Introdução: Empacotando tudo depressa para atravessar o Atlântico com toda a Corte
Este trabalho surgiu de uma trajetória razoavelmente longa de preocupação com as relações entre a história acadêmica, a história ensinada e a história em circulação na sociedade, a qual é independente desses dois polos, ou seja, a história produzida por não-historiadores, com finalidades e características diferentes daquelas atinentes ao campo da ciência ou da educação. Essa área pode ser caracterizada e detalhada pelas noções de divulgação científica, entretenimento, produções para o público culto e assim por diante. Convencionaremos denominar essa área como História Pública1, e a ocupação científica em estudá-la como uma tarefa no contexto da Didática da História2.
O livro 1808, de Laurentino Gomes (2007), foi publicado às vésperas do bicentenário da vinda da família real portuguesa ao Brasil, evento que transformou a colônia de modo irreversível. Rapidamente converteu-se em um grande sucesso editorial no Brasil e foi, ainda, publicado em Portugal e nos Estados Unidos. Ganhou também uma versão infanto-juvenil. Além do sucesso de público, o livro recebeu prêmios literários importantes, como o Jabuti e o prêmio de Melhor Ensaio de 2008 pela Academia Brasileira de Letras. A recepção da obra denota a força de um aspecto da cultura brasileira que envolve o interesse pelo conhecimento histórico, embora em um padrão de narrativa e de informação muito distante das formas pelas quais se apresentam os trabalhos acadêmicos típicos. Obviamente, o livro e sua repercussão não constituem fato isolado, mas participam, por um lado, do gênero literário de livro-reportagem e, por outro, de movimentos de memória/comemoração em que esse tipo de literatura se encontra com um público predisposto a consumi-la. Na formação desse público, encontra-se o ensino escolar de história, seja como ponto de partida, seja como algo a ser ultrapassado e contestado.
O estudo das características dessa literatura e, principalmente, de como ela é recebida, decodificada e assimilada pelos leitores é tomado como o desenvolvimento da tarefa empírica da Didática da História, ou seja, levantar e analisar o que é ensinado e aprendido, neste caso fora da relação educativa escolar. Trata-se do estudo de uma relação de ensino e aprendizagem, embora de caráter bastante distinto daquilo que ocorre ou deveria ocorrer na escola. Apesar dessas diferenças, estamos diante de um fenômeno que compõe um universo de saberes em movimento cuja existência interfere diretamente no ensino escolar da história, uma vez que estabelece um ‘ecossistema’ de saberes que antecede, convive e segue em funcionamento depois que cada indivíduo tem sua experiência com a aprendizagem escolar da história. Isso nos conduz ao conceito de cultura histórica, que é intrinsecamente ligado ao conceito de consciência histórica, na perspectiva que assumimos. Em poucas palavras, consciência histórica, para Jörn Rüsen (2001, p. 57), é “[...] a suma das operações mentais com as quais os homens interpretam a sua experiência de evolução temporal de seu mundo e de si mesmos, de tal forma que possam orientar, intencionalmente, sua vida prática no tempo”. Já a cultura histórica, para o mesmo autor, é
[…] la articulación práctica y operante de la conciencia histórica en la vida de una sociedad. Como praxis de la conciencia tiene que ver, fundamentalmente, con la subjetividad humana, con una actividad de la conciencia, por la cual la subjetividad humana se realiza en la práctica - se crea, por así decirlo (Rüsen, 1994, p. 4).
Trata-se, portanto, de uma categoria que visa abranger condições e consequências sociais do conjunto de instituições e práticas vinculadas ao passado, por um lado, e à relação com o tempo em geral, por outro. Deve-se considerar que sociedades e seus subgrupos são portadores de especificidades no que tange às suas respectivas culturas históricas.
É necessário finalmente, a título introdutório, reconhecer o conjunto de críticas que tanto os livros de história para o grande público feitos por jornalistas em geral quanto o livro 1808, em particular, têm recebido. André Raboni (2007) encara a obra como “[...] uma publicação mercenária que visa apenas ganhar dinheiro”. Cecília Helena de Salles Oliveira, a respeito do segundo livro da trilogia 1808/1822/1889, afirma que “[...] edições como esta disparam, sobretudo, um alerta: não educam, desinformam, são conformistas e encontram espaço nos meios de comunicação” (Oliveira, 2010, p. 92). Em outra vertente, Jean Marcel Carvalho França, a indica que “[...] ele comete o maior pecado para nós, historiadores, que é o anacronismo [...]”, mas também admite que “[...] a popularização é bastante positiva [...]” e que o “[...] autor evita o caricato e o deboche e passa longe de uma certa história jornalística ‘riponga’ e grotesca que anda por aí” (França, 2007, grifo do autor). José Murilo de Carvalho, em entrevista a Machado (2013), afirma que “[...] obras como 1808 não trazem nada de novo. Mas Laurentino achou uma maneira muito atraente de apresentar esses episódios da história para o grande público”. Mary Del Priori também afirma que, “[...] além dos episódios históricos apoiados em fontes documentais e nos estudos mais atualizados sobre o tema, o autor faz saltar das páginas os personagens emblemáticos do período” (Del Priori, 2007). Por sua vez, Simone da Silva Bezerril (2013) considera que o livro é visto pelo público como referencial histórico, por mais que o autor enfatize seu caráter jornalístico, ao mesmo tempo que não encontra legitimação entre os historiadores como obra historiográfica.
A análise interna da obra de Gomes, o estudo de seus recursos, das opções, das estratégias narrativas e dos conteúdos selecionados é uma tarefa necessária. Entretanto, na perspectiva da Didática da História e suas funções, o presente texto concentrar-se-á em uma tarefa distinta e igualmente importante: a análise da leitura, da recepção, da reconstrução e da opinião dos leitores. Entendemos que o enfoque sobre como o conhecimento formatado por essa literatura circula e é consumido é essencial para contribuir no esclarecimento das características da cultura histórica, sobretudo em temas que são também clássicos nos currículos escolares. Para isso, foi desenvolvido um questionário, também pensado a partir das três dimensões da cultura histórica, em que buscamos investigar, por exemplo, os motivos que levam o leitor a ser atraído pelo livro 1808 (dimensão estética), se e por que ele confia no conteúdo presente no livro (dimensão cognitiva), e se é capaz de tirar alguma lição, aprender alguma coisa que o ajude a entender/interpretar melhor seu presente a partir do conteúdo histórico disponível no livro (dimensão política).
Anotações de navegação
Apesar de seu grande número, encontrar os leitores de 1808 não é tarefa das mais simples, como não é simples estruturar os meios para chegar ao conhecimento que buscamos, ou seja, as relações da narrativa jornalística da história com o processo de aprendizagem da história. Em outros termos, buscamos produzir conhecimento capaz de contribuir para o estudo das influências desse tipo de produção literária no processo de ressignificação temporal dos sujeitos.
Após algumas tentativas usando a internet e redes sociais, a solução encontrada, tanto para alcançar os leitores quanto para definir uma amostra, foi recorrer aos dados do projeto ‘Conversa entre amigos’. Trata-se de uma iniciativa de estímulo à leitura com participação de membros da comunidade universitária da Universidade Estadual de Ponta Grossa e da comunidade externa (Conversa entre amigos, 2015). O projeto consiste em enviar um livro, com apoio da iniciativa privada, ao grupo de participantes cadastrados e, após um tempo para leitura, promover o encontro entre o autor e os leitores para discussão. No início de 2014, o projeto trouxe a Ponta Grossa o autor Laurentino Gomes para conversar sobre seu recém-publicado livro 1889. Naquela ocasião, tivemos a oportunidade de entrevistar o autor, cujas respostas foram usadas em outra parte desta pesquisa. A lista de participantes do projeto foi definida como a amostra e, de posse dela, buscamos os sujeitos em redes sociais e os convidamos, após confirmarem se também haviam lido o livro 1808, a responder ao instrumento de coleta de dados desta pesquisa.
O questionário foi elaborado de modo a permitir investigar a opinião e a interpretação dos leitores com relação ao 1808 por meio de três das dimensões da cultura histórica, tendo em vista que esta é a concretização coletiva da consciência histórica e que nos permite identificar pontos comuns e divergentes entre as orientações dos leitores, bem como cruzar essas informações com a análise já feita do livro 1808, já que leitores, autor e livro partilham um mesmo ambiente de cultura histórica. Buscamos entender, por exemplo, quais os motivos que atraíram esses leitores para essa forma de narrativa, que fatores que os levaram a considerá-la confiável (e quanto) e se eles conseguiram realizar algum tipo de relação entre esse conhecimento e o tempo presente. Ao elaborar esses questionários, procuramos, dentre outras coisas, investigar as concepções que os leitores trazem da história escolar e comparar com a opinião que emitem a respeito da história apresentada pelo 1808. Isso porque partimos do pressuposto de que muitas das concepções, opiniões e maneiras de se relacionar com a história desses leitores vêm das experiências que tiveram com a história escolar, tendo em vista que essa é uma das primeiras formas de contato desses leitores com a história como conhecimento sistematizado, e uma das fontes mais sistemáticas de composição da nossa cultura histórica. O 1808, dessa forma, não é o responsável por inaugurar a maneira com que os leitores percebem, gostam, confiam na história, mas ele interage e se alicerça, por assim dizer, nessa espécie de ‘base’ criada pela história escolar, em interação com outras fontes de conhecimento histórico.
Composto por questões abertas e fechadas, o roteiro ficou definido da seguinte forma: dados pessoais (idade, cidade, nível de instrução, escola pública ou privada), versão do livro lida (original ou juvenil), outras leituras de história, concepção de história, relação com a história na escola, gosto pela história e temas de maior agrado, percepção de diferenças entre a história apresentada no 1808 e a história escolar, formas da história em que mais confia (fala do professor, livros escolares, livros de história, documentos e outros vestígios, romances históricos, museus, novelas, documentários, filmes, páginas da internet, dentre outros), concepção sobre a utilidade da história para a vida, nível de agrado quanto à leitura do 1808, opinião sobre a confiabilidade do livro, análise sobre a utilidade do livro para a vida pessoal do respondente.
Os respondentes desse questionário foram, da lista de participantes do projeto (em um total de 715 nomes), aqueles que responderam que tinham lido o 1808 e que se dispuseram a responder o questionário, seja todo de uma vez, em um arquivo, seja pergunta a pergunta na caixa de diálogo da rede social Facebook. Assim, obtivemos um total de 55 questionários, 35 de respondentes do sexo feminino e 20 do masculino. Desse total, 39 eram de Ponta Grossa, 2 de Curitiba, 2 de Carambeí e os demais eram um de cada cidade, envolvendo pessoas dos estados do Paraná, Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro e Pará. Dos respondentes, 11 estavam na faixa de 13 a 19 anos, 22 na faixa de 20 a 29 anos, 11 na faixa de 30 a 39 anos, 7 de 40 a 49 anos, 2 de 50 a 59 anos e 2 de 60 anos ou mais. Com relação ao nível de instrução, a maior parte dos leitores dessa amostra já tem (24 pessoas, das quais 16 com pós-graduação) ou está fazendo (21 pessoas) curso de nível superior. Tivemos poucos respondentes jovens em idade escolar, apenas 1 concluindo o Ensino Fundamental, 6 cursando o Ensino Médio e 3 que já o haviam concluído. No que diz respeito ao total de leitores dessa amostra, apenas 7 pessoas declararam não ter lido outros livros de história além do 1808. Daqueles que responderam positivamente, 37 pessoas citaram pelo menos um exemplo de livro, tema ou autor. Entre os livros de história já lidos pelos respondentes, encontramos uma diversidade muito grande de títulos e estilos de leitura.
No que se refere aos temas citados sobre História do Brasil, pudemos observar uma forte influência dos conteúdos escolares, marcados principalmente pelo viés político. Também é interessante notarmos que uma parte considerável desses exemplos tem relação com os temas abordados por Laurentino Gomes em sua trilogia. Pode ser que alguns desses leitores tenham sido atraídos pelo 1808 por conta da sua temática; como pode ser também que eles tenham desenvolvido o gosto pelas temáticas a partir da leitura do 1808.
Por meio desse perfil traçado inicialmente, de uma maneira geral, pudemos constatar que a maioria dos leitores que responderam a esse questionário gosta e se interessa pela História e por livros que falam sobre História. Também pudemos confirmar a percepção do 1808 como uma leitura muito acessível e popular, procurada por pessoas com as mais diversas idades, níveis de formação e com os mais diversos interesses e gostos pela História. A partir disso, muitas dessas questões levantadas até aqui nos ajudaram a compreender como esses leitores se relacionaram com a narrativa do 1808 e de que forma eles interagiram com esse conhecimento.
Para sistematizar e interpretar os dados, utilizamos como ferramenta metodológica a análise de conteúdo proposta por Laurence Bardin (2011), um conjunto de técnicas de análise das comunicações que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, procurando identificar os principais conceitos ou temas abordados em um determinado texto. Segundo Bardin (2011), o método da análise de conteúdo divide-se em diferentes fases que, por sua vez, organizam-se em torno de três polos cronológicos: (1) a pré-análise, (2) a exploração do material e (3) o tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação. Assim, seguindo essas etapas por intermédio da organização, da categorização e da interpretação, procuramos revelar os principais conceitos, temas e sentidos manifestos pelos leitores nos questionários.
O que diz o povo desta gentil nação
A dimensão estética da cultura histórica refere-se também à maneira com que determinado conteúdo histórico envolve e atinge os sentidos humanos e colabora para a apreensão histórica e produção de sentido. No que diz respeito ao 1808, os elementos estéticos, ao serem sobrelevados em alguns momentos como parte de uma estratégia para atrair e envolver o leitor, exercem considerável influência na maneira como os interlocutores se relacionam e assimilam o conteúdo presente no livro.
Por meio das respostas, pudemos constatar que o número das pessoas que afirmaram gostar de história na escola (47 respondentes) e gostar do livro 1808 (46 respondentes) foi coincidente. Por se tratar de questões que possibilitavam respostas mais abrangentes e subjetivas, procuramos identificar se havia e quais seriam as similaridades entre os argumentos fornecidos pelos leitores. Dessa forma, foi possível formarmos 6 grandes categorias com as respostas de cada questão. No que se refere às diferenças entre a história escolar e a apresentada pelo 1808, as seis categorias de respostas foram organizadas conforme mostra a Figura 1.
Com relação aos motivos que levaram a gostar (ou não) do 1808, a maioria dos motivos elucidados agrupou-se nas subcategorias da Figura 2.
Fonte: Respostas aos questionários do projeto de pesquisa compilados pelos autores (2016).
Fonte: Respostas aos questionários do projeto de pesquisa compilados pelos autores (2016).
Com base nessas categorias, os diferentes elementos e as informações encontrados nas respostas puderam ser mais bem sistematizados e agrupados conforme as características comuns. Dessa forma, foi possível atermo-nos não em casos isolados, mas nas principais questões compartilhadas entre os leitores, possibilitando-nos, assim, traçar um perfil comum entre eles. Em alguns momentos, em uma só reposta, foi possível encontrarmos diferentes elementos e informações, que foram fragmentados, organizados e alocados em diferentes categorias. Por exemplo: uma resposta da questão 10 foi organizada da seguinte forma: “Sim, te diria que a história apresentada ‘no livro’ do Laurentino ‘é muito mais prazerosa de ler e até aprender [categoria ‘Narrativa atraente’]”. É uma narrativa que te prende, ao contrário da disciplina que ainda se vê “[...] na escola, que trata de nomes e datas [categoria ‘História escolar mais realista/ verdadeira’]” (Leitor 2, grifo nosso). Por isso, em muitos momentos, essas categorias possuem relações umas com as outras, e, como veremos a seguir, algumas vezes as informações abstraídas delas podem ser melhores entendidas se cruzadas e comparadas umas com as outras.
A resposta afirmativa da maioria dos leitores a ambas as questões mostra que o gosto pela história não é resultado posterior à leitura de Laurentino Gomes, mas vem de experiências anteriores, desde a época da escola, por exemplo. Assim, esse gosto pela disciplina pode ser fortemente influenciado pela disciplina de história na escola, mas também por outras produções de história pública, por exemplo.
As principais diferenças destacadas entre esses tipos de história (ou seja, o livro 1808 e a disciplina escolar) foram organizadas em categorias de acordo com a proximidade entre as respostas, como vimos anteriormente. As opiniões e os elementos mais citados pelos leitores referem-se à categoria ‘complemento da história escolar’ e ‘narrativa atraente’ as quais, como veremos, possuem características muito semelhantes e que, em determinados momentos, se complementam. Com maior número de citações, 17 no total, a categoria ‘complemento da história escolar’ reuniu leitores que destacaram como principais diferenças entre o 1808 e a escola o fato de Laurentino Gomes apresentar uma narrativa mais detalhista, explorando mais os personagens e curiosidades do período.
Para muitos leitores, essa narrativa recheada de curiosidades e pequenos detalhes torna o livro 1808 uma espécie de complemento da história escolar, como pudemos ver nas respostas como: “O livro trouxe conteúdos a mais que eu não tinha aprendido até então” (Leitor 3); “[...] o livro mostra detalhes que a história apresentada nas escolas não mostra [...]” (Leitor 39); “[...] o livro do Laurentino traz curiosidades que nunca imaginei” (Leitor 47). Essas e outras respostas mostram-nos que, para alguns leitores, é como se o livro acrescentasse conteúdos e detalhes à história escolar, que, por sua vez, é marcada por uma narrativa mais geral e que visa fornecer uma ‘base’ de determinados conteúdos, focando naquilo que é essencial e fundamental sobre determinado contexto, não explorando tanto os detalhes e as curiosidades como o livro faz.
Isso fica ainda mais evidente quando comparamos essas respostas com a categoria ‘história lupa’, que reúne opiniões de leitores que frisam esse aspecto mais ‘geral’ da história como disciplina escolar em contraposição à narrativa mais detalhista do 1808. Por exemplo: “A história da sala de aula é bem menos detalhista, apresenta mais os fatos relevantes do período, não seus pormenores como o livro faz” (Leitor 13); “[...] a história como disciplina escolar é generalista, nunca buscando entrar em pormenores nos fatos históricos [...]” (Leitor 41); “Uma das coisas que me vem à cabeça agora, e que acho que mais chamou a atenção, foi que, no 1808, a história era apresentada mais como crônica/anedotas dos personagens históricos, coisa que eu via com bem menos frequência na história como disciplina escolar, que era mais ‘técnica’ e abrangente (do tipo ‘todas as pessoas daquela época faziam tal coisa’)” (Leitor 1).
Como a maioria dos nossos leitores se referiu à história apresentada nas escolas de maneira genérica para responder à questão 10, há de considerarem-se inúmeras variantes, tais como as diferenças entre as idades e os níveis de formação desses leitores. Consequentemente, é preciso levar em conta os diferentes contextos históricos e as concepções de ensino com que os leitores tiveram contato durante sua formação escolar, bem como suas experiências pessoais e afetivas com a escola e, mais precisamente, com o ensino de história. No entanto, sem a intenção e a possibilidade (com base nessa amostra de questionários) de nos aprofundarmos nessas questões, pudemos perceber que parte considerável dos leitores pareceu relacionar a ‘história apresentada nas escolas’ aos livros didáticos.
Enquanto 9 pessoas fizeram menção direta aos livros didáticos para ressaltar as diferenças entre a história escolar e a história apresentada pelo 1808, apenas duas citaram a atuação dos professores nas aulas de história, por exemplo. Também dois dos respondentes que ressaltaram não perceber diferenças entre a história escolar e a apresentada pelo 1808 alegaram que seus professores de história, durante o Ensino Médio, ensinavam ‘muito mais do que apenas o conteúdo que constava nos livros didáticos’. Essas informações ajudam-nos a compreender um pouco melhor esses leitores quando afirmam que o livro de Laurentino Gomes contém mais detalhes e curiosidades do que a história escolar, que é mais geral e não tão detalhista. Se esses leitores tomam por base os livros didáticos para se referir à história escolar, é conveniente lembrarmos que os manuais didáticos tendem, geralmente, a apresentar grandes sínteses dos conteúdos históricos, explorando pouco ou muito pouco os pequenos detalhes e as curiosidades sobre determinados assuntos.
Esse pode ser um dos principais fatores que levam esses leitores a afirmar que o 1808 é um complemento ou ainda mais completo que a história escolar, já que Laurentino Gomes acrescenta à abordagem política da transferência da corte uma série de curiosidades interessantes sobre o contexto, descrevendo cenas do cotidiano, costumes da época, características íntimas e sentimentos dos personagens, por exemplo. Muitas vezes ele faz isso com base em relatos de época ou em interpretações feitas a posteriori por outros historiadores. Não nos esqueçamos, porém, que muitas dessas curiosidades são especulações e hipóteses a respeito do contexto e dos personagens envolvidos na trama, como, por exemplo, o caso homossexual de D. João e as inúmeras traições de Carlota Joaquina. Ou, ainda, que misturam ficção e factualidade, conduzindo, mesmo que não intencionalmente, o leitor ao anacronismo ou ao juízo de valor, como destacado anteriormente.
Embora algumas dessas estratégias sejam teórica e metodologicamente evitadas e até mesmo consideradas inaceitáveis pela ciência histórica e pela história escolar, elas acabam atraindo muito a atenção do leitor e despertando certo fascínio pelo passado. São justamente essas inúmeras curiosidades e pequenos detalhes que tornam o livro 1808 uma narrativa agradável e atraente para a maioria dos leitores. A categoria ‘narrativa atraente’, segunda com maior número de frequência, com um total de 15 citações, reuniu leitores que afirmaram perceber como principal diferença entre a história escolar e a do 1808 a narrativa mais fluída e atraente presente no livro.
Alguns respondentes relacionaram a narrativa do livro 1808 com o fato de misturar elementos estéticos provenientes da literatura e do romance, dando à narrativa um ar mais descontraído, envolvente, e, conforme uma das leitoras, ‘mais rápido’. Por exemplo: “A história foi romanceada, ou seja, tomou contornos de romance, de literatura, o que torna a leitura mais prazerosa” (Leitor 26); “O livro explora a história de uma maneira mais interessante, envolvendo o leitor com os personagens, como em romances, o que desperta uma vontade de leitura e torna o aprendizado algo inerente a ela” (Leitor 9). Essa fluidez de narrativa, segundo alguns leitores, é responsável por facilitar o aprendizado da história e torná-la até mesmo prazerosa: “[...] com o 1808 foi diferente, alguma coisa me prendeu nele e eu acho que foi exatamente o fato de eu não perceber que estava aprendendo história” (Leitor 53); “[...] a história do livro parece mais simples de ser compreendida” (Leitor 29). Como veremos adiante, aprender o conhecimento de uma forma prazerosa e aparentemente mais simples também é um dos motivos pelos quais alguns leitores disseram gostar do 1808.
O principal motivo, com maior número de aparições, pelo qual os leitores afirmaram ter gostado do livro 1808 diz respeito, justamente, à sua narrativa. Houve um total de 36 menções sobre esse aspecto do livro (categoria ‘narrativa prazerosa’). Alguns foram mais sucintos e objetivos, outros detalharam mais suas respostas, mas a maior parte dos leitores destacou a narrativa fácil, sedutora e envolvente. Algumas pessoas também chamaram a atenção para os detalhes e as passagens cômicas presentes no livro (categoria ‘humor’): “É um livro cativante, não apenas pela escrita bem acessível, mas particularmente pelo tom hilário que o autor adota para apresentar a família real no Brasil” (Leitor 50).
Pudemos perceber, não só nas passagens anteriores mas também em outros momentos, que boa parte dos leitores que chamou atenção para a narrativa marcada pelo humor relacionou-a com a presença dos personagens. Parece que para alguns desses leitores, ao retratar os personagens históricos de uma forma humorada e satírica, Gomes desmistifica-os como grandes nomes históricos, como personagens políticos e transforma-os em ‘gente como a gente’, em pessoas de carne e osso. Isso parece criar uma aproximação e um envolvimento do leitor com os personagens do enredo, muito próximo como em um romance histórico, em que, muitas vezes, há um envolvimento afetivo e empático dos leitores com os protagonistas da trama. Por outro lado, esse exercício pode ser contraproducente pois, ao apostar nas caricaturas dos personagens, o 1808 também pode conduzir o leitor a cometer determinados juízos de valor, ou, ainda, a reduzir e simplificar os fatos históricos ao colocar o perfil psicológico dos personagens como determinantes da ação histórica, como, por exemplo, ‘o rei fugiu porque era medroso e inseguro’.
Os detalhes explorados por Laurentino Gomes que envolvem os personagens e episódios históricos também são uma das características do 1808 bem vistas pelos leitores (categoria ‘detalhes e curiosidades’). Para parte considerável desses leitores, inclusive, essas são as principais características que diferenciam a história apresentada no livro 1808 da história como disciplina escolar, já que, juntas, as categorias ‘complemento da história escolar’ e ‘narrativa atraente’ representam 32 citações que se referem a esses elementos (narrativa mais prazerosa, fluída, detalhista, com curiosidades e personagens...). Embora apenas 8 pessoas tenham alegado não gostar de história na escola, poucos respondentes ressaltaram pontos positivos da história escolar no que se refere aos elementos estéticos.
Em vários e diferentes momentos, percebemos que boa parte dos leitores relaciona esses elementos estéticos com a eficácia do aprendizado da história, e é notável que os leitores relatem uma espécie de efeito de realidade ou de janela para o passado: “Os detalhes descritos pelo autor te transportam para aquela época” (Leitor 11); “O livro faz a gente viajar na história, consegui me teletransportar pra história e realmente entender a história do Brasil, como tudo aconteceu, os objetivos lusitanos” (Leitor 21).
Além disso, essas estratégias de descrever detalhadamente situações como o clima, emoções, cenas do cotidiano, características íntimas e psicológicas dos personagens etc., aliam-se ao fato de Gomes se apoiar constantemente nas ‘autoridades historiográficas’ e em documentos históricos, revestindo, assim, o 1808 com uma aparência de neutralidade e legitimidade acadêmica. O leitor, confiando nas referências à legitimidade dos estudos históricos mencionados, suspende seu juízo crítico e cria-se o ‘efeito janela’ pelo qual o leitor tem a sensação de poder ver e presenciar o passado bem à sua frente, podendo quase tocá-lo. Esse efeito janela pode conduzir o leitor a interpretar aquilo que ele pode ‘ver’ como uma ‘verdade’.
Foi o que pudemos perceber em algumas afirmações feitas em diferentes momentos pelos leitores (categoria ‘história do 1808 mais realista/ verdadeira’), como, por exemplo, de que o 1808 apresenta uma história mais ‘realista’ ou, ainda, mais ‘verdadeira’ do que a da escola, tais como: “Muita coisa que a professora ‘escondeu’ de mim eu aprendi no livro” (Leitor 12); “O livro parece que ‘conta a verdade’, a disciplina escolar tende a ocultar algumas coisas” (Leitor 42); “Os fatos apresentam-se de maneira menos tendenciosa que os livros didáticos” (Leitor 46); “Fiquei indignada, enganada. Como o brasileiro vai mudar se nas escolas não falam a verdade sobre o nosso passado [...]” (Leitor 19); “Os livros didáticos não são tão francos quanto a retratação da família real, enquanto o livro 1808 nos relata (talvez até com certo exagero) a preguiça de D. Pedro, a loucura de sua mãe e a promiscuidade de sua esposa” (Leitor 6).
Das 10 pessoas que apontaram o 1808 como uma história ‘verdadeira’ ou mais realista, 7 ressaltaram como pontos positivos o fato de estar aprendendo com ele ou ainda de ter a possibilidade de conhecer melhor ‘o que de fato’ aconteceu no passado; algumas vezes, inclusive, traçando relações entre o passado (que tiveram acesso por meio da narrativa do 1808) e o tempo presente. Respostas como: “O modo como foi retratada a vinda da família real, ‘a verdade escancarada’ sobre os integrantes da família real a sua comitiva” (Leitor 6); “O modo como ele é escrito, que dá a capacidade de todo mundo entender, compreender e ‘saber a fundo o que aconteceu’ naquele período” (Leitor 14); “O que me fez gostar foi a forma cômica ‘e realista’ de expor os fatos. Aparentemente sem ilusões românticas e nos fazendo encontrar o mesmo perfil de pessoas e locais ainda hoje no Brasil” (Leitor 7).
Quando Laurentino Gomes não deixa claro e acessível ao leitor suas escolhas historiográficas e a crítica ao documento, fica a sensação de que as informações contidas na narrativa são inquestionáveis; afinal, foi o que os historiadores e demais especialistas disseram, ou, ainda, foi o que as fontes disseram! Para esses mesmos leitores, a história escolar não parece ser tão verdadeira, talvez exatamente por não pretender mais fornecer verdades, tendendo a relativizar mais as fontes e as afirmações sobre o passado e trabalhar com um campo de hipóteses e não de certezas. Esse, inclusive, foi um dos motivos criticados por alguns leitores a respeito do livro. No total, 12 pessoas destacaram algum ponto negativo ou de que não gostaram no 1808. Destas, 5 ressaltaram apenas pontos negativos, nenhum positivo com relação ao livro. Embora entre essas pessoas muitas tenham elogiado a linguagem utilizada por Laurentino Gomes e até mesmo a maneira como popularizou a história, 7 delas criticaram a falta de aprofundamento crítico ou a maneira como ele demonstra construir ‘verdades’ no livro. Ao que parece, alguns desses leitores nos dão alguns indícios de reconhecer que Gomes aparenta reduzir o campo das hipóteses, baseados em Beatriz Sarlo. O autor oferece aos leitores mais certezas do que hipóteses, o que sustenta o interesse dos leitores, produzindo uma nitidez argumentativa e narrativa que falta à história acadêmica (Sarlo, 2007).
O que chamou nossa atenção foi que, das 7 pessoas que estabeleceram esse tipo de crítica, 6 alegaram estar cursando ou ter cursado História na graduação. Fato curioso, tendo em vista que não havia nenhuma pergunta a respeito da formação ou da área de atuação desses leitores, mas, alguns deles, especialmente os formandos ou formados em História, destacaram isso em algum momento do questionário, ou até mesmo antes de respondê-lo, durante a sua aplicação. Ou seja, dos leitores que criticaram o 1808 pela falta de rigor historiográfico, ou que ajuda a construir e disseminar verdades, apenas um não tinha formação na área de História. Isso nos leva a supor que, para um leitor leigo, que não é familiarizado com o método, teoria e conceitos próprios da história científica, fica difícil perceber essas questões com relação ao 1808, no que se refere à crítica às fontes e às referências historiográficas, bem como à construção do conhecimento histórico.
Como vimos, a dimensão cognitiva da cultura histórica refere-se aos argumentos racionais que garantem validade ao conhecimento histórico. Como Rüsen (1994, p. 20) afirma, “[...] se trata del principio de coherencia de contenido, que se refiere a la fiabilidad de la experiencia histórica y al alcance de las normas que se utilizan para su interpretación”. Vimos também que, embora não se refira apenas ao conhecimento histórico científico, a ciência histórica tem um peso muito grande nessa dimensão, já que é como se ela tensionasse as demais produções históricas de acordo com a sua regulação metodológica das atividades da consciência histórica.
Procuraremos, por fim, identificar e analisar de que forma ou os motivos pelos quais os leitores do 1808 participantes da pesquisa medem/avaliam a confiabilidade com relação ao seu conteúdo histórico. Para isso, elaboramos três questões com o intuito de entender, em primeiro lugar, o que esses leitores entendem por história e quais as formas em que a história aparece em que eles mais confiam para, por fim, comparar essas questões com os motivos que os levaram a achar, ou não, o 1808 confiável. Por causa da dimensão deste texto, resumiremos ao máximo esses resultados.
As respostas dos colaboradores sobre o tema da história permitiram identificar que 19 deles estabeleceram relações entre o passado e o presente, indicando que o presente é mais bem compreendido por meio do conhecimento do passado. Essas respostas foram agrupadas na categoria ‘passado-presente’. Dos respondentes, 14 relacionaram a História ao conjunto de fatos que aconteceram e ficaram no passado. Para eles, história é passado, motivo pelo qual foram reunidos na categoria ‘passado’. A categoria ‘homens no tempo’, com 13 participantes, reuniu os que reconheceram a História como conhecimento da relação humana com passado-presente-futuro. Por fim, na categoria ‘ciência’, ficaram os 6 participantes que destacaram o papel da ciência da história, exploraram a questão da construção do conhecimento histórico, relação com método, teoria, contextos, etc. Apenas 3 questionários foram considerados inclassificáveis nesse quesito por falta de resposta ou impossibilidade de compreensão.
Com relação à confiança dos leitores pelo 1808, as respostas ficaram organizadas em 4 categorias, com apenas 4 respostas consideradas inclassificáveis, pelos mesmos motivos anteriores: “Confiável, pois possui referências” (17 participantes), “Confiável, mas com algumas ponderações” (14 participantes), “Não/não muito confiável” (13 participantes) e “Confiável, pois condiz com o que já sabia” (7 participantes).
Por meio dessas respostas, pudemos perceber que, de fato, a ciência histórica joga um peso muito grande com relação à validade dos argumentos históricos, tendo em vista que muitos dos respondentes, além de se espelharem nas discussões trazidas pela disciplina escolar para definir o que é história, também destacaram os professores e os livros de história e/ou livros escolares como algumas das fontes mais seguras/confiáveis (juntos, esses elementos apareceram 47 vezes). Além disso, alguns leitores demonstraram balizar-se na ciência histórica para julgarem a confiabilidade do livro, já que muitos justificaram o 1808 como confiável com o argumento de que ele é resultado de anos de pesquisa, estando embasado em outros estudos e fontes. Houve também quem tenha criticado a confiabilidade do 1808 justamente pelo fato de ter sido escrito por um não historiador e, por isso, não demonstrar ter a mesma preocupação teórico-metodológica que os acadêmicos.
Com relação às definições de história pelos leitores, identificamos que a maioria deles se dividiu, sobretudo, em duas grandes categorias: aqueles que definiram a história como ‘o passado’ (categoria ‘passado’), e aqueles que definiram a história destacando as relações entre passado e presente (categoria ‘passado-presente’). No total, 19 leitores afirmaram que o presente pode ser mais bem compreendido por intermédio do recurso à sua história, como pudemos ver em respostas como: “[A História é] uma forma de compreender o funcionamento do mundo” (Leitor 15); “A ciência que estuda o passado, é muito importante ter esse conhecimento para entendermos melhor o presente” (Leitor 49); “[...] se você não sabe do passado, você também não compreende o que acontece nos dias de hoje [...]” (Leitor 12); “É a melhor forma de entender o que passamos hoje, visto que vivemos o reflexo e consequência da ação do homem na terra” (Leitor 3).
Esse conjunto de respostas tem uma relação muito próxima com os argumentos reunidos na categoria ‘Homens no tempo’, em que 13 leitores definiram a história como a ‘ciência dos homens no tempo’. Desses 13 leitores, alguns demonstraram apresentar a expressão ‘ciência dos homens no tempo’ como uma espécie de ‘frase pronta’, visto a semelhança entre as respostas, como, por exemplo: “É o estudo das relações e ações dos homens no tempo” (Leitor 2); “O estudo dos homens e sociedades no tempo” (Leitor 10); “É uma ciência social que estuda o desenvolvimento do homem do tempo através de pesquisas e investigações de fontes materiais e artísticas (aprendi na escola)” (Leitor 41). No entanto, também encontramos respostas como: “É um movimento dinâmico, onde humanos e não humanos relacionam-se no tempo e no espaço, um conhecimento sobre esse processo sempre em construção” (Leitor 48); “A História para mim é uma narrativa cambiante e problemática fundamentada em modelos de percepção e significação do tempo que abarcam inter-relações temporais entre passado, presente e futuro - e que busca sanar as necessidades de orientação temporal e espacial das pessoas” (Leitor 47). Ainda que encontremos diferentes níveis de argumentação, essas respostas unem-se ao demonstrar compreensão da história como processo contínuo de mudanças, além de também perceber as relações temporais entre passado-presente ou, ainda, passado-presente-futuro.
Na Tabela 1, especificamos quantos dos leitores de cada uma das categorias (que se referem às diferentes definições que esses leitores fizeram da história) relativizaram ou fizeram alguma ressalva quanto à credibilidade das fontes históricas do 1808. Lembramos que, apesar de algumas diferenças, as categorias ‘passado-presente’, ‘homens no tempo’ e ‘ciência’ se aproximam na maneira como entendem a história, já que, dentre outras coisas, os três reúnem respostas que demonstram reconhecer a funcionalidade do conhecimento histórico para o tempo presente.
Categorias | Nº total de pessoas | Nº de pessoas que relativizaram ou mostraram alguma desconfiança com relação às fontes históricas | Nº de pessoas que relativizaram, fizeram alguma ressalva ou demonstraram não confiar no 1808 |
Passado-presente | 19 | 9 | 9 |
Passado | 14 | 4 | 3 |
Homens no tempo | 13 | 4 | 7 |
Ciência | 6 | 5 | 6 |
Respostas inclassificá-veis | 3 | - | 2 |
Fonte: Respostas aos questionários do projeto de pesquisa compilados pelos autores (2016).
Segundo esses dados, ao que tudo indica, as pessoas de nossa amostra que entendem a história como uma ciência que se dedica a estudar os seres humanos no tempo tendem a duvidar mais ou a relativizar mais as fontes históricas. Parecem compreender tais fontes como construção humana em um determinado tempo e espaço, incapazes de ser neutras e permitir resgatar o ‘verdadeiro’ passado (categoria ‘passado-presente’, ‘homens no tempo’ e ‘ciência’). Já a maior parte daqueles leitores que definiu a história como ‘o passado’, ou a ciência que se ocupa em estudar tudo aquilo que já aconteceu, tendeu a apenas citar as fontes que julgou mais confiáveis, sem estabelecer ressalvas ou explicitar algum tipo de desconfiança com relação a elas (categoria ‘passado’). Como estamos limitados às informações obtidas nos questionários, não podemos afirmar que isso seja uma regra ou, ainda, que esses leitores que associam a história ao passado acreditem piamente nas fontes e/ou que acreditem que seja possível resgatar o passado tal como aconteceu.
De modo geral, os principais argumentos utilizados pela maioria dos leitores que afirmaram que não confiam ou que confiam em parte no 1808 (categoria ‘Confiável, mas com algumas ponderações’ e ‘Não/não muito confiável’) é a falta de rigor metodológico e/ou o fato de ter sido escrito por um jornalista. Segundo alguns desses leitores: “[...] trata-se de um livro de história comercial, direcionado ao público leigo, sem embasamento teórico, metodológico e documental [...]” (Leitor 28); “Um livro de história que enquanto foi escrito o autor se preocupou mais em ser lido, do que construir uma narrativa histórica calcada em métodos científicos, deve ser no mínimo questionável” (Leitor 47); “Creio que haja toques de exagero de criatividade para tornar a leitura interessante [...]” (Leitor 9); “Creio que tem alguma ficção, mas no geral é crível” (Leitor 34); “Eu acredito que sim, ela é confiável. Mas não duvido que tenha partes exageradas ou maquiadas. Afinal, é o que a comunicação de massa faz, usa seu poder para manipular determinada situação” (Leitor 6).
Já, no que diz respeito aos principais motivos que levaram os leitores a considerarem confiável a história apresentada no livro 1808, está o fato de Gomes demonstrar estar apoiado em outros autores, pesquisas e fontes, algo constante em toda a narrativa. Isso tanto para aqueles leitores que só pontuaram motivos pelos quais consideram o livro confiável (categoria ‘confiável, pois possui referências’), quanto para aqueles leitores que, além de considerarem motivos que o tornam confiável, também pontuaram algumas razões que acreditam tornar seu conteúdo histórico suspeito/questionável (categoria ‘Confiável, mas com algumas ponderações’). Segundo alguns desses leitores: “A confiabilidade da obra está na sua extensa bibliografia” (Leitor 5); “[...] ele apresenta dados históricos, ele faz pesquisas para mostrar as informações, tem detalhes de jornais da época, cartas, etc.” (Leitor 39); “[...] pois o Laurentino traz inúmeras referências de onde ele tirou as informações” (Leitor 3). São vários os exemplos em que esses leitores demonstram confiar no conteúdo do 1808, alegando que Laurentino Gomes se apoia em inúmeras referências bibliográficas, cartas e outros documentos da época, inclusive que ele visitou alguns lugares que descreve no livro, etc.
Além desses, outro fator considerado por alguns leitores é o tempo de pesquisa que Gomes levou para elaborar o livro, conforme ele mesmo assinala na introdução do 1808. Muitos leitores deram repostas semelhante à dessa leitora que afirma que considera o livro confiável porque, “[...] pelo que li, Laurentino Gomes fez pesquisas durante cerca de 10 anos para publicar seus livros” (Leitor 25). No entanto, cabe ressaltar que Gomes praticamente não vai diretamente até as fontes primárias, aquelas que são citadas por ele são retiradas de interpretações de outros livros. Além disso, também percebemos que ele utiliza as referências bibliográficas para fortalecer e dar validade à sua argumentação, mas que não especifica aos leitores suas diferenças, recortes e escolhas historiográficas.
Houve também alguns leitores que julgaram o livro confiável alegando que o conhecimento transmitido pelo 1808 conferia com aquilo que eles já conheciam sobre o assunto (categoria ‘confiável, pois condiz com que já sabia’). Esses leitores afirmaram, por exemplo, que o 1808: “[...] é confiável por apresentar uma história que bate com meu conhecimento, veio acrescentar, somar” (Leitor 24); “[...] já havia ouvido tais relatos de professores e até mesmo visto em outros livros” (Leitor 30); “[...] confio bastante, pois já conhecia parte da história apresentada e a bibliografia que embasou o livro, (ao que eu soube) é bastante fiel aos fatos” (Leitor 22); “Pois tudo o que eu leio é sempre confirmado pelo professor Henrique” (Leitor 12). Dessa forma, para eles, o livro é confiável porque traz um conteúdo semelhante àquele que tiveram acesso na escola ou, ainda, que conheciam por outros meios (principalmente por intermédio da minissérie O Quinto dos Infernos e do filme Carlota Joaquina, que, como vimos, o 1808 relata os personagens de forma caricata muito semelhante ao dessas mídias). O livro, de fato, não traz nada de novo com relação ao conteúdo referente ao episódio de transferência da corte portuguesa ao Brasil, mas os apresenta de uma forma muito atraente. Além disso, funciona de modo associado com o que se conhece em termos de ensino escolar e de cultura de massas, de modo que estabelece uma relação de familiaridade, que vai melhor com a credibilidade do que o estranhamento.
Como observamos, a maioria dos leitores citou os livros, os documentos e outros vestígios e professores como os formatos em que a história aparece em que mais confiam. Ao que parece, de acordo com grande parte dos leitores, essas também são algumas das fontes que fazem com que eles julguem a história apresentada no 1808 confiável, ou seja, a presença constante de referenciais historiográficos e de alguns documentos históricos, assim como um conteúdo próximo daquilo que foi transmitido pelo professor de história. Igualmente, a maneira como os leitores demonstram entender a História também interfere, em alguns momentos, no modo com que eles se relacionam com o conteúdo histórico presente nos diferentes tipos de fontes, assim como no 1808. Ao exemplo do caso dos leitores que definiram a história como uma ciência preocupada em reconstruir o passado a partir do presente, por meio de preocupações teóricas e metodológicas; muitas delas também fizeram algumas ressalvas com relação ao 1808, destacando a necessidade de filtrar seu conteúdo e olhá-lo criticamente.
Embora nem todos os leitores tenham mencionado a história acadêmica para elaborar suas respostas, percebemos que ela serve muitas vezes como um parâmetro para esses leitores na hora de julgar a credibilidade do 1808. No entanto, como muitos desses leitores não possuem formação específica em História, eles se atentam ao fato de Laurentino Gomes explorar e citar constantemente referências historiográficas e demais documentos da época para considerar o livro crível. Entretanto, como foi reconhecido por um dos respondentes, a tarefa de olhar criticamente e analisar as fontes e as referências historiográficas, conseguindo filtrar o que é conhecimento histórico e o que é ficção, pode ser uma tarefa muito mais difícil e complicada para um leitor leigo no assunto.
Considerações finais: no cais do porto, a despedir-se
Esta pesquisa não visou fornecer um panorama estatístico dos leitores de 1808, já que os apontamentos levantados aqui não valem para o universo de aproximadamente 1,5 milhão de leitores. No entanto, valem para esse universo de 55 leitores desta pesquisa. As reflexões, as hipóteses e as provocações desenvolvidas neste estudo podem fornecer uma amostra da cultura histórica desses leitores e servir de inspiração para pesquisas futuras, assim como definir alguns eixos de análise que poderão ser ou não comprovados em estudos posteriores e com outras características ou amostras.
Como pudemos ver, esses elementos (anedotas, linguagem agradável) recebem uma atenção especial no 1808 e são os que mais nos saltam aos olhos. Isso evidencia que Gomes não pretende desenvolver uma investigação historiográfica original, ele está mais preocupado em ‘divulgar’ a história acadêmica por meio de um formato diferenciado, mais leve e facilmente compreensível e, assim, conquistar a atenção do público. Percebemos que, para os leitores que responderam ao questionário, esse foi um dos principais motivos que os fizeram gostar do livro, já que, em diversos momentos, eles chamam atenção para esses diferentes elementos estéticos, destacando, principalmente, a narrativa acessível e prazerosa, composta por inúmeros detalhes, curiosidades e anedotas.
Esse também foi um dos motivos que pareceu mais influenciar no processo de apreensão do conhecimento histórico presente no 1808 pelos leitores. Em vários momentos, pudemos perceber que a combinação do conhecimento histórico com elementos romanescos e ficcionais, humanização de personagens, detalhes, anedotas, etc. colaboraram para que os leitores se aproximassem do passado, sentindo-se como uma espécie de testemunhas oculares da história, aumentando, em alguns momentos, a empatia pelo passado e facilitando a compreensão do conteúdo histórico. Além disso, esses elementos aliados ao fato de Gomes citar constantemente historiadores e demais pesquisadores sobre o assunto demonstrou transmitir a alguns leitores a sensação de ter acesso à ‘verdadeira’ versão do que aconteceu no passado. Ou seja, como já dito anteriormente, a ênfase nesses elementos estéticos comprometeu, em alguns momentos, a dimensão cognitiva da obra. Gomes afirmou que não tinha a pretensão de oferecer um livro acadêmico, e ele mesmo o definiu como um livro-reportagem, mas, ao mesmo tempo, destacou que o 1808 resultou de anos de pesquisa e procurou constantemente se apoiar em historiadores, buscando dar legitimidade a sua obra. No entanto, a crítica às suas fontes não estava acessível aos leitores, ele não deixa claro sobre seus recortes e escolhas historiográficas. Isso contribui para reduzir o campo das hipóteses e fornecer uma narrativa de causa e efeito, conduzindo os leitores, em alguns momentos, a entenderem a narrativa do 1808 como a única versão possível da história.
Por outro lado, foi possível notar também que há um forte relacionamento entre o ensino escolar de história, a história produzida pela academia e a possibilidade de existência e sucesso de livros como o 1808. A escola dissemina o assunto, torna-o conhecido a ponto de ser reconhecido quando de uma data comemorativa ou ‘gancho’ jornalístico e, portanto, servirá como ponto de partida, para os leitores que entendem que o livro aprofunda ou detalha a história escolar, ou como contraponto, para os leitores predispostos ao conspiracionismo, segundo os quais a escola esconde ‘a verdadeira’ história, mas que o livro revela. A história acadêmica, por sua vez, fornece, por meio das citações do autor, uma fonte de autoridade. Pensando por esse lado, em vez de uma oposição, pode-se pensar também em termos de uma complementaridade - ainda que tensa - entre história escolar e acadêmica, por um lado, e a obra de história pública com apelo midiático e comercial, por outro. Se este chega onde aqueles não alcançaram, é porque parte de onde eles chegaram.
O detalhamento dos processos por meio do recurso à pequena história (que humaniza os personagens e dá mais realismo às cenas), a caricaturização de alguns sujeitos históricos, o recurso à autoridade acadêmica e a alguns documentos de época, bem como o tom levemente iconoclasta e de revelação de ‘segredos’ da história, combinados, geram um efeito testemunhado por boa parte dos respondentes, que apelidamos de ‘efeito janela’, pelo qual o livro parece oferecer ao leitor uma visão imediata, direta, do passado retratado. A maioria dos leitores não se dá conta desse efeito e, assim, associa as construções do autor à verdade histórica, tanto faz que seja complementar ou oposta à história escolar/acadêmica. Esse último aspecto merece muita atenção, sobretudo dos professores de história e profissionais vinculados à divulgação científica, pois não contribui com o necessário desenvolvimento do espírito crítico e da autonomia do sujeito na sua relação com o passado.