Do olhar e lugar que narramos
Vivemos um momento em que a “sociedade mundo” (Morin; Ciurana; Motta, 2003) se vê diante de um grande desafio: criar novos caminhos e formas de ser e de estar, no devir da experiência humana. Estamos diante de uma “virada” e inferimos que precisamos atuar como observadores implicados, cocriando, com consciência, o mundo que queremos viver, redimensionando nossas crenças, compreendendo nosso contexto e como nossas ações criam as experiências que experimentamos.
No contexto educativo, em que atuamos, pensamos que é necessário encontrar pistas para trilhar um novo caminho, em que o cosmos possa ser entendido como um sistema vivo e plenamente ativo, no qual diferentes sistemas (social, político, ambiental, familiar, escolar) encontram-se em constante sintonia e interdependência. Trata-se do pensamento sistêmico, uma forma de perceber o mundo que nos desafia a rever nossas concepções, maneira de ser e de estar na vida, em especial, para entender o que estamos experimentando e sermos capazes de atuar de forma coerente.
Em articulação com o pensamento sistêmico, partimos do pressuposto de que a Biologia do Conhecer, conforme Maturana e Varela (1997), em especial, os conceitos de convivência, coordenações de ações recursivas, acoplamento estrutural, autopoiese são premissas fundamentais para criar ambientes em que a aprendizagem é vista como um processo intersubjetivo que acontece na experiência, em acoplamento com a estrutura do sujeito e meio. Entendemos a experiência como Larrosa Bondía (2002, p. 21) preconiza, ou seja, “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca”.
Nessa perspectiva, o conhecer é um processo autopoiético que emerge na convivência, em acoplamento com o meio e com o outro, no sentido de reorganização da dinâmica estrutural do sujeito que conhece. Esse processo é sustentado por coordenações de ações recursivas das experiências vivenciadas, permeadas pela presença consciente. Compreendemos que essa forma de entender o conhecer e o aprender, e sendo assim, de conceber o educar, é coerente com as ideias da pedagogia radical e inclusiva, conforme Sabbi (2020), no que diz respeito a trazer práticas como meditação, ação consciente e experiência enquanto elementos importantes para pensar a educação.
Diante dessas considerações, nosso objetivo com este texto é apresentar uma experiência de convivência entre uma professora e seus estudantes, na qual a aprendizagem emerge de um fluir de coordenações de ações recursivas, em que todos atuam em parceria e legitimidade. Essa experiência foi cartografada na tese intitulada “Movimentos de ensinar e aprender matemática em convivência”. O estudo cartográfico desenvolvido na tese, revelou dinâmicas pedagógicas, pistas, possibilidades, entendidas aqui como processualidades, com potencial de desencadear convivências que favoreceram a construção de conceitos matemáticos vinculados à geometria.
Essas dinâmicas estão relacionadas à cocriação pedagógica, isto é, são oriundas do acoplamento entre os sujeitos envolvidos e o meio, sustentando as interações na conversação (conversar com emoção), no conviver (estar junto com legitimidade), na escuta atenta (abrir-se para ouvir sem julgamentos ou pré-conceitos) e no respeito mútuo. Atuando como parceiros de aprendizagem, professora e estudantes conviveram compartilhando saberes, expectativas e sentimentos, experimentando diferentes formas de ser, de viver, de ensinar e de aprender, transformando e sendo transformados em convivência. Essa dinâmica é apresentada na tese como Pedagogia do Conviver (Giron, 2019).
Nesse sentido, o texto que oferecemos toma algumas vivências apresentadas nos desdobramentos da tese, articulando conceitos teóricos que podem ajudar a compreender o processo vivenciado.
Diante das considerações iniciais, apresentamos uma narrativa cartográfica que intenciona “mapear” o fluir das ações e movimentos relacionados à convivência entre uma professora e seus estudantes que, em 2017, frequentavam o 8º ano do Ensino Fundamental, numa escola municipal de Caxias do Sul/RS. Optamos pela cartografia no olhar de Kastrup e Escóssia (2009), uma vez que o fenômeno acompanhado, o atuar de estudantes e professora, é dinâmico e se modifica no fluir das ações dos sujeitos envolvidos.
O delineamento cartográfico oferece pistas e inspirações para desvelar as subjetividades envolvidas e explicar aquilo que não se curva à representação; sendo assim, a narrativa apresentada busca expressar o sentido da processualidade vivida. Além disso, entendemos que esse método se propõe a acompanhar processos mais do que descrever o “estado das coisas”, investigar a produção de subjetividades e dinâmicas, assim como “mapear o coletivo de forças que está na gênese das formas dos fenômenos” (Passos; Kastrup, 2013, p. 392).
As dinâmicas pedagógicas oriundas da convivência entre a professora e os estudantes que passaremos a narrar, foram emergindo da apropriação e do viver da teoria da Biologia do Conhecer em articulação com o cotidiano da escola, desencadeando movimentos contínuos de transformação que auxiliaram na emergência de diferentes dimensões do viver e do aprender.
Cartografando a experiência
Estudar é conviver. O estudante se transforma na convivência com o professor ou professora. O estudante é aquele ou aquela que aceita o convite de outro para conviver transitoriamente com ele ou ela em um certo espaço de existência em que esta pessoa tem mais habilidade de ação e reflexão. Para isto, estudante e professor devem aceitar-se mutuamente como legítimos outros em convivência
(Maturana, 2002, p. 152).
Nesse sentido, e de forma coerente com a teoria, uma das autoras, a professora, seguirá no texto narrando a experiência vivida.
Ao me permitir vivenciar, cotidianamente, os preceitos teóricos indicados pela Biologia do Conhecer, fui me transformando, e devido a isso, o conviver com os estudantes também foi se modificando. Ou seja, estar junto em legitimidade, considerando-os com legitimidade e atuando em coordenações de ações recursivas (Maturana, 2002), fez emergir uma outra forma de ensinar e aprender. Ultrapassando o controle sobre o que iria acontecer e estando aberta ao fluir das ações, fui me permitindo movimentar para o novo, para o inusitado, confiante que aquilo que estava emergindo da parceria com os estudantes poderia contribuir para transformações autopoiéticas em convivência (Maturana, 1997, 2002).
Atuando com os estudantes e implicada nesse conviver, eu os convidei para relaxarmos e centrarmos nossa atenção no momento presente, a fim de que decisões conscientes e equilibradas emergissem, possibilitando que o processo de conhecer se desenvolvesse. Para tanto, fizemos uma prática meditativa, para “ir para o centro”, no sentido de desligar-se do mundo exterior e voltar a atenção para dentro de si. Em A Mente Incorporada, Varela, Thompson e Rosch (2003), discorrem como a consciência e a meditação podem ser caminhos para desenvolver a cognição, num diálogo entre a ciência cognitiva e a meditação budista. Apresentam o conceito de Enação como “ação incorporada”, partindo das ideias de fenomenologia da percepção de Merleau Ponty, discorrendo que o conhecer não depende das qualidades intrínsecas do que se conhece, pois o conhecer é enagido pelo ser que conhece. Sendo assim, conhecer é um processo que envolve a corporeidade, em coerência com o ser que conhece. Sob esse entendimento a cognição emerge da ação incorporada da experiência.
Esses autores buscam aproximar a ciência cognitiva da meditação de base budista como caminho/forma de acessar o sujeito que conhece, numa atitude fenomenológica. Logo, o sujeito que conhece precisa estar atento a si mesmo para acessar dimensões que vão além de suas percepções sensório-motoras. Nesse caminho, “meditar” pode ser entendido como um processo que leva o sujeito a estar atento e experimentar o que está pensando, sentindo e fazendo enquanto o faz. Segundo Varela, Thompson e Rosch (2003) e Maturana (2002), esse estado do ser é ponto de partida para que aconteçam os movimentos de acoplamento e as transformações estruturais que possibilitam o conhecer/aprender.
Para levar os estudantes ao processo de meditar, apresentei um vídeo que explicava o que a meditação poderia desencadear nas pessoas que a praticam, bem como a influência que a mesma tem nos processos educativos. Com o consentimento de todos, ao som de uma música relaxante, nos lançamos numa experiência meditativa “rumo ao encontro de nós mesmos”, almejando ampliar o autoconhecimento, melhorar a convivência e desencadear movimentos autopoiéticos (autoprodução).
Inicialmente notei certa inquietação por parte do grupo. Alguns se mostraram incomodados com a música, outros com vergonha e até desconfortáveis. No entanto, com o passar do tempo, os estudantes começaram a ter outra conduta: sentiam-se tão relaxados quando meditavam que diziam ter vontade de dormir; ou ficavam tão sensíveis que queriam chorar. À medida que íamos nos permitindo vivenciar plenamente essa experiência de meditação, fomos ficando mais abertos e receptivos para nos permitirmos estar presentes na convivência, a fim possibilitar que transformações estruturais pudessem acontecer.
A seguir, alguns depoimentos que revelam isso: “A meditação me deixou mais relaxado e com mais ânimo de estudar; me ajudou a ficar mais centrado, focado nos meus objetivos, a querer entender e saber mais do mundo; passei a refletir mais sobre a vida e sobre o nosso propósito aqui na Terra; passei a acreditar mais em mim, na vida e nas coisas que faço, parei de me achar feio e comecei a achar o lado bom das coisas; na hora de jogar, quando fico nervoso, lembro de respirar fundo e me concentro, e esqueço o nervosismo; para mim é a melhor parte do dia, pois me ajudou a me manter calmo até em casa; muitas vezes estamos tristes e pensativos, brabos, aí chegamos na aula e temos tempo para meditar e conseguimos ficar mais tranquilos; traz uma energia boa; me ajudou na forma de pensar e refletir sobre determinada situação; me ajudou a ficar mais tranquila, mais calma, eu era bem ansiosa e agora estou bem mais calma; fiquei mais paciente, compreensivo e menos brabo; quando tenho que tomar alguma decisão faço a meditação e consigo tornar melhor essas decisões; ajudou a me concentrar mais nas aulas, converso menos e faço mais coisas; melhorou o jeito que eu penso, me deixou mais forte, confiante; me sinto mais leve e feliz, entendo mais as coisas; me deixa em paz comigo e com o mundo; me faz entrar em harmonia com o meu interior”.
Embora nos depoimentos ainda apareça os efeitos da meditação como forma de relaxar para aprender, o foco dessa atividade era poder estar presente para realizar as experiências (atividades de aprendizagem, práticas e intervenções pedagógicas) em coordenações de ações recursivas, dando margem para que os movimentos autopoiéticos pudessem ocorrer suportando o processo de conhecer.
No contexto atual, em que os noticiários retratam o desinteresse de crianças/adolescentes pela vida e pela escola, que vários professores estão adoecendo e perdendo a esperança, o desejo e o amor pela educação, oferecer pistas/processualidades que favoreçam o respeito por si e pelo outro, o autoconhecimento, a autoconfiança e o desejo de aprender, é algo acalentador e que merece ser considerado.
Dando continuidade a essa experiência de autodescoberta, e levando em conta o interesse dos estudantes em melhorar sua compreensão acerca de alguns conceitos que permeiam a prática meditativa, o autoconhecimento e a convivência em legitimidade, incrementei outras atividades e estudos acerca dos fenômenos que estavam sendo experimentados/sentidos de forma enativa.
No intuito de auxiliar na melhoria do relacionamento interpessoal dos estudantes, foram vivenciados diversos “movimentos”, almejando: perceber as implicações que nossos pensamentos e sentimentos geram em nosso corpo e como eles podem influenciar o ambiente em que vivemos; reconhecer a importância de agradecer, respeitar e valorizar nossos pais e antepassados por terem nos dado a vida, nosso “bem mais precioso”; compreender que somos seres únicos, plenos e dotados de uma “força interior” transformadora, capaz de modificar nossa forma de ver e de ser no mundo; alertar para o fato de que a maneira como nos colocamos diante da vida (pensamentos e atitudes) gera implicações, tanto em nosso corpo quanto nas relações que estabelecemos com os outros (família, escola, amigos, sociedade).
Alguns desses movimentos foram realizados, especificamente, pela turma do 6º ano, em decorrência de uma situação que aconteceu enquanto conversava e refletia, com eles, acerca de alguns exercícios matemáticos propostos. Uma menina, por não saber responder uma das questões foi ridicularizada pela turma, desencadeando nela, uma atitude de indignação e de desinteresse pelas atividades em andamento. Diante disso, me manifestei dizendo que não havia problemas em não saber a resposta do exercício, porque estávamos todos aprendendo; tínhamos algo em comum e era importante que pudéssemos estar juntos, em parceria nesse processo. À vista disso, em diálogo e interações à questão, a resposta surgiu.
Mesmo assim, no intervalo para o lanche, alguns colegas continuaram a zombar da menina até o ponto de ela começar a chorar. Fiquei sabendo do acontecido e fui ao seu encontro. A aluna se mostrou muito fragilizada, verbalizando: “Estou me sentindo a pior das pessoas porque ninguém me compreende”. Nesse momento, percebi que a sua reação diante da turma era reflexo de algo mais, sensações e sentimentos de baixa-estima que permeavam seu ser. Decidi conversar com a turma, no intuito de refletir sobre o que havia acontecido, propondo uma vivência com o propósito de levar os estudantes a sentirem como suas atitudes, pensamentos e sentimentos podem desencadear dor ao outro, afetando-o.
Em duplas e alternadamente, eles deveriam se olhar e pensar coisas boas sobre alguém conhecido; logo após, pensar em coisas ruins, observando o efeito disso em si mesmo e no colega. Após a socialização sobre o que tinham percebido/sentido durante esse “movimento”, vários estudantes compartilharam que haviam sido descuidados e até rudes ao proferirem palavras que levaram a colega se sentir inferiorizada, deixando-a triste e magoada. A menina, imediatamente, começou a sorrir, demonstrando satisfação com as reflexões feitas pela turma, pois se sentiu acolhida e respeitada. A mãe tomou conhecimento do fato e, no dia seguinte, compareceu à escola para agradecer a maneira como conduzi a situação.
Essa vivência parece ter oportunizado uma maior conscientização aos estudantes a respeito do impacto que nossas atitudes têm sobre nós mesmos e sobre as pessoas com as quais convivemos. Maturana (2002, p. 30) diz que “como vivermos é como educaremos, e conservaremos no viver o mundo que vivermos como educandos. E educaremos outros com nosso viver com eles, o mundo que vivermos no conviver”. Nesse sentido, destacamos a importância de ultrapassar o discurso e vivenciar em legitimidade, com os estudantes, situações nas quais a experiência vivida possa disparar transformações na estrutura do ser.
Isso tem relação com o que aconteceu, posteriormente, também na turma do 6º ano, numa dinâmica pedagógica vinculada ao conteúdo de frações. Os estudantes estavam muito dispersos e agitados, não conseguiam se concentrar e resolver os exercícios matemáticos. Percebendo isso, propus uma modificação na forma de estudo, problematizando e resolvendo, junto com eles, o que estava sendo proposto; mesmo assim, continuavam desatentos e demonstrando desinteresse. Novamente, interrompi a atividade e comecei a falar sobre a importância do envolvimento com a tarefa, a fim de que pudessem compreender o que estavam estudando. Porém, não falei com respeito e acolhimento, mas sim, julgando e impondo ao grupo algo que não correspondia ao interesse deles.
Os estudantes, por sua vez, entenderam a minha fala como uma afronta e, então, instaurou-se na turma um ambiente hostil e de insatisfação pelo estudo. Diante dessa situação conflituosa, me mantendo em silêncio, apenas sentindo a “atmosfera” que se materializou na sala de aula, percebi que a postura impositiva e a linguagem ríspida de me manifestar tinha contribuído para que se instaurasse uma desarmonia na sala, como se estivéssemos competindo ou medindo forças para ver quem “venceria essa batalha”.
Ao refletir sobre a situação vivenciada, percebi que esse mal-estar também era de minha responsabilidade, devido à postura que tinha assumido diante do desinteresse dos estudantes pelas atividades propostas. Nesse momento, posso dizer que começaram a ocorrer transformações na minha forma de ver e de entender o fenômeno educativo, desencadeadas por um processo de complexificação que possibilitou ampliar meu “olhar” a respeito do que estava acontecendo. Então, me manifestei, dizendo aos estudantes como estava me sentindo: “Estou muito desconfortável com o que está acontecendo. Percebo que vocês não estão interessados em resolver as atividades propostas e, por isso, se mostram desatentos e agitados. Vocês têm alguma sugestão do que poderíamos fazer para que esse momento de estudo se torne mais agradável?”. Após falar, convidei os estudantes para que também se manifestassem a respeito de como poderíamos resolver essa situação.
No início apenas alguns estudantes falaram, mas, depois, ao perceberem que existia respeito e acolhimento ao que diziam, a maioria foi dando a sua opinião sobre o que poderia ser feito para tornar a aula mais prazerosa e com sentido, o que minimizou, consideravelmente, o mal-estar instaurado na turma. Após a conversa, os estudantes começaram a se envolver mais com as atividades, provavelmente, por terem se sentido acolhidos e respeitados na sua individualidade, além de terem sido reconhecidos como cocriadores dos processos de ensinar e aprender.
Diante da situação exposta, podemos concluir que a dinâmica de sala de aula não é estática e previsível; muito pelo contrário. É um fenômeno difícil de predizer, pois é permeado por fluxos próprios, oriundos dos movimentos de acoplamento que emergem no e do grupo a cada momento vivido. Também ressaltamos, que os processos de ensinar e aprender se manifestam mais facilmente quando professor(a) e estudantes se sentem envolvidos com a proposta educativa; isto é, veem sentido naquilo que estão estudando, sentem prazer de estarem aprendendo juntos, num conviver permeado pelo “respeito e aceitação do outro como legítimo outro” (Maturana, 2002, p. 68).
Nesse caminho reflexivo, destacamos que estar juntos com legitimidade, que é um dos aspectos da convivência, diz respeito a acolher o outro desde sua forma de ser e de estar na vida. Em relação a isso, Maturana e Dávila (2009), discorrem sobre a matriz biológico cultural da existência humana, nos convidando a olhar para as diversas dimensões do viver e do conviver cotidiano, explicando que somos o que somos em acoplamento conosco e com os outros na convivência. Essa abordagem fornece elementos para entender situações de conflito, violência e sofrimento vividas hoje, no contexto escolar e em geral. Mais que isso, concebe as diferenças culturais como sendo distintas orientações do viver, guiadas pelas emoções e fazeres que constituem as relações intra e interpessoais.
Sob essa forma de pensar, os autores Maturana e Dávila (2009) concebem o Conversar Liberador, que oferece alguns princípios para desencadear movimentos de observação de si e de autotransformação, de forma consciente e presente. São eles: a orientação da atenção, que diz respeito a um “centramento” para escutar, guiando a atenção da escuta para aquilo que nos habita, sem julgamentos e expectativas, com curiosidade e assentimento; o escutar, escutar-se com toda a corporalidade, despojando-nos de apegos aos saberes; o encontro consigo e com o outro, que implica em estar presente comigo, com meu corpo, com minhas emoções e sentimentos, sensações, para depois estar com o outro; o soltar as certezas e crenças para que seja possível escutar. Entendemos que esses princípios podem inspirar experiências e trocas educativas com potencial de sustentar mudanças estruturais que levam a autotransformação, a partir das ações recursivas que acontecem em convivência.
Nessa perspectiva, educar é um fenômeno que envolve as várias dimensões do ser humano e ocorre de forma integrada com o seu entorno social, cultural e individual. Desenvolve-se em parceria com outros sujeitos do espaço educacional, num movimento de transformação em convivência, por meio de processos autopoiéticos que emergem em redes de conversação e que coordenam o fazer e o ser dos sujeitos envolvidos, os quais se aceitam mutuamente e se modificam como legítimos na singularidade da convivência, potencializando, assim, a inteireza do ser.
Coerente com essas ideias, Moraes (2021) desenvolve o conceito de Ecologia Ecossistêmica de Aprendizagem para se referir aos espaços entendidos como um domínio no qual a cognição emerge por meio de um processo de coordenações de ações recursivas, envolvendo professores, estudantes, objetos de conhecimento e artefatos que mediam as operações realizadas. A autora explica que esse domínio é relacional e aberto, tal qual um fluxo energético contínuo de processos autorreguladores e autoorganizadores.
Pistas que emergem do cartografar
Apresentamos a seguir, na forma de pistas, possibilidades para as práticas educativas, considerando as emergências da cartografia desenvolvida, em diálogo com os autores referidos. Começamos destacando a importância de configurar espaços de aprendizagem como ecologias ecossistêmicas: cenários abertos onde o fluxo das dinâmicas surgem da cocriação entre os envolvidos, professores e estudantes, permeados por experiências de aprendizagem (atividades que são desenvolvidas não apenas como uma tarefa a cumprir, mas como dinâmicas que são coordenadas), de forma que os estudantes reflitam sobre o que realizam, movimentando, assim, processos internos de significação (ação incorporada).
Dessa forma, a aprendizagem surge como ação enagida, em que a tarefa educativa se desenvolve centrada na formação do ser, tendo como foco a atenção e reflexão ao seu fazer. Enfatizamos que, na ação enagida, a reflexão acontece na experiência, e não a partir da experiência, numa atitude fenomenológica (Varela; Thompson; Rosch, 2003), em que o sujeito que aprende está implicado no processo de aprender. Sob essa abordagem, o papel do estudante vai além de um sujeito ativo, para constituir-se como um sujeito que atua sobre a sua própria ação (acoplamento e coordenações de ações recursivas).
A partir dessa compreensão, as dinâmicas ou atividades em processo podem ser precursoras de movimentos autopoiéticos, transformações que ocorrem com a própria energia de quem as realiza. Nessa forma de conceber o ecossistema de aprendizagem, as experiências vão emergindo de forma recursiva, por meio de intencionalidades, sem determinismo ou controle do(a) professor(a). Este(a) apenas precisa estar aberto(a), implicado(a) no processo e acompanhando o fluir do que vai acontecendo. Como destaca Morin (2020, p. 31), “as ações não obedecem às intenções de quem decidiu realizá-las, mas as retroalimentações e bifurcações do meio em que ocorrem”.
Outra pista que emerge dessa experiência de convivência diz respeito às práticas e vivências impregnadas de acolhimento e aceitação de si e do outro em legitimidade. Para que isso ocorra, o conceito de conversar liberador (Maturana; Dávila, 2009) pode ser inspirador, como já foi abordado. Inferimos que o olhar do(a) professor(a) seja dirigido ao acolhimento do estudante em sua legitimidade; esteja centrado na formação humana e não apenas nos conteúdos, propiciando a emergência de fluxos de conversação, em que a convivência e a cocriação pedagógica sejam precursoras do processo de conhecer e da construção de subjetividades dos envolvidos.
Como professores, se conseguirmos nos perceber como sujeitos implicados no processo de criar as dinâmicas de aprendizagem em acoplamento com os estudantes, será mais fácil abrir espaço para entender e respeitar a maneira de ser de cada um, criando em coparticipação desde o lugar de cada um (nisso consiste olhar para si e para o outro com legitimidade). Dessa atitude emergem “caminhos” pedagógicos inusitados, abrem-se “trilhas energéticas” que favorecem o surgimento de novas formas de aprender em convivência.
Nesse sentido, concordamos com Pellanda (2009, p. 48) quando discorre que os processos de ensinar e aprender “precisam ser abertos, não dogmáticos, para garantir um sistema de conversações que permitam perturbações mútuas como também necessárias para disparar processos internos nos sujeitos”. Para tanto, ela recomenda que professores e estudantes se vejam como parceiros de aprendizagem, a fim de terem liberdade e oportunidade de cocriar dinâmicas pedagógicas que desencadeiam o desejo de aprender.
Ao conviverem em legitimidade, isto é, com respeito e aceitação mútuos, professores e estudantes podem disparar movimentos autopoiéticos (autoprodução) que ampliam a consciência sobre o que estão vivenciando. Ao se permitirem ver além de si mesmos, podem fomentar a cocriação de uma nova realidade que, por sua vez, pode modificar as dinâmicas educativas num historial de transformações estruturais. Melhor dizendo, as ações/percepções/emoções de um sujeito têm influência direta sobre o sentir, o pensar e o agir do outro e do grupo, uma vez que, estudantes e professores constituem uma “rede de conexões complexas” (Morin, 1990) que permeiam as interações e relações que se estabelecem no ambiente onde atuam.
Tessituras à guisa de finalização
Em nossa narrativa, na qual tivemos como proposta apresentar uma experiência de convivência entre uma professora e seus estudantes, trouxemos um percurso de aprendizagem experiencial que foi compreendido a partir da Biologia do Conhecer de Maturana e Varela (1997), dialogando com a Complexidade de Morin (1990) e a Enação de Varela, Thompson e Rosch (2003).
Na tessitura de finalização queremos lembrar que estamos vivenciando um momento singular de transformação e aceleração de inúmeros desafios sociais, ambientais e tecnológicos. Nesse cenário, a educação tem um papel importante, uma vez que pode ser propulsora de transformações pessoais e sociais. Também têm o potencial de fortalecer as condições para a emergência de uma humanidade constituída por sujeitos protagonistas, conscientes e criticamente comprometidos com a construção de uma “civilização planetária”(Morin; Ciurana; Motta, 2003), isto é, indivíduos gestores de sua própria vida e autores da sua história.
A missão de educar, sob esse ponto de vista, constitui-se numa incumbência grandiosa, que implica ter fé, amor pela vida e pela educação, numa trajetória que se desenvolve entre o erro e o acerto, entre o incerto e o inesperado, mas, também, com inúmeras possibilidades de ser/estar/viver em plenitude consigo e com o outro.
Logo, é importante que a escola, como um local de convivência, privilegie momentos e espaços de conversa que permitam a expressão e o acolhimento de diferentes ideias e sentimentos; incentive o respeito e a aceitação, visando a um conviver harmonioso; estimule a cocriação de dinâmicas pedagógicas que facilitem o acoplamento estrutural, objetivando a troca de saberes e experiências de vida; oportunize situações de convivência em que tanto o(a) professor(a) quanto o estudante reconheçam que, quando agem como um observador observando a si mesmo (sujeitos conscientes de como estão agindo), podem assumir a responsabilidade pelas suas escolhas, assim como respeitar e aceitar as atitudes e as escolhas dos demais.
Se “Viver é conhecer. Conhecer é viver”, como argumentam Maturana e Varela (1997), é relevante que a escola possa se constituir como um cenário que valoriza a descoberta e a autonomia, cultiva a alegria e a criatividade, desenvolve a cooperação e o acolhimento, possibilita a auto experimentação e a autoprodução (autopoiese); seja um espaço de conversação em que, além da construção do conhecimento, professor(a) e estudantes possam se reconhecer como parceiros de aprendizagem, se aceitem e se respeitem, favorecendo, assim, “o respeito e a aceitação do outro como legítimo outro em convivência” (Maturana, 2002, p. 68). De outra forma, é provável que a escola se feche em si mesma e nos seus próprios fins, dificultando o que Maturana e Dávila (2015) acreditam ser o maior compromisso da educação: contribuir com a transformação em convivência.
Para além de oferecer pistas e possibilidades relativas à prática educativa e à criação de espaços de aprendizagem, o que queremos enfatizar é a urgência de desenvolvermos reformas e redimensionamentos no cenário educativo, no sentido de nos permitirmos viver transformações pessoais e sociais sustentadas num giro epistemológico que resulte numa pedagogia que promova uma postura ontológica e epistemológica baseada numa racionalidade aberta e plural; que dialogue transdisciplinarmente com o ser, a sociedade e a natureza, como preconiza Moraes (2021) e Morin (2020) dentre outros.
Isso poderá colaborar com a emergência de uma nova consciência planetária para sustentar a vida e o conhecer numa outra forma de ser e de estar na experiência humana.