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Acta Scientiarum. Education

versão impressa ISSN 2178-5198versão On-line ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.41  Maringá jan. 2019  Epub 01-Out-2019

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v41i1.48156 

HISTÓRIA E FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

A vida de Santo Ildefonso e o imaginário ligado ao culto Mariano no Reino Visigodo de Toledo (séculos VII-VIII)

La vida de San Ildefonso y el imaginario ligado al culto Mariano en el reino visigodo de Toledo (siglos VII-VIII)

Germano Miguel Favaro Esteves1 
http://orcid.org/0000-0001-5667-8847

1Universidade Estadual Paulista, Av. Dom Antônio, 2100, 19806-900, Assis, São Paulo, Brasil.


RESUMO.

A hagiografia, fonte privilegiada para a análise do imaginário medieval, pode-nos mostrar dados referentes ao cotidiano, as práticas, a história dos personagens hagiográficos e seu entorno social, além de ser um instrumento muitas vezes usado pedagogicamente na educação religiosa de membros do clero e de todo o público ouvinte, por meio do exemplo da santidade e das ações do homem ou mulher que se torna um mediador das causas de Deus. Este trabalho tem como foco analisar, por meio da via do imaginário medieval e da Análise Crítica do Discurso, uma das mais breves e menos exploradas hagiografias produzidas acerca de um dos grandes bispos do Reino Visigodo de Toledo (séculos VII-VIII d.C.), a Vita Vel Gesta Sancti Ildephonsi Toletaneae Sedis Metropolitani Episcopi, a Vida de São Ildefonso de Toledo. Para além da autoria e tradição da obra, das querelas políticas que envolviam a monarquia e o clero visigodo no período, dos elementos sobrenaturais e simbólicos que tinham como finalidade impressionar e atrair ouvintes e leitores, vemos nessa Vita uma intenção direta de expandir pela sede toledana e, posteriormente, por outros lugares da Europa o culto mariano e a figura de um dos seus mais fiéis devotos, Ildefonso de Toledo.

Palavras-chave: Ildefonso de Toledo; culto Mariano; imaginário; análise crítica do discurso

RESUMEN.

La hagiografía, fuente privilegiada para el análisis del imaginario medieval, puede mostrarnos datos referentes al cotidiano, prácticas, la historia de los personajes hagiográficos en su entorno social, además de ser un instrumento muchas veces utilizado pedagógicamente en la educación religiosa de miembros del clero y de todo el público oyente, por medio del ejemplo de la santidad y de las acciones del hombre o mujer que se convierte en mediador de las causas de Dios. Este trabajo tiene como foco analizar, por medio de la vía del imaginario medieval y del Análisis Crítico del Discurso, una de las más breves y menos explotadas hagiografías producidas acerca de uno de los grandes obispos del Reino Visigodo de Toledo (siglos VII- VIII d.C.), la Vita Vel Gesta Sancti Ildefonsi Toletaneae Sedis Metropolitani Episcopi, la Vida de San Ildefonso de Toledo. Además de la autoría y tradición de la obra, de las querellas políticas que envuelven la monarquía y el clero visigodo en el período, de los elementos sobrenaturales y simbólicos que tenían como propósito impresionar y abarcar a los oyentes y lectores, vemos en esa Vita una intención directa de expandirse por la sede toledana y, posteriormente, por otros lugares de Europa, el culto mariano y la figura de uno de sus más fieles devotos, Ildefonso de Toledo.

Palabras-clave: Ildefonso de Toledo; culto Mariano; imaginario, análisis crítico del discurso

ABSTRACT.

The Hagiography, a privileged source for the analysis of the medieval imaginary, can show us elements that concerning daily life, practices, the history of the hagiographic characters and its social environment, and is an instrument often used pedagogically in the religious education of members of the clergy and the whole audience, by the example of holiness and the actions of man or woman who becomes a mediator of the causes of God. This work aims to analyze, through the mediaeval imaginary and Critical Discourse Analysis, one of the shorter and less explored hagiographies produced on one of the great bishops of the Visigothic Kingdom of Toledo (7-8th centuries A.D.), the Vita Vel Gesta Sancti Ildefonsi Toletaneae Sedis Metropolitani Episcopi, the Life of Saint Ildefonsus of Toledo. Beyond the authorship and tradition of the work, the political quarrels that involved the monarchy and the Visigothic clergy in the period, the supernatural and symbolic elements that had the purpose of impressing and embracing the hearers and readers, we see in this Vita a direct intention to expand at Toledo and, later in other places of Europe, the Marian cult and the figure of one of its most faithful devotees, Ildefonsus of Toledo.

Keywords: Ildefonsus of Toledo; Marian cult; imaginary; critical discourse analysis

Introdução

A partir de estudos sobre o Reino Visigodo de Toledo, tendo como recorte cronológico o período que compreende o início do século VII e a segunda metade do século VIII na região da Hispânia, nosso olhar volta-se a um conjunto de fontes que possuem uma grande significação para o período: a hagiografia. Verificamos, assim, que essas obras, atendendo a uma intenção e função social, eram voltadas fundamentalmente para a propagação de concepções teológicas, modelos de comportamento voltados à educação religiosa, padrões e valores morais. Essas características eram expostas por meio da narração dos feitos de um homem que é tido como santo e dos elementos que estão vivamente inseridos na sua vida ou à margem dela. Para completar, essas vidas de santos oferecem para o historiador dados de enorme interesse, refletem os quadros do ambiente social com grande vivacidade e brilho, permitindo, dessa forma, uma entrada mais segura e direta nas condições reais de existência da sociedade que outros tipos de fontes, tais como as legais (Garcia Moreno, 1989).

Com essas breves considerações em vista, nosso foco se volta para a produção hagiográfica hispânica, mais precisamente para um relato que, segundo Guiance (2009), apesar de sua brevidade, tornou-se muito popular no período: a Vita Vel Gesta Sancti Ildefonsi Toletaneae Sedis Metropolitani Episcopi.

Ildefonso de Toledo em sua época

São Ildefonso foi considerado um dos bispos mais influentes da Hispânia visigoda no período e, posteriormente, como modelo a ser seguido. Nasceu em 607, durante o reinado de Witerico em Toledo. Filho de pais visigodos e devoto desde a infância, estudou no mosteiro de Agali, onde foi pupilo de Eugenio II. Segundo Rodrigues (2010), de acordo com a tradição, do mosteiro de Agali teriam saído alguns dos mais influentes bispos do reino visigodo. A autora completa relacionando tal fato com a possibilidade de que ali estivessem reunidos representantes dos grupos nobiliárquicos vinculados ao sul da Península, o que explicaria a ascendência intermitente nas altas esferas de poder (Rodrigues, 2010)1.

Ildefonso é conhecido por suas obras, algumas missas e hinos, poemas e epitáfios, mas em grande medida pela sua devoção à Maria no De virginitate perpetua beatae Mariae (Bernardino, 2002), suscedeu Eugenio II na sede Toledana no ano de 657 d.C. (Fear, 1997). Como monstra-nos Fear, ele é um dos poucos Padres da Hispânia a dedicar-se diretramnte aos estudos teológicos (Fear, 1997). Morre em 667, sendo sepultado na igreja de Santa Leocádia de Toledo aos pés de seu predecessor Eugenio II (Fear, 1997).

Tratando-se da Vita Ildephonsi, um primeiro problema apresenta-se com grande relevância, ou seja, a questão da autoria. Isso nos leva a compreender dois momentos e dois autores diferentes para a Vita: Cixila ou Eladius. Como nos mostra Ariel Guiance (2009), o primeiro figura em dois dos manuscritos em que o texto é encontrado: no Escurialense DII (de São Milão de Cogolla, de 994, embora com acréscimos de meados do século XI), e em outro conservado pela Academia Real de História em Madri, também do século XI. O segundo nome, Eládio (ou Helladio), aparece em alguns códices remanescentes e, segundo Dominguez Del Val (1971), desconhece-se hoje quem poderia ser esse Eládio.

Essa controvérsia acerca da datação e da produção da Vita justifica-se, segundo Canal Sanchez (1967, p. 437-462), pois “[...] se a atribuição a Cixila foi anterior, não explica porque códices estrangeiros contemporâneos, e situados em lugares diferentes, como são os de Cluny e Benevento, concordam com a atribuição de Heládio [...]”, contudo, como completa o autor, “[...] a redação original era essa última (mas) algum copista, consciente que o único Heládio bispo de Toledo estava morto muito antes de Ildefonso ser bispo [...] fez a troca que aparece nos códices Emilianenses (Cixila)”.

Outros estudiosos também debatem a questão da autoria da Vita Ildefonsi. Dominguez Del Val, em seu estudo Personalidad y herencia literaria de S. Ildefonso de Toledo, não se decide nem por Cixila, tampouco por Eládio e acaba por não propor nenhum possível autor para a Vita. Collins (1989), por sua vez, confia nos códices Emilianenses, já que reconhece que a Vita foi composta pelo bispo toledano Cixila nos anos anteriores a 737, antes de ascender à sede de Toledo. Gil (1973) atribui a autoria da Vita a Cixila, sem entrar em discussões a respeito do tema, como vemos no título de sua edição Cixilianis Vita Ildefonsi.

Com um posicionamento mais direto, Urquiola (2006) concorda com Vega que o autor da Vita Vel Gesta Sancti Ildefonsi não pertencia a Toledo, sendo alguém que, vindo de fora, permanecera algum tempo na cidade, não pertencendo à Hispânia, e sim à Frância, mais especificamente um monge de Cluny que, conhecedor de alguns códices, como o De Virginitate2 e o Elogium de Julián de Toledo , visita a Hispânia no século XI em busca de uma biografia fantástica que propague o culto mariano e realce ainda mais a figura do arcebispo toledano. Essa proposição faz com que Valeriano afirme que a autoria da Vita não deve ser atribuída ao toledano Cixila, mas, sim, como pertencente a Eládio (Urquiola, 2006).

De fato, como afirma Guiance (2009), as informações que colocam Eládio como autor da fonte são escassas e os estudos mostram que se credita a Cixila, arcebispo de Toledo entre 774 a 783, a autoria da obra. No entanto, Manuel Díaz y Díaz (1957) mostra-nos que Cixila pode não ser o citado arcebispo de Toledo, mas algum autor do século X ou do início do XI, possivelmente um monge, de provável origem moçárabe, que estava no comando do monastério de São Cosme e Damião, em Abéllar, por volta do início do século X, nos arredores da cidade de León. Seguindo essa proposição, Cixila figura como abade do monastério de Abéllar e bispo de León entre 914 e 940, ano de sua morte3.

Com relação à produção e ao legado que o hagiógrafo deixou em sua permanência no monastério, temos uma série de objetos e textos que fizeram da biblioteca de Abéllar um ponto de referência para a cultura hispânica no século X, mostrando uma forte dedicação do abade às letras e à educação de seus pupilos. Dentre os itens inventariados, encontramos obras de diversos escritores, como Santo Agostinho; João Cassiano; Epherem, o Sírio; Isidoro de Sevilha; Próspero da Aquitânia; João Crisostomo; Claudio; Eucherius de Lion, Maurus Servius; Donatus; Avitus de Viena; Aldhekm de Malmesbury; Pompeius Trogus; Juvenal; Dracontius; Virgílio; Prudentius; Eugenio de Toledo; Catão e Ildefonso de Toledo. Ademais, ainda existe uma série de itens que também são inventariados e pertencem ao monastério: uma grande coleção de cálices, cruzes e outros objetos usados na liturgia, feitos de ouro, prata e pedras preciosas, vestimentas litúrgicas e outros objetos (Guiance, 2009).

Para dar início à análise do texto hagiográfico, algumas importantes considerações merecem nossa atenção. Conforme Frazão da Silva (2001) nos mostra as obras de conteúdo hagiográfico podem ser um importante instrumento para a análise do cotidiano e do imaginário medieval relativo ao período em que são elaboradas4. Somamos a isso o estudo feito pelo precursor da análise hagiográfica, Delehaye (1973), o qual esclarece, em Les légendes hagiographiques (1973), que estas são obras que privilegiam os atores do sagrado (os santos) e visam à edificação (uma exemplaridade).

Existe, nesse caminho, uma complexa relação entre o autor e sua audiência. Heffernan (1988), explicita que a estética no texto hagiográfico deve ter seu valor diminuído, a arte do texto não é designada para a reflexão de habilidades individuais, de virtuosismo, mas sim, como parte de uma tradição que postula uma diferente orientação entre autor, texto e audiência. O que une autor e sua audiência é o quanto o texto reflete a tradição que tem seu locus na comunidade. A natureza desta complexa relação entre autor e seu público pode revelar muito sobre a obra com que estamos trabalhando (Heffernan, 1988).

Para que possamos abordar a hagiografia do ponto de vista do discurso de seu produtor, trabalharemos com a ‘análise do discurso’, mais propriamente, a ‘análise crítica do discurso’.

Nossa abordagem privilegia a conexão entre as práticas discursivas e a estrutura social. Dessa forma, cabe-nos, em um primeiro momento, estabelecer a distinção entre linguagem e discurso. O discurso é a linguagem enquanto prática social determinada por estruturas sociais (as regras e/ou os conjuntos de relações de transformação organizadas como propriedades dos sistemas sociais). Ao aceitar essa premissa, estamos aceitando também que a estrutura social determina, dessa forma, as condições de produção e difusão do discurso. Como assinala Iñiguez (2004), o discurso está determinado por ordens socialmente construídas. Por ordens de discurso entendemos os conjuntos de convenções associados às instituições sociais (assim, as ordens de discurso estão ideologicamente formadas por relações de poder nas instituições sociais e na sociedade como um todo).

A fim de abordar diretamente a fonte, utilizaremos o referencial metodológico descrito por Melo Rezende e Ramalho (2009) concernente à análise do discurso que compõe os critérios de ‘reflexividade’5, ‘hegemonia’6, ‘ideologia’ (e seus modos de operação)7, ‘legitimação’8 (e seus modos de operação), a ‘dissimulação’9, a ‘unificação’10, a ‘fragmentação’11 e a ‘reificação’12.

Tendo essas premissas metodológicas em vista, podemos começar a análise da Vita Sancti Ildefonsi. Na primeira passagem, vê-se o seguinte:

Eis aqui os doces manjares do senhor Ildefonso, que, havendo-os colhido do jardim de Deus e distribuído por toda Hespéria, saciou nossa fome com sua enorme eloquência. Ildefonso não foi inferior em mérito ao santíssimo senhor Isidoro, de cuja fonte bebeu, ainda seu aluno, águas limpíssimas. Enviado, com efeito, pelo santo e venerável padre Eugenio, bispo metropolitano da sede de Toledo, junto ao citado mestre, bispo metropolitano de Sevilha, embora se considerasse com muitos conhecimentos, até então fora dominado e polido por este e, segundo dizem, preso com corrente de ferro por um tempo, que totalmente esclarecido, se é que lhe faltava saber alguma coisa, tendo retornado ao seu professor, o senhor Eugenio, depois de ter desempenhado não por muito tempo o ofício de diácono, foi nomeado abade da Igreja dos Santos Cosme e Damião, que está localizada no subúrbio de Toledo, onde, distinguindo-se rapidamente em seu cargo, compôs, com admirável sentido de harmonia, duas missas em honra aos citados santos, para que cantassem em suas festividades, missas que temos registradas mais adiante (Gil, 1973, p. 61)13.

Ao introduzir São Ildefonso no relato, vemos que o hagiógrafo trabalha com um dos topói hagiográficos mais conhecidos, aquele em que o santo aparece como iluminado por Deus e possuidor do dom da oratória. Ele o faz elencando dois outros nomes de peso dentro do contexto eclesiástico hispano-visigodo, Isidoro de Sevilha, o que pressupõe sua estadia em Sevilha como pupilo desse santo, e Eugenio I de Toledo, fazendo referência ao seu posto como abade do mosteiro agaliense. Ademais, ao elencar Isidoro e Eugenio como mestres de Ildefonso, coloca-o em uma posição privilegiada no contexto espiritual hispânico, o que resulta em uma legitimação de seu posto como abade do mosteiro de Agali e, posteriormente, na posição de santo a ser venerado em relação aos outros prelados e santos supracitados, em honra dos quais compôs duas missas.

Assim, com relação aos critérios estabelecidos pela ACD14, vemos que o hagiógrafo, no que tange a reflexividade, constrói a imagem de Ildefonso e a legitima citando dois outros importantes prelados, em uma relação pupilo e mestre, sustentando seu posto por meio da unificação, construindo simbolicamente a unidade da Igreja por meio da padronização, referencial partilhado entre os três bispos, e da simbolização, escrevendo sobre um santo cujo perfil pretende que seja um modelo para os fiéis, elencando desta forma símbolos com os quais os cristãos se identifiquem.

Continuando o relato, vemos o momento em que Ildefonso torna-se o bispo metropolitano de Toledo, após a morte de Eugenio:

Então, morrendo, depois de um longo tempo, o senhor Eugenio, é nomeado bispo em sua própria sede. Em seguida, a sua austera perfeição moral resplandeceu na sede régia, adquirindo fama, e iluminou toda a sua Hispânia como uma pequena tocha ardente. Por sua sabedoria brilha até hoje a Igreja como o sol e a lua. Sua memória é mantida ligada ao dom do perfume e aos elementos do incenso. Este estabeleceu, desde o berço, dentro de si uma grande morada para o Senhor, permanecendo como um eunuco desde a mais tenra infância. E não sofreu tal mutilação pelas mãos humanas, mas pela espada divina, e não refreou a paixão natural com o intrumento de ferro, senão que alcançou a santidade graças ao dom divino. Inspirado prontamente pelo dom celestial e se pondo em grau de igualdade com aqueles tão grandes e eminentes predecessores seus, foi-lhe revelado o que aos outros tinha sido ocultado (Gil, 1973, p. 62)15.

Nessa passagem, conforme já dito, vemos novamente o hagiógrafo percorrendo mais uma etapa da vida de Ildefonso, mais precisamente sua ascensão à sé metropolitana de Toledo, que se torna um lugar de destaque em face de todas as benesses que o santo traz ao assumir tal posto. Dessa forma, são elencadas características ligadas a sua perfeição moral e mental, que fazem com que o santo resplandeça diante de todo o povo da Hispânia como um modelo a ser seguido, pois, como vemos, a Igreja resplandece ‘até hoje, como o sol e a lua’, segundo o hagiógrafo, graças a seus feitos.

Continuando a elencar suas magníficas vitudes, o hagiógrafo mostra-nos que desde a mais tenra infância, Ildefonso já tornara seu corpo uma morada para o Senhor, tornando-se eunuco não pelas mãos humanas, mas sim pela vontade e pelo corte da espada divina, que assim desejava, um clássico topos hagiográfico que mostra que a santidade acompanha o homem santo em todos os momentos de sua vida. Com relação a essa passagem, a descrição de que o hagiógrafo se ocupa é a do retrato moral do santo, que é idealizado. Assim, com relação à ideologia, legitima a descrição por meio da universalização, construindo mais uma vez, simbolicamente, seu protagonista, citando sempre o caráter sobrenatural ligado à vida de Ildefonso.

Esse breve relato serve de prólogo para um dos mais importantes eventos dentro da Vita: a aparição miraculosa de Santa Leocádia. Dessa forma, com a ajuda do Espírio Santo, que, segundo o hagiógrafo, já habitava o interior do santo em todos os âmbitos, aparecendo como um ajudante, tendo a intenção de dar a conhecer o mérito de sua fé diante dos homens e não privando de sua ajuda aqueles que padeciam no combate espiritual, acontece a milagrosa aparição de Santa Leocádia. Vejamos:

Assim, o Espírito Santo pela primeira vez, mostrou a ele o que ainda não havia sido ensinado para as pessoas que o desejavam havia tantos anos, ou seja, na presença de todos mostrou os restos mortais de Leocádia, virgem santa e consagrada a Deus e sua confessora, ao celebrar na sede real o dia de sua festividade, e, estando prostrado Ildefonso diante de seu sepulcro, saltou do túmulo, em que tem estado até hoje enterrado seu santo corpo, e da tampa, que mal podiam mover trinta jovens, levantada não por mãos humanas, mas angelicais, colocou-se para fora, dotado de vida, o véu que cobria os membros da santa virgem, e, tendo sido exibido como por mãos humanas para poder comtemplá-la, veio a virgem bela complacente, enquanto o bispos, os dignitários reais, presbíteros e diáconos, o clero e todo o povo gritava: ‘Graças a Deus no céu, graças a Deus na terra’ não silenciando ninguém. Imediatamente, Ildefonso tomando e segurando o véu entre suas mãos, diz-se que se lançou este louvor, gritando e exclamando com as pessoas: ‘Graças a Deus! Minha Senhora está viva pela vida de Ildefonso!’. E o clero, tendo repetido a mesma frase, entoou veementemente o aleluia e o cântico que o próprio senhor Ildefonso havia composto cuidadosamente: ‘Fizeras-te bela, aleluia’ e outros cânticos que foram incluídos no elogio a ela na missa que está anotada abaixo (Gil, 1973, p. 63, grifos do autor)16 .

Vemos que a virgem Santa Leocádia volta à vida como que em homenagem à presença de Ildefonso em sua basílica. O hagiógrafo esforça-se em apresentar elementos sobrenaturais na aparição da Santa, elencando a vontade do Espírito Santo, as mãos angelicais que levantam a tampa do túmulo, que só poderia ser movida pela força de trinta homens, e o véu que cobria seu rosto, que acaba por repousar nas mãos de Ildefonso. Mais uma vez, vemos a intenção do autor em legitimar a figura de seu protagonista utilizando-se da ideologia e seus meios de operação, mais especificamente a legitimação por meio da narrativização, buscando o passado para legitimar o presente e, por meio da unificação, compreendendo a padronização, elencando como peça-chave a figura do Espírito Santo, e da simbolização, colocando Santa Leocádia como símbolo de indentificação coletiva dentro do contexto em pauta.

Como assinala Guiance (2009), o aparecimento de Leocádia deu origem a um acontecimento curioso: ajoelhado diante da virgem, o santo implorou a alguém para lhe dar ‘um instrumento afiado para cortar’ o seu véu, que ela aparentemente tinha nas mãos enquanto a multidão frenética não prestou atenção ao apelo do bispo e Leocádia ameaçou ir embora. Assim,

Recesvinto, que era (rei) naquele tempo depois de abandonar a fama e a arrogância terrenas, e que, tendo sido repreendido por causa de suas iniquidades por Ildefonso, observava a este com olhar pavoroso, entre lágrimas, ofereceu-lhe uma pequena faca que estava em uma caixa e, com o pescoço dobrado e as mãos estendidas para o trono, suplicava para que o levassem imediatamente, rogando que não o considerassem indigno, que estava oferecendo algo seu com lágrimas (Gil, 1973, p. 63) 17.

O autor da Vita sabe seguramente como são vistos alguns dados relacionados à história de Toledo. Sabe sobre o grande prestígio que Santa Leocádia possuia entre o clero e o povo, e também tem conhecimento sobre as missas que Ildefonso havia composto, das quais, segundo o autor, uma seria em honra à santa toledana. Ademais, de fato, as más relações entre Ildefonso e Recesvinto (653-672) correspondem à realidade, mas, como vemos, carecem de motivos e justificativas concretas.

Em vista disso, o santo desde logo foi obrigado por Recesvinto a subir à cadeira episcopal e, durante sua permanência como bispo (657-667), não se celebrou nenhum concílio, convocatória que era facultada à figura do monarca. Dessa forma, vemos como o autor da Vita estava a par da incompatibilidade entre o bispo e o monarca, dando uma explicação para a causa: o bispo havia reprovado o mal comportamento do monarca. Essa afirmação, como é apresentada no relato, parece reforçar a vontade do hagiógrafo em realçar a figura do representante da Igreja frente ao poder civil exercido pelo monarca.

Para dar luz a essa questão, Urquiola (2006) mostra-nos que as más relações entre a Igreja toledana e o monarca procediam da época em que governavam Chidaswinto (642-653) e seu filho Recesvinto, associado ao trono por seu pai em 653. No concílio celebrado no mesmo ano, o VIII Concílio de Toledo, que coloca Ildefonso como abade de Agali, os nobres e os bispos lançam duríssimas acusações contra Recesvinto por um duplo motivo: primeiramente, pelo desmesurado enriquecimento de seu patrimônio pessoal e familiar como consequência dos numerosos confiscos realizados por seu pai aos nobres e, em um segundo ponto, pela confirmação do concílio de que os reis deviam subir ao trono mediante eleição levada a cabo pelos bispos e nobres palatinos após a morte do monarca anterior, o que constituia uma crítica direta à forma como Recesvinto havia ascendido ao trono, por sucessão hereditária, sem passar pela eleição real.

Com relação aos critérios da ACD, vemos que o hagiógrafo esforça-se por, como já dito, caracterizar negativamente o rei Recesvinto. Evidenciam-se, pois, o critério de reflexividade, no qual o rei, segundo as palavras do autor, tem consciência de sua própria identidade e, ligado à ideologia, o de fragmentação, em que, visivelmente, o monarca não é alçado ao posto de merecedor de participar de tal solenidade. Essas características são visíveis na diferenciação, na caracterização do santo em relação ao monarca, e no expurgo do outro, tendo Recesvinto como um obstáculo à unidade do reino.

Curiosamente, o relato fica sem resolver uma questão: o que acontece com Santa Leocádia? Teria ela voltado ao seu túmulo? Conforme mostra Urquiola (2006), como tantas vezes aparece no gênero hagiográfico, o silêncio a respeito de certos personagens contribui para criar uma atmosfera de ilusão e mistério que não convém ser rompido com explicações e argumentos racionais. O hagiógrafo ainda faz referência a outros milagres que o Espírito Santo outorgara a Ildefonso no domingo do Advento, poucos dias depois da aparição de Leocádia, além de outros feitos contados em seu tempo por Urbano e Evancio em Toledo, mas justifica que somente relatará alguns, dada a grande quantidade de feitos fantásticos por ele realizados.

Um pequeno parágrafo serve de introdução para o que se configura como relato central da Vita, também caracterizado como uma aparição de cunho sobrenatural:

Estando próximo o dia da santa e sempre virgem Maria, três dias antes da festividade [Ildefonso] terminou de compor as ladainhas e, nesses três dias, logrou concluir a missa anteriormente citada, que é a sétima, para que fosse cantada em louvor a ela (Gil, 1973, p. 63)18.

A festa citada corresponde à Anunciação de Maria, que em razão do X Concílio de Toledo, no ano de 656, havia sido transferida de março para o dia 18 de dezembro, pois haveria problemas com a data referente à Semana Santa (Urquiola, 2006). Segundo Madoz (1952), a festa da Anunciação de Maria, no dia 18 de dezembro, era a mais solene de todas as festividades marianas no rito moçárabe. Com relação a essa passagem, vemos que o hagiógrafo conhece de fato a data, mesmo sem citá-la diretamente, destacando esse dia como o mais importante do relato, porém sem exatidão, como faz com algumas importantes passagens, o que se configura, assim, como outra característica do gênero hagiográfico: não dar primazia à relação espaço-tempo.

O relato que se segue cita novamente a figura do rei Recesvinto: “E quando chegou sua santa solenidade, o citado rei, pouco preocupado com o temor de Deus e nada consciente de suas próprias maldades, pôs-se a ouvir a solene cerimônia seguindo o costume real” (Gil, 1973, p. 63)19.

Essa pequena passagem mostra-nos mais uma conotação negativa a respeito do rei Recesvinto, caracterizado por sua falta de fé em relação à justiça divina e por ser avesso às suas práticas, ao que nos parece, aumentanto ainda mais o distanciamento nas relações entre monarquia e Igreja no período. A indiferença de Recesvinto ao participar da celebração, tratando-se somente de um protocolo real, amplia sua caracterização como mau monarca, visto que esse é um argumento que o autor persegue em dois momentos importantes do relato hagiográfico. Novamente, vemos presentes no discurso do hagiógrafo os referenciais ligados à ideologia, o que por sua vez nos remete à fragmentação e à repetição, ao citar novamente Recesvinto, tirando sua legitimidade tanto como bom monarca quanto como um bom cristão.

E, assim, chegamos à passagem referente à festividade da Virgem:

Ildefonso, por sua vez, dedicado com maior empenho aos assuntos de Deus, depois de assumir entusiasmado a tarefa do dia de sua Senhora, a quem servia com a proteção de Deus, e haver enriquecido com música em louvor da mãe de Deus, como antes havíamos indicado, compondo com a paixão de seu coração uma harmoniosa melodia, e, depois de escrever elegantemente, segundo o método da sinomímia, o tratado acerca da virgindade, cheio de testemunhos do Velho e do Novo Testamento, deixando-o embelezado com uma eloquência e brilho dignos da já citada Senhora sua, havendo levantado de madrugada, como fazia habitualmente, para apresentar sua submissão a Deus e querendo dedicar suas vigílias ao Senhor, indo diante dele com pequenas tochas o diácono, o subdiácono e o clero, de repente, ao abrir as portas e olhar a igreja e fixar seus olhos no resplendor do céu, fugindo de uma luz que não podiam suportar, deixaram as tochas que tinham em suas mãos e, voltando seus passos por onde haviam vindo, regressaram quase mortos junto a seus companheiros, perguntando-se todo o grupo com inquietude o que fazia o servo de Deus entre o coro dos anjos, já que haviam assustado tão subitamente os guardas e dando a volta desde a porta da igreja regressavam às suas casas (Gil, 1973, p. 63-64)20.

Em um primeiro momento, o hagiógrafo exalta novamente a figura do santo caracterizando-o como entusiasmado da chefia da celebração, colocando música, que ele próprio havia composto para a missa e apresentando o tratado De Virginitate em honra de Maria, o qual havia escrito elegantemente com testemunhos do Velho e Novo Testamento, o que nos mostra sua erudição e sua dedicação, em relação ao amor e respeito à sua Senhora. Posteriormente, ao começar a cerimônia, celebrando as vigílias da festividade, os membros do clero, na companhia de Ildefonso, deparam-se com um fenômeno sobrenatural: ao entrar na igreja, a qual o hagiógrafo não identifica, uma luz, que remete ao esplendor do céu e que acaba por quase dizimar a todos, mostra somente o santo como escolhido para a aparição da Virgem.

Essa passagem parece reforçar a posição de Ildefonso como, conforme dissemos acima, escolhido entre outros membros do clero, pois diante de tal fato ele se torna o único a adentrar a igreja, enquanto os outros regressam a suas casas. Assim, ainda guiados pelos preceitos da ACD, vemos o critério da ideologia, que nos remete a reificação por meio da naturalização, ao descrever Ildefonso como único membro digno de adentrar a igreja.

Dando continuidade, o santo aproxima-se do altar e, ajoelhando-se diante dele, vê a Virgem sentada no assento episcopal de marfim. Essa cadeira, a partir daquele momento, tornou-se o mais venerado objeto, ao ponto de que ninguém nela tenha tentado sentar, tampouco os bispos. Curiosamente, o hagiógrafo mostra-nos que somente um teria sentado nesta cadeira, Sisiberto, bispo de Toledo de 690 a 693, e que, como consequência de tal ato, perdeu o comando de sua sede e foi enviado ao exílio. A justificativa por parte do autor da Vita mescla acontecimentos reais e fictícios, pois Sisiberto foi efetivamente bispo de Toledo no período supracitado, mas não perdeu sua sede pelo motivo que o autor apresenta em seu relato, mas por ter feito parte de uma conspiração para destronar o rei Egica (687-700), informação também presente nas atas do XVI Concílio de Toledo (693), que decretou a destituição e o exílio do bispo.

Nesse momento chegamos ao clímax do relato hagiográfico:

E, levantando os olhos, Ildefonso olhou à sua volta e viu todo o abside da igreja cheio de grupos de virgens que entoavam alguns cânticos de Davi com harmoniosa suavidade. E dirigindo seu olhar a ela [Maria], como ele mesmo contava a seus confidentes e íntimos, ela lhe falou desta maneira: ‘Vem rapidamente a meu encontro, tu, o servo mais íntegro de Deus, recebe de minha mão o pequeno presente que trouxe para ti do tesouro de meu filho. O presente, a roupa que te foi doada, somente pode ser usado no meu dia; e posto que sempre tens permanecido com os olhos da fé fixos em meu serviço e tendo constituído docemente o elogio de minha pessoa nos corações dos fiéis, derramando-se a beleza de teus lábios, já nesta vida te verás adornado com as vestes eclesiásticas e no futuro te encontrarás feliz em minhas estâncias junto a outros servos de meu filho’. E, dizendo isso, desapareceu de sua visão com as virgens e a luz com que se havia apresentado (Gil, 1973, p. 64-65, grifo do autor)21.

Como vemos, é nessa passagem do relato que se concentra o maior número de elementos fantásticos relacionados diretamente com a aparição da Virgem Maria. Novamente, o hagiógrafo esforça-se por caracterizar Ildefonso como um homem santo, que se dedica exclusivamente ao louvor de Maria, fato que justifica sua santificação já em vida pela Virgem, pelo presente que recebe, o qual por sua vez pertence ao tesouro de seu filho, e pela promessa de uma vida santificada no além ao lado dos servos de Cristo.

No que tange à ACD, nessa passagem o autor utiliza-se do critério da legitimação por meio da narrativização, em que o episódio é legitimado recorrendo-se aos cânticos de Davi para dar ênfase ao relato, à unificação, construindo simbolicamente a unidade celeste por meio da padronização e da simbolização, encontradas nas figuras das virgens, de Maria e do Cristo.

Esse trecho em especial, como assinala Guiance (2009), é análogo a uma outra fonte um pouco distante dos trabalhos concebidos no mesmo contexto dentro da Península Ibérica. Segundo o autor, esse trecho encontra seu correlato na literatura medieval da Etiópia, mais precisamente os três elementos fundamentais, a aparição da Virgem, o presente dado a Ildefonso e o tema da cadeira episcopal, podem ter sido tirados da vida de um santo popular no oriente: São Nicolas de Mira. Para Guiance (2009), nessa fonte, que é provavelmente anterior à Vita Ildefonsi, em primeiro lugar, existe uma clara coincidência acerca dos motivos da aparição do Espírito Santo a Nicolas e Ildefonso. Em ambos os casos, a Virgem aparece como protagonista dos prodígios, mas é o Espírito Santo que realiza vários milagres em nome dos santos. Cerulli (1957) também concorda com a hipótese segundo a qual o milagre da vestimenta teria seu antecedente na vida de São Nicolas de Bari, escrita por Nicolas, o Sionita, milagres dos quais restam os testemunhos em grego, dois ao menos, um do século X e outro do século XI. Esses elementos conjugados dão a impressão de que o hagiógrafo de Ildefonso conhecia a história de Nicolas de Sião e a adaptou para seu relato.

Dominguez del Val (1971), por sua vez, compara a passagem da aparição mariana com outra de origem francesa, que resulta em um correlato exato do milagre que nos conta o hagiógrafo de Ildefonso. Nesse caso, o protagonista também é um prelado, São Bonnet, bispo de Clermont-Ferrand, morto em 705, e grande devoto de Maria. Mas com relação à datação dessa Vita, os dados são um tanto obscuros.

Considerações finais

Como nos explica Le Goff,

[...] o pergaminho, a tinta, a escrita, os selos, etc., exprimem mais que uma representação: exprimem também uma imaginação da cultura, da administração, do poder. O imaginário do escrito não é o mesmo da palavra, do monumento ou da imagem. As fórmulas do protocolo inicial, das cláusulas finais, da datação, a lista das testemunhas - para não falar do texto propriamente dito - refletem não só as situações concretas mas também um imaginário22 do poder, da sociedade, do tempo, da justiça, etc (Le Goff, 1994, p. 13).

Acreditamos, portanto, que a hagiografia, como documento literário, pode-nos informar sobre os dados históricos mais factíveis da vida material e mental da sociedade que a produziu, tornando-se um instrumento em grande medida pedagógico, para o próprio período como para as gerações futuras, mostrando um modelo ideal a ser seguido, a santidade. Como pretendemos demonstrar, e isso nos parece o essencial, a obra literária e suas circunstâncias se fazem especialmente servíveis e pertinentes ao historiador quando, de algum modo, nos informam sobre as sociedades para além do texto em si, ainda que dele partindo e por ele perpassando.

Assim, vemos que a elaboração da Vita corresponde a uma intenção direta de expandir pela sede toledana, e por outros lugares da Europa, o culto mariano e a figura de um dos seus mais fiéis devotos, Ildefonso de Toledo. O autor do relato, independentemente de qual seja sua caracterização precisa, Cixila ou Eládio, insiste em exaltar a figura de Ildefonso, igualando-o, como se vê, a uma personalidade de renome dentro e fora da Hispânia, Isidoro de Sevilha, e equiparando-o a seus antecessores da sede toledana. Para tanto, era necessário, como vemos em outros relatos de cunho hagiográfico da época, o elemento sobrenatural e simbólico com a finalidade de impressionar e abarcar os ouvintes e leitores, em que ganha destaque a relação entre dois grandes personagens: Ildefonso e a Virgem.

Concluindo, com este breve estudo vemos que o relato, que conta com a aparição de Santa Leocádia e da Virgem a Ildefonso, com relação à ideologia cristã, à religiosidade e ao imaginário da época, como afirma Dominguez del Val (1971), vem a ter um êxito considerável, encabeçando coleções de legendas marianas, pois, mesmo que a Vita represente uma tradição local, nela há um fundo real latente, que é o esforço pastoral e teológico de Ildefonso em defender e promover o culto mariano na cristandade, e a importância dessa hagiografia vem determinada pelo fato de que quase todas as coleções de legendas marianas, tanto em língua vulgar como em latim, se iniciam com a Vita Ildefonsi.

Referências

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1Sobre o prestígio de que gozavam os prelados de Toledo, Leila Rodrigues faz uma breve exposição mostrando que este se registra desde o reinado de Recaredo (586-601), com a participação de Eládio, proveniente daquela fundação monástica, na Aula Régia. Nos anos seguintes, sua ascensão ao bispado de Toledo (615-633), assim como de outras figuras provenientes de Agali, atenderia ao intento de monarcas, como Sisebuto (612-621) e, posteriormente, Suintila (621-631), de contemplar a aristocracia meridional nas novas relações de poder instituídas desde o período da conversão.

3De acordo com Ariel Guiance (2009), se aceitarmos essa hipótese, a descrição desse personagem é possível, mesmo com alguma dificuldade em relação à cronologia de sua vida. Em primeiro lugar, completa o autor, ele parece ter sido um moçárabe, que pode ser identificado como um fugitivo de Córdoba, embora, neste caso, não saibamos a que monastério pertencia. Ele aparece como fundador do monastério de Abellar, sendo primeiramente eleito abade desse monastério e, posteriormente, nomeado bispo de León (talvez sucedendo São Froilan), uma nomeação em que aparentemente Alfonso III interveio favoravelmente. Ele aparece com o título episcopal no primeiro diploma assinado pelo sucessor de Afonso, Garcia I, em 15 de fevereiro de 911. Cixila não aparece mais como bispo de Leon em meados de 914, sendo sucedido por Fruminio II.

4Dessa forma, explica a autora, as hagiografias são “[...] obras voltadas, fundamentalmente, para a propaganda de centros de peregrinação e a edificação de fiéis, por visarem o grande público e serem, na grande maioria dos casos, redigidas por homens cultos e ligados à Igreja, tornam-se textos fronteiriços. Ao mesmo tempo em que transmitem os pontos de vista e ensinamentos elaborados por intelectuais, tais obras incorporam elementos do cotidiano das pessoas para que suas mensagens se tornem mais adequadas e compreensíveis” (Frazão da Silva, 2001, p.167)

5Refere-se à possibilidade de os sujeitos construírem ativamente suas autoidentidades, em construções reflexivas de sua atividade na vida social. Dessa forma, identidades são construídas e/ou contestadas no discurso.

6É caracterizada como o domínio exercido pelo poder de um grupo sobre os demais, baseado mais no consenso que no uso da força. A dominação, entretanto, sempre está em equilíbrio instável, daí a noção de luta hegemônica como foco de luta sobre pontos de instabilidade em relações hegemônicas.

7É hegemônica no sentido que ela necessariamente serve para estabelecer e sustentar relações de dominação e, por isso, serve para reproduzir a ordem social que favorece indivíduos e grupos dominantes.

8Estabelece e sustenta relações de dominação pelo fato de serem apresentadas como justas e dignas de apoio: “racionalização” - a estratégia de legitimação que se baseia em fundamentos racionais, na legalidade; “universalização” - representações parciais são legitimadas por meio de sua apresentação como servindo a interesses gerais; “narrativização” - a legitimação se constrói por meio da recorrência a histórias que buscam no passado a legitimação do presente.

9Estabelece e sustenta relações de dominação por meio de sua negação ou ofuscação (pode ser realizada por construções simbólicas de deslocamento, eufemização e tropo).

10O modus operandi da ideologia pelo qual as relações de dominação podem ser estabelecidas ou sustentadas pela construção simbólica da unidade. Compreende duas estratégias de construção simbólica: a “padronização” (adoção de um referencial padrão partilhado) e “simbolização” (construção de símbolos de identificação coletiva).

11As relações de dominação podem ser sustentadas por meio da segmentação de indivíduos e grupos que, se unidos, poderiam construir obstáculos à manutenção do poder. Duas estratégias: “diferenciação” (ênfase nas características que desunem e impedem a formação de um grupo coeso) e “expurgo do outro” (em que se objetiva representar simbolicamente o grupo que possa construir obstáculo ao poder hegemônico como um inimigo que deve ser combatido.

12Uma situação transitória é representada como permanente, ocultando seu caráter sócio-histórico. Suas estratégias: “naturalização” - uma criação social é tratada como se fosse natural; “eternalização” - estratégia por meio da qual fenômenos históricos são retratados como permanentes; “nominalização” e “passivação” - possibilitam o apagamento de atores e ações.

13O texto em latim encontra-se em: Gil, I. Corpus Scriptorum muzarabicorum. Consejo Superior de investigaciones Cientificas. Manuales y anejos de Emerita XXVIII. Madrid. Insitututo Antonio de Nebrija, 1973, p. 61-65: “Ecce dapes melliíluae illius domni Ildefonsi, quas de paradiso Dei rapiens et per totam Hesperiam dispergens inediam nostram ingenti satiauit eloquio. non inpar meritis Sanctissimi illius domni Ysidori, de cuius fonte adhuc clientulus purissimos latices bibit. Nam directus a sancto ac uenerabili papa Eugenio,Toletane sedis metropolitano episcopo, ad supradictum doctorem, Spalensem metropolitanum episcopum, cum sibi iam sciolus uidebatur, adeo ab eo tentus et elimatus est et, ut ferunt, temporali ferro constrictus, ut, si quid scientiae deerat, plenius instructus ad paedagogum suum domnum Eugenium remeans, non post multos dies adhuc diaconii officium peragens, in ecclesia sanctorum Cosmae et Damiani, quae sita est in suburbio Toletano, abba praeficeretur, ubi statim in officio clarens duas missas in laude ipsorum dominorum, quas in festiuitate ipsorum psallerent, miro modulationis modo perfecit. Quas missas infra adnotatas habemus”.

14Utilizaremos ACD para designar Análise Crítica do Discurso.

15Deinde, post multum tempus decedente domno Eugenio, in sede sua episcopus praeficitur. Cuius statim uirtus enucleata cluens in sede romulea refulsit, et ueluti facula ardens omnemsuam Hispâniam perlustrauit. Cuius doctrina usque hodie fulget ecclesia ut sol et luna. Cuius memoria in benedictione odoris et in compositione incensi habetur. Qui ab ipsis cunabulis, ab ineunte aetate eunuchus permanens, magnum in se habitaculum Domino praeparauit. Qui non manubrio humano, sed diuino secatus est gladio, nec ingenio ferramentorum resecauit libidinem, sed munere caelesti promeruit Sanctitatem. Qui, subito dono superno affiatus, his tantis talibusque praedecessoribus suis aequiter clarens, quod illis clausum fuerat, isti reseratum est”.

16 Sic enim egit ut quod per toth annis populis desiderantibus necdum ostensum fuerat illis, isti patefaceret primum, et relíquias Sanctae ac Deo dicatae uirginis et confessoris suae Leocadiae, adueniente in sede regia sua festiuitate, omnibus adstantibus praesentaret,et ante sepulcrum eius genibus prouolutus, tumulus, in quo sanctum eius corpusculum usque hodie humatum est, exiliret, et operculum, quod uix triginta iuuenes mouere possent, non humanis manibus sed angelicis eleuatum, uelum, quod Sanctae martyris membra tegebat, uiuens foris submitteret et, ueluti manibus hominum extensum conspectui eius, uirgo pulcherrima obsequens aduentaret, clamantibus episcopis, principibus, presbiteris, diaconibus, clero atque omni populo: «Deo gratias in caelo, Deo gratias in terra», nemine tacente. Ipse uero manibus statim complexans et adstringens, talia fertur depromere uota, uociferans cum omni populo et clamans: «Deo gratias. Viuit mea domina per uitam Ildefonsil». Er ipsud repetens clerus uehementer psallebat Alleluia et canticum quem ipse domnus Ildefonsus nauiter fecerat: «Speciosa facta es, alleluia», et alia quae in ipsa missa quae subter est adnotata in laude eius deprornpserat”.

17 Sed princeps quondam Recesuintus, qui eius tempore erat, gloria et ferocitate terrena deposita, qui eum ob iniquitates suas increpatus superbo oculo intuebatur, cultrum modicum quem in teca tenebat,cum lacrimis offerebat, et collo submisso, supplicibus manibus a trono suo extentis, ut eum illi deferrent instantius deprecabatur, postulans ut indignum non iudicaret sua cum lacrimis offerentem”.

18Superueniente uero die Sanctae et semper uirginis Mariae, ante tres dies laetanias peregit, et missam suprascriptam, quae in eius laude decantaretur, perfecit, quae est septima”.

19At ubi uentum est in eius sancta sollemnitate, supradictus rex minus timore Dei sollicitus et de suis iniquitatibus male conscius, ad audienda sollemnia regali de more paratus accessit

20Nam seruus Dei Ildefonsus maiori adhuc munere fretus, dum diem Domine suae, cui Deo praesule seruiebat, ouans susciperet, et in laude Genitricis Dei hoc quod supra praenotauimus, summon cum cordis affectu armoniae modulatione composita, musica appararet et libellum Virginitatis more sinonimiae testimonies ueteris ac noui testamenti plenum compte ederet, et digna facundia ac magnificentiaiam iam prefatae Domine suae exornaret, dum ante horas matutinas solito more ad obsequia Dei peragenda nsurgeret et igilias suas Domino consecraret, diacono uel subdiacono atque clericus ante eum cum faculis praecedentes, subito ostia atrii aperientes et ecclesiam intrantes atque splendori caelesti oculos defigentes, lumen quod ferre non ualuerunt cum tremore fugientes, lampadas, quas manibus tenebant, reliquerunt et sua uestigia per quae uenerant adeuntes prope mortui reuersi sunt ad sodales, sollicite omnis congregatio requirens quid de Dei seruo ageretur cum angelicis choris, quod tam subito expauerant custodes et, terga ab ostio ecclesiae dantes reuertebant ad proprias sedes”.

21Et eleuatis oculis suis suspexit in circuitu eius et uidit omnem absidam eclesie repletam uirginum turmis de canticulis Dauid modulata suauitate aliquid decantantes. Aspiciensque in eam, ut ipse sibi bene consciis et bene carissimis referebat, sic eum adloquuta est uoce: «Propera in occursum, serue Dei rectissime, accipe munusculum de manu mea, quod de thesauro Filii mei tibi adtuli; sic enim tibi opus est ut benedictione tegminis, quae tibi data est, in mea tantum die utaris; et quia oculos fidei fixos in mea semper seruitio tenens permansisti, et laudem meam, diffusa in labiis tuis gratia, dulciter in cordibus fidelium depinxisti, ex uestimentis ecclesiae iam in hac uita ornatus eris et in futuro in prornptuariis meis cum aliis seruis Filii mei lateris». Et haec dicens ab oculis eius una cum uirginibus et luce, qua uenerat, rerneauit”.

22Neste trabalho utiliza-se como referencial teórico a definição de imaginário dada por Franco Júnior (1998, p. 16): “[...] por imaginário entendemos um conjunto de imagens visuais e verbais gerado por uma sociedade (ou parcela desta) na sua relação consigo mesma, com outros grupos humanos e com o universo em geral”.

46NOTA: Germano Miguel Favaro Esteves foi responsável pela concepção, análise e interpretação dos dados; redação e revisão crítica do conteúdo do manuscrito e ainda, aprovação da versão final a ser publicada.

23Regarding the prestige enjoyed by the prelates of Toledo, Leila Rodrigues gives a brief exposition showing that it has been registered since the reign of Recaredo (586-601), with Eladio's participation, who came from that monastic foundation, in the Royal Class. In the following years, his ascent to the bishopric of Toledo (615-633), as well as of other figures coming from Agali, would cater to the intent of monarchs such as Sisebuto (612-621) and later Suintila (621-631) to contemplate the southern aristocracy in the new power relations established since the conversion period.

25According to Ariel Guiance (2009), if we accept this hypothesis, the description of this character is possible, despite some difficulties in relation to the chronology of his life. First, the author adds, he appears to have been a Mozarabic who can be identified as a fugitive from Cordoba, although in this case we do not know to which monastery he belonged. He appears as founder of the monastery of Abellar, being first elected abbot of this monastery and later appointed bishop of Leon (perhaps succeeding Saint Froilan), an appointment in which apparently Alfonso III intervened favorably. He appears under the episcopal title in the first diploma signed by the successor of Afonso, Garcia I, on February 15, 911. Cixila no longer appears as bishop of Leon in mid-914, being succeeded by Fruminio II.

26Thus, the author explains, the hagiographies are “[...] works aimed, fundamentally, at the propaganda of pilgrimage centers and the edification of the faithful, as they aim at public and, in the vast majority of cases, written by educated and church-bound men, become border texts. At the same time as transmitting the points of view and teachings elaborated by intellectuals, such works incorporate elements of people's daily lives so that their messages become more appropriate and understandable” (Frazão da Silva, 2001, p.167).

27It refers to the possibility of the subjects construct their self-identities actively in reflective constructions of their activity in social life. Thus, identities are constructed and/or contested in the discourse.

28It is characterized as the dominance exercised by the power of one group over the others, based more on consensus than on the use of force. Domination, however, is always in unstable equilibrium, hence the notion of hegemonic struggle as the focus of struggle over points of instability in hegemonic relations.

29It is hegemonic in the sense that it necessarily serves to establish and sustain relations of domination and, therefore, serves to reproduce the social order that favors dominant individuals and groups.

30It establishes and sustains relationships of domination because they are presented as just and worthy of support: “rationalization” - the legitimation strategy that is based on rational foundations in legality; “universalization” - partial representations are legitimized through their presentation as serving general interests; “narrativization”- legitimation is built through the recurrence of stories that seek in the past the legitimation of the present.

31Establishes and sustains relations of domination through its negation or obfuscation (can be accomplished by symbolic constructions of displacement, euphemization and trope).

32The modus operandi of ideology by which relations of domination can be established or sustained by the symbolic construction of unity. It is comprised by two symbolic construction strategies: “standardization” (adoption of a shared standard reference) and “symbolization” (construction of collective identification symbols).

33Relationships of domination can be sustained by segmenting individuals and groups that, if united, could construct obstacles to maintaining power. Two strategies: “differentiation” (emphasis on characteristics that disrupt and prevent the formation of a cohesive group) and “purge of the other” (in which it aims to represent symbolically the group that can construct an obstacle to hegemonic power as an enemy that must be fought).

34A transitory situation is represented as permanent, hiding its socio-historical character. Their strategies: “naturalization” - a social creation is treated as if it were natural; “eternalization” - strategy by which historical phenomena are portrayed as permanent; “nominalization” and “passivation” - make it possible to erase actors and actions.

35The Latin text is found in: Gil, I. Corpus Scriptorum muzarabicorum. Consejo Superior de investigaciones Cientificas. Manuales y anejos de Emerita XXVIII. Madrid. Instituto Antonio de Nebrija, 1973, p. 61-65: “Ecce dapes melliíluae illius domni Ildefonsi, quas de paradiso Dei rapiens et per totam Hesperiam dispergens inediam nostram ingenti satiauit eloquio. non inpar meritis Sanctissimi illius domni Ysidori, de cuius fonte adhuc clientulus purissimos latices bibit. Nam directus a sancto ac uenerabili papa Eugenio,Toletane sedis metropolitano episcopo, ad supradictum doctorem, Spalensem metropolitanum episcopum, cum sibi iam sciolus uidebatur, adeo ab eo tentus et elimatus est et, ut ferunt, temporali ferro constrictus, ut, si quid scientiae deerat, plenius instructus ad paedagogum suum domnum Eugenium remeans, non post multos dies adhuc diaconii officium peragens, in ecclesia sanctorum Cosmae et Damiani, quae sita est in suburbio Toletano, abba praeficeretur, ubi statim in officio clarens duas missas in laude ipsorum dominorum, quas in festiuitate ipsorum psallerent, miro modulationis modo perfecit. Quas missas infra adnotatas habemus.

36We shall utilize CDA to refer to Critical Discourse Analysis.

37Deinde, post multum tempus decedente domno Eugenio, in sede sua episcopus praeficitur. Cuius statim uirtus enucleata cluens in sede romulea refulsit, et ueluti facula ardens omnemsuam Hispâniam perlustrauit. Cuius doctrina usque hodie fulget ecclesia ut sol et luna. Cuius memoria in benedictione odoris et in compositione incensi habetur. Qui ab ipsis cunabulis, ab ineunte aetate eunuchus permanens, magnum in se habitaculum Domino praeparauit. Qui non manubrio humano, sed diuino secatus est gladio, nec ingenio ferramentorum resecauit libidinem, sed munere caelesti promeruit Sanctitatem. Qui, subito dono superno affiatus, his tantis talibusque praedecessoribus suis aequiter clarens, quod illis clausum fuerat, isti reseratum est”.

38Sic enim egit ut quod per toth annis populis desiderantibus necdum ostensum fuerat illis, isti patefaceret primum, et relíquias Sanctae ac Deo dicatae uirginis et confessoris suae Leocadiae, adueniente in sede regia sua festiuitate, omnibus adstantibus praesentaret,et ante sepulcrum eius genibus prouolutus, tumulus, in quo sanctum eius corpusculum usque hodie humatum est, exiliret, et operculum, quod uix triginta iuuenes mouere possent, non humanis manibus sed angelicis eleuatum, uelum, quod Sanctae martyris membra tegebat, uiuens foris submitteret et, ueluti manibus hominum extensum conspectui eius, uirgo pulcherrima obsequens aduentaret, clamantibus episcopis, principibus, presbiteris, diaconibus,clero atque omni populo: «Deo gratias in caelo, Deo gratias in terra», nemine tacente. Ipse uero manibus statim complexans et adstringens, talia fertur depromere uota, uociferans cum omni populo et clamans: «Deo gratias. Viuit mea domina per uitam Ildefonsil». Er ipsud repetens clerus uehementer psallebat Alleluia et canticum quem ipse domnus Ildefonsus nauiter fecerat: «Speciosa facta es, alleluia», et alia quae in ipsa missa quae subter est adnotata in laude eius deprornpserat

39Sed princeps quondam Recesuintus, qui eius tempore erat, gloria et ferocitate terrena deposita, qui eum ob iniquitates suas increpatus superbo oculo intuebatur, cultrum modicum quem in teca tenebat,cum lacrimis offerebat, et collo submisso, supplicibus manibus a trono suo extentis, ut eum illi deferrent instantius deprecabatur, postulans ut indignum non iudicaret sua cum lacrimis offerentem

40Superueniente uero die Sanctae et semper uirginis Mariae, ante tres dies laetanias peregit, et missam suprascriptam, quae in eius laude decantaretur, perfecit, quae est septima”.

41At ubi uentum est in eius sancta sollemnitate, supradictus rex minus timore Dei sollicitus et de suis iniquitatibus male conscius, ad audienda sollemnia regali de more paratus accessit”.

42Nam seruus Dei Ildefonsus maiori adhuc munere fretus, dum diem Domine suae, cui Deo praesule seruiebat, ouans susciperet, et in laude Genitricis Dei hoc quod supra praenotauimus, summon cum cordis affectu armoniae modulatione composita, musica appararet et libellum Virginitatis more sinonimiae testimonies ueteris ac noui testamenti plenum compte ederet, et digna facundia ac magnificentiaiam iam prefatae Domine suae exornaret, dum ante horas matutinas solito more ad obsequia Dei peragenda nsurgeret et igilias suas Domino consecraret, diacono uel subdiacono atque clericus ante eum cum faculis praecedentes, subito ostia atrii aperientes et ecclesiam intrantes atque splendori caelesti oculos defigentes, lumen quod ferre non ualuerunt cum tremore fugientes, lampadas, quas manibus tenebant, reliquerunt et sua uestigia per quae uenerant adeuntes prope mortui reuersi sunt ad sodales, sollicite omnis congregatio requirens quid de Dei seruo ageretur cum angelicis choris, quod tam subito expauerant custodes et, terga ab ostio ecclesiae dantes reuertebant ad proprias sedes”.

43Et eleuatis oculis suis suspexit in circuitu eius et uidit omnem absidam eclesie repletam uirginum turmis de canticulis Dauid modulata suauitate aliquid decantantes. Aspiciensque in eam, ut ipse sibi bene consciis et bene carissimis referebat, sic eum adloquuta est uoce: «Propera in occursum, serue Dei rectissime, accipe munusculum de manu mea, quod de thesauro Filii mei tibi adtuli; sic enim tibi opus est ut benedictione tegminis, quae tibi data est, in mea tantum die utaris; et quia oculos fidei fixos in mea semper seruitio tenens permansisti, et laudem meam, diffusa in labiis tuis gratia, dulciter in cordibus fidelium depinxisti, ex uestimentis ecclesiae iam in hac uita ornatus eris et in futuro in prornptuariis meis cum aliis seruis Filii mei lateris». Et haec dicens ab oculis eius una cum uirginibus et luce, qua uenerat, rerneauit”.

44In this paper the definition of the imaginary given by Franco Júnior (1998, p. 16) is used as theoretical reference: “[...] by imaginary we mean a set of visual and verbal images generated by a society (or part of it) in its relationship with itself, with other human groups, and with the universe in general”.

Recebido: 30 de Maio de 2019; Aceito: 11 de Setembro de 2019

E-mail: germano_esteves@hotmail.com

Germano Miguel Favaro Esteves: Possui graduação em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2008), graduação em Direito pela Fundação Educacional do Município de Assis (2009), mestrado em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2011), Especialização em Direito Ambiental e Urbanístico pela LFG Anhanguera Uniderp (2011), Doutorado em História Social pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2015), com estágio CAPES PDSE na Universitat de Barcelona e Pós-Doutorado em História Social pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2018). Tem experiência na área de História, com ênfase em História Antiga, e Medieval, atuando principalmente nos seguintes temas: religiosidade, imaginário, Idade Média, Antiguidade Tardia, religião, e na área do Direito, com ênfase em direto ambiental, direito ambiental penal, direito ambiental internacional e filosofia do direito. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5667-8847 E-mail: germano_esteves@hotmail.com

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