Introdução
Este texto é parte das reflexões conjuntas dos autores em uma pesquisa desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), sendo também inspirado pelo pensamento de Michel Foucault, autor que fornece parte do embasamento teórico da pesquisa. Nas seguintes páginas focaremos nossa atenção particularmente na campanha de controle e erradicação do mosquito Aedes Aegypti. No verão de 2016 uma nova campanha foi somada à já conhecida campanha contra a dengue. A doença transmitida pelo mosquito Aedes Aegypti ganha espaço nacional todos os anos com o objetivo de frear os casos da doença. Em pauta no final do ano de 2015, conhecemos um segundo vírus, também disseminada pelo mesmo mosquito transmissor, o Zika vírus. Sem aprofundar as explicações no que tange à questão de saúde pública, o que tentaremos analisar neste texto é o papel atribuído à educação nessas campanhas, tomando como objeto de estudo aquela desenvolvida através da mídia (principalmente televisão) nos anos de 2015 e 2016 (Campanha contra o vírus Zika, 2016). Esse evento parece um exemplo bastante claro do papel cada vez mais preponderante que a educação - e particularmente a escola - exerce na governamentalidade neoliberal a respeito das tecnologias de ‘autoempresariamento’1 dos sujeitos.
Para realizar esta análise nos valeremos de três conceitos utilizados por Michel Foucault, a saber: biopolítica, biopoder e governamentalidade, as quais desenvolveremos na primeira parte do texto entrelaçando-as com alguns pontos da referida campanha. A seguir apresentaremos um encadeamento desses conceitos com a educação formal contemporânea, tentando estabelecer algumas ideias que mostram como a escola moderna funciona como uma maquinaria de produção das subjetividades requeridas pela sociedade atual (Varela, & Álvarez Uría, 1991). Para realizar dita conexão utilizaremos a noção de empreendedorismo2 como um dos links que unem essas necessidades da sociedade e a produção de subjetividades realizada pela escola. Por último tentaremos mostrar como através da campanha #ZIKAZERO podem ser visualizados vários enunciados que remetem ao discurso do empreendedorismo, ao mesmo tempo em que vinculam este último à educação através da convocação à população a ‘fazer sua parte’.
O biopoder, a biopolítica e a governamentalidade neoliberal
Rabinow e Rose (2006) entendem que, no pensamento de Michel Foucault, os conceitos de biopoder e biopolítica estão intimamente relacionados entre si, e com estratégias que visam à intervenção em caraterísticas vitais da população. Neste sentido, devemos compreender esta última como um corpo constituído por unidades, que devem ser consideradas também em sua individualidade, mas onde as estratégias de controle têm como escopo a grande massa. Em outras palavras, a biopolítica funcionaria mediante estratégias focadas na população enquanto estrutura global, mas sem deixar de considerar a singularidade de cada um dos seus membros e inclusive aproveitando-a para gerar tecnologias de controle e de vigilância. Dessa forma, Foucault (2005) entende que as estratégias biopolíticas entrarão no jogo de maneira concomitante às disciplinas e ao controle individual dos corpos, de maneira a aperfeiçoar os processos produtivos da população.
Foucault (2005) afirma que na segunda metade do século XVIII começa a se desenvolver uma série de mecanismos direcionados à ‘regularização’ da vida da população, os quais constituem uma mudança na maneira de entender as artes de governar. Com ela passar-se-ia de pensar o poder do soberano como aquele que deixa viver e faz morrer, para entendê-lo como aquele em que o Estado deve fazer viver e deixar morrer, buscando o objetivo de aumentar a produção da população. Para explicar essa maneira de entender os diferentes processos, as estratégias e as tecnologias aplicadas para atingir esses objetivos, o filósofo utilizaria dois conceitos que acompanhariam seu pensamento a partir desse momento: a biopolítica e o biopoder.
A noção de biopolítica, portanto, está relacionada à noção de população e também às relações que o poder estabelece com esta última (Revel, 2005), principalmente no que refere às preocupações por estabelecer formas de controle e de governo nas áreas da saúde, higiene, alimentação e educação. Ou seja, praticamente tudo aquilo que hoje estabelecemos como vinculado às políticas públicas e que tem a ver com tentativas de fazer com que a população seja produtiva, encontra-se de alguma maneira relacionado com as estratégias biopolíticas.
Nesse sentido, Foucault (2005) explica que a biopolítica surge como uma resposta ao problema das endemias populacionais, manifestando-se principalmente por meio da medicina, para logo se expandir até áreas como controle da natalidade e morbidade, controle da marginalização, cuidado do envelhecimento da população etc. Eis aqui que a campanha #ZIKAZERO se apresenta como um exemplo promissor para a discussão que nos interessa, pois, enquanto fator de risco iminente para a produtividade da população, a proliferação do mosquito Aedes aegypti virou alvo de estratégias de contenção e erradicação. E é nesse nível, no das ações focadas na população como massa de indivíduos, que a biopolítica teve que agir mediante “[...] mecanismos mais sutis, mais racionais, de seguros, de poupança individual e coletiva, de seguridade, etc.” (Foucault, 2005, p. 291).
Mas antes de referir a mencionada campanha é necessário aprofundar a noção de biopoder. Rabinow e Rose (2006) sugerem que poderíamos relacioná-lo a três elementos fundamentais:
- Os discursos de verdade pronunciados por autoridades consideradas competentes para falar sobre essa verdade;
- As estratégias vitais coletivas aplicadas a populações que não necessariamente devam compartilhar um território, mas que sim devem poder ser categorizadas sob alguma caraterística comum;
- As formas de subjetivação que estimulam ou coagem os indivíduos a atuar de determinadas maneiras sobre si mesmos, direcionados por esses discursos de verdade e que proclamam atuar em nome do bem-estar da população, da coletividade, da família ou do próprio indivíduo.
Estes três elementos estão presentes na campanha que este artigo analisa, pois podemos perceber nela a existência de um discurso considerado como verdadeiro que relaciona o vírus da Zika com a microcefalia em fetos [1], o que tem sido amplamente ratificado por especialistas (médicos geralmente) através da mídia, onde se valida o caráter científico mediante a imagem do profissional e sua fala [2] e onde, através dessa difusão midiática, constroem-se maneiras de agir por parte das pessoas, ações que têm como escopo o cuidado da saúde individual e coletiva, mediante a colaboração de cada um dos membros da população [3].
Percebe-se, então, que se construiu um posicionamento dos indivíduos frente a um inimigo comum. Isto é, a partir da validação da verdade do enunciado ‘o mosquito é o responsável pela transmissão do vírus’, produzem-se na população subjetividades responsáveis pela colaboração no combate. Tais subjetividades se expressaram através de ações de revisão do próprio lar (e.g.: controle de recipientes com água) e de controle das ações dos outros (e.g.: observação, recomendação e até denúncia perante a falta de ditas ações de combate).
Assim, observa-se a relação do biopoder com a campanha #ZIKAZERO, entendendo o primeiro não como uma entidade que atua sobre a população e que é externa à mesma, senão compreendendo-o como inerente à população, penetrando as próprias maneiras de os indivíduos se sentirem parte da sociedade e constituindo, dessa forma, as subjetividades necessárias para que essa sociedade seja produtiva.
Essa produtividade da sociedade no sistema neoliberal, que prevalece no mundo ocidental contemporâneo, está relacionada, principalmente, a fatores econômicos. Portanto, para continuarmos com nossa análise, recorreremos a um terceiro conceito criado por Michel Foucault: a governamentalidade. Esta foi concebida pelo filósofo como um instrumento que o auxiliaria na compreensão da trama das relações de poder que interagem nos processos de construção das subjetividades no mundo ocidental (Castro, 2009). Esse instrumento está diretamente relacionado às noções de Estado e de população, sendo que se refere especificamente à ideia de conduzir as condutas, tanto as próprias quanto as dos outros (Castro, 2009; Noguera-Ramírez, 2009; Miller, & Rose, 2012).
No caso deste artigo, a governamentalidade nos ajudará a entender como as estratégias da biopolítica e do biopoder, descritas anteriormente, entrelaçam-se com as necessidades de produção da sociedade contemporânea, estipulando maneiras de conduzir-se, e de conduzir os outros, que favoreçam as exigências criadas pelo mercado. Foucault define a governamentalidade como tendo “[...] por alvo principal a população, por principal forma de saber a economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança” (Foucault, 2008, p. 143), sendo que, para este texto em particular, interessa-nos fazer ênfase na economia política como o saber que se encarregará de pensar a população como massa produtiva, e que desenvolverá estratégias que busquem tornar mais efetivos, em termos econômicos, os processos produtivos dessa população de modo geral.
No caso da governamentalidade neoliberal, consideram-se os sujeitos da população como capazes de (e levados a) escolher livremente com base em um determinado leque de opções ditado pelo mercado (oferta). Este leque, por sua vez, estará também direcionado pelo interesse da própria população (demanda) (Peters, 2015). Dessa maneira, para que o mercado se mantenha ativo, faz-se necessária a criação de interesses na população, os quais logo se convertem em demandas e, mais adiante, em necessidades.
Dessa forma, qualquer objeto e/ou acontecimento pode virar desejo, logo interesse, logo demanda, logo necessidade. No caso da temática central deste artigo, a possibilidade de uma epidemia causada pelo mosquito Aedes aegypti trouxe uma nova oportunidade para o mercado, tanto na venda de produtos para combater o mosquito, quanto na venda de fármacos, na produção de material publicitário, nos contratos de empresas que pulverizam veneno etc. - todas ações que geraram uma contínua movimentação da economia.
Por outro lado, a mesma possibilidade de uma epidemia se constituiu numa necessidade de ativar mecanismos de controle do risco por parte do Estado. Isto é, perante a eventualidade de uma ameaça que implicaria um problema sanitário de consequências massivas, deveria se providenciar medidas que assegurassem o gerenciamento do risco mais efetivo possível no intuito de estabelecer as soluções economicamente mais vantajosas.
Portanto, dois pontos de vista de um mesmo acontecimento fundiram-se pela governamentalidade neoliberal. Por um lado, uma questão sanitária do Estado; por outro, um nicho de mercado que apareceu e que criou a possibilidade de aproveitamento. Ambos os fatos provocaram movimentos produtivos da população.
A seguir vincularemos a educação com a sociedade contemporânea e, particularmente, a sociedade brasileira, focando a análise no fenômeno do empreendedorismo e a gradual entrada deste último nos currículos da educação formal.
A educação como nova parceira da sociedade empreendedora
Conceitos como ‘aprendizagem permanente, educação ao longo da vida, sociedade da aprendizagem, educação para todos’ etc. parecem ter se tornado moeda comum nos dias de hoje. Se tivéssemos que expressar ditos conceitos englobados numa ideia, talvez pudéssemos dizer que o mundo tem se transformado numa grande aula onde todos devemos aprender, ensinar e ser ensinados.
Essa ideia tem adquirido dimensões tão globais que não parece ter país ou região do mundo que dela não comungue. De fato, políticas e recomendações de cunho global vêm sendo ditadas por órgãos internacionais, como ONU, UNESCO, OCDE etc., desde a década de 1950 (Noguera-Ramírez, 2015). Essas ideias têm inclusive se transformado ao ponto de enunciados, que alguns anos atrás se apresentavam apenas como recomendações, hoje funcionarem como exigências de patamares mínimos a atingir, sob pena de sanções econômicas e sociais por parte dos organismos internacionais e da opinião pública. Um claro exemplo disso é a constante preocupação que a mídia exibe a respeito dos resultados da educação brasileira nas provas PISA, as quais, apesar de não serem reconhecidas por uma parte do discurso acadêmico como instrumento eficaz para avaliar o desempenho educativo, transformaram-se em indicadores de referência para o governo brasileiro e para a população em geral, principalmente sustentadas pela enorme campanha político-midiática que se constrói a cada ano quando os resultados são divulgados.
Por outa parte, Varela e Álvarez-Uría (1991) descrevem a escola como uma maquinaria na qual diversas engrenagens estruturadas como práticas discursivas funcionam coordenadamente com o intuito de colaborar na construção do processo civilizatório da sociedade moderna. Ou seja, a escola recria-se e transforma-se permanentemente de acordo as necessidades das sociedades, de maneira que colabora na formação dos sujeitos ao mesmo tempo que esses sujeitos participam do constante processo de transformação da própria escola (Silva Miguel, 2015).
Pensando nessa direção e considerando que uma sociedade neoliberal como a contemporânea precisa de sujeitos que se encaixem numa estrutura de produção e consumo de liberdade, pareceria quase natural que acontecesse um processo de inclusão, no currículo da educação formal, das ferramentas necessárias para a formação desses sujeitos. Dentre essas ferramentas, o empreendedorismo aparece como a nova tendência econômica a seguir, tanto por parte do setor privado quanto pelos organismos internacionais de fomento socioeconômico, e, portanto, também dos Estados. Isso faz com que a inclusão paulatina dessa tendência dentro das diferentes instâncias da educação formal apareça como uma possibilidade cada vez mais factível.
Segundo Drewinski (2009), os exemplos mais fortes de começo do século XXI no Brasil foram dois. Um deles foi o projeto Jovem Empreendedor, iniciado no primeiro governo Lula, em 2004, que buscava a geração de fonte de renda para jovens desempregados por meio da formação e do crédito como forma de fomento à criação de microempresas ou autoemprego. O outro é a autodenominada Pedagogia Empreendedora, iniciativa privada que, segundo seus promotores, pretendia desenvolver as capacidades empreendedoras desde a educação infantil até o Ensino Médio, atuando em conjunto com as diretrizes oficiais para a educação3. Essas iniciativas funcionaram mediante a concepção de que os sujeitos se consideram como responsáveis principais pelo seu sucesso na vida, sendo que, em caso de fracasso, as consequências provavelmente serão colocadas por inteiro nas costas deles.
Numa lógica que parece estruturar-se em bases similares às da teoria do capital humano, desenvolvida por Theodore Schultz na segunda metade do século XX, trabalha-se na constituição de uma nova subjetividade neoliberal que agora não deve buscar a segurança oferecida pelo emprego formal numa instituição, senão procurar a inovação e o empreendimento do e no próprio sujeito como fórmula decisiva para a geração de renda pessoal e, portanto, para o possível êxito (Drewinski, 2009).
Nesse sentido, o discurso da necessidade de inovação e de criatividade tem se transformado em algo tão cotidiano que não comungar com ele seria uma espécie de ‘pecado’. Essa exigência parece ser válida não só para o mundo do trabalho, como também para os âmbitos da vida íntima das pessoas, desde a sexualidade até a comida, os espaços de lazer, desde os esportes até os espaços públicos, e como não poderia deixar de ser, igualmente a educação, desde os currículos até as maneiras de perceber-se como alguém educado.
Como subjetividades neoliberais contemporâneas, agimos procurando atingir esses horizontes da inovação. Utopias de consumo que nos provocam desejos permanentemente insatisfeitos, uma vez que o horizonte é por definição inatingível, uma fronteira insondável, feita para ser admirada, desejada, mas nunca alcançada. No entanto, a promessa da possibilidade de ‘chegar lá’ nos reconforta parcialmente; a confiança na nossa capacidade individual nos motiva; e “[...] o elixir do ‘você pode’”4 (Grinberg, 2015, p. 28, tradução nossa) nos provê a energia necessária para tentar produzir o caminho que nos levará até o objeto do nosso desejo.
A educação, contextualizada nesse modelo de sociedade, não parece poder ficar de fora dessa dinâmica. Gostemos ou não, somos obrigados a entrar no ritmo pelo simples fato de formar parte do sistema. Dessa forma, a educação em geral, e a escola em particular, recebem e também produzem consumo de desejos. Nessa lógica de ida e volta entre sociedade e escola, mencionada anteriormente, constroem-se práticas que favorecem a cultura do consumo, inclusive do consumo da própria educação como um dos principais fatores de investimento de si. Assim, o aprendiz permanente, a educação vitalícia e a sociedade educadora se transformam também em produtores e produzidos pelo consumo do desejo - consumo que parece não depender de ninguém mais que o sujeito e da capacidade de investimento que ele esteja disposto a fazer.
A campanha #ZIKAZERO, um exemplo da maquinaria que produz
Para este texto, escolhemos a campanha #ZIKAZERO como disparador da análise que pretendemos fazer sobre a temática da relação entre a escola e o empreendedorismo como estratégia da governamentalidade neoliberal. Ao longo do texto trouxemos algumas das reflexões relacionadas à referida campanha, relacionando-a com alguns conceitos que movimentam esta análise. Nesta última parte, focaremos nossa atenção no aspecto produtivo da governamentalidade, particularmente exemplificado nessa campanha, iniciada pelo governo brasileiro em 2015, assim como também no que percebemos como um paulatino mas constante investimento em práticas empreendedoras na educação como ferramenta de produção de subjetividades neoliberais e de empresariamento de si mesmo.
A necessidade de gerar uma estratégia de gerenciamento do risco perante a possibilidade de uma pandemia provocada pelo descobrimento da possível relação do vírus da Zika com a ocorrência de microcefalia em fetos humanos, associada às doenças da dengue e vírus chikungunya, todas transmissíveis através do mosquito Aedes aegypti, constituíram o pano de fundo para a campanha anteriormente mencionada. A mesma teve seu foco particularmente direcionado à convocação da população ao combate dos focos onde o mosquito se reproduz. Tal convocatória fez ênfase na educação, e particularmente na estrutura escolar, como o agente encarregado de liderar essa batalha.
Assim, como mostrado na Figura 1, frases do tipo: “Um mosquito não pode ser mais forte que [...] 60 milhões de estudantes, professores e trabalhadores da educação que estão mobilizados para combatê-lo” (Campanha contra o vírus Zika, 2016) chamaram a população a se mobilizar, enfatizando a escola como potência geradora. Na mesma publicidade dizia-se “Mobilize sua turma, seus colegas, sua escola” (Campanha contra o vírus Zika, 2016), enquanto imagens de ações consideradas efetivas na erradicação dos criadouros apareciam na tela.
Em outra propaganda, solicitava-se a cobrança por parte da população às autoridades da limpeza de áreas públicas (Campanha contra o vírus Zika, 2016), fazendo referência à responsabilidade pública por essa tarefa, mas também das pessoas em exercer o controle do cumprimento da mesma. Ou seja, a função do controle já não é exclusiva do aparelho governamental do Estado, mas o próprio aparelho ‘convida’ a população a formar parte desse controle, oferecendo parte daquele poder que, no senso comum, pareceria ser de posse exclusiva de quem governa.
As imagens e as falas das diferentes partes da campanha funcionam como enunciados de um discurso que convoca - lembrando Foucault (2005) - a Defender a Sociedade contra um inimigo comum. Por um lado, os cidadãos representados pela imagem de um estudante que enfaticamente afirma:
E este é o mosquito que está assustando o país inteiro. Na verdade, o mundo inteiro! Quer saber? Esse mosquito não vai fazer mal a ninguém da minha família, amigos ou aqui no meu bairro. Eu comprei essa briga. Eu já falei com os meus amigos da escola e eles vão falar com os pais deles e com os vizinhos. Mãos à obra! Vamos fazer uma faxina, limpar o quintal, piscina, tudo! Vamos para as ruas, de casa em casa, informar e pedir ajuda para combater o mosquito. Faz esse favor para a gente, fale com todo o mundo sobre isso. Um mosquito não é mais forte do que um país inteiro! Atitude dez. Zika Zero! (Campanha contra o vírus Zika, 2016).
Enquanto imagens de ações preventivas contra a reprodução do mosquito se sucedem, uma música de fundo vai aumentando de volume, repetindo “Dez, dez, dez, atitude dez! Zika zero!” (Campanha contra o vírus Zika, 2016). Ao final da propaganda, como se mostra na Figura 2, aparece o inimigo comum a destruir: o mosquito caricaturado detrás de um símbolo de exclusão num desenho que parece misturar a comédia e o perigo.
As imagens e as falas se misturam numa coesão que procura trabalhar a motivação dos cidadãos para ir à batalha. Não importa a idade, não importa a condição, não importa o sexo; qualquer pessoa pode (e deve) se engajar na luta e ajudar a proteger a sociedade. Dessa maneira, estabelece-se um estado de guerra no qual todos são convocados a assumir o papel de soldados do lado que defende nosso bem-estar e nossa saúde. Quem não responder ao chamado pode (e deve) inclusive ser denunciado, de maneira que sua falta possa ser emendada e sua conduta corrigida.
Isto é obviamente produtivo, pois reflete uma mudança de atitude da população a respeito do cuidado com a saúde pública diante da possibilidade de uma epidemia. Ou seja, um possível cenário de um surto de alguma das doenças transmitidas pelo mosquito traria consigo custos variados para a sociedade brasileira: internação e tratamento de grandes quantidades de pessoas; transtornos e possível paralização na educação formal; ausência dos trabalhadores nos seus empregos com os consequentes transtornos para as diferentes áreas de produção; e um enorme etecetera que poderia ser resumido nas seguintes palavras: prejuízo socioeconômico.
No entanto, e apesar de considerar não só necessária a realização dessa campanha, senão também exitosa em termos de prevenção e correção de uma ameaça para a sociedade, cremos que ela serve para exemplificar uma das características que parecem estar se constituindo na governamentalidade contemporânea. Percebemos a construção de um discurso que poderíamos chamar de ‘faça sua parte’, em alusão às palavras da própria campanha citada, discurso que convoca os cidadãos a se responsabilizarem por algumas ações que outrora foram relacionadas ao Estado e que hoje passam a ser da conta do cidadão, sobre quem se coloca a obrigação de gerenciar o risco ou de tomar iniciativas para ações necessárias para o benefício da população. Este discurso é facilmente perceptível na mídia, onde notícias sobre ações cidadãs para solucionar problemas, aos quais o Estado não responde, são veiculadas com frequência, acompanhadas de elogios e exaltação por parte dos apresentadores. Dessa maneira, produz-se nos indivíduos uma subjetividade que internaliza a responsabilidade por seu bem-estar de maneira cada vez mais individual, pois, apesar de algumas dessas ações populares terem a participação de comunidades, a mensagem implícita é ‘faça você mesmo ou ninguém fará’.
Até esse ponto, pode-se pensar que não haveria necessariamente um problema. Ou seja, os cidadãos poderiam perfeitamente sentir-se à vontade para realizar ações voluntárias que melhorassem a qualidade de vida de uma parcela da população, uma vez que isto gerasse um benefício direto ou indireto para aquele que decidisse participar. No entanto, o aspecto que nos interessa problematizar é o adendo que o tipo de prática descrita no parágrafo anterior parece trazer. Acompanhando a estimulação de ações do tipo ‘faça sua parte’, constrói-se um discurso paralelo que produz a sensação que poderíamos resumir na noção de que ‘se não aconteceu, é porque você não fez o suficiente’, uma espécie de sentimento de culpa ou dívida que é colocada nas costas do sujeito, que não só se responsabiliza por uma atribuição que antes era do Estado, como também se torna um elemento de controle para que os outros também assumam tal responsabilidade.
Dessa forma, a governamentalidade neoliberal produz uma fragmentação das responsabilidades sociais, pela qual os sujeitos parecem se constituir cada vez mais como agentes isolados do cuidado do seu bem-estar pessoal e o dos seus círculos próximos, gerando assim a contingência de haver setores da sociedade que não consigam atingir os patamares mínimos, e quem fiquem sem receber o suporte que antes era fornecido pelo Estado.
Considerações finais
Encerrando, de forma jamais conclusiva, podemos dizer que a educação interage com o sistema neoliberal e que, ao mesmo tempo em que cria demandas, também se constitui como ferramenta, subjetivando e dando fôlego aos projetos instaurados. Por isso, buscamos neste texto fazer uma análise da campanha #ZIKAZERO, como forma de trazer à tona um exemplo atual de como a educação funciona como maquinaria responsável pela produção de sujeitos aptos para o sistema neoliberal, e também pensar sobre como uma tendência socioeconômica que toma força fora das paredes da escola vai paulatinamente adentrando-as e se constituindo numa nova tendência educacional.
Em consonância com esta análise, poderíamos problematizar outras campanhas que se constituem em ações de orientação das condutas e que são também elaboradas pela governamentalidade neoliberal na sua permanente busca por manter todas as engrenagens do sistema produzindo na sua máxima capacidade. Como foi expresso no texto, pensamos que essas campanhas não possuem um lugar de nascimento específico, nem uma origem determinada que possa ser identificada, senão que se formam a partir de condições de possibilidade criadas pelos diversos componentes do sistema. A mídia, os políticos, as empresas, o sistema educativo, enfim, as pessoas, desde suas diferentes posições, contribuem de várias maneiras para que os elementos constitutivos dessas práticas sejam possíveis, fornecendo as condições necessárias para a geração das ações produtivas.
Assim, por exemplo, práticas relacionadas ao cuidado do meio ambiente, necessárias para tentar neutralizar a deterioração deste último devido, entre outras coisas, aos efeitos do consumismo massivo de bens e serviços por parte da população mundial, são cooptadas pelas mesmas empresas que promovem este consumismo e transformadas, através de ações de marketing, em campanhas que buscam a melhora da imagem dessas empresas e o consequente aumento do consumo de seus produtos ou serviços. Ao passo que essas campanhas geram um benefício para a população em termos de efetivo cuidado do meio ambiente (e.g.: dado pela plantação de árvores, apoio a reservas naturais etc.), produz-se uma adesão por parte de outros elementos da sociedade (sejam instituições ou particulares), que, por sua vez, gera novas práticas produtivas tanto em termos econômicos quanto em ações efetivas dirigidas ao objetivo primário.
Não em poucas ocasiões, essas práticas recebem da população um status que poderíamos denominar como ‘sentimento de dívida’, pelo qual o cidadão, influenciado pela campanha midiática, começa a se questionar sobre qual é o papel que ele, como individualidade, está desempenhando para colaborar na solução daquele problema. Isso o coloca numa situação de endividamento para com a sociedade, sendo que “[...] o poder da dívida nos deixa livres e nos incita e nos empurra a atuar para que possamos cancelar nossas dívidas”5 (Lazzarato, 2013, p. 38, tradução nossa). Portanto, essas campanhas ou ações também produzem o ponto de vista de colocar a responsabilidade no individual, tanto nas condutas que historicamente corresponderam ao individual (e.g.: cuidar da própria saúde) quanto em ações que outrora eram assumidas pelo Estado (e.g.: cuidar da manutenção dos espaços públicos).
Não se trata de uma crítica negativista, nem tampouco de uma exaltação do emprendedorismo; o que nos propusemos a fazer foi, a partir de um discurso atual, produto de um risco sanitário para a população, problematizar o papel preponderante da escola na produção das subjetividades requeridas pela sociedade contemporânea, subjetividades estas que parecem se produzir em ambientes que, através do gerenciamento e favorecimento das diferenças, potencializam as desigualdades e as divisões, no que pareceria contribuir para a construção de um cenário cada vez mais propício para as ações individuais e não para as coletivas (Lazzarato, 2011).
A partir desta problematização, poderíamos nos perguntar se nossa sociedade, e principalmente nossa educação formal, não estaria se projetando para o futuro, num cenário que promove o ‘autoempresariamento’ dos sujeitos, constituindo-se a partir de uma atitude empreendedora. Nossas práticas cotidianas enquanto professores produzem ações agenciadas nessa lógica ou propõem contracondutas que buscam resistir a ela?