpos e nas almas das crianças, correções e treinamentos da conduta humana. Nas palavras de Foucault (1975/2002b, p. 158), nas operações disciplinares, o poder “não se detém como uma coisa, não se transfere como uma propriedade, funciona como uma máquina”. Assim, os princípios pedagógicos de Fröebel nos fazem perceber que essas ocupações tinham como objetivo orientar as crianças para a harmonia, a regularidade e o controle dos movimentos e adotar uma educação racional orientada pelo espírito da ordem. Nesse caso, mesmo que pareçam insubordinadas, as crianças serão monitoradas constantemente pela professora. Foucault (1975/2002b) nos conta que esse tipo de investimento no corpo do indivíduo se espalhou por diversas instituições e, principalmente a partir do século XVIII, se ocupou das crianças em instituições dedicadas à educação. Esse investimento no corpo e na mente define uma espécie de microfísica do poder, que recebe cada vez mais espaço no âmbito social:
Pequenas astúcias dotadas de um grande poder de difusão, arranjos sutis, de aparência inocente, mas profundamente suspeitos, dispositivos que obedecem a economias inconfessáveis, ou que procuram coerções sem grandeza, são eles, entretanto que levaram à mutação do regime punitivo, no limiar da época contemporânea. Descrevê-los implicará a demora sobre o detalhe e a atenção às minúcias: sob as mínimas figuras, procurar não um sentido, mas uma preocupação; recolocá-las não apenas na solidariedade de um funcionamento, mas na coerência de uma tática
(FOUCAULT, 1975/2002b, p. 120).
Arce (2002) relata que, a partir da experiência do primeiro Jardim de Infância público do Brasil, com base nos aspectos metodológicos de Fröebel, foi possível identificar a utilização de orientações diretivas sobre o uso dos dons, mesmo em atividades de imitação e contação de histórias, nas quais a supervisão e a orientação da jardineira eram essenciais, não possibilitando qualquer espaço para as crianças se movimentarem livremente. As atividades diárias eram organizadas previamente, em uma sequência fixa, visando controlar as ações, os movimentos, as falas, enfim, controlar tudo o que acontecia durante a permanência da criança na instituição. Nessas estruturas disciplinares, o espaço é desenhado de forma ordenada, o tempo é calculado e rígido, as ações são controladas detalhadamente e constantemente reguladas, não havendo espaço para o ócio. De acordo com Foucault (1975/2002b), a disciplina organiza um espaço analítico com procedimentos para conhecer, dominar e utilizar. Com isso, o tempo, a ação e a energia eram totalmente utilizados.
No tempo e no espaço institucional, todos são observáveis e localizáveis, padronizados dentro da tecnologia disciplinar, operando na construção do indivíduo em todos os aspectos. O campo de vigilância é extenso, mas também localizável, nele tudo é audível, visível, conformando sujeitos diante dos modelos de homogeneização. A construção do modelo busca a homogeneidade de pensamento, ação, comportamentos e falas. O abafamento da autonomia, por meio da ação de uns e outros, visa dominar e transformar todos em algo que funciona dentro de um intervalo muito estreito. A observação contínua e sistematizada existe em qualquer sistema disciplinar, o que possibilita, a partir de Foucault (1975/2002b), pensar as instituições educacionais enquanto máquinas de ver que capturam sujeitos e tornam efetivos os processos que elas mesmas criam e realizam.
Assim, a organização do tempo e a distribuição do espaço possibilitam o gerenciamento do comportamento e a produção de sujeitos, mesmo durante as brincadeiras. Dessa forma, as brincadeiras e os jogos são utilizados como estratégias de controle e momentos de exercício do corpo e da alma, em consonância com a racionalidade da educação institucional. É a maquinaria escolar que vai produzindo efeitos gradativos, transformando essa força inicial em um sujeito gentil e obediente. As crianças precisam ser governadas, disciplinadas e corrigidas quando estiverem além da periferia da norma. Sendo assim, ao passo que essas crianças são governadas por um determinado modo de governo, elas também são produzidas por saberes exercidos sobre elas mesmas, colocando em funcionamento práticas coercitivas para os desejáveis enquadramentos na maquinaria escolar (VARELA; ALVAREZ-URÍA, 1992).
A ênfase do discurso sobre a importância das brincadeiras e dos jogos no jardim de infância pode ser compreendida como efeito dos novos aparelhamentos de intervenção criados na modernidade para concretizar modos de atuar sobre as crianças. À medida que o poder da Igreja declina com o absolutismo, ganham poder as instituições educacionais com a implementação de novas intervenções com suas especialidades, principalmente aquelas relacionadas à Psicologia e à Pedagogia (VARELA; ALVAREZ-URIA, 1992). Esse tipo de compreensão e prática se encaixa no modelo escolar repetitivo e rotineiro, em uma engrenagem na qual as crianças são consideradas um capital em potencial. Em relação aos aspectos metodológicos de Fröebel, predominavam prescrições minuciosas com a finalidade de apresentar uma sequência lógica de atividades e o uso ritualizado dos materiais, sendo os procedimentos extensos e detalhados a serem adotados por professoras e crianças (KUHLMANN JR., 1998). As recomendações constantes fazem um trabalho de captura que não possibilita mal-entendidos, pois os discursos enunciados passam a ter o sentido conferido pelo formato de vocabulário ou glossário, o que limita e reduz um determinado modo de ser, nesse caso, da professora (PEREIRA; RATTO, 2008).
Nas práticas sugeridas por Fröebel, percebe-se que isso ocorre em muitas de suas atividades, o que demonstra o investimento educacional e a hierarquização relacionada a objetos e práticas (BUJES, 2000a). Cada movimento deveria ser organizado, não havendo espaço para fugir da vigilância, porque cada passo deveria ser seguido de forma ordenada, tendo a precisão como principal fator. Os materiais do brincar são geralmente considerados instabilidade para o ambiente, pois poderiam prejudicar as relações e as normas de comportamento, razão pela qual as instituições de ensino se baseiam em regras em relação a esses objetos. Foucault (1975/2002b), ao discorrer sobre a produção dos corpos dóceis, sobretudo a partir do século XVIII pelas instituições sociais, assinalou diversos modos de controle sobre o sujeito, incluindo a conexão entre corpo e objeto. Para efetivar essa conexão, “[...] a disciplina define cada uma das relações que o corpo deve manter com o objeto que manipula. Ela estabelece cuidadosa engrenagem entre um e outro” (FOUCAULT, 1975/2002b, p. 130).
Como sinalizado por Foucault (1975/2002b), o poder não está em uma pessoa ou no espaço, mas é difuso e presente nos subterfúgios para conectar o material e as práticas a possibilidades educacionais. E assim se faz sentir a presença dos adultos, sob a justificativa de revelar organicidade e sentido para as ações e o pensamento para prevenir os perigos do imaginário das crianças. Nos Jardins de Infância, por exemplo, organizaram-se sistematicamente brincadeiras, jogos e atividades recreativas, que colocam os conteúdos e os conceitos no centro da educação das crianças. Desse modo, as organizações práticas tinham respaldo científico, justificando que investir em brincadeiras e jogos equivaleria a pensar tais objetos como atividades mais adequadas para a garantia da aprendizagem de valores, conceitos, normas ou comportamentos. Em relação ao processo de aprender, controlado pelos adultos, tem-se uma ideia de educação em que se identificam, nas crianças, sujeitos que não possuem consciência de suas possibilidades, iniciativas e capacidade de resolver problemas, resultando em modos de subjetivação forjados com base em relações que denotam controle e amedrontamento.
Isso ocorre porque os modos de subjetivação são forjados nas relações, tendo como resultado subjetividades reguladas quando as crianças são submetidas a situações em que impera o poder, capaz de controlar, limitar e comandar o que deve ser feito. É pelos brinquedos, pelas brincadeiras e pelos jogos que se vislumbra a possibilidade de esquadrinhar modos de exercer o poder sobre os sujeitos infantis e as verdades implicadas nessas estratégias que operam como meio de manter e implementar os dispositivos de governamento (BUJES, 2005).
A lei enquanto norma precisa ser acompanhada da seleção dos materiais, da organização e da aplicação das atividades que envolvem as crianças. Isso se manifesta por meio de coerção sutil e apelo para a liberdade, porque os sujeitos participam e cooperam mais quando essas escolhas estão relacionadas com a ideia da submissão voluntária. O exercício do poder identifica na Educação um campo favorável para produzir sujeitos modernos normalizados, na medida em que as determinações educacionais apontam para práticas de subjetivação das crianças (HABOWSKI; RATTO, 2022b). É por meio da Educação que se estabelece o comportamento desejado, pois pode ser estimulada e (re)produzida, nesse âmbito, a capacidade de persuasão e aceitação. É vista como imprescindível e estimuladora do desenvolvimento, com liberdade para atuar sobre os sujeitos, pois tem respaldo científico e institucional para exercer a mudança nos sujeitos.
Em suma, a educação é o trabalho de um pensamento calculado e da ação técnica na busca por um produto por meio da intervenção calculada em processos que são concebidos como áreas de possibilidade. Uma prática técnica em que os resultados devem ser produzidos com base na previsão. Aos poucos, os direcionamentos criarão hábitos e o demorado e cuidadoso trabalho impressionará o espírito e animará a memória das crianças, o que se daria por meio de um trabalho contínuo com obrigações. Gradativamente, as brincadeiras e os jogos passaram a ser considerados essenciais para o desenvolvimento. Portanto, deveriam servir a projetos de ensino conscientes e vinculá-los ativamente ao desenvolvimento das crianças, ao mesmo tempo em que seria possível governá-las. Assim, a prática pedagógica deve construir um sujeito sadio e equilibrado, que se dá pela articulação complexa dos discursos e das práticas.
Conforme as proposições de Fröebel, nos Jardins de Infância a tendência das crianças de se moverem livremente deveria ser moderada e direcionada para fins úteis. Assim, as atividades livres praticamente não aconteciam, porque as crianças se desenvolveriam muito pouco e de forma desordenada. As orientações de andamento de atividades, brincadeiras e jogos, além do uso do espaço, deveriam ser apresentadas de forma espontânea, de modo a não causar insatisfação nas crianças, e percebidas como condições necessárias para o desenvolvimento das proposições. Assim, historicamente a obediência e a docilidade diante da realização das atividades chegaram a ser compensadas por elogios. Os métodos de ensino disciplinares são, muitas vezes, invisíveis, porque relacionados ao processo de aprendizagem, e considerados naturais e necessários.
As instituições educacionais são espaços de ensino, assim como espaços de recompensa, vigilância e cerceamento, configurando-se como espaços para produzir corpos e aprimorá-los moral e intelectualmente. Nesse sentido, “[o] corpo estimulado é produzido na escola através da seleção de suas brincadeiras, seus exercícios e também suas distrações” (DORNELLES, 2005, p. 60-61). Sob essa lógica, as ocupações sugeridas por Fröebel, que representam atividades com os objetos (dons), precisariam ser regulamentadas a fim de uniformizar e de que fossem internalizadas. Por meio dessa internalização, a criança se autorregularia, resultando naquilo que Foucault (1984/2001b) caracteriza como autogoverno: uma disciplina e um controle que vêm primeiro de fora e depois se internalizam.
No século XIX os discursos educacionais apresentaram a ideia de que a liberdade intensificaria a autoridade e a disciplina (Ó, 2006). As tecnologias disciplinares têm experimentado grande aceleração na modernidade, construindo um conjunto de ações em que cada singularidade deve se tornar um cruzamento de forças de poder. Ó (2006, p. 28) identifica que, para os pedagogos modernos, “[...] a modernidade passou a caracterizar-se pelo permanente esforço de governar sem governar, de estender o poder até os limites mais distantes, isto é, até as escolhas de sujeitos autônomos em suas decisões”. As ideias para a Educação Infantil, incluindo aquelas baseadas na teoria de Fröebel, estavam normalmente focadas na educação escolar, porque enfatizavam a alfabetização e a aprendizagem dos números. Sob supervisão e orientação de adultos, a ação lúdica transforma a brincadeira em momentos controlados, com o objetivo de ensinar conceitos relacionados a letras e números.
Para isso, as categorias de espaço e tempo são de fundamental importância para descrever o funcionamento das relações de poder, pois também se gerenciam os sujeitos e controlam-se suas ações por meio da organização do espaço e do tempo no ambiente educacional. As práticas propostas sugerem modos de interação que objetivam subjetivar indivíduos, uma prescrição pedagógica detalhada para o encaminhamento de momentos que envolvem as brincadeiras. Nos aparelhamentos modernos, a educação serve para a internalização de conformidades básicas, pois veicula e faz operar relações de poder utilizando meios estratégicos, habilidades qualificadas e diferentes mecanismos para garantir diferentes efeitos que são produtivos (BUJES, 2000a).
Nessas situações, os adultos atuam como interlocutores privilegiados e têm o poder de dirigir as atividades das crianças. Portanto, a infância seria um momento propício para a intervenção educacional, de modo que as instituições e os adultos que trabalham com crianças devem aproveitar ao máximo essa oportunidade. A regulação moral é implementada nos espaços educacionais por meio de exercícios físicos bem como a partir do estímulo ao desenvolvimento do intelecto, das condutas e do gerenciamento das emoções (BUJES, 2000a). Nos discursos de Fröebel, é possível identificar dicas de uma série de práticas que organizam, constituem, definem e implementam as estratégias que crianças e adultos escolhem nas relações consigo e com os outros.
A partir de Foucault (1984/2001b), podemos perceber um empreendimento do governo dos sujeitos, em que o controle externo passa a ser internalizado e a conduzir as ações do sujeito em um âmbito mais amplo e profundo. Foucault (1984/2001b) apontou que, à medida que os países modernos reinventaram novas formas de dividir o tempo e o espaço social, o desenvolvimento de modelos biopolíticos acelera-se desde o século XVIII. As propostas e programas educacionais estão intensamente relacionados a uma racionalidade mais abrangente de governamento, aliada com ciências que receberam status de “especialidade” para falar sobre as crianças e orientar modos de educação, com destaque ao exercício e ampliação da cognição associado ao controle de seus corpos (BUJES, 2003). A racionalidade pedagógica moderna descreve as crianças como desprovidas de bom senso e, portanto, necessitadas da intervenção do adulto que é portador da capacidade racional. Logo, como já nos apontava Rousseau, quem nada sabe fica à mercê dos professores adultos nas instituições de ensino.
Esse controle também se dá por meio das formas de interação possibilitadas nos espaços e tempos da instituição escolar. Quando se privilegia um espaço observável e uma organização rotineira com tempos rígidos e fragmentados, a partir de uma série de estratégias, incluindo a observação sistemática das ações, atua-se na conformação dos sujeitos nos padrões esperados. As escolas modernas estabeleceram uma conexão entre o saber e o poder a partir da sua capacidade de produção de silêncios em meio a rituais de espaço e de tempo específicos (VEIGA-NETO, 1995). Nas propostas de Fröebel (2001, p. 59), percebe-se a ênfase de que as crianças necessitam de muita observação, tornando visíveis suas ações, fornecendo informações para os professores nortearem suas interdições: “[b]asta que olhem, que se ponham a observar, a criança mesma lhes ensinará”. Assim, observar é uma ferramenta preciosa e necessária, recomendando-se aos professores que a observação das crianças se dê na medida em que elas devem ser acompanhadas de perto.
O que a criança faz é começar a julgar os objetos com seus próprios membros, com suas mãos, seus dedos, seus lábios, sua língua, seus pés e até com seus gestos e olhares. Nesse jogo, nesses movimentos do rosto e de todo o corpo, não há que buscar, em princípio, nenhuma manifestação exterior da essência interna da personalidade, manifestação que não aparece até a etapa seguinte. Convém vigiar os movimentos para que a criança não se acostume a mover demais o corpo e, sobretudo, o rosto sem nenhum motivo interno
(FRÖEBEL, 2001, p. 45).
Fröebel enfatiza a importância de propiciar às crianças a construção da autonomia, ressaltando que elas precisam tomar decisões por si mesmas e intervir em seu ambiente de vida. Contudo, no que diz respeito às brincadeiras e aos jogos, é indicada a necessidade de intervenção do adulto, sob a argumentação de cooperar para construir a independência das crianças. Aqui, a autonomia pode ser compreendida como controle de si com base na estrutura de um comportamento esperado, uma espécie de servidão. Assim, compõe o conjunto de procedimentos que possibilita a ação dos efeitos de poder por diversas estratégias.
Na rotina institucionalizada e de regularização do tempo e das atividades, os professores são também alvos do poder, ocupando posição privilegiada na difusão disciplinar com suas normas, ritmos, códigos, ritos. A padronização atinge primeiro os professores, que são expostos ao discurso e, em seguida, responsáveis por implementar as diretrizes explicadas em documentos de orientação. Ó (2006), por meio da análise do dispositivo disciplinar constituído pela pedagogia moderna, identifica táticas para que os sujeitos aprendam a se controlar a partir da normalização externa, que será internalizada e parecerá natural. Portanto, indica que o dispositivo normalizador moderno emerge a partir da ideia de disciplina espontânea.
O pensamento pedagógico moderno enfatiza o uso de brinquedos e de jogos em sala de aula por serem considerados importantes para o alívio do estresse, porque auxiliam no trabalho em sala de aula e internalizam as regras de convivência, de forma que a prática tenha um impacto positivo nas crianças (BUJES, 2000a). Ó (2006, p. 14), ao discutir os objetivos e a organização das escolas modernas, percebeu como continuam a ter como foco central as reformas morais, executadas pelas pedagogias anteriores, e se aprofunda na modernidade, passando por “[...] uma crescente sofisticação tecnológica para responder, reiterando os mesmos princípios e procurando obter resultados semelhantes, a um quadro de interações cada vez mais complexo porque marcado pela sua extrema massificação”.
Assim, as propostas incidem sobre o grupo e cada sujeito, realizando um amplo trabalho de subjetivação. Desse modo, a prática demanda o envolvimento do sujeito, depende dele e ao mesmo tempo o constitui. De acordo com Ó (2006, p. 16), podemos compreender que a governamentalidade e as tecnologias do eu moldam as práticas de subjetivação, estabelecidas e fortalecidas na modernidade:
Analisando os dispositivos discursivos por meio dos quais os atores são representados, classificados e normalizados, esses investigadores permitem-nos perceber a escola de massas, ora como uma tecnologia humana, ora como uma tecnologia moral; mostram-nos como as dinâmicas de promoção da subjetividade se encontram profundamente articuladas com os objetivos de governo das populações no seu conjunto.
Nessa produção, a intenção é atingir os sujeitos na sua particularidade e o grupo em sua diversidade e amplitude, designando técnicas regulatórias eficientes e abrangentes com o objetivo de moldar modos de subjetivação e o comportamento. Age-se nas partes e no todo, buscando identificar a possibilidade de intervenção a partir de observações precisas. Como parte de um processo com tantas intenções, as brincadeiras e os jogos, quando previstos e realizados nas instituições de Educação Infantil, servem para diversas finalidades que os fazem perder suas características. A diversão define a essência do brincar, e a alegria é uma das principais características dessa ação, sendo que o propósito de servir a algo não é a característica do brincar.
Nos estudos sobre as escolas modernas, Ó (2006, p. 23) aponta que “[a]s quimeras da imaginação ardente das crianças e dos jovens seriam contidas por intermédio de formas de conhecimento positivo, de uma reflexão judiciosa e de exemplos sãos”. Desse modo, as brincadeiras e os jogos são alvos de análise e intervenção, com detalhamento nos encaminhamentos. Outrossim, é importante destacar que o poder disciplinar forja os sujeitos ao colocá-los em posições e ações que são consideradas possíveis.
As brincadeiras e os jogos são considerados privilegiados momentos de intervenção, produzindo posturas adequadas quando são bem conduzidas pelo professor. Consequentemente, as recomendações de atividades são baseadas em discursos que enaltecem o desenvolvimento, a liberdade e a autonomia, mesmo que enfoquem sugestões para contenção das crianças em sua integralidade. Na reprodução de ações, gestos e movimentos, procura-se eliminar a possibilidade de autonomia, tornando as atividades lúdicas em ferramentas de poder. Desse modo, podemos perceber que as práticas regulam e governam os sujeitos, influenciados por uma rede aprimorada de controle.
Apoiando-se em um grande número de discursos e práticas, além de uma série de dispositivos e sistemas de julgamento, os saberes da Pedagogia e da Psicologia se materializam em procedimentos e intervenções, estabelecendo vários princípios de prática, multiplicando normas e possibilitando habilidades e comportamentos humanos. As técnicas de controle que proliferam e se concentram no âmbito da educação das crianças, mostrando a existência de controles sutis, são apoiados no desenvolvimento associado ao desejo das crianças de participar de atividades recreativas nas quais os discursos apresentam brincadeiras e jogos de modo prazeroso.
Apresentadas como atividades próprias às crianças, ficariam, então, tais atividades liberadas das indagações dos atores relacionados às crianças e sua educação. A partir de Foucault (1969/1995), de forma efetiva os discursos conduzem uma série de ações em conjunto com as crianças por meio de uma série de direcionamentos pedagógicos. Dessa forma, é necessário analisar o discurso científico por meio dos tipos de enunciados que colocam em cena os conceitos (re)manejadores de experiências particulares e estratégias utilizadas, pois toda prática discursiva pode definir-se pelo saber que ela institui (FOUCAULT, 1969/1995). A gama de brincadeiras e jogos sugeridos por Fröebel é ampla, podendo envolver ações, regras, sons, objetos, músicas e linguagem.
Nas próprias palavras de Fröebel (2001, p. 29), o professor deve “[...] atuar em duplo sentido: dar e tomar, unir e separar, mandar e obedecer, fazer e suportar, obrigar e ceder, apertar e afrouxar... [...] faz isto e observa qual é nesta determinada relação a consequência de teu ato e a que conhecimento te conduz”. Ainda que em muitas instituições as sugestões não se efetivem, o discurso em si já é um operador, constituindo-se como prática ao formar o pensamento e descrever detalhadamente as atividades por meio de brincadeiras, e indicando como devem ser efetuadas as ações empreendidas.
No âmbito das instituições, as redes de poder são remodeladas continuamente por meio das relações estabelecidas entre os indivíduos e no meio em que vivem. Nesses espaços, o poder é estratégico, oculta sua potência e funciona como um conjunto de elementos interconstitutivos. Dessa forma, as crianças são o resultado das escolhas que os adultos fazem por e sobre elas, num complexo jogo de subjetivação. A produção de subjetividades não é o resultado direto da prática, mas se dá a partir das relações das normas estabelecidas pelo discurso e do efeito das práticas a que os sujeitos estão submetidos, em sua relação agonística com eles.
Constantemente as crianças são condicionadas a se exercitar na experiência de si, naquilo que Larrosa (2002, p. 38) afirma ser “[...] resultado do entrecruzamento, em um dispositivo pedagógico, de tecnologias óticas de autorreflexão, formas discursivas (basicamente narrativas) de autoexpressão, mecanismos jurídicos de autoavaliação, e ações práticas de autocontrole e autotransformação”. Nesse interim, são desenvolvidos dispositivos para envolver, dominar e orientar a liberdade, limitar o comportamento dos sujeitos e seus pensamentos e orientá-los a fazer e pensar tanto quanto possível, conforme o esperado.
Além do trabalho na aquisição de conteúdos, existe também um investimento no desenvolvimento de valores, em que a prática quotidiana repetida vai se transformando em energia voluntária, revelando uma vontade e uma participação que surge do cumprimento dos deveres. Portanto, o direcionamento externo, ou seja, a busca de motivos ou finalidades para além do desejo de brincar, ignora e substitui a singularidade do brincar, que é a participação, o prazer, a escolha e a iniciativa. Em vez disso, é estabelecida uma situação na qual a atividade é usada para fins que não são pretendidos pelos sujeitos que brincam.
Desse modo, o domínio da infância e suas características foram essenciais para a constituição, a dispersão e a afirmação das escolas modernas e seus propósitos. Todo dispositivo que controla e regula a prática do brincar nas instituições educacionais é perpassado pelo exercício do poder de diferentes formas, o que significa a formação de diferentes tipos de modos de subjetivação.
Segundo Foucault (1975/2002b), muitos investimentos são feitos para o disciplinamento e do controle dos corpos, para seguir padronizações e se comportar de acordo com as regras impostas pelas diferentes instituições. Essas táticas disciplinares atuam no corpo do sujeito, de modo que ele se “torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente” (FOUCAULT, 1975/2002b, p. 133). Por meio do disciplinamento, produzem-se “corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’” (FOUCAULT, 1975/2002b, p. 133), e no campo da Educação esse disciplinamento deu-se por meio da organização do tempo e do espaço escolar, tornando a escola “uma máquina de ensinar, mas também de vigiar, de hierarquizar, de recompensar” (FOUCAULT, 1975/2002b, p. 142).
O tempo e o corpo devem ser aproveitados ao máximo, sem ócio, para que as atividades sejam eficientes e realizadas de forma otimizada. Esse tipo de educação é baseado na disciplina, no controle do corpo, via delimitação do tempo e do espaço, visando tornar os sujeitos obedientes e úteis. Embora a escola sempre tenha passado (e está passando) por transformações, ainda podemos pensá-la como um sistema baseado no disciplinamento, constituindo-se numa maquinaria que controla horários, espaços, aprendizagens e modos de avaliar os estudantes.
Notas finais para seguir ensaiando
Fröebel enfatiza a necessidade de organizar o cotidiano de forma estruturada, que envolve todas as atividades das crianças na instituição, o que revela uma preocupação com o tempo. O espaço e o tempo também são modos de controle do brincar. Quanto mais o espaço é definido, mais podemos vigiá-los, observar como brincam, manifestam-se e reagem. Do mesmo modo, isso se dá em relação ao tempo, quanto mais estrita a programação, mais controle se tem sobre os corpos.
Assim, pode-se ver diversas operações ritualizadas e mecanicamente executadas para ordenar a vida cotidiana por meio de rotinas na Educação Infantil, tentando imprimir práticas programáticas de normalização. Desse modo, podemos entender a rotina da infância como um processo de racionalização, utilizado por sujeitos e instituições para estruturar e controlar a vida, passando a fazer parte do cotidiano. Torna-se um mecanismo de dominação ao não levar em consideração o tempo para o acontecimento da fruição, da participação, da liberdade, do ritmo e dos distintos modos de sociabilidade entre os envolvidos.
Veiga-Neto (2000) apresenta questões importantes sobre o neoliberalismo e as mudanças que ocorrem na sociedade de hoje. De acordo com o autor, na sociedade neoliberal, o Estado passou a governar de modo mais sutil para poder governar mais e melhor. Os indivíduos têm a oportunidade e a liberdade de fazer suas próprias escolhas, mas, para obter serviços e produtos, precisam aprender e compreender essas possibilidades para que possam fazê-las com mais eficácia. Na racionalidade neoliberal, “a liberdade do sujeito é uma condição para a sua sujeição” (VEIGA-NETO, 2000, p. 202). Com a liberdade proporcionada pela sociedade de consumo, meios de comunicação, disseminação dos saberes, torna-se difícil disciplinar toda a população com eficiência. Assim, passa-se “de uma lógica disciplinar para uma lógica de controle” (VEIGA-NETO, 2000, p. 208). Com as novas tecnologias do controle, tudo e todos podem ser controlados sem grandes esforços, como por meio de câmeras e sistemas de vigilância.
As mudanças na nossa sociedade, principalmente desde a modernidade, com os avanços tecnológicos, a redução dos espaços urbanos para brincar, a insegurança nos parques e praças etc., têm produzido reverberações no brincar das crianças. Nos dias de hoje, muitas crianças possuem um tempo rigidamente planejado, organizado e uniformizado e, para além das aulas escolares, possuem, nas suas agendas, aulas de instrumentos musicais, dança, futebol etc., de modo que a agenda das crianças se parece muito com a dos adultos.
Nos dias de hoje, num tempo em que tudo é cronometrado, o brincar sem um tempo que suprime e que não é produtivo quase nem é percebido. Seja na escola, em que há um horário fixo para brincar, copiar, ler, ou em outros espaços socias, como praças e parques ao ar livre ou shoppings, as crianças correm contra o tempo para aproveitar tudo o que esses ambientes podem proporcionar. Tudo vira uma espécie de jogo contra o tempo! O brincar recebe muitas finalidades nos espaços educacionais (sejam escolares ou não), pois, numa sociedade fortemente pedagogizada, encontra-se espaço justamente ao se almejar o desenvolvimento integral da criança, descobrir e aprimorar ao máximo os talentos e habilidades, torná-la produtiva ao extremo. É necessário, entretanto, pensar em outros modos de potencializar o brincar, não o sufocando com diversas prescrições e determinações. Assim, nas instituições escolares, o brincar se aproxima cada vez mais dos jogos educativos, com objetivos, conteúdos, avaliações, tempo e espaço demarcados e planejados por adultos.
Vale destacar, no entanto, que, de acordo com Foucault (1976/1988, p. 91), as resistências também constituem o poder, não estão fora dele, mas no seu interior e são “[...] possíveis, necessárias, improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas, arrastadas, violentas, irreconciliáveis, prontas ao compromisso, interessadas ou fadadas ao sacrifício; por definição não podem existir a não ser no campo estratégico das relações de poder”. O poder é exercido sobre os sujeitos livres, em relação à variedade de possíveis comportamentos e reações. É verdade que o poder restringe, conforma, cria e incita, mas também existe porque há possibilidade de fuga e deslocamento.
Nesse sentido, “[o] jogo que, por vezes, pode ser uma escola de conformismo social, de estrita adaptação a situações dadas, pode se tornar igualmente um espaço de invenção, de curiosidade e de experiências diversificadas, por menos que a sociedade ofereça os meios às crianças” (BROUGÈRE, 2003, p. 194). Mesmo que sejam restritas, as crianças brincam. Nesse contexto, nas palavras de Lemos (2007, p. 87), o brincar, “à medida que possibilita a experimentação, pode ser um dispositivo de resistência ao controle social e até mesmo um mecanismo de produção de si, que amplia a criação de novos mundos, novas formas de pensar, sentir e agir”.
Mesmo com a limitação de espaço que temos aqui, propomos ainda um brincar despedagogizado. Trata-se, então, de encontrar outras possibilidades para pensar o brincar, a fim de buscar desmantelar o que está naturalizado, na defesa do brincar, por meio da perspectiva de que nada mais há do que o ato de fruir, do encontro consigo mesmo e com o outro, de brincar como possibilidade de (re)invenção (HABOWSKI; RATTO, 2022a). Haveria tempo e espaços possíveis para o brincar como expressão de um devir-criança da infância na atualidade? Trata-se, talvez, de um brincar que fuja das tramas da educação escolar, repleta de objetivos, conteúdos, avaliação, marcação e controle do tempo e do espaço.