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Conjectura: Filosofia e Educação

versão impressa ISSN 0103-1457versão On-line ISSN 2178-4612

Conjectura: filos. e Educ. vol.28  Caxias do Sul  2023

https://doi.org/10.18226/21784612.v28.e023012 

Artigos

Foucault e o Aufklärung: duas interpretações sobre Kant

Foucault and Aufklärung: two interpretations on Kant

Itamar Soares Veiga1 

1Doutor em filosofia pela PUCRS, bacharel e licenciado em filosofia pela UFRGS. Professor da Universidade de Caxial do Sul.


Resumo

Este artigo analisa a interpretação de Foucault sobre Kant com o foco na complexidade das relações entre o trabalho filosófico, em geral, e o mundo concreto. O escopo do artigo é delimitado por esta análise de Foucault, especialmente, sobre dois textos de Kant: O que é o esclarecimento? e Antropologia de um ponto de vista pragmático. Investiga-se a possibilidade de um acesso a um espaço anterior a qualquer orientação ética específica. Deste modo, este espaço prévio difere do conjunto de elaborações éticas da tradição filosófica. Primeiramente, destacam-se os diferentes posicionamentos possíveis assumidos pelos filósofos em seu trabalho perante o mundo concreto. A seguir mostra-se a existência de uma ambiguidade latente no trabalho filosófico, a qual permite concluir que existe a possibilidade de um espaço prévio de compreensão do filósofo perante a história. Todos estes elementos são expostos mediante o acompanhamento da análise realizada por Foucault.

Palavras-chave Foucault; Kant; Diferença na história; Ambiguidade

Abstract

This research examines Foucault's interpretation of Kant, focusing on the complexity of the relations between philosophical work, in general, and the concrete world. The scope of the article is delimited by this analysis of Foucault, especially on two texts by Kant: What is Enlightenment? and Anthropology from a Pragmatic Point of View. The possibility of accessing a space prior to any specific ethical orientation is investigated. Thus, this previous space differs from the set of ethical elaborations of the philosophical tradition. Firstly, the different possible positions assumed by philosophers in their work concerning the concrete world are highlighted. It then demonstrates the existence of a latent ambiguity in philosophical work, which allows us to conclude that there is the possibility of a prior space of understanding the philosopher in relation to history. All these elements are presented through the analysis conducted by Foucault.

Keywords Foucault; Kant; Difference in history; Ambiguity

Introdução

O estudo da filosofia possui diferentes abordagens centradas em um tópico de interesse: unidade na multiplicidade, condições do agir moral, condições da subjetividade e do conhecimento etc. Supondo que há sempre uma relação entre filosofia e o mundo concreto, então esta relação precisa ser de alguma forma resolvida. Assim, em um recorte dentre o conjunto de abordagens filosóficas, metodologicamente, duas formas gerais poderiam auxiliar uma classificação: (1) um trabalho conceitual mais afastado dos fatores diversos do mundo concreto2 e (2) um trabalho conceitual mais próximo dos fatores diversos do mundo concreto. Cabe dizer, também, que estas duas abordagens centradas no mundo concreto são frequentemente tomadas como o resultado de investigações filosóficas na área de ética e/ou na área de antropologia filosófica e, ainda, em outras áreas como a filosofia política etc. No entanto, não desejamos seguir estritamente dentro de uma destas áreas.

O tema deste artigo é a tentativa de circunscrever estas duas abordagens selecionadas, (1) e (2) acima, segundo suas dinâmicas internas. Estas duas abordagens se encontram diferenciadas e com delimitações distintas nos modos de acesso ao mundo concreto. Cabe observar que, neste estudo, ambas as abordagens não se remeterão imediatamente ao âmbito das ações morais, para evitar o compromisso direto ou indireto com uma corrente ética qualquer já existente e conhecida. Nesse sentido, o tema possui essa delimitação e, dentro nesse escopo, o propósito específico do artigo é investigar a possibilidade de um acesso prévio ao mundo antes de qualquer formulação de cunho ético substancial e sem comprometimentos com nenhuma linhagem ética.

A relevância desta pesquisa se mostra na medida em que se busca investigar se há mesmo tais elementos prévios, a serem explicitados nas dinâmicas (1) e (2), que constituam uma instância prévia ou um espaço abstrato livre para o acesso interpretativo ao mundo concreto.

Para apresentar alguns elementos que contribuem na delimitação das duas abordagens amplas (1) e (2) da filosofia sobre o mundo concreto, vamos investigar a interpretação de Foucault sobre Kant, especificamente, sobre o texto Antropologia sob um ponto de vista pragmático de Kant. Os propósitos, o do tema e o mais específico, já mencionados, serão buscados com o auxílio dessa interpretação de Foucault sobre o texto de Kant. Mas, mesmo esse auxílio, tal como o compreendemos, depende de uma preparação adicional.

Esta preparação adicional é a análise dos textos de Foucault a respeito do Aufklärung. Trata-se de dois textos escritos próximos um do outro, mas publicados em veículos diferentes. Estes dois textos de Foucault sobre o Aufklärung serão utilizados para circunscrever os limites de cada uma das duas abordagens mencionadas anteriormente. Uma vez alcançada uma compreensão de tais limites, o escrito de Foucault sobre a Antropologia de Kant será analisado, procurando os momentos em que o foco do filósofo (no caso, tomando o exemplo de Kant) se encontra mais próximo ou mais distante do mundo concreto. O principal foco do artigo é a interpretação de Kant feita por Foucault, principalmente, sobre o texto da Antropologia sob um ponto de vista pragmático, ou seja, o foco não é propriamente Kant, mas o que Foucault nos permite compreender em sua interpretação sobre Kant. Sendo assim, a hipótese subjacente ao artigo é a de que a reflexão de Foucault permite pôr a descoberto o trânsito entre essas duas abordagens de modo a se constituir um espaço prévio de compreensão do mundo concreto. Verificar-se-á, ao longo do artigo, se esta hipótese se confirma ou não.

Na primeira parte trataremos de interpretação da Foucault a respeito do texto Was ist Aufklärung com o fito de delinear estas duas abordagens. Na segunda parte pretendemos expor as a ambiguidade do trabalho filosófico diante do mundo a partir de uma “arquitetônica da razão”, tal como Foucault a compreende em Kant.

1. O enfoque de Foucault sobre o “Aufklärung” de Kant

Foucault realiza a interpretação de dois escritos de Kant: Was ist Aufklärung e Antropologia sob um ponto de vista pragmático. Sendo este último objeto de estudo no final dos anos 1950, sua publicação ocorrendo somente anos depois. Em relação ao artigo de Kant, Was ist Aufklärung, Foucault possui dois textos diretamente relacionados. Um é mais longo do que o outro e ambos foram publicados em 19843. Por que duas interpretações publicadas? Ou melhor, qual seria o interesse de Foucault? De alguma forma, ambos os escritos respondem essa pergunta. Vamos mostrar esta resposta em duas breves etapas.

No texto do primeiro escrito, publicado no Magazine Littéraire, nº 207 de maio 1984, o texto mais curto, Foucault apresenta claramente o que poderia ser considerado o seu interesse em interpretar reiteradamente o artigo de Kant, ele afirma:

Em resumo, parece-me que se viu aparecer no texto de Kant a questão do presente como acontecimento filosófico ao qual pertence o filósofo que fala. Se se considera a filosofia como uma forma de prática discursiva que tem sua própria história, parece-me que com esse texto sobre a Aufklärung,vê-se a filosofia – e penso que não forço as coisas demais ao dizer que é a primeira vez – problematizar sua própria atualidade discursiva: atualidade que ela interroga como acontecimento, como um acontecimento do qual ela deve dizer o sentido, o valor, a singularidade filosófica e no qual ela tem que encontrar ao mesmo tempo sua própria razão de ser e o fundamento daquilo que ela diz. Deste modo, vê-se que, para o filósofo, colocar a questão de seu pertencimento a este presente, não será de forma alguma a questão de sua filiação a uma doutrina ou a uma tradição; não será mais simplesmente a questão de seu pertencimento a uma comunidade humana em geral, mas o seu pertencimento ao um certo “nós”, a um nós que se relacione com um conjunto cultural característico de sua própria atualidade

(FOUCAULT, s/d, p.2).

A vinculação entre a “prática discursiva” e a própria natureza da filosofia abre o campo de investigação sobre a história desta prática discursiva. Mas, isto significa um direcionamento e, este direcionamento depende de uma etapa prévia de autoconstatação sobre quando esta prática discursiva ocorre e como está situada. Isso se manifesta como uma investigação sobre a “atualidade discursiva”. Foucault imputa a Kant a iniciativa de ter feito este tipo de direcionamento, mais precisamente, quando o filósofo de Königsberg se detém para escrever sobre o esclarecimento4. Mas, o que é diferente e destacável na ação de Kant frente à prática de outros filósofos? É que esta investigação sobre a prática discursiva permite ao filósofo “colocar” a “questão de seu pertencimento a este presente”. Essa problematização, segundo Foucault, é muito rara e, por isso, constitui o seu principal interesse.

Foucault vai compreender o texto de Kant sobre o Aufklärung como um exemplo da investigação entre a filosofia e o tempo presente ou da prática discursiva da filosofia e o tempo presente. E, o desenvolvimento dessa investigação revela duas possibilidades de prática da filosofia, as quais possuem um determinado grau de influência do próprio tempo ou época em que vive o filósofo. Mesmo a riqueza do legado de Kant para a posteridade permite duas diferentes práticas da filosofia, as quais podem ser entendidas como geradoras de duas abordagens distintas. Estas duas abordagens, ou “tradições”, são assim apresentadas por Foucault quase no final do primeiro texto sobre o Aufklärung: Kant me parece ter fundado as duas grandes tradições críticas entre as quais está dividida a filosofia moderna. Diríamos que em sua grande obra crítica, Kant colocou, fundou esta tradição da filosofia que coloca a questão das condições sobre as quais um conhecimento verdadeiro é possível e, a partir daí, toda uma parte da filosofia moderna desde o séc. XIX se apresentou, se desenvolveu como uma analítica da verdade. Mas existe na filosofia moderna e contemporânea um outro tipo de questão, um outro modo de interrogação crítica: é esta que se viu nascer justamente na questão da Aufklärung ou no texto sobre a revolução; “O que é nossa atualidade? Qual é o campo atual das experiências possíveis?”. Não se trata de uma analítica da verdade, consistiria em algo que se poderia chamar de analítica do presente, uma ontologia de nós mesmos e, me parece que a escolha filosófica na qual nos encontramos confrontados atualmente é a seguinte: pode-se optar por uma filosofia crítica que se apresenta como uma filosofia analítica da verdade em geral, ou bem se pode optar por um pensamento crítico que toma a forma de uma ontologia de nós mesmos, de uma ontologia da atualidade, é esta forma de filosofia que de Hegel à Escola de Frankfurt, passando por Nietzsche e Max Weber, fundou uma forma de reflexão na qual tenho tentado trabalhar (FOUCAULT, s.d, p.8-9).

A tradição denominada de “analítica da verdade” constitui uma abordagem que se detém na investigação sobre as “condições” de possibilidade do conhecimento. Ao passo que, a tradição denominada de “analítica do presente” se detém sobre “nós mesmos”, na medida em que estamos situados no mundo. Com relação à tradição da “analítica da verdade”, Kant encontrou e elaborou a vinculação de um “estar situado no mundo” por meio da filosofia prática, pelo caminho inaugurado pela Fundamentação da metafísica dos costumes e continuado pela Crítica da razão prática. Nesse caso, não se tratou de uma “ontologia da atualidade”, a qual implica uma determinada dimensão de “nós mesmos”, seguindo um modo de filosofar exemplificado pelo caminho referido por Foucault, de “Hegel à Escola de Frankfurt”.

De forma mais precisa, um tipo de deter-se no tempo presente foi logo sinalizado no escrito sobre o Aufklärung, mas a opção subsequente de Kant foi encaminhada pela via da razão prática transcendental, estabelecendo-se dento do que Foucault denominou como a tradição crítica de uma “filosofia analítica da verdade em geral” (FOUCAULT, cit. supra). E, dentro dessa tradição, se consolidou a tarefa de buscar a resposta para a pergunta: “O que podemos fazer?” dentro do conjunto das três perguntas apresentadas por Kant: o que podemos conhecer? O que podemos fazer? O que nos é permitido esperar? (KANT, 1992, p.42).

Foucault procura mostrar que quando Kant escreve o texto Was ist Aufklärung? o filósofo estava se detendo no tempo presente, orientado por algo diferente da razão transcendental que seria posteriormente compreendida como razão pura prática. Kant estava se orientando por uma espécie de “nós” e, apenas com este “nós”, enfrentou a “atualidade”, mostrando que esta não foi desconsiderada pela sua prática filosófica: “é esta que se viu nascer justamente na questão da Aufklärung ou no texto sobre a revolução” (FOUCAULT, cit. supra.). É justamente este momento, que se mostra uma oscilação entre duas abordagens possíveis: “[...] me parece que a escolha filosófica na qual nos encontramos confrontados atualmente é a seguinte [...]” (FOUCAULT, cit. supra.) ou uma “filosofia analítica da verdade” ou uma “ontologia da atualidade” (FOUCAULT, cit. supra.). Isto é, pouco antes de Kant adentrar na Fundamentação da metafísica dos costumes e na Crítica da razão prática. Sendo que os elementos para esta entrada da razão transcendental já estavam disponíveis desde a publicação anos antes da Crítica da razão pura. Desse modo, com o texto Was ist Aufklärung? temos, nessa época, os elementos das duas tradições antes referidas na citação de Foucault. Os elementos potenciais e, por assim dizer precursores do papel da razão na filosofia moral kantiana e, os elementos atuais no embate do filósofo com o seu texto sobre o Aufklärung.

As duas tradições, mencionadas por Foucault, “filosofia analítica da verdade” e “ontologia de nós mesmos” (FOUCAULT, cit. supra.), equivalente a uma “ontologia da atualidade”), podem ser compreendidas dentro da relação do filósofo com o mundo. Diferenciando estas abordagens teríamos que uma delas estaria mais próxima do mundo “ontologia de nós mesmos” e a outra mais distante “analítica da verdade”. Na primeira, a mais próxima, contamos apenas com “nós mesmos” e na segunda, a “filosofia da analítica da verdade” (FOUCAULT, cit. supra.) a ser feita ou exposta, temos que ter um apoio específico. Para Kant, este apoio era a razão transcendental. Mas, o foco aqui é em torno da abordagem que visa a “nós mesmos”, assim, quando Kant escreve o seu texto sobre o Aufklärung, ele enfoca e problematiza a sua própria época. O interessante deste enfoque é que permite a demonstrar a distinção entre as duas tradições. Mas, esta demonstração depende da interpretação de Foucault, por isso, retornamos a ela.

A interpretação de Foucault a respeito se desenvolve em outro texto publicado, no ano de 1984 sobre o Aufklärung de Kant (ver a nota de rodapé mais acima). Nesse segundo escrito, Foucault apresenta um pouco mais sobre o caráter singular do trabalho do filósofo, em particular, quando este é compreendido como agente atuante quando se coloca a questão do papel a desempenhar dentro da sua própria época. Este enfoque, praticamente inédito leva Foucault a escrever: “penso que não forço as coisas demais ao dizer que é a primeira vez – problematizar sua própria atualidade...” (FOUCAULT, cit. supra, p.2), e permite destacar o caráter ambíguo da filosofia que assinala o trabalho filosófico como: ou mais próximo ou mais distante do mundo. Assim, cabe perguntar novamente: qual é o interesse de Foucault em analisar de novo, no mesmo ano, o escrito Was ist Aufklärung? Como resposta podemos ter o seguinte trecho:

É preciso também enfatizar que essa saída é apresentada por Kant de maneira bastante ambígua. Ele a caracteriza como um fato, um processo em vias de se desenrolar; mas a apresenta também como uma tarefa e uma obrigação. Desde o primeiro parágrafo, enfatiza que o próprio homem é responsável por seu estado de menoridade. É preciso conceber então que ele não poderá sair dele a não ser por uma mudança que ele próprio operará em si mesmo.

(FOUCAULT, 2006, p.338)

Em outras palavras, o caráter ambíguo da filosofia está no fato de que ela consiste em um “processo em vias de se desenrolar” e, ao mesmo tempo, no fato de que ela emerge como uma “tarefa e uma obrigação”. Este caráter ambíguo pode ser aprofundado e tal aprofundamento representaria uma especificação ou uma ampliação mais detalhada dos aspectos envolvidos na interface do filósofo frente ao mundo concreto. De certo modo, o fenômeno do Aufklärung pode ser apresentado como um eixo que permite a visualização de uma modificação em uma época, ou de uma modificação da “humanidade do ser humano”. Foucault utiliza essa última expressão:

[...] Será preciso compreender que é o conjunto da espécie humana que está envolvido no processo da Aufklãrung? E, nesse caso, é preciso conceber que a Aufklãrung é uma mudança histórica que atinge a vida política e social de todos os homens sobre a superfície da Terra. Ou se deve entender que se trata de uma mudança que afeta o que constitui a humanidade do ser humano? E se coloca então a questão de saber o que é essa mudança. Ali, também, a resposta de Kant não é despida de certa ambiguidade. Em todo caso, sob uma aparência simples, ela é bastante complexa.

(FOUCAULT, 2006, p.338)

Neste caso, a oscilação está centrada nas consequências mesmas do processo de Aufklärung e a ampliação, que reside na pergunta sobre a “mudança”, atinge um foco diferente. Foucault expõe o efeito ou mudança que, antes, eram compreendidos como aquilo que filósofo “operará em si próprio”, na saída da menoridade culpada. No entanto, agora a “mudança” incide no que “constitui a humanidade do ser humano”. A “humanidade do ser humano” (FOUCAULT, cit. supra) não é, simplesmente, a “vida política e social” que viceja historicamente sobre a “superfície da Terra”. Esta mudança na humanidade é mais profunda na medida em que atinge toda espécie. Assim, a efetividade da Aufklärung pode, também, ser descrita como resultando em uma mudança na espécie, pois, umas das interpretações de Foucault, conforme a citação abre com uma pergunta que se refere ao “conjunto da espécie humana” e, depois, a correlaciona com uma “mudança histórica”. Toda essa análise, enfocando os resultados dos processos desencadeados pelo Aufklärung, continua a conter a dinâmica da relação ambígua, mas agora com o entrelaçamento entre a tarefa cumprida pelo filósofo e a época que vai se modificando.

Foucault avança, enunciando uma hipótese de trabalho:

A hipótese que eu gostaria de sustentar é de que esse pequeno texto se encontra de qualquer forma na charneira entre a reflexão crítica e a reflexão sobre a história. É uma reflexão de Kant sobre a atualidade de seu trabalho. Sem dúvida, não é a primeira vez que um filósofo expõe as razões que ele tem para empreender sua obra em tal ou tal momento. Mas me parece que é a primeira vez que um filósofo liga assim, de maneira estreita e do interior, a significação de sua obra em relação ao conhecimento, uma reflexão sobre a história e uma análise particular do momento singular em que ele escreve e em função do qual ele escreve. A reflexão sobre “a atualidade” como diferença na história e como motivo para uma tarefa filosófica particular me parece ser a novidade desse texto.

(FOUCAULT, 2006, p.341)

O elemento fundamental que estabelece a ambiguidade (“este pequeno texto está na charneira entre a reflexão crítica e a reflexão sobre a história” FOUCAULT, cit. supra) é a tematização da “atualidade” no trabalho do filósofo. Esta tematização reforça a hipótese deste artigo de que o trabalho do filósofo perante o mundo é potencialmente ambíguo. Este trabalho pode vincular “a significação de sua em relação ao conhecimento” e “uma reflexão sobre a história” (FOUCAULT, cit. supra). Novamente, as hipóteses de uma ambiguidade do trabalho filosófico devem aqui acompanhar mais a interpretação de Foucault sobre Kant do que ao próprio Kant. Assim, a possibilidade um tipo de “reflexão singular” (FOUCAULT, cit. supra), tal como a compreende Foucault, está vinculada com a percepção ou a interpretação de que há uma “diferença na história”. Portanto, este aspecto deve ser analisado.

Na sequência da passagem citada, Foucault expõe essa “diferença na história” (FOUCAULT, cit. supra), tal como é percebida pelo filósofo no trabalho interpretativo específico em uma época em transformação. A “diferença na história” o faz estabelecer uma “análise particular do momento singular” (FOUCAULT, cit. supra). E, esta análise resulta naquilo que o filósofo, em questão, se compreende dentro de sua particular “atualidade”. Inclui-se neste “momento singular”, para além do trabalho interpretativo, a efetiva atuação dentro desta “atualidade” (FOUCAULT, cit. supra). Segundo a perspectiva de Foucault, geralmente, o filósofo não desenvolve estas relações, ou seja, não as tematiza sob o signo desta “diferença na história” e, devido a isso, não identifica em suas próprias preocupações uma “atualidade” permita emergir uma “tarefa filosófica particular”.

Mas, a história em si mesma não deixa de acontecer e a possibilidade de descoberta ou percepção de uma “diferença na história” abre a potencialidade de uma análise da “atualidade” na época em que nos encontramos. Porque, como diz Foucault: “A reflexão sobre “a atualidade” como diferença na história e como motivo para uma tarefa filosófica particular me parece ser a novidade desse texto.” (FOUCAULT, cit. supra). Assim, repousa uma ambiguidade no trabalho dos filósofos que compreendem as possíveis “diferenças históricas” e, eventualmente, essa compreensão favorece o destaque e uma atuação dentro da dinâmica histórica. É importante salientar a possibilidade latente de captar ou não a presença de uma “diferença na história” a qual permitirá não somente o imprevisto, consolidando a forma da ambiguidade, mas, igualmente, o surgimento perceptível das duas tradições referidas por Foucault: a “analítica da verdade” e a “analítica do presente” (ou uma “ontologia de nós mesmos” FOUCAULT, s/d, cit. supra, p.8-9).

A referência a essas duas tradições, condicionadas pela ambiguidade latente do trabalho filosófico frente ao imprevisto da “diferença na história” encerra essa preparação de como Foucault compreende o texto kantiano Was ist Aufklärung? Na segunda seção, vamos expor essa ambiguidade do trabalho filosófico a partir da análise de outro texto de Kant: A antropologia sob um ponto de vista pragmático.

2. Sobre o texto da Antropologia

A análise de Foucault sobre Kant se torna mais complexa quando o filósofo francês interpreta o texto da A antropologia sob um ponto de vista pragmático. Foucault tem em vista dois focos: a época tardia da publicação por parte de Kant5. E, o segundo foco, mais importante para este artigo, é uma espécie de confrontação e entre este texto da Antropologia frente ao projeto da filosofia crítica kantiana como um todo (FOUCAULT, 2011). Sob este direcionamento, a atenção de Foucault repousa mais na Crítica da razão pura.6 Essa atenção permitirá Foucault fazer suas próprias distinções perante os escritos de Kant:

A subjetividade, por exemplo. Sobre este ponto a análise antropológica hesitou durante muito tempo. Os textos do período de 1770-1780 vinculam a expressão do Eu à possibilidade de ser objeto para si mesmo. Mas não fica claramente decidido se o próprio Eu está na raiz desta possibilidade ou na objetivação que ela permite. Já a Crítica tomará a decisão: O Eu jamais poderá ser objeto, mas somente forma da síntese. Ora no texto de 1798 o Eu não é considerado em sua função sintética fundamental sem com isto reaver um simples estatuto de objeto.

(FOUCAULT, 2011, p. 58-59).

Ressalta-se que a data de publicação do texto da Antropologia sob um ponto de vista pragmático é 1798. Segundo Foucault, Kant pode ter trabalhado esse texto muito tempo antes e, provavelmente, o tenha retomado várias vezes, pois Kant ministrava um curso sobre antropologia anteriormente a 1798. Cronologicamente, Foucault faz um movimento de retorno, pois em seu texto Gênese e estrutura da antropologia de Kant, opta por interpretar o texto da Antropologia, de Kant, por meio de uma confrontação com o projeto apresentado na primeira Crítica. Foucault faz referência à Crítica da Razão Pura, direcionando-a para a reflexão dos conteúdos da Antropologia, quando estes são remetidos ao “eu empírico”. Nesse contexto, Foucault destaca uma concepção de eu situada na “existência”. Assim, o texto da Antropologia expõe o modo como esta existência é concebida e este modo implica uma profundidade.

Esta profundidade visa o estatuto do “eu”. Foucault interpreta o “Eu” como algo que “não é considerado em sua função sintética fundamental sem com isto reaver um simples estatuto de objeto” (FOUCAULT, cit. supra). Assim, na Crítica da razão pura, o “eu”, dependendo da função que exerce, pode ser designado como “a priori”, mas na Antropologia de Kant, o “Eu” não é mais “a priori” ou “considerado em sua função sintética fundamental” (FOUCAULT, cit. supra). Dessa forma, o “eu” é posicionado em um campo de possibilidades que deve ser desdobrado. Na Crítica da razão pura, o “eu” compreendido em sua “forma empírica” não pode se tornar um “a priori”. A forma “a priori” para o “eu” está reservada ao caráter transcendental conferido pela razão (KANT, 2006, p. 38). Porém, no texto da Antropologia, é este “eu empírico” que assume o papel de elemento prévio ou de “fundo irredutível”. Essa expressão “fundo irredutível” serve para explicitar, inclusive, o caráter transcendental do “a priori”. Foucault desenvolve dentro dessa reflexão o papel desse “eu” e menciona igualmente o “a priori”:

Ele [o “eu”] aparece e se fixa bruscamente em uma figura que, desde então, permanecera imutável no campo da experiência. Esta incidência do Eu falado marca a passagem do sentimento ao pensamento – do Fühlen ao Denken –; sem ser nem o agente real nem a simples tomada de consciência desta passagem, ele é a forma empírica e manifesta na qual a atividade sintética do Eu aparece como figura já sintetizada, como estrutura indissociavelmente primeira e segunda: não é dada de imediato ao homem, em uma espécie de a priori de existência; mas, quando aparece, inserindo-se na multiplicidade de uma crônica sensível, oferece-se como já aí, como fundo irredutível de um pensamento que só pode operar esta figura da experiência uma vez constituída: neste Eu o sujeito fará o reconhecimento de seu passado e a síntese de sua identidade. Em outros termos, o que é a priori do conhecimento do ponto de vista da Crítica não se transpõe imediatamente na reflexão antropológica em a priori da existência, mas aparece na espessura de um devir em que sua súbita emergência infalivelmente assume, na retrospecção, o sentido do já-aí

(FOUCAULT, 2011, p.58-59).

Esse “eu” que “incide” no “campo da experiência” se mostra complexo sob diversos ângulos. Sob o ângulo que remete ao mundo concreto, este “eu” ou ainda o “eu falado” é uma “forma empírica” ou “figura sintetizada” 7. Mesmo assim, esse “eu” não é real (“não é o agente real”) e, não é a abstração da “consciência” ou uma abstração determinada que o agente humano possa ter. Ele não é algo que possa ser tomado ou separado do homem: a sua incidência é uma espécie de manifestação ou de um fenômeno, que não podem ser derrogados. O impedimento desta derrogação é assinalado pela expressão “já-aí”. Pode-se dizer que este “já-aí” possui uma influência ou ligação potencial com o ser-projetado no mundo, peculiar ao Dasein heideggeriano. Mas, Foucault não faz esta ligação. Ele mantém o seu foco sobre Kant. Isso deveria ser estudado em outro artigo.

No desenvolvimento da relação entre os textos da Crítica da razão pura e da Antropologia sob um ponto de vista pragmático, Foucault apresenta a hipótese de que há uma inversão, na citação mais abaixo ele mencionará uma “estrutura inversa” (FOUCAULT, 2011, p. 60). Esta inversão retoma o caráter da profundidade referente ao estatuto transcendental do a priori. Trata-se de uma inversão que complementaria a ambos os trabalhos de Kant. Na proposta da Antropologia, Foucault afirma que esta obra possui não somente o referido “já-aí” (FOUCAULT, cit. supra, p.58-59), na função de um “fundo irredutível”, mas, também, que esse elemento, do “já-aí”, é algo originário. A explicação do que significa tal caráter originário, se torna compreensível a partir plano de trabalho realizado por Kant da Crítica. Mas, com a ressalva de que há aqui um viés da compreensão proposta por Foucault. Foucault afirma que o texto da Antropologia torna explícita uma inversão, caso este texto da Antropologia seja apresentado como uma dimensão prévia frente ao entendimento e, nisso, uma dimensão prévia ao a priori exposto na Crítica da razão pura. Enfim, essa inversão, é assim compreendida por Foucault:

Assim, a relação entre o dado e o a priori assume na Antropologia uma estrutura inversa da que era apreendida na Crítica. O a priori, na ordem do conhecimento, torna-se, na ordem da existência concreta, um originário que não é cronologicamente primeiro, mas que, desde que apareceu na sucessão das figuras da síntese, se revela como já-aí; em contrapartida, o que é dado puro na ordem do conhecimento aclara-se, na reflexão sobre a existência concreta, com surdas luzes que lhe conferem a profundeza do já operado

(FOUCAULT, 2011, p. 60).

O vetor da interpretação de Foucault sobre Kant se mantém centrada no texto da Antropologia, sob a ênfase de anunciar esse aspecto “originário” inscrito na “existência concreta”. Sendo assim, ele apresenta mais detalhes sobre esta “inversão” ou “estrutura inversa”, na relação entre os dois textos kantianos:

A estrutura é inversa quanto à dispersão originária do dado. Segundo a perspectiva antropológica, o dado, com efeito, jamais é oferecido de acordo com uma multiplicidade inerte, indicando de maneira absoluta uma passividade originária e reclamando, sob diversas formas, a atividade sintética da consciência. A dispersão do dado já está sempre reduzida na Antropologia, secretamente dominada por toda uma variedade de sínteses operadas fora do labor visível da consciência: é a síntese inconsciente dos elementos da percepção e das representações obscuras que nem mesmo a luz do entendimento consegue sempre dissociar; são os esquemas de exploração que traçam, no espaço, espécies de síntese insulares; são as reorganizações que, na sensibilidade, permitem a substituição de um sentido por outro, são enfim, os fortalecimentos e enfraquecimentos nos efeitos sensíveis que se antecipam, como que espontaneamente, às sínteses voluntarias da atenção. Assim, aquilo que a Crítica acolhia como a superfície infinitamente tênue de múltiplo que nada tem de comum consigo mesmo senão o fato de ser originariamente dado aclara-se na Antropologia com uma profundidade inesperada e organizado, tendo recebido as figuras provisórias ou sólidas da síntese. Aquilo que para o conhecimento é puro dado não se oferece como tal na existência concreta. Para uma antropologia, a passividade absolutamente originária não está jamais aí

(FOUCAULT, 2011, p. 59-60).

Esta “profundidade inesperada” (FOUCAULT, cit. supra) se refere à inscrição na existência “concreta” de um estado de “já-aí” (FOUCAULT, cit. supra, p.58-59) ou de “fundo irredutível” (FOUCAULT, cit. supra, p.58-59). Este “já-aí” é composto por elementos sensíveis ou associado à sensibilidade, na qual, tais elementos sensíveis, se fortalecem e se enfraquecem (“fortalecimentos e enfraquecimentos”, FOUCAULT, cit. supra) mediante “efeitos”, igualmente denominados de “sensíveis”. Este conjunto, aparentemente redundante de elementos sensíveis para com “efeitos” sensíveis, constitui o “eu empírico” em seu estatuto “originário” (FOUCAULT, cit. supra, p. 60). A despeito desta redundância, o inédito na interpretação de Foucault é que tais “efeitos sensíveis se antecipam” e constituem o “eu empírico” como um elemento prévio à “atividade sintética da consciência”, portanto, antes também do a priori transcendental.

Quando a interpretação foucaultiana chega a este peculiar “eu empírico”, se torna possível um posicionamento mais explícito perante o plano geral da filosofia transcendental kantiana. Para tornar claro esse posicionamento, o passo seguinte é visualizar a filosofia kantiana como um cenário de fundo. Porque, tal visualização mais abrangente que assinalará a diferença entre uma prática preocupada com o âmbito empírico e uma prática preocupada com crítica e uma “filosofia analítica da verdade” (FOUCAULT, s/d, cit. supra, p.8-9). Entretanto, nunca é demais recordar que a filosofia transcendental está vinculada à “atividade sintética da consciência” e, tal disposição racional se mantém no caminho posterior da filosofia moral prática que é aberto pela Fundamentação da metafísica dos costumes.

Finalmente, essa possível faceta da filosofia kantiana, que pode ser denominada por Foucault de “filosofia empírica”, possui agora um espaço para ser apresentada. Para Foucault, esse espaço é diferente da filosofia moral prática, a qual, na visualização ampla da filosofia kantiana, já está desenvolvida na Fundamentação da moral dos costumes e na Crítica da Razão Prática, quando, então, Kant publica o seu texto da Antropologia. A referida “filosofia empírica”, alicerçada no “já-aí”, surge nesta leitura foucaultiana do texto da Antropologia e desenvolve-se junto aos elementos sensíveis em “domínios que se equilibram”:

Do lado da filosofia pura (que abrange a Crítica a título de propedêutica), nenhum lugar é dado à antropologia. A “fisiologia racional”, que considera a Natureza como Inbegrif aller Gegenstand de Sinne [conjunto de todos os objetos dos sentidos – M.F.], só conhece a física e a psicologia racional. Em contrapartida, no vasto campo da filosofia empírica, dois domínios se equilibram: o de uma física e o de antropologia que deverá acolher o edifício mais restrito de psicologia empírica.

(FOUCAULT, 2011, p. 64)

A filosofia empírica possui um “vasto campo” e, este serve para situar o lugar da antropologia e da psicologia empírica dentro da “arquitetônica da razão”. No caso da física, sua presença e respectivo lugar, que deve ocupar, já estão situados previamente na Crítica da razão pura. Na Crítica, a física não tem um papel constitutivo fundamental. Ela toma parte nas motivações de Kant, quando ele a expõe em uma comparação com a metafísica. Retornando a Foucault, ele assinala que essa suposta “filosofia empírica” possuiria um status profundo e abrangente que se igualaria ao status da Crítica no que diz respeito aos objetivos de desenvolvimento de uma “arquitetônica da razão”. O modo como ele apresenta essa possibilidade é por meio de um entrelaçamento implícito entre a Antropologia e a Crítica:

À primeira vista, não há simetria rigorosa entre a filosofia pura e a filosofia empírica. A correspondência que vale imediatamente para a física não se prolonga quando se trata do sentido interior e do ser humano. A antropologia, diferentemente da psicologia, só figura ao lado do empírico; não se pode, pois, ser regida ou controlada pela crítica, na medida em que esta concerne ao conhecimento puro. Não mais do que a física newtoniana, para edificar-se e verificar-se, teve necessidade de uma reflexão crítica, a Antropologia, para se construir e ocupar o lugar que lhe reserva a arquitetônica [Arquitetônica da razão pura – M. F, p. 64], não terá que recorrer a uma Crítica prévia. Portanto, não há empreendimento crítico possível sobre a forma ou o conteúdo de uma antropologia. De uma a outra forma de reflexão, o contato é nulo. Tudo isto, aliás, não é negativamente confirmado pela própria antropologia? Em parte alguma a prévia crítica é invocada: e, se a correspondência entre os dois textos é facilmente legível, jamais é dada nem refletida como tal. Ela está escondida no texto da antropologia do qual forma a trama; e há que se considerá-la a título de fato, como um dado de estrutura, não como a manifestação de um ordenamento prévio e intencional

(FOUCAULT, 2011, p. 64-65).

O entrelaçamento, ou “trama”, permite uma “correspondência” que é “legível”, mas que nunca é objeto de reflexão (“ordenamento prévio e intencional”, (FOUCAULT, cit. supra). Existe uma aproximação e uma desaproximação entre ambas: do ponto de vista da Crítica, acontece uma desaproximação: “não há empreendimento crítico possível” (FOUCAULT, cit. supra) que vise a Antropologia. E, do ponto de vista da Antropologia, a Crítica não é “invocada” (FOUCAULT, cit. supra) como um elemento prévio e necessário. Mas, a aproximação surgiria de uma perspectiva maior, que é aquela a partir da denominada, “arquitetônica da razão pura” (FOUCAULT, 2011, p.64). Mas, como se dá esta aproximação? Todos os elementos prévios desenvolvidos anteriormente ao longo desta seção preparam uma resposta para essa pergunta. Inserimos essa resposta abaixo junto com os principais elementos já trabalhados nesta seção.

A Crítica está “escondida no texto da antropologia” (FOUCAULT, cit. supra) e, quanto à Antropologia, esta se estabelece com o estatuto de um “já-aí” ou de um “fundo irredutível”. Então, há uma espécie de cesura dentro da “arquitetônica da razão pura” e a solução da cesura depende de uma compreensão mais profunda que admita concessões: da Crítica para a existência exposta pela Antropologia e da Antropologia para seu estado tardio frente à Crítica. Embora seja um estado tardio, ainda assim ele é irredutível, pois não é possível ignorar o “já-aí” da existência e do mundo concreto. Isto conclui esta seção e podemos nos encaminhar para as considerações finais.

Conclusão

Este artigo teve como tema geral o trabalho do filósofo perante o mundo concreto. E este trabalho do filósofo foi visto a partir de duas dinâmicas: (1) mais próximo ao mundo e (2) mais distante do mundo. O propósito específico do artigo foi o de investigar a possibilidade de um acesso prévio ao mundo antes de qualquer formulação de cunho ético substancial. Para realizar esta investigação, o artigo se dividiu em duas seções.

A primeira seção foi uma etapa preparatória para o enfrentamento dos requisitos pertinentes ao propósito específico. Nessa seção foi exposta a interpretação feita Foucault e, mostrou-se uma dupla possibilidade de trabalho a ser assumido pelo filósofo perante uma “diferença na história”. Foucault se detém no texto Was ist Aufklärung? de Kant e conduz a sua análise mostrando a importância de Kant na origem de duas tradições no trato da filosofia moderna: a “analítica da verdade” e a “analítica do presente” (ou “ontologia de nós mesmos”). A percepção desta possível “diferença na história”, a qual diz respeito aos fenômenos do mundo concreto, permitirá a distinção entre as duas tradições mencionadas, e, portanto, também a de uma ambiguidade latente no trabalho dos filósofos, em geral, perante o mundo concreto.

Na segunda seção buscou-se mostrar esta ambiguidade do trabalho filosófico por meio da interpretação que faz Foucault do livro de Kant A antropologia sob um ponto de vista pragmático. Foucault expõe um entrelaçamento entre a Crítica da razão pura e o texto da Antropologia, este entrelaçamento se caracteriza por uma desaproximação e por uma aproximação. Inicialmente, do ponto de vista da Crítica da razão pura, não há um apelo para uma antropologia e, do ponto de vista do texto da Antropologia não há um apelo ao caráter prévio da razão transcendental. Entretanto, sob uma perspectiva maior, a da “arquitetônica da razão”, há entre ambas uma aproximação, e a Crítica cede espaço para um discurso sobre o homem no mundo concreto na medida em que este se constrói pragmaticamente. Por sua vez, a Antropologia, embora elaborada em aulas dadas por Kant durante muitas décadas assume um lugar tardio no conjunto das publicações da “arquitetônica da razão”.

A conclusão é que há a possibilidade de um espaço prévio e esta possibilidade repousa na ambiguidade latente do trabalho filosófico. Dentro dessa ambiguidade, o filósofo pode ou não compreender a sua situação a partir de uma “diferença na história”. Segundo Foucault, Kant ensejou esta “diferença na história” ao discorrer sobre o Aufklärung, mostrando esta possibilidade. Resta ainda, como sugestão final, aprofundar o espaço prévio da referida ambiguidade latente para conseguir esclarecer ainda mais os seus aspectos.

2O significado da expressão “fatores diversos do mundo concreto” é: a necessidade de lidar com fenômenos do mundo real, como por exemplo, uma greve, uma guerra, uma repressão governamental etc. E, além disso, lidar também com as relações iniciadas por estes fenômenos seja em um caráter micro ou macro nos respectivos horizontes de repercussão.

3Conforme a bibliografia organizada por Machiel Karskens (Radboud University Nijmegen). Um destes escritos intitula-se Qu'est ce que les Lumières?e é de uma aula de 5 de Janeiro de 1983, publicado em 1984 (Magazine Littéraíre). O outro escrito foi publicado por Paul Rabinow (Foucault Reader) também em 1984, intitulado: What is Enlightenment?. Ambos escritos são diferentes, mas não fundamentalmente diferentes, pois possuem o mesmo objeto de análise. Cronologicamente os textos: Qu'est ce que les Lumières?pode ser referido como o “primeiro escrito” e o texto do What is Enlightenment?pode ser referido como o “segundo escrito”.

4Esta passagem mostra o foco de Kant na atualidade de sua época: “Se for feita a pergunta ‘vivemos agora em uma época esclarecida?’ A resposta será ‘não, vivemos em uma época de esclarecimento’ [...] Somente temos claros indícios de que agora lhes foi aberto o campo no qual podem lançar-se livremente a trabalhar e tornarem progressivamente menores os obstáculos ao esclarecimento geral ou à saída deles, homens, de sua menoridade culpada, da qual são culpados. Considerada sob este aspecto, esta época é a época do esclarecimento ou o século de Frederico” (KANT, 1974, p.112).

5Kant oferecia o curso de Antropologia bem antes da publicação do seu texto, cujo conteúdo foi baseado neste curso ao longo de anos, isto está registrado na nota que ele deixou no prefácio da publicação de seu livro A antropologia sob o ponto de vista pragmático (KANT, 2006, p.19, nota 2).

6Na segunda seção da Fundamentação da metafísica dos costumes Kant menciona a Antropologia, mas está focado na pureza da origem dos conceitos “[...] todos os conceitos morais tem sua sede e origem na razão [...]” e que “[...] sempre subtraímos à sua genuína influência e ao valor irrestrito das ações tanto quanto acrescentamos de empírico a eles” (KANT, 2009, p.179).

7No livro de Hubert Dreyfuss e Paul Rabinow, Michel Foucault: uma trajetória filosófica, igualmente se refere ao eu empírico e mostra o quanto isto é determinante: “Kant tenta resgatar a forma pura do saber da história e do mundo factual, relegando toda contingência e obscuridade ao conteúdo do conhecimento. Mas, essa simples distinção não soluciona o problema da positividade, visto logo se torna visível o fato de que não apenas o conteúdo, mas também a forma do conhecimento empírico pode ser considerados sujeitos às influências empíricas” (p. 41). Embora, estes dois autores tenham como base o livro “A palavra e as coisas” (1966) de Foucault, o texto da “Gênese e estrutura da antropologia de Kant (1961) é anterior e serviu de base para o livro de 1966.

Referencias

DREYFUS, H; RABINOW, P. Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de janeiro: Forense Universitária, 2013. [ Links ]

FOUCAULT, M. Gênese e estrutura da Antropologia de Kant. Tradução de Márcio Rives da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo: Edições Loyola, 2011. [ Links ]

FOUCAULT, M. O que é o iluminismo? Tradução: Wanderson Flor do Nascimento (s/d). Disponível em: http://michel-foucault.weebly.com/uploads/1/3/2/1/13213792/iluminismo.pdf. Acesso em: 20 fev. 23 [ Links ]

FOUCAULT, M. O que são as luzes? In: Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento. Tradução de Elisa Monteiro. Rio de Janeiro; Forense Universitária, 2000.(Coleção: Ditos e Escritos;2). [ Links ]

KANT, E. Resposta à pergunta: que é “esclarecimento”? In: Textos Seletos. Petrópolis: Vozes, 1974. [ Links ]

KANT, E. Antropologia de um ponto de vista pragmático. São Paulo: Iluminuras, 2006. [ Links ]

KANT, E. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Discurso Editorial; Bacarolla, 2009. [ Links ]

KANT, E. Lógica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992. [ Links ]

Recebido: 23 de Fevereiro de 2023; Aceito: 19 de Outubro de 2023

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