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Acta Scientiarum. Education

versão impressa ISSN 2178-5198versão On-line ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.41  Maringá jan. 2019  Epub 01-Out-2019

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v41i1.48175 

HISTÓRIA E FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

Alimentando o corpo e a alma no medievo: devoração e nutrição na Visio Tnugdali

Alimentando el cuerpo y el alma en el medievo: devoración y nutrición en Visio Tnugdali

1Departamento de História e Geografia, Universidade Estadual do Maranhão, s/n, 65055-970, São Luís, Maranhão, Brasil.


RESUMO.

O objetivo deste artigo é apresentar o papel do ato da alimentação nas imagens relacionadas à obra Visio Tnugdali, principalmente o manuscrito iluminado Getty Tondal (1475), em comparação com a versão latina de Marcus. Essas imagens também são comparadas com algumas xilogravuras da versão impressa na Alemanha, ed. Speyer do século XV (De raptu animae Tundali et eius visione, 1483). O tema central da narrativa é a viagem ao Além de um cavaleiro chamado Tundal, que passa por uma experiência de quase-morte e vai aos espaços do Purgatório, Inferno e Paraíso, acompanhado por um anjo, visando conscientizá-lo de seus pecados. Por este motivo, sofre, durante a jornada, algumas penas, bem como conhece algumas delícias do Paraíso. As imagens e a narrativa enfatizam o fato dos castigos aos humanos estarem vinculados ao ato da devoração, relacionada à educação dos humanos para a salvação. Os seres humanos sofrem como se estivessem numa cozinha sendo cortados, espetados, amassados, derretidos, transformados em massa e voltam a sofrer continuamente. As punições estão relacionadas principalmente aos pecados da luxúria e gula, e poderiam ser sofridas por clérigos e leigos. A narrativa também apresenta elementos nutricionais positivos, como, por exemplo, a hóstia que o cavaleiro ingere depois da sua purificação no Além, representada no frontispício da Vision de Don Túngano (História del virtuoso cavaleiro Dõ Túngano, Toledo, 1526). Outros elementos alimentares positivos estão relacionados ao Paraíso, como a árvore da vida e a fonte de água viva, descritos na Bíblia (1995). As imagens alimentares visuais e mentais relacionadas ao espaço da cozinha (referente aos lugares infernais) e ao Éden bíblico estão próximas do cotidiano medieval, pois a narrativa buscava educar os cristãos para a salvação no post-mortem.

Palavras-chave: alimentação; educação; salvação; cavaleiro Tundal

RESUMEN.

El objetivo de este artículo es presentar el papel del acto de la alimentación en las imágenes relacionadas con la obra Visio Tnugdali, principalmente el manuscrito iluminado Getty Tondal (1475) en comparación con la versión latina de Marcus. Estas imágenes también se comparan con algunas xilograbaciones de la versión impresa en Alemania, Ed. Speyer del siglo XV (De raptu animae Tundali et eius visione, 1483). El tema central de la narrativa es el viaje al más allá de un caballero llamado Tundal que pasa por una experiencia de casi muerte y va a los espacios del Purgatorio, Inferno y Paraíso, acompañado por un ángel, con el fin de concientizarse de sus pecados. Por este motivo, sufre, durante la jornada, algunas plumas, así como, conoce algunas delicias del Paraíso. Las imágenes y la narrativa enfatizan el hecho de que los castigos a los humanos están vinculados al acto de la devoración, relacionada a la educación de los humanos para la salvación. Los seres humanos sufren como si estuvieran en una cocina siendo cortados, espetados, amasados, derretidos, transformados en masa y vuelven a sufrir continuamente. Las sanciones se refieren principalmente a los pecados de la lujuria y gula y podrían ser sufridos por clérigos y laicos. La narración también presenta elementos nutricionales positivos, como, por ejemplo, la hostia que el caballero ingiere después de su purificación en el Más Allá, representada en el frontispicio de la Visión de Don Túngano (História del virtuoso cavaleiro Dõ Túngano, Toledo, 1526). Otros elementos alimenticios positivos están relacionados con el Paraíso, como el árbol de la vida y la fuente de agua viva, descritos en la Biblia. Las imágenes alimenticias visuales y mentales relacionadas con el espacio de la cocina (referente a los lugares infernales) y al Edén bíblico están cerca del cotidiano medieval, pues la narrativa buscaba educar a los cristianos para la salvación en el post mortem.

Palabras-clave: alimentación; educación; salvación; caballero Tundal

ABSTRACT.

The purpose of this paper is to present the role of the food act in the images related to the work Visio Tnugdali, mainly the illuminated manuscript Getty Tondal (1475) in comparison to the Latin version by Marcus. These images are also compared with some woodcuts from the printed version in Germany, Ed. Speyer of the fifteenth century (De raptu animae Tundali et eius visione, 1483). The central theme of the narrative is the journey to beyond by a knight called Tundal, who undergoes a near-death experience and goes to the spaces of Purgatory, Hell and Paradise, accompanied by an angel, in order to make him aware of his sins. For this reason, he suffers during the journey some feathers, as well as, knows some delights of Paradise. The images and the narrative emphasize that punishment of humans is linked to the act of devouring, related to the education of humans for salvation. Humans suffer as if they were in a kitchen being cut, stuck, crumpled, melted, mass-transformed, and suffer again. The punishments are mainly related to the sins of lust and gluttony and could be suffered by clerics and laymen. The narrative also presents positive nutritional elements, for example, the host that the knight eats after his purification in the Beyond, represented on the front page of the Vision of Don Túngano (História del virtuoso cavaleiro Dõ Túngano, Toledo, 1526). Other positive food elements are related to Paradise, such as the tree of life and the source of living water, described in the Bible. Visual and mental food images related to kitchen space (referring to infernal places) and Biblical Eden are close to medieval everyday life, because the narrative sought to educate Christians for post-mortem salvation.

Keywords: food; education; salvation; knight Tundal

Introdução1

Em verdade, em verdade, vos digo:

Aquele que crê tem a vida eterna.

Eu sou o pão da vida [...]

Eu sou o pão vivo descido do céu.

Quem comer deste pão viverá eternamente.

(Jo 6, 47-51).

A Visio Tnugdali faz parte de um conjunto de textos compostos principalmente por monges com o propósito de contribuir com a evangelização dos cristãos, mostrando aos fiéis como seriam os locais do post-mortem, as alegrias dos eleitos no Paraíso e os castigos dos pecadores no Inferno. O século XII foi o momento de apogeu dessas visões, o seu “[...] século do ouro” (Delumeau, 2003, p. 80). A Visio Tnugdali é a mais conhecida delas (Wieck, 1990; Dinzelbacher, 1992) e um dos relatos que posteriormente deu origem à Comédia de Dante.

A Visio foi muito popular, uma vez que o protagonista, um cavaleiro pecador, vai ao Além e sofre várias penalidades em seu corpo, devido aos seus pecados, chegando a ver a figura de Lúcifer no Inferno. Mostra ainda, de maneira mais detalhada que outros relatos, como seriam os espaços do Paraíso (Delumeau, 2003), divididos em Muros, com aspectos edênicos, e também de uma cidade, tal como podemos perceber na descrição do Paraíso do Apocalipse de São João. Nas representações do Paraíso de vários artistas no século XV, como Fra Angelico, em O Juízo Final (1432-1435), no detalhe referente ao local dos justos, o Paraíso com muros é identificado com uma fortaleza de onde emana luz2.

O manuscrito foi composto por um monge irlandês, proveniente de Cashell (Seymour, 1926), que se encontrava em Regensburg, no sul da atual Alemanha. É dedicado a Gisela, abadessa do mosteiro de Saint Paul, sendo ele do mosteiro de Saint Jacques. O fato de Marcos estar tão longe de sua cidade natal expressa o desejo de muitos monges, que consideravam o fato de se autoexilar de sua terra de origem como um movimento penitencial em busca da purificação (Pontfarcy, 2010a). A sua congregação fazia parte dos Schottenkloster (instalação de mosteiros irlandeses e escoceses na Alemanha). Marcus era favorável ao movimento da Reforma Gregoriana ou Papal, o que, na época, sofria resistência da igreja irlandesa (Pontfarcy, 2010a).

Neste período, o século XII, os relatos visionários eram considerados verídicos, tendo muitos deles origem popular, e depois eram reinterpretados por uma autoridade religiosa (Le Goff, 1994). O certo é que circularam muitas visões, tendo como protagonistas, principalmente, homens: religiosos, cavaleiros (como Tundal e Owein), camponeses (Turkill) (Dinzelbacher, 1986, 1992; Nogueira, 2015).

A Visio Tnugdali teve mais de cento e cinquenta cópias (Palmer, 1982), somente na língua latina, mais quatorze manuscritos perdidos3 (Wieck, 1990), com grande circulação em idiomas vernáculos, tendo sido traduzida para quinze idiomas (Cavagna, 2008)4, e esteve entre os primeiros livros impressos. Marcus faz, no início da obra, um prólogo, com uma longa descrição da Irlanda e menciona a sua estrutura administrativa, com base em arcebispados. No seu texto, a ênfase é na correção aos pecados. Por isso, os primeiros capítulos, referentes ao espaço do ‘inferno superior’, mencionam as punições aos pecadores, com títulos como ‘A primeira pena dos homicidas’ (De prima pena homicidarum), ‘A pena dos insidiosos e pérfidos’ (De pena insidiatorum et perfidorum), ‘Os avaros e sua pena’, (De avaris et pena eorum), ‘A pena dos glutões e fornicadores’ (De pena glutonum et fornicantium). No relato de Marcus, portanto, a ênfase é nos castigos aos homicidas, pérfidos, avaros, glutões e fornicadores, entre outros (Wagner, 1882).

A narrativa, devido a sua popularidade, foi difundida, sem o prólogo, em latim, no relato do cisterciense Hélinand de Froidmont, ainda no próprio século XII. Depois foi inserida no Speculum historiale (Espelho da história) do dominicano Vincent de Beauvais (c. 1250). Nessas versões há uma ênfase nos pecados e punições. A versão latina por Hélinand de Froidmont, depois incorporada por Vincent de Beauvais, foi chamada de De raptu animae Tundali et eius visione (1483) (O rapto da alma de Túndalo e sua visão), sendo inserida no livro 28 (ou 27 em algumas versões) do Speculum historiale5.

Essa versão foi traduzida em francês no século XIV, com o título de Miroir historial por Jean de Vignay (2008) (da ordem dos hospitalários), e dedicada a Joana, esposa do rei da França, Felipe VI de Valois (1328-1350) (Cavagna, 2008). Os títulos dos capítulos referentes à Visio Tnugdali, em comparação com os mesmos capítulos de Marcus citados anteriormente, são, em francês arcaico, os seguintes: De la valee horrible e du pont estroit, De la beste monstreuse et horrible e Du four plain de flambe6 (O vale horrível e a ponte estreita, A besta monstruosa e horrível, O forno cheio de fogo). Desta forma, é possível perceber duas ênfases diferentes nessas versões com relação aos espaços infernais: na de Marcus, o acento é nos pecados e sua correção e na de Vincent de Beauvais/Hélinand de Froidmont, traduzida em francês como Miroir Historial, é nos espaços e nos monstros (Cavagna, 2008).

Como forma de aproximar o relato principalmente dos ouvintes, uma vez que este era principalmente ouvido pela população através das pregações, e também alguns casos, nos séculos XIV e XV, servia como devoção privada dos nobres, era importante trazer o universo do post-mortem o mais próximo possível das pessoas. Neste sentido, havia o apelo às sensações dos cinco órgãos dos sentidos na narrativa (visão, audição, tato, paladar e olfato). Imaginar as sensações auxiliava cada um a materializar como eram as punições ao cavaleiro.

É importante a menção no Além de elementos conhecidos, como as ações do cotidiano, em especial, relacionadas à cozinha. Para Dias (2015), os condenados, nos relatos sobre o ‘inferno’, estão como que expostos num açougue, devorados e excretados, numa digestão recorrente e disfuncional, representando uma distopia alimentar.

Nas versões iniciais da Visio Tnugdali, compostas no século XII, os locais do Além são divididos em Inferno Superior (para aqueles que ainda não estavam condenados) e Inferno Inferior (para os que não se arrependeram de seus pecados e serão atormentados eternamente) (Wagner, 1882). Nas versões posteriores da narrativa, inspiradas em Marcus e compostas no século XV, o antigo Inferno Superior passa a ser chamado de Purgatório. É o caso do manuscrito da duquesa de York, intitulado Les visions du chevalier Tondal (As visões do cavaleiro Tundal), da versão portuguesa do códice 244, Visão de túndalo, ambos compostos no século XV, e da Visión do caballero don Túngano, texto impresso em Toledo no século XVI.

As punições estão ligadas a sofrimentos que alternam fogo e gelado, escuridão, cheiro de enxofre, ranger de dentes. Os espaços infernais na Visio são descritos com objetos como frigideiras, caldeirões, casas que queimam, fornos, forjas de ferro, entre outros. E temos verbos como cortar, espetar, esfolar, espedaçar, derreter, amassar, desmembrar, coar. Alguns objetos utilizados para castigar são facas, cutelos, arpões, martelos, gadanhos, entre outros (Esteves Pereira, 1985).

Os pecadores são torturados com base nos Dez Mandamentos (ex: roubar, matar) e também nos sete pecados capitais (Pontfarcy, 2013; Baschet, 2014). O pecado da luxúria está associado ao ato de comer, daí uma das punições, a dos ‘glutões e fornicadores’ na Casa de Fristin (um forno), é ser assado. Essas imagens aparecem tanto no texto latino composto por Marcus originalmente no século XII quanto em outras versões da narrativa.

No século XV, a Visio também contribuiu para a devoção privada, havendo a presença de texto e imagem (com vinte iluminuras), num manuscrito encomendado pela duquesa Margaret de York (1446-1503), e que tinha por objetivo estimular a religiosidade do seu marido, o duque Carlos, o Temerário. Neste aspecto, nessa versão procura-se aproximar o universo de Tundal ao do duque, enfatizando o fato do primeiro ser um grande senhor. É interessante que os manuscritos compostos para a duquesa possuíam o seu emblema ‘bien en aviegne’, com borda floral (ver margem das Figuras 1, 4 e 5).

O texto Les visions de Tondal lembra todo o tempo a condição de cavaleiro do protagonista, além de a obra ser uma espécie de espelho de príncipes, com a função didática de exaltar valores cavaleirescos, como o poder, a valentia e a coragem do cavaleiro, que deveriam ser submetidos à misericórdia divina (Cavagna, 2008). A obra segue o relato de Marcus, mas com algumas pequenas modificações, e ficou conhecida na contemporaneidade como The visions of the knight Tondal ou Getty Tondal, estando atualmente depositada no Paul Getty Museum, em Los Angeles, nos Estados Unidos (ms. 30).

Também houve versões impressas da Visio Tnugdali, os primeiros incunábulos, inspirados na versão de Vincent de Beauvais7, e que circularam principalmente em latim e alemão entre fins do século XV e início do século XVI, também com vinte ou vinte e uma xilogravuras8, dependendo da edição Speyer (ver Wieck, 1992, p. 127, nt. 16).

Neste artigo serão analisadas imagens do manuscrito da duquesa de York (The Visions of the knight Tondal, 1475), em comparação com algumas xilogravuras do relato em sua versão impressa, num dos incunábulos que circularam na Alemanha em latim, De raptu animae tundali et eius visione (O rapto da alma de Tundal e sua visão) (De raptu animae Tundali et eius visione, 1483), que salientam o ato de comer e/ou de ser devorado. A devoração engloba a ação de comer de forma gananciosa, incontrolável, não civilizada. Na Visio, essa ação ocorre através de animais ferozes e do ‘diabo’ contra os humanos pecadores. Também serão analisados elementos alimentares positivos relacionados ao ‘paraíso’ e a Cristo, como a hóstia9, a fonte de água viva e a árvore da vida, que também aparecem no relato e nas imagens.

Comida, pecado e salvação na Visio tnugdali

As imagens no medievo podiam ser imagens mentais e visuais. Estas últimas proporcionavam ao espectador a capacidade de se transferir, através do olhar, para o universo da imagem, partindo do mundo visível para o invisível, ligado a Deus (Schmitt, 2002b; 2007). Na medida em que o relato foi encomendado pela duquesa Margaret de York, há elementos na imagem, que faziam a duquesa e seus próximos se identificar com as cenas. Assim, na Figura 1, a anfitriã aparece vestida com chapéu pontudo, utilizado na época, e que a própria Margaret de York também usava em pinturas que a representam, como um retrato de 1468, de autoria anônima, que se encontra atualmente no Museu do Louvre, em Paris.

Sobre a duquesa Margaret de York, seus irmãos foram reis da Inglaterra (Eduardo IV, rei entre 1461-1483 e Ricardo III, 1483-1485) e o casamento (1468) realizou-se no contexto da Guerra dos Cem Anos, estando o duque Carlos, o Temerário, seu marido, em conflito com o rei da França, Luís XI (1461-1483). Margaret foi a terceira esposa de Carlos, que já possuía uma filha do primeiro casamento. Por não ter conseguido dar à luz a um herdeiro, a duquesa foi negligenciada pelo marido e o via poucas vezes por ano (Blockmans, 1992). A encomenda da Visio visava estimular Carlos a se ligar mais com as coisas espirituais do que com as terrenas. Dois anos depois da composição da obra, porém, o duque faleceu em batalha contra o rei da França, Luís XI.

O texto foi compilado por David Aubert10, com iluminuras de Simon Marmion (Aubert & Marmion, 1990), já conhecido na sua época “[...] por Jean Lemaire de Belges como príncipe dos iluminadores” pela qualidade do seu trabalho (Pontfarcy, 2010a p. XX, grifo da autora). Tanto a letra de David Aubert quanto as iluminuras de Marmion (Pontfarcy, 2010a) eram muito apreciadas na época da confecção da obra.

Após o prólogo, sobre as cidades da Irlanda, mantido na versão da duquesa em francês, a narrativa, seguindo o texto latino de Marcus, inicia-se com uma cena, que envolve um jantar. Tundal11 vai cobrar a dívida a um amigo que lhe devia três cavalos (trium equorum debit erat), e não podia ainda quitar o débito, o que deixa o primeiro aborrecido, ocasião na qual o anfitrião o convida para uma refeição, antes da partida. Este traço de hospitalidade, elemento medieval da nobreza, também aparece nos romances corteses (Busby, 2012)

Neste momento, quando Tundal ia esticar o braço para pegar a comida, sente-se mal e não consegue, uma vez que “[...] a piedade divina agiu e não pôde retornar à boca a mão que estendera [...]” (Set pietas hunc appetitum cita qua occasione percussus manum, quam extenderat, replicare non poterat ad os suum (Wagner, 1882, p. 8) (Figura 1).

Segundo a interpretação da imagem de Marmion (1990a) sobre o jantar:

Figura 1 The visions of the knight Tondal, 1475, f. 7 (Marmion, 1990a, p. 39)12.

O copista, Davi Aubert escreve nas primeiras linhas do manuscrito com letra vermelha13: ‘Aqui começa o livro de um cavaleiro e grande senhor da Irlanda’ (Figura 1). As imagens representam sempre mais do que uma mera ilustração do texto, reinterpretando-o e ampliando o seu sentido). Pode-se observar que Tundal é o personagem principal da cena. Ao olhar a Figura 1, o cavaleiro está no centro da mesa e nosso olhar se dirige a ele quando a contemplamos. Ampliando os dados da história, acrescentando detalhes que não estão no texto da Visions of the knight Tondal, redigida por Davi Aubert para Margaret de York, na iluminura de Marmion (1990a) há uma mesa retangular, o que reforça as hierarquias medievais. O amigo de Tundal, o anfitrião, está na cabeceira, sua mulher ao seu lado e outros convidados ao redor, além de dois servos preparando a comida, separados da mesa por um balcão aberto (podendo identificar que esses últimos estão no espaço da cozinha), outro jovem servindo e um escudeiro em frente da mesa.

Tundal estica o braço para pegar a comida, conforme o texto, mas não consegue e cai (Figura 2). Na cena, quando o cavaleiro se sente mal, e, de acordo com o manuscrito, pede para a mulher do anfitrião tomar conta de seu machado. Segundo o texto em latim redigido no século XII, no qual Davi Aubert se inspirou: “Tome conta do meu machado porque eu morro” (custodi, inquiens, meam seccurim, nam ego morior) (Wagner, 1882, p. 8). Na cena de Marmion (1990a, Figura 1), este objeto está encostado na parede, atrás da anfitriã14. Saliente-se que, já no período de composição da Visio por Marcus (século XII), a espada era considerada uma arma mais ‘nobre’ que o machado. Esse elemento pode enfatizar o aspecto do cavaleiro como um pecador.

A cena seguinte dessa obra dedicada à duquesa Margaret mostra Tundal no chão, circundado por várias pessoas, homens e mulheres (f. 11) (Aubert & Marmion, 1990). É importante destacar a presença das mulheres, que contemplam Tundal preocupadas, uma das quais, ajoelhada perto do corpo caído do cavaleiro, com as mãos em forma de oração, é a mesma que aparece na Figura 1, com traje semelhante ao de Margaret de York (chapéu pontudo). Atrás dela, outra dama usa o mesmo tipo de chapéu. A preocupação dos presentes parece indicar a importância do cavaleiro e seu afeto por ele.

Uma outra representação da cena aparece em incunábulo impresso na Alemanha, no século XV, numa versão que circulou em latim:

Na xilogravura (Figura 2), não há a imagem feminina, mas somente homens. A mesa está posta, com um prato com um alimento também semelhante a carne, e Tundal está caindo, o que pode ser notado por seus braços abertos e a cabeça virada para o lado do chão. Também pode ser vista uma janela, da qual sai um braço na manga de, provavelmente, uma túnica (que não vemos) e uma mão, possível alusão ao papel divino neste episódio, mencionado no texto de Marcus com a expressão a “[...] piedade divina” (Wagner, 1882, p. 8).

O alimento nas imagens parece ser carne. Na Vision de Tyndal, versão da narrativa produzida no Languedoc no século XV, é mencionado que o cavaleiro não podia colocar o alimento ou a carne (vianda) em sua boca ([...] non poc portar la vianda em sa boca) (Jeanroy & Vignaux, 1903, p. 59 ). Na narrativa sobre Tundal contida no Miroir historial, do século XIV, tradução do Speculum historiale, de Vincent de Beauvais, é explicitamente mencionado que o alimento que o cavaleiro não consegue comer é carne: “[...] et fu a la main qu’il avoit estudendue la viande” (e foi a mão que ele havia estendido para a carne) (Vignay, 2008, p. 66).

A carne é uma comida que dá forças e sustenta, vinculada aos guerreiros, aos nobres, únicos na sociedade feudal que poderiam realizar a caça nas propriedades rurais, o que teria ocorrido por volta dos séculos IX-X (Guerreau, 2002). Os camponeses que realizassem essa prática eram punidos. A carne era a ingestão alimentar por excelência da aristocracia, ao passo que os camponeses ingeriam principalmente pão e legumes, principalmente a partir da Idade Média Central (Montanari, 2002). No período medieval, aquela estava associada ao prazer, já que garantia calor, sendo, por isso, considerada afrodisíaca. Era vinculada ao pecado da gula e, por isso, segundo a ideologia monástica que valorizava a humildade, era recomendado que não fosse consumida pelos monges.

Acreditava-se, destarte, que evitar a carne era uma maneira de manter a castidade (Montanari, 2016). Os religiosos deveriam, ao contrário, alimentar-se de pão, sal e água, adicionando ocasionalmente frutas e vegetais. No caso dos monges beneditinos, estes podiam fazer duas refeições por dia com dois pratos de comida cozida. Já os eremitas consumiam muitas vezes a comida crua, isto é, não cozida, que voltou à moda nos nossos dias entre certos grupos (Adamson, 2004).

“A comida não era apenas a preocupação material principal dos medievos; as práticas alimentares - jejuar e festejar - estavam no centro da tradição cristã” (Bynum, 1985, p. 139). O consumo de carne era aprovado no caso dos doentes, exatamente para lhes restituir a saúde e em determinados momentos festivos, como no Natal, quando era estimulada por São Francisco, por exemplo (Montanari, 2016).

Para muitos medievos, a gula foi a causa do pecado original, pois Eva foi tentada pela serpente a comer do fruto proibido para obter o conhecimento. Após comê-lo, Adão e Eva perceberam que estavam nus, o que enfatiza a ligação com a sexualidade. A maior parte dos teólogos e filósofos medievais, com exceção de Pedro Abelardo e seus discípulos, defenderão que “[...] o pecado original é ligado ao pecado sexual, por intermédio da concupiscência” (Le Goff & Truong, 2006, p. 52).

Além disso, ao contrário da comida abundante que tinham no Éden, o Criador, ao expulsá-los, explica que a partir de então a mulher daria à luz com dor, e o homem só obteria comida a partir do suor de seu rosto: “Multiplicarei as dores de tuas gravidezes, na dor darás à luz filhos. [...] Com o suor de teu rosto comerás teu pão [...]” (Gn 3, 17-19, grifo nosso). Tal afirmação salienta a dificuldade em se obter o alimento na concepção bíblica.

Sobre o pecado da gula, S. Jerônimo (século IV) afirmava, que o estômago muito cheio de comida e vinho levaria à preguiça. Já Isidoro de Sevilha (século VI) fazia uma ligação entre gula e preguiça como consequência da proximidade do estômago aos órgãos sexuais (Adamson, 2004). A gula está associada ainda à goela/boca; do mesmo modo, os pecados carnais relacionados à gula e à sexualidade também estão relacionados à embriaguez (Le Goff & Truong, 2006; Schmitt, 2005). Por esse motivo, autores cristãos estimulavam o jejum como forma de alimentar o espírito, deixando o corpo claro e leve para receber a verdade divina. Daí decorre a necessidade do jejum nos quarenta dias da Quaresma, que antecediam a Páscoa, segundo o calendário cristão15. A medicina clássica também dizia, que a ingestão de comida deveria ser moderada, como nos capítulos de dietética e higiene pessoal de Galeno e Hipócrates (Adamson, 2004).

Bynum (1985) menciona a importância do feminino e a sua relação com o valor simbólico do alimento; através da comida, a mulher agia sobre si mesma e com a sociedade. Algumas místicas nesse período, buscando a aproximação com Deus, recusavam-se a se alimentar, vivendo quase que o tempo todo em jejum, sendo conhecidas atualmente como ‘santas anoréxicas’. Um exemplo é Catarina de Siena (m. 1380), que mastigava vegetais crus ou frutos, os quais logo depois cuspia ou vomitava (Lawers,1994; Soares, 2008)16. Sua relação com a nutrição a aproximava do divino, pois, ao ingerir a hóstia, recebia o sangue de Cristo em sua boca (Bynum, 1985). Essas mulheres transformavam seu corpo em alimento, numa espécie de imitatio Christi, pois “[...] do corpo das santas mulheres, da sua boca, do seu peito, dos seus dedos, escapava-se sangue, mas também, por milagre, perfumes, óleo e leite” (Lawers, 1994, p. 223). Desta forma, a privação do alimento carnal fortalecia a fé e a experiência mística das santas com o divino, transformando a si próprias em recipiente alimentar.

A relação entre corpo e alma no medievo é muitas vezes representada na oposição entre os alimentos terrestres, os do corpo, e os alimentos espirituais, as preces ou pensamentos profundos, que são servidos no chamado banquete da alma (Schmitt, 2002a). Numa peça de Gil Vicente do século XVI, o Auto da Alma (1987), os sofrimentos de Cristo são mostrados numa mesa à alma, depois que esta conseguiu se desviar das tentações oferecidas pelo Diabo e conseguiu, com o auxílio do anjo, atingir o caminho da salvação. Na mesa estão os objetos que representam o martírio de Cristo (a coroa de espinhos, o crucifixo).

A carne que Tundal não consegue pegar (Figura 1) está associada, portanto, a dois pecados capitais, a gula e a luxúria, e não é coincidência o fato de uma das punições na narrativa ser dirigida aos pecados dos ‘glutões e fornicadores’, o que mostra como essas duas faltas se interpenetravam no imaginário medieval. Os mosteiros buscavam o controle do apetite através do silêncio, da sobriedade nos refeitórios e do consumo de alimentos mais leves, como o peixe, o queijo, os ovos, além da prática do jejum ser recomendada, pois purificava o corpo e aproximava das coisas divinas, acalmando assim a tendência para o pecado carnal.

No Medievo e na Modernidade foram compostos manuais sobre as corretas maneiras de se comportar a mesa, o que contribuiu para o controle da agressividade da nobreza ao longo do tempo e também a sua distinção de outros grupos sociais, como os camponeses, que não conheciam essas regras (Montanari, 2008; Elias, 1994).

Tundal não consegue comer durante o jantar, possivelmente porque ele é um pecador, até então ligado a um tipo incorreto de alimento, e precisava passar por um processo de purificação. É por isso que, após a sua jornada ao Além, narrada também no início do relato, a primeira coisa que pede é o corpo de Cristo, nutrição espiritual, que garante a imortalidade, o qual ele consome juntamente com o vinho, representando o sangue do Salvador, relacionados ao sacramento da Eucaristia, o corpo e sangue de Cristo simbolicamente purificando os cristãos.

É interessante observar, que a narrativa sobre Tundal conta que ele se sente mal no jantar. Depois ocorre uma explicação do tempo em que ficou em experiência de quase-morte, isto é, o relato explica que ficou desacordado por três dias, da quarta até o sábado, não sendo enterrado pelo calor no seu peito esquerdo (Carozzi, 1994), apesar de apresentar os signos da morte: “[...] os cabelos embranqueceram, a testa ficou dura, os olhos ficaram errantes, os lábios empalideceram [...] os membros do corpo ficaram rígidos” ([...] crines candent, frons obduratur, errant occuli, nasus acuitur, pallescunt labia [....] corpora membra rigescunt” (Wagner, 1882, p. 8).

Nesse ponto, o relato realiza uma antecipação, isto é, mostra que o cavaleiro voltou salvo, regenerado, e que pedia agora a hóstia, a qual recebeu, e tomou o vinho, além de agradecer a misericórdia divina, para, depois disso, recontar detalhadamente os episódios passados pela alma nos locais infernais e paradisíacos.

Vemos a presença da hóstia na imagem a seguir de uma versão da Visio impressa em Toledo no ano de 1526:

A Figura 3 contida na xilogravura do século XVI encontra-se no frontispício da edição impressa em Toledo. Além da imagem, há um texto inicial, que sintetiza a narrativa. Em letras maiores: Historia del Virtuoso Cava [...], e depois continua a palavra ‘cavaleiro’. E o restante do texto com letras menores: “História do Cavaleiro Don Túngano e das grandes coisas e espantosas que viu no inferno e no Purgatório e no Paraíso [...]” (Pontfarcy, 2013, p. 1), mostrando uma cena que remonta tanto ao início da narrativa, quando o cavaleiro cai no chão, numa espécie de estado de coma, após haver tentado se aproximar do alimento que estava na mesa17 quanto ao final da narrativa, quando, logo após ‘acordar’ de sua viagem extracorpórea, pede para tomar o corpo de Cristo.

Na imagem, um religioso segura a sua mão e aproxima-se dele possivelmente para ouvir a sua confissão. O cavaleiro, com um capuz na cabeça, referência à penitência, está circundado por mulheres bem vestidas (nobres) e eclesiásticos, pois estes últimos usam vestes religiosas e são tonsurados. Um deles segura um prato com a hóstia. Pode-se ver aqui o contraste entre as primeiras imagens, as Figuras 1 e 2 (quando Tundal iria se aproximar do alimento material, relacionado com a carne-matéria e carne-corpo) e a Figura 3. Nesta representação, após voltar regenerado de sua viagem ao Além-Túmulo, depois de sofrer por suas faltas, ser convencido pelos argumentos do anjo e de visitar locais paradisíacos, o cavaleiro pede para consumir o alimento espiritual e fazer a confissão, importante ação recomendada pela Igreja. Além disso, como prova da sua regeneração, ele dá os seus bens aos pobres:

E depois este cavaleiro Túngano repartiu [seus bens] e fez esmolas de todas as coisas que possuía e as deu aos pobres e emendou a sua vida, que bem admoestada e espantada vinha das penas que havia sofrido e visto. E muito grande sabor, prazer e alegria tinha dos grandes bens, deleites e coisas que na Glória havia visto (La Visión de Túngano, 2012, p. 1, grifos nossos)18.

Figura 3 História del virtuoso caballero don Túngano (Toledo, 1526). 

O texto salienta as esmolas concedidas por Tundal, depois de seu retorno do Além, e o fato de ter dado bens aos pobres em virtude dos deleites que havia vivido, sem mencionar os castigos nesta passagem da história, que, no entanto, foram cruciais como meio pedagógico de conversão do cavaleiro, através de penalidades muitas vezes ligadas à devoração. Pode-se afirmar que, nesse percurso educativo, após o seu retorno, Tundal passa a usar a cruz em suas vestimentas, provando que havia se tornado um cristão exemplar (Pontfarcy, 2010b).

Dentre os tormentos sentidos pela alma na narrativa, é possível notar que os castigos estão muito próximos do ato de comer, isto é, Tundal e outras almas são devorados e seus corpos passam pelo processo digestivo dos monstros, bem como são tratados como alimentos a serem preparados para serem consumidos. O objetivo da narrativa é que, ao fim deste processo, do qual a devoração se constitui num elemento importante, o antigo cavaleiro pecador ‘morra’, isto é, seus pecados sejam extirpados e ele renasça como um novo homem, ocorrendo assim a sua salvação e de outros cristãos, a quem fosse transmitido o relato.

Neste sentido, a purificação no Além-Túmulo é obtida através do sofrimento nos espaços infernais, sofrimento este relacionado ao fogo e à decomposição das almas para que ocorresse o arrependimento das antigas faltas e um novo nascimento, como ocorre com o cavaleiro Tundal. Este ‘acorda’ de sua experiência após três dias no Além (uma analogia à ressurreição de Cristo). Daí que as almas são cortadas, espetadas, entre outras ações.

A concepção medieval tecida desde a Idade Média Central é na existência de dois julgamentos. Um, logo após a morte, o Julgamento individual, e o Julgamento Final, coletivo, após o segundo retorno de Cristo (Parusia), separando definitivamente os salvos e os danados (Le Goff, 1993). Por isso, após a morte, a alma é capaz de sentir como que corporalmente.

Neste sentido, aqueles que sofreram em seus corpos em vida (como os mártires e santos) terão recompensas no outro mundo, ao passo que os que não cuidaram do corpo e não se abstiveram dos prazeres, nem cumpriram as penitências indicadas pelos clérigos através das confissões (tornadas obrigatórias desde o IV Concílio de Latrão, em 1215) sofrerão corporalmente as penas por um certo período no Purgatório ou eternamente no Inferno. O tempo passado no Purgatório poderia ser minimizado pela ação dos vivos, por meio de doações e missas pela alma do defunto (Le Goff, 1993).

Sobre o caráter do fogo nos espaços infernais, de acordo com os teólogos, aquele seria muito mais intenso que o terreno, o qual dava uma pálida impressão da potência desse elemento punitivo do post-mortem. Além disso, era caracterizado por um aspecto negativo, por isso, impedia a luminosidade, mas mantinha a escuridão, o que aumentava o medo das punições (Baschet, 2014).

Tundal, graças à ação divina, tem a oportunidade, através da experiência no Além-Túmulo, de sentir as penalidades para poder se arrepender delas e se “[...] emendar dos seus pecados e suas maldades”, conforme salienta um manuscrito que circulou em Portugal (Esteves Pereira, 1895, p. 101).

O processo de transformação das almas pelos castigos ocorre tanto pela devoração quanto pela ação do fogo. Inclusive, quando a alma sai do corpo, os demônios que enchiam as ruas e praças e queriam levá-la ao Inferno afirmam que ela era “[...] alimento para o fogo inextinguível” (cibis ignis inextinguibilis) (Wagner, 1882, p. 10). Na versão portuguesa, os demônios cercam a alma, quando esta sai do corpo, após o cavaleiro ter se sentido mal (durante o jantar, referente à Figura 1 19), e lhe perguntam, entre outras coisas: “Onde estão [...] ‘o teu comer e beber’ [...] que davas pouco aos pobres?” (Esteves Pereira, 1895, p. 102, grifo nosso).

As chamas transformam os alimentos crus para serem digeridos, assim como ocorre com os pecadores, que modificam o seu comportamento após sofrer, sendo o ato de ser devorado pelos monstros e de serem modificados, derretidos pelo fogo, uma punição que auxilia a educação para a salvação.

A transformação submetida pelas almas em seus corpos também aproxima as punições do órgão do tato, já que os corpos são desmembrados. Por meio da provação física, os pecadores são cortados, espetados, assados, coados, transformados em massa. Além disso, todas essas ações são próximas do cotidiano medieval e do espaço da cozinha, que era conhecido por toda a população. Para os medievos, os espaços abertos estavam associados ao Inferno (como a boca) (Baschet, 1985) e o fechado ao Paraíso (como os muros de Ouro, Prata e Pedras Preciosas que Tundal vê neste local).

Podemos observar a relação dos espaços do Além na Visio Tnugdali com a devoração e alimentação na Tabela 1.

Tabela 1 Devoração e alimentação nos espaços infernais e paradisíacos da Visio Tnugdali 

Espaços Devoração ou alimentação
Purgatório Tundal e outros pecadores são ingeridos por monstros e torturados com objetos de tortura, que assemelham os humanos a alimentos a serem preparados: são cortados, amassados, coados, fervidos, assados
Inferno Lúcifer come, esmaga os humanos como bagos de uvas e os cospe para vários locais do inferno. Lúcifer também é assado na grelha de ferro.
Pré-paraíso (espécie de Limbo) Dividido em duas partes: 1. ‘os não muito maus’ sofrem vento, chuva, fome e sede: privação de alimentos e água 2. ‘não muito bons’: presença da fonte da água da vida
Paraíso Dividido em 3 muros: de prata, ouro e pedras preciosas, de acordo com a pureza de seus habitantes - no muro de ouro: árvore - associação com a Igreja Católica e com a árvore da vida. A nutrição é realizada de forma material ou espiritual através dos frutos desse vegetal

Fonte: A autora

É importante destacar que o protagonista sofre quase todas as penas, sendo poupado das três iniciais (destinadas aos assassinos, aos pérfidos e aos orgulhosos) (Pontfarcy, 2010b)20. Por exemplo, na pena dos assassinos, à qual, segundo o anjo, Tundal deveria ser submetido, mas que não sofre, apenas observa a cena, os condenados são colocados num vale com uma cobertura de ferro redondo, cheio de carvões ardentes (Pontfarcy, 2010b). Deste vale saía um odor muito fedorento e as almas eram jogadas e queimadas, derretendo-se, pois as “[...] almas mesquinhas [...] queimavam, ferviam como o azeite ferve na sartã” (frigideira) (Esteves Pereira, 1895, p. 103), segundo a versão portuguesa do século XV.

Eram também coadas como a cera através de um pano e depois reviviam e tudo se reiniciava. Na pena dos orgulhosos, esses deveriam passar por uma ponte. O anjo leva Tundal por essa ponte e assim ele fica livre do castigo (f. 15v) (Aubert & Marmion, 1990). Em várias outras descrições, as almas são comidas por monstros, trituradas, assadas em fornos, coadas, transformadas em massa, como aponta a Tabela 1 no que se refere aos lugares do Purgatório e Inferno.

Conforme foi mencionado, no Purgatório os humanos são torturados com instrumentos da cozinha e digeridos por demônios e monstros (Baschet, 2014). O próprio Tundal sofre, devido aos seus pecados, as punições destinadas aos ladrões, avaros, glutões e fornicadores e luxuriosos (Wagner, 1882; Pontfarcy, 2010b).

No pecado dos glutões e fornicadores, as almas e o próprio Tundal penam num local chamado Casa de Fristin, que, na verdade, se constitui num forno: “[...] a grande casa aberta” (grant mainsion ouverte) (Pontfarcy, 2010b, p. 60 era “[...] como uma bem alta montanha e era toda redonda como um forno” (aussi comme une bien haulte montagne et estoit toute reonde comme ung four) (Pontfarcy, 2010b, p. 60-62). O texto latino de Marcus menciona que as chamas nunca conseguiam saciar a gula (vero vastum condebatur incendium, aviditas cinexplebilis semper inerat cibi, nec tamem satiari poterat nimietas gule) (Wagner, 1882, p. 24). Tundal é desmembrado pelos demônios, que possuem em suas mãos forjas de ferro e outros instrumentos para torturar e atormentar as almas, e é arrastado em direção ao fogo (Pontfarcy, 2010b).

“O que podemos dizer sobre os ocupantes desta terrível casa?” (Pontfarcy, 2010b, p. 64), questiona a Visio. Menciona que os homens e mulheres neste local tinham os órgãos sexuais infestados por vermes, pois “[...] o pior tormento que essas almas sofriam neste lugar eram os sofrimentos atrozes sentidos em seus órgãos sexuais, que eram repletos e cheios de vermes” (le plus grant tourment que icelles ames souffroient ne que leans fuist estoit em leur membre de nature quy leur estoit pourry et plainde vers) (Pontfarcy, 2010b, p. 64)

O texto da duquesa de York, seguindo o latino, salienta que entre essas almas havia homens e mulheres seculares e religiosos (hommes et femmes seculiers et de religion) e eram atacados por cobras, serpentes e sapos,que faziam seu sofrimento ficar insuportável (Pontfarcy, 2010b). Além disso, aqueles que

[...] portavam o hábito de religião fingindo levar uma santa vida, estes últimos eram em particular ‘os religiosos e religiosas que haviam cometido o pecado da luxúria, os que suportavam os piores sofrimentos’ (porte habit de religion en semblant de sainte vye; certes iceulz estoient les plus fort tourmentez et quy plus de meschifiefs enduroient) (Pontfarcy, 2010b, p. 66, grifo nosso)

A Visio salienta que os oratores, homens e mulheres que tivessem incorrido na luxúria, além de serem atacados por animais (cobras, serpentes e sapos), seriam aqueles a ‘suportar os piores sofrimentos’. Desta forma, é interessante observar que a Visio Tnugdali se preocupa em educar não somente os leigos para a salvação, mas critica os próprios religiosos, que poderiam se desviar do bom caminho, incorrendo no pecado da fornicação, associada aqui à gula, e que no relato são duramente punidos com vermes que ‘comem’ seus órgãos sexuais, além desses pecadores sofrerem com a ação do fogo purificador.

A Tabela 1 aponta para o fato que, no Inferno, as almas são devoradas por Lúcifer, o qual as inala e depois as cospe para vários locais do submundo (Pontfarcy, 2010b). As almas eram cozidas dentro do horrível poço do Inferno, de onde jorrava uma chama terrivelmente fétida, que se elevava até o céu (Pontfarcy, 2010b). O próprio Lúcifer também ‘assa’ numa grelha no Inferno, que é atiçada por demônios (Pontfarcy, 2010b).

A devoração é a ação realizada por monstros e demônios aos humanos. Já a alimentação é a possibilidade dos humanos nutrirem a si próprios nos espaços do Além. Após passar pelos espaços infernais, Tundal e o anjo vão a um local intermediário, uma espécie de Pré-Paraíso ou Limbo, onde as almas não são mais devoradas.

Com relação aos espaços da Antecâmara do Paraíso, de acordo com a Tabela 1, os não muito maus são aqueles que, segundo a narrativa, “[...] não repartiram os bens com os pobres como deveriam e poderiam” (Esteves Pereira, 1895, p. 112). Para Emerson, os pecados estão relacionados principalmente ao tato e paladar. Nos espaços infernais, as almas são comidas por monstros. Depois passam para a primeira fase da etapa intermediária, um lugar que o texto classifica de os ‘não muito maus’, onde os habitantes não são torturados, nem devorados, mas sofrem vento e chuva, além de fome e sede, estes últimos elementos ligados à nutrição. Neste sentido, a privação da água e do alimento pelas pessoas que habitam esse local indica a continuidade do processo de purgação.

Há um segundo espaço intermediário antes do Paraíso. Segundo a versão portuguesa da narrativa: “[...] ali moram os não muito bons que são livrados e tirados das penas do Inferno e não merecem ainda ser chegados à companhia dos santos” (Esteves Pereira, 1895, p. 112). Daí a confirmação de ser ainda um espaço intermediário, onde os habitantes não sofrem as torturas infernais, mas também não estão na companhia dos santos e nem de Deus. Ali estão dois reis irlandeses, antes inimigos e que se reconciliaram, Concobre21 e Donato, sendo que o último, antes de morrer, deu os seus bens aos pobres (Pontfarcy, 2010b). Percebe-se a seguir a presença desses reis e a sua ligação com um espaço positivo, com a presença de árvores.

Conforme podemos ver na Figura 4, Tundal e o anjo aproximam-se dos dois reis, que se encontram vestidos com trajes brancos e coroas em suas cabeças, segundo a imagem, o que os aproximaria do Paraíso. A imagem mostra um pequeno pedaço do texto escrito em vermelho: ‘aqui fala de dois reis’. Aliás, para quem observa a imagem, parece se tratar daquele espaço de felicidade, o Paraíso. A paisagem apresenta aspectos edênicos através da claridade, do colorido e da presença de grama e árvores.

Figura 4 Os reis Concobre e Donato, 1475, f. 35 (Marmion, 1990b, p. 55). 

Quando entram nesse espaço, de acordo com o texto, Tundal e o anjo passam por uma porta e encontram campo muito verde e muito formoso, com belas árvores, com suave perfume e plantado de muitas flores, que davam bom odor (Pontfarcy, 2010b). Este elemento se adéqua à descrição da palavra ‘Paraíso’, que vem do persa e significa ‘jardim cercado’ (Delumeau, 2003), lugar dos justos bem aventurados, o qual deve ser situado no mundo celeste (Bauer, 1988). Uma das características desse local, segundo a Bíblia, é a de plenitude, com os seres humanos desfrutando de uma total felicidade e acesso à presença divina, elementos que não ocorrem ainda nesse espaço intermediário, que, de acordo com a Tabela 1, pode ser identificado com uma antecâmara do Paraíso ou ainda uma espécie de limbo, já que alguns de seus habitantes ainda sofrem, segundo o relato.

No manuscrito da duquesa de York há uma segunda representação do local dos ‘não muito bons’, onde podemos visualizar uma fonte (Figura 5).

Figura 5 Os não muito bons, 1475, f. 34v (Marmion, 1990c, p. 55). 

Na Figura 5, Tundal e o anjo estão separados de um belo espaço por um portal. Dentro estão várias pessoas trajadas de branco, próximas da água da vida, um importantíssimo elemento citado na Bíblia, e que está relacionado à nutrição da alma. Esta fonte é mencionada no Gênesis: “[...] um rio saía do Éden para regar o jardim e de lá se dividia formando quatro braços” (Gn 2, 10) (Bíblia, 1995). A água da vida representa abundância e está associada aos quatro rios do Paraíso Terrestre, o Gion, Fison, Tigre e Eufrates (Gn 2, 11-14) (Bíblia, 1995).

Esses quatro rios na Bíblia partem do centro, isto é, do pé da árvore da vida, também descrita no Gênesis (Bíblia, 1995), separando-se pelas quatro direções marcadas pelos pontos cardeais (Cirlot, 1984). Assim, partem do centro e da mesma direção. “A fonte é a fons juventius, cujas águas podem associar-se à bebida da imortalidade” [...] (Cirlot, 1984, p. 261, grifos do autor). Na Bíblia, Jesus diz que: [...] “quem beber da água que eu lhe darei,/nunca mais terá sede./Pois a água que eu lhe der/tornar-se-á nele uma fonte de água/jorrando para a vida eterna” (Jo 4,14). No relato medieval sobre uma terra de abundância, o país da Cocanha, quem bebesse da fonte teria sempre trinta e dois anos de idade (Franco Jr, 1998)22, o que vai ao encontro da noção de eternidade do relato bíblico.

Na obra The visions of the knight Tondal é mencionado que, neste mesmo espaço onde existe a fonte, lugar dos não muito bons, o rei Donato, um dos reis que vimos em trajes brancos e coroados na Figura 4, sofre neste local diariamente. É torturado pelo fogo, da barriga para baixo, a cada dia, durante três horas, em virtude de seus pecados, como o de ter matado um homem diante do túmulo de São Patrício, e por haver cometido o adultério (Pontfarcy, 2010b). Nas outras vinte e uma horas vive em alegria e tem servidores. As iluminuras da versão de Margaret de York não retratam o sofrimento desse rei23, mas nas versões impressas que circularam na Alemanha nos séculos XV e XVI há uma imagem de um rei coroado sendo queimado. É o caso da edição Speyer (De raptu animae Tundali et eius visione, 1483).

É possível perceber então que, embora o espaço do Pré-Paraíso ou Limbo apresente algumas características positivas que observamos no texto e nas imagens, como o ambiente edênico, com a presença do verde e da vegetação abundante, além de possuir um elemento bíblico, a fonte de água viva, que caracterizam o Paraíso e a nutrição da alma, o espaço ainda constitui-se em um lugar de purgação.

Portanto, há uma contradição nesta localidade desde a versão inicial do manuscrito em latim, de Marcus, e, mais ainda, nas imagens do século XV de Simon Marmion, que omite os aspectos punitivos do lugar dos ‘não muito bons’. De um lado, este lugar ainda é de tormento e, de outro, garante a presença do Paraíso, através da fonte de água viva, mencionada no Gênesis bíblico. O artista, possivelmente para que os leitores não confundissem o Pré-Paraíso com o Purgatório, omite das imagens o sofrimento do rei Donato, e as imagens parecem indicar o espaço intermediário como já sendo o Paraíso.

Finalmente, o anjo e Tundal atingem o Paraíso e veem-se dentro de um muro. No primeiro muro que encontram, o de Prata, encontram-se os casados que não cometeram adultério (f. 37) (Aubert & Marmion, 1990, p. 56). No segundo muro do Paraíso, o Muro de Ouro, destinado a aqueles que sacrificaram seus corpos para o fortalecimento da Igreja, os eleitos possuem celas de ouro e marfim numa árvore, identificada com a Igreja Católica. Esta árvore também está associada à árvore da vida, descrita tanto no Gênesis (Gn 2, 9) quanto no Apocalipse de São João (Ap 22, 2). A versão da duquesa não mostra especificamente a imagem desta árvore. Contudo, de acordo com o incunábulo da versão Speyer (De raptu animae Tundali et eius visione, 1483) da Visio Tnugdali, a árvore da vida associada à Igreja é representada na Figura 6.

Vemos na Figura 6, Tundal e o anjo no interior do Muro de Ouro. Dois personagens encontram-se coroadas em aposentos distintos, voltados um de frente para o outro, um homem (representado pela barba) e uma mulher coroados. Próximo deles e do muro está a árvore, que no texto está associada à Igreja, e da parte de cima, após as folhas, dois pássaros voam, um para cada lado da imagem.

Representando a vida em perpétua evolução e em ascensão ao céu, este vegetal possui o simbolismo da verticalidade, fecundidade e imortalidade. Une os mundos terrestre e celeste, pois sua raiz se encontra no interior da terra e os galhos e copa apontam para o céu, unindo microcosmo, associado ao ser humano, e macrocosmo, a Deus (Chevalier & Gheerbrant, 1995). A sua verticalidade também está associada à noção de eixo de mundo e possui analogia, no cristianismo, com a crucificação de Cristo para salvar os humanos. Segundo Cirlot (1984, p. 99): “[...] a árvore coincide com a cruz da Redenção; e na iconografia cristã a cruz está representada muitas vezes como a árvore da vida”. Do mesmo modo, a árvore dos confessores24 no Muro de Ouro destina-se a aqueles que se sacrificaram para o fortalecimento da fé cristã.

Para Emerson (2000), no Paraíso propriamente dito, os eleitos podem ainda ver, ouvir, cheirar, falar e cantar, mas não comem e nem procriam. A procriação é um elemento negativo dos espaços infernais, onde os sentidos são pervertidos. As almas são devoradas e digeridas neste local. O texto enfatiza a importância da música, de sons suaves do canto dos pássaros, dos instrumentos musicais que tocam sozinhos nesse espaço, o que reforça os aspectos de harmonia no Paraíso (Emerson, 2000; Delumeau, 2003). Marmion produziu na Visions of the knight Tundal uma iluminura, que mostra um instrumento musical, um órgão, tocado por um anjo, que é observado por outros entes celestes no interior de uma tenda, no Muro de Ouro (f. 39v) (Aubert & Marmion, 1990, p. 58). Tal representação reforça a musicalidade e perfeição que existem no Reino Celeste25.

A presença da fonte de água viva na Antecâmara do Paraíso e da árvore da vida no Muro de Ouro parece indicar, que estão ali para saciar os eleitos de forma física ou espiritual, uma vez que, no Paraíso, não lhes faltará nada e poderão contemplar a Deus diretamente. No espaço derradeiro do Paraíso, o Muro de Pedras Preciosas, destinado às nove ordens de anjos, aos virgens e às virgens e aos santos, como S. Patrício (que converteu a Irlanda ao cristianismo), percebemos que os eleitos têm a possibilidade de contemplar a Deus, o que está interditado ao cavaleiro. Esse espaço, porém, não menciona nenhum aspecto relacionado à nutrição, nem no texto, nem nas imagens da Visio, provavelmente porque ali os eleitos estão alimentados com a presença divina. Lembrando as palavras de Jesus contidas no Evangelho segundo S. João (6, 48-51), que iniciam este artigo: “Eu sou o pão da vida [...]/ Quem comer deste pão viverá eternamente”. Ou ainda no Apocalipse de S. João sobre os eleitos do Reino Celeste: estes “[...] nunca mais terão fome, nem sede [...]” (Ap 7, 16).

Considerações finais

Conforme foi possível observar neste artigo, a alimentação na Idade Média poderia estar relacionada à salvação e à danação das almas, pois essas almas poderiam sentir como que corporalmente. O alimento no medievo muitas vezes estava em associação ao pecado, daí o fato dos religiosos buscarem adotar nos mosteiros uma alimentação mais ‘frugal’ e de haver exemplos de místicas femininas, que realizavam o jejum quase absoluto, procurando a purificação e a imitação de Cristo.

Especificamente na Visio Tnugdali, o pecado da gula está muitas vezes associado também ao da luxúria, daí haver uma punição voltada para os ‘glutões e fornicadores’, que poderiam ser religiosos e religiosas, mostrando que o pecado da carne era passível de acontecer com qualquer um, e, por isso, havia a necessidade de vigilância do próprio fiel sobre as suas ações, com o auxílio da Igreja, para que pudesse obter a salvação da alma.

Em geral, nos espaços infernais, as almas são devoradas por monstros e não podem se alimentar, ou consomem apenas coisas repugnantes, como o enxofre. A Visio Tngudali coloca os pecadores sofrendo em espaços que se assemelham à cozinha, pela presença do fogo e pelo fato dos corpos serem transformados em comida, tanto através da deglutição dos monstros e do Diabo, quanto pelo fato de que seus corpos são preparados como alimentos, através das torturas, sendo assados, fritos numa frigideira, cortados, espetados, transformados em massa, esquartejados, entre outras ações.

Na Antecâmara do Reino Celeste, percebemos elementos edênicos na Visio e que dão saciedade, como a fonte da água da vida, associada aos quatro rios do Paraíso Terrestre, e à plenitude. Por fim, no Paraíso Celeste propriamente dito está a presença da árvore da vida, descrita no Gênesis e no Apocalipse de São João, e que possui um aspecto revigorante e reconfortante. No Muro de Pedras Preciosas, melhor parte do Paraíso, os eleitos são alimentados e revigorados com a presença divina, estando em completa plenitude.

A presença de aspectos alimentares num relato de viagem ao Além-Túmulo o tornava mais próximo do cotidiano dos homens e mulheres medievais. Os espaços do Inferno possuem características do espaço da cozinha, como o fogo e os instrumentos para cozinhar e cortar, utensílios como facas, frigideiras, fornos, com os quais as almas que não se arrependessem dos seus pecados em vida e que não haviam feito as devidas penitências são castigadas.

Já os elementos do Paraíso, ligados à árvore da vida e à fonte de água viva, descritos na Bíblia (1995), contribuem para trazer mais alegria e satisfação aos eleitos, o que é coroado com a presença de Deus neste local. Portanto, os aspectos alimentares e devoradores da Visio Tnugdali contribuem para que os medievos compreendessem melhor os espaços do pós-morte, auxiliando-os a buscar a nutrição de suas almas para atingir o Paraíso na outra vida.

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1 Este artigo é resultado do projeto Cristianismo e Salvação de Homens e Mulheres na Idade Média, financiado com Bolsa de Produtividade da FAPEMA.

2Na porta do local, os eleitos estão de mãos dadas em forma de círculo, dançando, o que reforça a harmonia do local. Schmitt ressalta o ritmo harmônico do Paraíso em seu livro. Ver Schmitt (2016).

3Para Palmer (1982) seriam onze manuscritos latinos perdidos.

4Dentre as quais alemão, francês, inglês, espanhol, português, italiano, bielorusso, islandês, gaélico (Palmer, 1982).

5Informações sobre a Visio Tnugdali, edição de Marcus e sua adaptação na edição de Vincent de Beauvais, ver, entre outros, Cavagna (2008); Pontfarcy (2010a); Zierer (2017).

6Citamos aqui a tradução dos títulos latinos, realizada no século XIV por Jean de Vignay no Miroir historial (2008). Ver Cavagna (2008, p. 65-119).

7Como já mencionado, a versão de Vincent de Beauvais enfatizava locais de punição, bem como os monstros, e simplificava alguns elementos do texto de Marcus, como a exclusão, por exemplo, do prólogo da obra.

8Entre os anos de 1483 e 1521, circularam no mínimo entre três e quatro mil cópias da versão ilustrada de Tundal, o que mostra a sua enorme circulação no início da Idade Moderna (Palmer, 1992).

9A hóstia, alimento espiritual, é representada numa xilogravura da edição de Toledo (1526). Ver Figura 3.

10Davi Aubert era o chefe de um ateliê dedicado à composição de manuscritos. No caso desta obra, acredita-se que ele mesmo tenha sido o copista (Cavagna, 2008).

11As grafias para o nome do protagonista são várias, sendo que em latim ele se chama Tnugdalus.

12As imagens da edição de Margaret de York (1475) (Figuras 1, 4 e 5) foram retiradas da obra de Wieck (1990).

13Os títulos dos capítulos do manuscrito dedicado a Margaret de York são escritos com letra vermelha. Esses títulos são longos e fazem uma espécie de resumo de cada capítulo. Ver Pontfarcy (2010a, p. XXXII).

14A análise de Busby (2012) sobre a cena, em especial sobre o machado, mostrado na Figura 1, auxiliou-nos a complementar nossa compreensão da imagem.

15Como forma de resistência a esta prática da sociedade medieval, podemos mencionar o relato picardo sobre o País da Cocanha, de origem anônima, composto no século XIII, onde há abundância alimentar o tempo todo, com frangos que se assam sozinhos, pudins que caem do céu e onde a Quaresma só ocorre uma vez a cada vinte anos (Franco Jr, 1998).

16 Soares (2008) exemplifica em seu texto vários santos e santas, que passavam quase a vida toda em jejum. É o caso de São Francisco de Assis.

17A narração do jantar é omitida dessa versão produzida em Toledo, bem como das edições da narrativa que circularam em Portugal. Só sabemos que ele se sente mal, cai e já se vê como morto e cercado de demônios no Além-Túmulo, que queriam levá-lo ao Inferno, mas são impedidos por seu anjo da guarda.

18Y después este caballero Túngano partió e hizo limosnas de todas las cosas que tenía y las dio a los pobres y enmendó su vida que bien amonestada y espantada venía de las penas que sufriera y viera’. Y muy grande sabor, placer y alegría tenía de los grandes bienes, deleites y cosas que en la Gloria viera.

19Lembrando que o episódio do jantar não é mencionado nas versões portuguesas do manuscrito.

20No manuscrito da duquesa de York, o título do segundo castigo muda para pena aos ‘descrentes e heréticos’ ao invés de ‘insidiosos e pérfidos’. Isso refletiria, segundo Pontyfarcy, através do tradutor da Visio na versão de 1475, “[...] a mentalidade e obsessão de sua época com relação a esses pecadores, que de fato, não tinham lugar no inferno superior de Marcus” (Pontfarcy, 2010b, p. 33, nt. 3)

21Na versão portuguesa é chamado de Cantúbrio. Este rei ficou doente e fez penitência, prometendo que, quando ficasse bom, se tornaria monge (Esteves Pereira, 1895).

22Sobre a importância da juventude no País da Cocanha, cf. Franco Jr (1998, cap. 4).

23Wieck visualmente mostra-nos como este tormento deveria representar o rei Donato no fogo (Wieck, 1992)

24Essa árvore é chamada assim no manuscrito da duquesa de York.

25Em comparação, a edição Speyer não apresenta xilogravura referente a instrumentos musicais no espaço paradisíaco, mas enfatiza a musicalidade com a presença dos pássaros, que cantam na copa da árvore, onde habitam os bons religiosos (Figura 6).

52NOTA: A autora Adriana Zierer foi responsável pela concepção, análise e interpretação dos dados; redação e aprovação da versão final a ser publicada. A revisão gramatical do texto ficou a cargo do Prof. Dr. Álvaro Alfredo Bragança Júnior (UFRJ).

26This article is the result of the project entitled Christianity and Salvation of Men and Women in the Middle Ages, funded by FAPEMA Productivity Scholarship..

27At the door of the place, the elect dance, holding hands in a circle, which reinforces the harmony of the place. Schmitt underscores the harmonic rhythm of Paradise in his book. See Schmitt (2016).

28For Palmer (1982) there would be eleven lost Latin manuscripts.

29These include German, French, English, Spanish, Portuguese, Italian, Belorussian, Icelandic, Gaelic (Palmer, 1982).

30For information on the Visio Tnugdali, Marcus edition and its adaptation in Vincent de Beauvais edition, see, among others, Cavagna (2008); Pontfarcy (2010a); Zierer (2017).

31We cite here the translation of the Latin titles, done in the fourteenth century by Jean de Vignay in the Miroir historial (2008). See Cavagna (2008, p. 65-119).

32As already mentioned, Vincent de Beauvais’s version emphasized places of punishment as well as monsters, and simplified some elements of Marcus’s text, such as excluding, for example, the prologue from the work.

33Between 1483 and 1521, at least three to four thousand copies of the illustrated version of Tundal circulated, showing its enormous circulation in the early modern age (Palmer, 1992).

34The host, spiritual food, is represented in a woodcut of the edition of Toledo (1526). See Figure 3.

35David Aubert was the head of an atelier dedicated to manuscript writing. In the case of this work, it is believed that he himself was the copyist (Cavagna, 2008).

36The spellings for the protagonist’s name are various, and in Latin he is called Tnugdalus.

37Images from the Margaret of York (1475) edition (Figures 1, 4, and 5) are taken from Wieck’s (1990) work.

38The chapter titles of the manuscript dedicated to Margaret of York are written in red letter. These titles are long and summarize each chapter. See Pontfarcy (2010a, p. XXXII).

39 Busby (2012) analysis of the scene, especially of the ax, shown in Figure 1, helped us complement our understanding of the image.

40As a way of resisting this practice of medieval society, we can mention the Picard account, of the anonymous origin, of the country of Cocanha, composed in the thirteenth century, where there is plenty of food all the time, with roasting chickens alone, puddings that fall from the sky and where Lent only occurs once every twenty years (Franco Jr, 1998).

41 Soares (2008) exemplifies in his text several saints, who spent most of their lives fasting. This is the case of St. Francis of Assisi.

42The dinner narration is omitted from this version produced in Toledo, as well as from the narrative editions that circulated in Portugal. We only know that he feels bad, falls and already sees himself as dead and surrounded by demons in the Beyond, who wanted to take him to Hell, but are prevented by his guardian angel.

43Y después este caballero Túngano partió e hizo limosnas de todas las cosas que tenía y las dio a los pobres y enmendó su vida que bien amonestada y espantada venía de las penas que sufriera y viera’. Y muy grande sabor, placer y alegría tenía de los grandes bienes, deleites y cosas que en la Gloria viera.

44It is worth remembering that the dinner episode is not mentioned in the Portuguese versions of the manuscript..

45In the Duchess of York’s manuscript, the title of the second punishment changes to "unbelievers and heretics" rather than "insidious and perfidious". This would reflect, according to Pontyfarcy, through the Visio translator in the 1475 version, "[...] the mentality and obsession of his day with regard to these sinners, who in fact had no place in Marcus’s superior hell." (Pontfarcy, 2010b, p. 33, nt. 3)

46In the Portuguese version he is called Cantubrio. This king became ill and did penance, promising that when he became well he would become a monk (Esteves Pereira, 1895).

47On the importance of youth in the country of Cocanha, cf. Franco Jr (1998, chap. 4).

48Wieck visually shows us how this torment should represent King Donatus in the fire (Wieck, 1992).

49This tree is named thus in the Duchess of York’s manuscript.

50In comparison, the Speyer edition does not have a woodcut referring to musical instruments in the paradise space, but emphasizes musicality with the presence of birds singing in the treetops where the good religious dwell (Figure 6).

Recebido: 31 de Maio de 2019; Aceito: 01 de Outubro de 2019

E-mail: adrianazierer@gmail.com

Adriana Zierer: possui formação acadêmica na área de História, tendo realizado os seus estudos na Universidade Federal Fluminense (Licenciatura, Bacharelado, Mestrado e Doutorado), se especializando na área de de História Medieval. Realizou Pós-Doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales junto ao Groupe d’Anthropologie Historique de l’Occident Médiéval (GAHOM). É Docente da Graduação e da Pós-Graduação em História (PPGHIST) da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), Professora da Pós-Graduação em História (PPGHIS) da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e Bolsista de Produtividade em Pesquisa da FAPEMA. Lidera os laboratórios de pesquisa Brathair - Grupo de Estudos Celtas e Germânicos - e Mnemosyne - Laboratório de História Antiga e Medieval. Atua como diretora da Mirabilia Journal e editora-chefe da revista Brathair. Tem experiência nos estudos sobre imaginário medieval, com ênfase nas Visões ao Além-Túmulo, em especial a Visio Tnugdali, além de realizar estudos sobre cavalaria, reis portugueses e mulher medieval. Tem interesse nas relações entre História, Literatura e Arte. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-5545-5123 E-mail: adrianazierer@gmail.com

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