Introdução
Como todos os textos clássicos, a breve conferência de Jean Piaget, intitulada Os procedimentos da educação moral (PIAGET, 1996) exige cuidado e esforço para sua leitura e compreensão, pois a cada releitura, em diferentes tempos, altera-se a lente daquilo que se olha no texto. Assim, torna-se clássico, pela magnitude, amplidão e importância. Para Ítalo Calvino (2007) “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”, pois cada releitura é uma descoberta. Com o resgate dessa conferência dada por Piaget em 1930, em Paris, estamos respondendo à pergunta do título do livro de Ítalo Calvino: Por que ler os clássicos (2007). Nesse sentido, esse escrito de Piaget é atual na defesa da formação humana sustentada pela construção do autogoverno, da infância e da aposta no trabalho cooperativo, como um contraponto às formas contemporâneas de vida individualistas. Um resgate fundamental ao referenciar o jovem Piaget, feito por Richard Kohler (2011), é o da criança ativa produtora de seus conhecimentos, no que se refere à construção dos aspectos da internalização da lei e da possibilidade das relações de cooperação e respeito pelo outro nos grupos de convivência. A vastíssima produção intelectual do jovem Piaget compreende suas pesquisas empreendidas até fins da década de 1920, embora muito do material pesquisado seja publicado na década seguinte, como é o caso de O Julgamento Moral na Criança (PIAGET, 1977).
Piaget investiga uma teoria da educação moral “da” e “para” a infância. O que o autor pensou, nos anos de 1930, serve para nos perguntarmos quem é a criança e como precisamos proceder com ela para a construção de vínculos de respeito e cooperação mútua. Sobretudo, esse é um exercício instrutivo e genuíno para pensar a infância, um exercício de diálogo e compreensão da educação infantil, nos campos da filosofia, psicologia, pedagogia e biologia. Do mesmo modo, Piaget apresenta uma compreensão do domínio psicológico da infância, principalmente, de seu psiquismo, para pensarmos por que a criança age, como ela age e de que forma age.
O núcleo central apresentado pelo autor está na tensão entre a dupla moralidade infantil. De um lado, está o respeito unilateral. A moralidade que se deixa guiar cegamente e externamente pelo que diz o adulto; é ele que vai fortalecer a coação externa, como forma de proteção da criança. É deste respeito unilateral que brota a moral heterônoma, ou seja, que está subordinada às leis e vontades exteriores. Ela é natural e necessária para esse período da infância, como uma das formas primárias de desenvolvimento da moralidade infantil. Entretanto, o problema surge quando a moral heterônoma se cristaliza na infância, sem que ocorra aí contrapontos importantes que possam conduzir ao descentramento progressivo do egocentrismo infantil. Quando isso ocorre, a criança torna-se um adulto heterônomo para o resto da vida. Por isso, destaca-se a necessidade da realização da passagem da heteronomia para a autonomia, como educação moral para o autogoverno e para a independência do ser humano. Ao apostar nisso, Piaget tem em mente oferecer à condição infantil as condições intelectuais e psicológicas necessárias para seu desenvolvimento saudável, para que possa ingressar autonomamente na sociedade adulta.
Por outro lado, a tensão que se coloca na moralidade do grupo repousa na contestação da autoridade, como busca pela relação de igualdade. Nesta fase, acentua-se relações de cooperação entre os sujeitos e os pares da mesma idade. Mas isso não significa, de forma alguma, que não será necessária a presença do adulto, como aquele que exerce o papel de mediação na relação entre ele, a criança e o mundo. Considerando isso, se o descentramento infantil é necessário, então a presença do grupo representado pelos pares da mesma idade é decisiva, pois é por meio da contraposição crítica constante com o outro que a criança da mesma idade representa que se inicia a progressiva conquista da autonomia pela própria criança.
Estas considerações gerais e introdutórias servem para precisar o tema que pretendemos investigar neste ensaio, a saber, a autonomia dos estudantes no modo como é tratada por Jean Piaget na referida conferência. Passada a avalanche de estudos e, principalmente, do modismo acerca do construtivismo da década de 1990, podemos nos debruçar, agora, com mais calma e menos impregnados pela visão pragmática imediatista sob aspectos do pensamento de Piaget que vão além da predominância cognitivista que marcou sua recepção no Brasil.4 Neste contexto, resgatar aspectos de sua proposta de educação moral da infância visando à autonomia da criança é atual, sobretudo, considerando o contexto político e educacional em que vivemos, marcado pela forte ascensão do conservadorismo autoritário. Pois, pensar na possibilidade de uma educação autônoma da criança é um aspecto decisivo para sua futura participação dialógica no espaço público. Neste contexto, Jean Piaget contribuiu muito ao enfatizar a educação entre os pares acompanhada pela liderança intelectual e formativa do adulto, representado principalmente na figura do professor.
O ensaio divide-se em três partes. Na primeira tratamos brevemente das formas como podem ser classificados os procedimentos da educação moral, observando a condição fundamental de que a criança é o ponto de partida para qualquer técnica e domínio que se deseja seguir. Na segunda parte reconstruímos mais detalhadamente os dois tipos fundamentais de relações interindividuais, que coexistem nas crianças e que conduzem a avaliações e comportamentos muito diferentes: de um lado, a heteronomia, caracterizando a condição na qual os indivíduos se submetem à vontade de outrem e, de outro lado, a autonomia, que compreende a capacidade do autogoverno por meio da vontade própria refletida e consciente. Para concluir, a terceira parte analisa os procedimentos da educação moral, referindo-os primeiramente por meio de técnicas gerais e, na sequência, tomando-os do ponto de vista de diferentes domínios que habitualmente observamos.
Os procedimentos da educação moral
Para Piaget, na referida conferência, os procedimentos de educação moral podem ser classificados sob diferentes pontos de vista: primeiramente, pelos fins perseguidos, a partir da formação de uma personalidade livre ou ao conformismo do grupo social. Em segundo lugar, podemos considerar o ponto de vista das técnicas: a partir de uma lição moral, por meio da oralidade ou por uma pedagogia ativa. Em terceiro lugar, podemos classificar os procedimentos de educação moral em função do domínio considerado.
Precisamos tomar o cuidado, segundo o autor, para não cairmos num caos ao classificarmos os procedimentos de educação moral. É preciso levar em conta, quaisquer que sejam os fins que se deseja alcançar e as técnicas a se utilizar, a questão primordial que repousa nas disponibilidades da criança, nas relações que estabelecem com outras crianças e com os adultos. A questão central é, como se pode observar, as disponibilidades das crianças. O que Piaget tem em mente aqui, ao falar de disponibilidades? Disposição é um termo nuclear da pedagogia moderna, empregado tanto por Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) como por Immanuel Kant (1724-1804), referindo-se às capacidades humanas (faculdades) e o modo como elas precisam ser formadas pedagogicamente. Estes dois autores desenvolvem um “amplo programa” de formação das capacidades humanas que estará na base das teorias educacionais posteriores, incluído entre elas, a própria teoria educacional piagetiana. Neste sentido, disposições referem-se, sobretudo em Piaget, às capacidades amplamente compreendidas do educando que o educador precisa levar em conta para coordenar e dirigir o processo educativo (PIAGET, 1977; 1987). Por isso, está claro, para o jovem Piaget, que estas capacidades não se restringem somente a algumas competências e habilidades, de natureza eminentemente cognitiva. São capacidades amplas, que se referem também e, principalmente, ao domínio ético e estético, pois uma formação ampla da criança implica no trabalho pedagógico concreto, por meio do jogo e da brincadeira, com a reflexão sobre ideais de verdade, bondade e beleza. É isso que torna compreensível a ênfase dada pelo Genebrino a certos dispositivos que são indispensáveis para acionar as capacidades infantis na perspectiva ética, como o trabalho cooperativo de grupo.
Em síntese, ao associar a noção de procedimento às disposições infantis e ao compreendê-las de maneira ampla, não só na perspectiva cognitiva em sentido epistemológico estrito, mas também ética e estética, Piaget amplia a própria noção de procedimento para além de um possível uso instrumental restrito. O procedimento tem a ver assim com determinada postura intelectual e formativa a ser construída pelo educador (professor) em sua interação permanente com seu educando em determinado contexto sociocultural. Neste sentido, o questionamento sobre as formas de procedimento no processo educacional é tão importante quanto à própria problematização do conteúdo, pois a questão do que ensinar está intimamente vinculada à questão de como fazê-lo.
Os dados psicológicos e os fins da educação moral
Piaget parte da proposição de que nenhuma realidade moral é completamente a priori. O que é dado pela constituição psicobiológica do indivíduo são disposições, tendências afetivas e ativas (simpatia, medo, sociabilidade, subordinação, imitação, afeição). Deixadas livres, essas forças inatas permaneceriam anárquicas, sendo fonte dos piores excessos, tornando a natureza psicológica do indivíduo neutra, do ponto de vista moral. Para que a realidade moral se constitua é necessária uma disciplina normativa e, consequentemente, que se estabeleça relações uns com os outros (crianças entre si e com adultos), pois são elas que levarão a criança a tomar consciência do dever e a colocar acima do seu “eu” essa realidade normativa na qual a moral consiste.
Portanto, não há moral sem educação e não há educação sem o processo de socialização que implica na interação constante entre os seres humanos. Não é só o inatismo que é rompido aqui pela perspectiva de uma educação socializadora, mas também o próprio egocentrismo infantil. Nascer com capacidades mínimas é algo indispensável para a condição humana e dispor das forças sociais e pedagógicas para desenvolvê-las é tão importante quanto a carga genética adquirida. De outra parte, se o agarrar-se firmemente em seu próprio ego é importante na fase inicial para que estruturas mínimas sejam criadas, ao par disso também é decisivo que a criança encontre progressivamente formas de descentramento de si mesma, pois isso é decisivo para sua socialização cooperativa adulta. Na terminologia de Piaget, se o egocentrismo infantil não for descentrado progressiva e pedagogicamente, a criança permanecerá quando adulto com a imagem equivocada de ser o centro do mundo. Precisamente por isso que a educação socializadora na perspectiva ética cumpre papel importante para provocar tal descentramento. Ou seja, a ruptura com o egocentrismo infantil é condição indispensável para a socialização adulta na perspectiva cooperativa.
Na medida em que a elaboração das realidades espirituais (intelectuais) depende das relações que o indivíduo estabelece com seus semelhantes, reconhecemos que não há uma única moral e, da mesma forma, diferentes reações morais quanto às formas de relações sociais ou interindividuais que ocorrerem entre a criança e o seu meio ambiente. Dependendo dos procedimentos que a educação moral emprega por meio de uma ou outra técnica (ou exercício) utilizada, ela moldará consciências e determinará comportamentos de modos diferentes. Por isso, cabe insistir mais uma vez, a escolha dos procedimentos não é de maneira alguma apenas uma escolha técnica no sentido instrumental.
Piaget utiliza, na referida conferência, as pesquisas de intelectuais e educadores proeminentes, como Durkheim e sua escola, os psicólogos da infância e os trabalhos de Bovet. Estes estudos, principalmente os de Bovet, referendam a posição de que existem entre as crianças, senão no geral, duas “morais”, isto é, duas maneiras de sentir e de se conduzir, uma moral heterônoma e uma moral autônoma, as quais resultam da pressão no espírito da criança de dois tipos fundamentais de relações interindividuais. Estas duas morais são distintas durante a infância e se reconciliam mais tarde, na adolescência, dependendo obviamente da qualidade do procedimento da educação moral.
Mostra-se unânime entre os estudiosos da moral, durante este período dos estudos de Piaget, por volta da década de 1930, que o respeito constitui o sentimento fundamental que possibilita a aquisição de noções morais. Neste contexto, conforme Bovet, duas condições são necessárias e suficientes para que se desenvolva o senso de obrigação: que um indivíduo dê conselhos a outro e que esse outro respeite aquele de quem emana o conselho. Para Bovet, então, o respeito pelas pessoas se constitui em um fator primário, pois até mesmo a lei dele deriva. Desse modo, inserindo-se nessa tradição, Piaget considera o respeito uma categoria moral decisiva para a educação infantil, sobretudo, na ambiguidade que o constitui, caracterizado, por um lado, pela forma unilateral de relacionamento humano e, por outro, pela forma recíproca. A descoberta desta ambiguidade vai permitir a Piaget, como ainda veremos, pensar de maneira inovadora a questão da educação moral infantil: o mesmo sentimento de heteronomia que caracteriza a obediência irrestrita da criança ao adulto, em sua fase inicial, precisa ser superado para que possa nascer a autonomia e, com ela, o respeito recíproco.
Portanto, se o respeito se constitui numa inegável categorial moral, Piaget analisa sua dupla dimensão. A dimensão unilateral implica uma desigualdade entre aquele que respeita e aquele que é respeitado (o pequeno pelo grande, a criança pelo adulto, o caçula pelo mais velho). Este respeito implica uma coação inevitável do superior ao inferior, sendo, pois, característico de uma primeira forma de relação social, designada de relação de coação. O segundo tipo de respeito, Piaget caracteriza como mútuo, porque os indivíduos que estão em relação se consideram como iguais e se respeitam reciprocamente. Esse respeito não implica coação e caracteriza um segundo tipo de relação social, que é designada como relação de cooperação. Essa cooperação constitui o essencial na relação entre crianças ou adolescentes.
São esses dois tipos de respeito que parecem explicar a existência de duas morais e que muito se observa nas crianças. Podemos afirmar, de acordo com Piaget, que o respeito unilateral, fazendo par com a coação moral, conduz a um resultado que é o sentimento de dever. Mas um dever primitivo, resultante de uma pressão do adulto sobre a criança, por isso o dever é essencialmente heterônomo. Ao contrário, a moral resultante do respeito mútuo e das relações de cooperação caracteriza-se como um sentimento do bem, mais interior à consciência, como ideal de reciprocidade, tornando-se por isso autônoma.
Piaget toma alguns exemplos dessas oposições, a começar pela submissão às regras, este espírito de disciplina que Durkheim vê como primeiro elemento da moralidade. Quando se observa questões de jogo, por exemplo, podemos verificar diferentes reações, dos pequenos e dos mais velhos. Os pequenos (de 5 a 8 anos) aceitam a regra dos mais velhos por respeito unilateral e assumem a regra prescrita pelos mais velhos como imutável e sagrada, permanecendo exterior à consciência. Os mais velhos, ao contrário, de modo cooperativo e respeito mútuo, fazem eles mesmos as regras e a seguem, cuidadosamente, sendo autônoma e fazendo parte de suas personalidades. Há, então, dois tipos de regras que acompanham os dois respeitos: a regra exterior ou heterônoma e a regra interior ou autônoma; somente a segunda conduz à transformação da postura dos próprios envolvidos.
Nesta perspectiva, os efeitos do respeito unilateral e do respeito mútuo no que se refere à formação da personalidade merecem uma análise mais detida, como considera o próprio Piaget. A coação adulta não é capaz, por si só, de reprimir o egocentrismo infantil e aqui está um ponto nuclear das intuições piagetianas. A submissão ao adulto e à fantasia anárquica do “eu” não são tão contraditórias assim como parecem ser e, sendo assim, anomia e heteronomia podem acomodar-se entre si. Ao contrário, a cooperação conduz a ao dinamismo da personalidade, ou seja, à submissão de regras reconhecidas como boas. Então, pela cooperação entre pares o egocentrismo não é reprimido, mas confrontado com experiências de socialização que indicam seu próprio limite e a necessidade de evoluir para o respeito recíproco.
Do ponto de vista da responsabilidade, exemplos como mentir e roubar, a oposição permanece muito clara. A intenção não desempenha nenhum papel, a materialidade da desobediência é mais importante. Ao contrário, quando há cooperação há responsabilidade subjetiva e julgamento em função das intenções. Neste sentido, fica claro o quanto Piaget aposta no trabalho cooperativo para formar sentimentos morais que são indispensáveis à autonomia da criança. A superação do respeito unilateral pelo respeito mútuo significa, neste sentido, a passagem de uma moral heterônoma para uma moral autônoma.
No campo da justiça, na medida em que o respeito unilateral predomina sobre o respeito mútuo, a autoridade predomina sobre a justiça. Para os menores, a razão, invariavelmente, está com o adulto, mesmo que este distribuísse de maneira desigual as tarefas entre os próprios pares da mesma idade. Para os maiores, como a vida social firma-se e regulamenta-se cada vez mais, a necessidade de igualdade se estabelece com mais força. A adesão aos grupos e à cooperação levará a criança a colocar a justiça acima da autoridade e a solidariedade acima da obediência. Este passo torna-se decisivo para a moral autônoma e, com ela, para vida cooperativa no espaço público. Contudo, Piaget está ciente de que colocar a justiça acima da autoridade e a solidariedade acima da obediência exige um trabalho formativo de grande esforço, do qual depende fundamentalmente o preparo intelectual e pedagógico do educador, que tenha condições situar a pergunta pela condição infantil (quem é a criança?) e investigá-la adequadamente, além de o próprio educador se perguntar frequentemente sobre sua condição de educador e sobre os alcances e limites de seu próprio trabalho.
Quanto à noção de sanção é possível mostrar o quanto a reação da criança é diferente quando dominada pelo respeito unilateral ou pelo respeito mútuo. O meio de impor uma regra exterior à consciência de um indivíduo é sancioná-la, seja pela censura ou por símbolos materiais de censura que são os castigos. Quando a criança respeita o adulto, essa reação lhe parece natural, como uma consequência da desobediência. Ao contrário, a infração às regras de cooperação resulta em supressão de laços de solidariedade.
Em síntese, Piaget argumenta que existem duas morais que coexistem na criança e que as características da heteronomia e da autonomia conduzem a avaliações e comportamentos diferentes e se encontram igualmente nos adultos. Para o autor, a moral da heteronomia e do respeito unilateral parece corresponder à moral das prescrições e dos rituais, próprios das sociedades mais primitivas, enquanto que a moral da cooperação, ao contrário, é produto mais recente da diferenciação social e do individualismo que resulta do tipo “civilizado” de solidariedade. Somente cada um, tendo em vista a educação que recebeu, pode diferenciar o sentimento de dever do livre consentimento. Fica explicito, aqui, neste sentido, um certo evolucionismo otimista na compreensão de Piaget, de que a humanidade “melhora” significativamente ao se distanciar das sociedades primitivas. Este otimismo passa a ser cada vez mais criticado quando se evidencia os aspectos limitadores que estão inerentes à filosofia da história que o sustenta.5
No que se refere à finalidade da educação moral, podemos considerar que é o de constituir personalidades autônomas aptas à cooperação ou, ao contrário, caso siga princípios de coação e respeito unilateral, fazer da criança um ser submisso durante toda a sua vida à coexistência exterior. Não há dúvida de que o interesse de Piaget, neste momento histórico de sua produção intelectual, ou seja, aquela da década de 1930, repousa no confronto entre dois modelos de sociedade com sua respectiva ideia de educação: o modelo fechado no qual se alicerça uma ideia tradicional (autoritária) de educação e; o modelo aberto, do qual emerge a educação progressiva, participativa e democrática.6 Piaget se esforça para mostrar, neste ensaio, a interdependência entre cooperação solidária e moral autônoma e o quanto isso é indispensável para uma ideia aberta de sociedade, baseada no respeito mútuo.
Não precisamos discutir os fins da educação moral neste momento, mas somente classificá-los, para saber a que resultados conduzem os diferentes procedimentos pedagógicos que agora sugestionamos analisar. Assim, propomo-nos situar a discussão sobre um terreno objetivo e psicológico, seguindo os passos do próprio Piaget, na referida conferência. Neste contexto, evidenciamos o seguinte problema: entre os procedimentos em curso na educação moral, uns apelam para recursos do respeito unilateral; outros somente para a cooperação entre crianças e adultos. Enfim, utilizam, em graus diferentes, os dois tipos de mecanismos. No entanto, há duas morais na criança cujos conflitos eclodem quando a vida ou a reflexão psicológica lhes dá ocasião de se manifestarem. Se o fim da educação é o de constituir personalidades aptas a cooperação, podemos utilizá-las, indiferentemente, uma ou outra das duas tendências fundamentais da moral infantil e nas mesmas idades? E, ainda, pode prevalecer uma sobre a outra?
Embora uma resposta para estas duas questões, já esteja subentendida acima, precisamos analisar agora os próprios procedimentos de educação moral numa dupla perspectiva: primeiro sob o ponto de vista da técnica geral colocada em prática e, segundo, do ponto de vista dos diferentes domínios em que são distinguidos. Portanto, prosseguimos nossa análise fazendo ainda uma reconstrução livre do referido ensaio de Piaget.
As técnicas gerais e os domínios da educação moral
Nessa conferência, Piaget propõe métodos “ativos” para a educação moral. Entretanto, a ideia de uma “escola ativa” baseia-se, segundo o autor, na proposição de que as matérias a serem ensinadas à criança não devem ser impostas de fora, mas por meio de descobertas por uma verdadeira investigação e por uma atividade espontânea feita pela criança. A noção de atividade estaria aqui em contraposição à noção de receptividade e uma determinada concepção de criança ocuparia aqui o lugar ativo na cena de aprendizagem, não meramente passivo ou receptivo. A educação moral ativa que é proposta por Piaget tem o mesmo sentido que a criança possa fazer experiências morais e a escola possa constituir-se em um meio para tais experiências. A esse respeito o autor assinala três pontos:
(1) Para os participantes dessa escola ativa, a educação moral não seria uma matéria ensinada, mas faria parte de um todo, ou seja, a atividade que a criança realiza em cada uma das disciplinas envolveria um esforço de caráter e um conjunto de condutas morais. Seja resolvendo um problema de matemática ou regras de gramática, a criança que trabalha ativamente terá que se comportar diante de seu grupo, não de modo passivo e obediente, como na escola tradicional, mas com condutas coletivas de ajuda recíproca e de respeito mútuo na discussão. A classe constitui-se numa verdadeira associação de trabalho e evidencia o quanto a vida moral está ligada à vida escolar. Aprende-se a conduta moral não por meios artificiais, mas o próprio princípio da atividade conduz a estes resultados.
(2) A escola ativa pressupõe, necessariamente, a colaboração no trabalho. Na escola tradicional cada um trabalha para si, escutando-se o professor e mostrando-se nos trabalhos e provas o que se aprendeu nas lições e nos estudos. Neste contexto tradicional, a comunicação entre os alunos é praticamente proibida e a colaboração entre eles quase inexiste. Na escola ativa, ao contrário, o trabalho suscita a iniciativa dos alunos e se torna coletivo, saindo do egocentrismo e da inaptidão para a cooperação própria dos infantes, constituindo uma vida social mais forte, ainda na fase inicial das crianças. A tese piagetiana defendida é se o desenvolvimento moral da criança ocorre em função do respeito mútuo além do respeito unilateral, a cooperação no trabalho escolar é o procedimento mais fecundo da educação moral. Neste contexto, de acordo com o próprio Piaget (1996, p. 22), “as crianças adquirirão a possibilidade de aprender, pela experiência, o que é a obediência à regra, a adesão ao grupo social e a responsabilidade individual”.
(3) Os procedimentos morais “ativos” inspiram-se na noção do self-government, ou seja, para adquirir o sentido da disciplina, da solidariedade e da responsabilidade, a escola “ativa” se esforça em colocar a criança numa situação tal que ela experimente diretamente as realidades espirituais, e discuta por si mesma, pouco a pouco, as leis constitutivas. A classe forma uma sociedade real e o trabalho em comum de seus membros ajuda a construir a experiência de cooperação. Assim sendo, as crianças adquirem a possibilidade de elaborar as leis que regulamentam a disciplina escolar, a repressão aos delitos e de aprender pela experiência, como vimos acima, o que é obediência à regra, adesão ao grupo social e responsabilidade individual. O estudante descobre as obrigações morais por uma experimentação verdadeira que envolve toda sua personalidade, atestando seu caráter profundamente educativo e a vitalidade das instituições democráticas e do espírito de grupo. Em síntese, o procedimento do autogoverno é indispensável, do ponto de vista formativo, porque possibilita que o aluno descubra por si mesmo, como auxílio indispensável do professor bem formado, as novidades que o conteúdo ensinado carrega em si.
Temos com isso, três pilares importantes de uma noção de técnica que caracteriza os procedimentos de um método ativo que possui como centro a participação do educando, sem desfigurar, obviamente, o papel de direção intelectual do professor. Contudo, salta aos olhos, nessa noção de técnica o seu vínculo estreito com a longa tradição pedagógica que tem sua própria origem na Antiguidade greco-latina e chega até Piaget pela modernização dessa tradição feita por Jean-Jacques Rousseau em seu Emílio.
De acordo com esta tradição, técnica não tem a ver com um agir instrumental de acordo com o qual os sujeitos educacionais colocam-se de fora da situação e nem com o uso de recursos técnicos na forma de manipulação de objetos. Técnica tem a ver antes de tudo com os exercícios intelectuais que são feitos por esses sujeitos que estão inseridos na situação e que ao praticarem tais exercícios transformam-se a si mesmos. Por isso que a ideia de atividade cooperativa é decisiva e o grupo é lócus clássico do exercício participativo de tais atividades.
Neste contexto, o método ativo busca sempre e, em primeiro lugar, não impor pela autoridade aquilo que a criança possa descobrir por si mesma e, em segundo, criar um meio social especificamente infantil, no qual a criança possa fazer as experiências desejadas, formar seu caráter e o cultivo da bondade. Piaget cita alguns exemplos, entre eles o da “Liga da Bondade”7. Para fazer parte da “liga”, a criança se comprometia a se perguntar todas as manhãs o que poderia fazer de bom durante o dia e analisar à noite o resultado de seus esforços, escrevendo-os numa folha não assinada que seria depositada numa caixa. Esses escritos anônimos eram lidos durante a aula de moral e, assim, a atenção estava colocada sobre os atos das próprias crianças e não em episódios históricos ou fictícios contados às crianças para ensinar-lhes condutas morais. O fato de haver uma “liga”, um laço, uma mutualidade, tudo isso cria entre as crianças um sentimento de pertença e de empenho conjunto para fazer algo. Ao invés de impor seu julgamento, decidindo se há ou não respeito entre as crianças, o professor, agente da construção da autonomia, poderá deixar à classe uma autonomia suficiente para a organização das “ligas” e para a avaliação entre os membros sobre seus próprios procedimentos. Assim, o self-government e as atividades das crianças podem evoluir, alcançando cada vez mais a moralidade autônoma.
Outro exemplo citado é o do escotismo, em que o apelo à honra para formar o caráter, o respeito mútuo, a ajuda aos outros e o equilíbrio entre a saúde física e moral são os preceitos usados. O central no escotismo é alcançar um equilíbrio mais flexível entre as duas morais da criança – respeito unilateral/ heterônomo e respeito mútuo/ autônomo. O exemplo mútuo e também as relações das pessoas entre si constituem a verdadeira fonte dos imperativos morais. No escotismo, o respeito unilateral, ou seja, pela autoridade do chefe, deve ser moderado pelo respeito mútuo, entre os iguais. Por isso, para Piaget, a sociedade dos escoteiros é uma grande fraternidade, oferecendo melhores condições para o desenvolvimento do respeito mútuo e da cooperação, ligando a educação do caráter e do altruísmo a todo o sistema de jogos organizados.
Entretanto, nos alerta Piaget, essas aquisições não se revelam uma construção fácil, pois a psicologia da criança demonstra que o pensamento infantil não comporta espontaneamente nem objetividade nem veracidade e que a função primitiva do pensamento é assegurar a satisfação dos desejos, do formar o “eu” para enfrentar a si mesmo e a realidade objetiva. A criança quer ter todos seus desejos satisfeitos e faz isso com o pensamento, graças à imaginação e ao jogo. Piaget conclui que é pelos outros e em razão da colaboração/cooperação, que a criança é capaz de renunciar às fantasias individuais, para buscar ver a realidade como ela é. Pois, para Piaget (1996, p. 27), “a criança é naturalmente egocêntrica e enquanto não tiver conseguido socializar seu pensamento, ela não compreenderá nem o valor da verdade nem a fortiori a obrigação da veracidade”. Ou seja, é pela socialização do pensamento proporcionado pelo trabalho cooperativo entre os pares da mesma idade que a criança passa a entender o sentido da verdade e o quanto a busca pela veracidade torna-se um valor moral inegociável.8
Como conduzir a criança para os valores da verdade? Os conselhos dos adultos e as lições serão suficientes para chegar a essa consciência? A experiência, aponta o autor, mostra que a criança só consegue incorporar uma lei e valores que compreende internamente e só a colaboração entre as crianças e a prática de discussão organizada é que dão a elas o significado da objetividade, assim como a ação mútua faz a criança compreender o que a mentira é em realidade e qual o valor social da veracidade. Daí, a importância do trabalho cooperativo do grupo e da coordenação intelectual e pedagógica do educador adulto, pois sem sua presença, o grupo poderia sucumbir rapidamente na tirania do mais forte.9
O castigo corporal às crianças que nasceu na escola como expôs Émile Durkheim10, Piaget revisa com a proposta de desenvolvimento de responsabilidade e justiça e salienta que uma escola sem castigos e uma educação da responsabilidade pelo julgamento dos próprios alunos, vinha num movimento cada vez mais forte, opondo-se ao procedimento tradicional da sanção expiatória e das punições. Essa prática, embora havia desaparecido de quase todas as escolas europeias, permaneceu, infelizmente, na pedagogia familiar.
Contudo, defende Piaget, a disciplina e o sentimento da responsabilidade podem se desenvolver sem nenhuma punição expiatória, sendo que as relações de cooperação poderiam provocar nas crianças um respeito à regra, e a educação moral seria solidária a toda a pedagogia. Para tanto, a escola teria que passar por toda uma reestruturação na direção da “escola ativa”, e não apenas em determinados procedimentos, desde os procedimentos externos às crianças e às relações interindividuais nas quais elas se encontram engajadas. Pensar a educação do caráter por meio da preparação de cidadãos livres e ao mesmo tempo disciplinados é o propósito piagetiano presente nessa conferência. O self-government, em virtude de sua flexibilidade, serve bem a esse gênero de experiências na educação cívica.
Os procedimentos ativos descritos por Piaget envolvem colaboração e trocas entre alunos, portanto são ações complexas dentro de experiências que envolvem de modo profundo e ativo um coletivo. Piaget assinala ainda que os procedimentos da educação moral devem levar em conta as próprias crianças, entretanto se os métodos “ativos” parecem superiores aos outros, o autor salienta que verificações experimentais e pesquisas são fundamentais para sua comprovação dos resultados, mas no espírito da própria criança. Desse modo, Piaget nos apresenta uma reflexão provocadora quanto ao papel fundamental que o currículo, os conteúdos e o diálogo com o saber elaborado da tradição são fundamentais no campo da educação e na formação dos sujeitos, em seu papel socializador.
A escola é o mundo da pluralidade, do confronto entre os pontos de vista, entre as diferentes atitudes. Consequentemente, o papel do professor é o de centralidade, para entrar em acordo, para conjugar esforços no sentido da solidariedade, da empatia e da compreensão do mundo através, principalmente, de atividades como o jogo e a brincadeira. Nossa tarefa é descortinar um espaço público diferente daquele espaço público familiar.
Algumas conclusões
Este é o quadro do domínio psicológico da educação moral da infância, que parte para o domínio pedagógico, por meio da aprendizagem baseada na experiência. Assim, “o estudante descobre as obrigações morais por uma experimentação verdadeira, envolvendo toda a sua personalidade” (PIAGET, 1996, p. 22). Este é o elemento ativo do processo formativo da educação moral desde o seu princípio. Se o aluno não experienciar e o professor não criar condições para isso, não ocorrerá a experimentação e, por consequência, não haverá aprendizagem. Trata-se, como se pode observar, de uma educação moral prática, baseada na própria experiência dos educandos, acompanhada de perto pela direção intelectual e formativa do educador. Em nenhum momento o educando é abandonado a si mesmo e nem o educador pode ser retirar do processo pedagógico. Portanto, o grande desafio formativo consiste, nesta ideia de educação moral, em encontrar o ponto de equilíbrio entre a falta ou o excesso da presença de uma das partes envolvidas.
Por fim, esta conferência de Piaget pode ser lida, como procuramos fazer neste ensaio, como dupla crítica à educação tradicional. O primeiro aspecto da crítica indica que se o respeito unilateral é necessário, jamais será suficiente para a formação moral autônoma da criança. Da mesma forma, sugere que a coação também não é suficiente, pois, quando não é contraposta pela própria liberdade do educando, produz servidão voluntária, conduzindo o próprio educando à obediência irrestrita que o autoritarismo externo exige. Contudo, e este é o aspecto nuclear da conferência, Piaget arrola argumentos importantes a favor da autonomia da educação moral que fortalecem o espírito cooperativo e solidário indispensável à convivência democrática. Neste sentido, percebe-se tão logo a atualidade desta educação moral cooperativa para fazer frente tanto ao individualismo como ao autoritarismo que toma conta do universo social, político e educacional, da sociedade contemporânea.
O segundo aspecto da crítica à educação tradicional se dá pela percepção de que não há pedagogia e educação moral sem o uso de uma técnica como procedimento, ou seja, como exercício que provoca a transformação dos próprios sujeitos educacionais envolvidos. Ao avançar na investigação de tais procedimentos, Piaget oferece, como reconstruímos acima, indicações valiosas sobre a condição infantil e sobre a educação moral que lhe é apropriada.
Frente a banalização dos processos pedagógicos provocada pela inflação dos métodos ativos contemporâneos, torna-se oportuno dialogar com propostas, como a do jovem Piaget, que buscam o equilíbrio entre a iniciativa do educando e a mediação intelectual e pedagógica do adulto. Por isso, o “ativo” precisa pressupor uma paideia, no sentido originário do termo, ou seja, um ensino amplo que propicie a cooperação e o autogoverno, voltados contra a sociedade fechada e individualista. Neste sentido, a formação do professor precisa ser o eixo fundamental, pois seu preparo intelectual sólido e sua reflexão permanente provoca a transformação da prática pedagógica.
Por fim, podemos perceber o quanto esta pequena conferência proferida por Piaget na década de 1930 ainda é atual sob vários aspectos, mostrando a importância do diálogo crítico com os clássicos. Sua atualidade repousa, entre outros aspectos, na crítica que Piaget faz à educação tradicional, mostrando a importância da experiência ativa dos educandos, ao mesmo tempo em que acentua ainda mais o papel de direção intelectual e formativa do educador. Mas, considerando o nosso contexto político e educacional atual, a importância dessa conferência repousa, sobretudo, em mostrar o quanto a crítica consistente ao predomínio da mentalidade autoritária e excludente depende de revigorar experiências dialógico-participativas no contexto de sala de aula e da própria esfera pública mais ampla. Em síntese, ao reler o jovem Piaget, torna-se claro o quanto perdemos de experiências cooperativas no processo educacional e o quanto se torna ainda mais urgente colocá-las na ordem do dia em nossas práticas pedagógicas.