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Acta Scientiarum. Education

versão impressa ISSN 2178-5198versão On-line ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.41  Maringá jan. 2019  Epub 01-Mar-2019

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v41i1.40063 

Formação de Professores

A importância dos saberes acadêmicos e dos saberes populares na formação de educadores da educação do campo

The importance of academic knowledge and popular knowledge in the education education education of the field

La importancia de los saberes académicos y de los saberes populares en la formación de educadores de la educación del campo

Idalina Souza Mascarenhas Borghi1 

Klayton Santana Porto1  * 

1Centro de Ciência e Tecnologia em Energia e Sustetabilidade, Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Rua Rui Barbosa, 710, 44300-000, Cruz das Almas, Bahia, Brasil.


RESUMO.

Ao refletir sobre a formação de educadores da educação do Campo, este trabalho busca evidenciar a relevância das formas de socialização de saberes das comunidades campesinas, para viabilizar o diálogo com os conhecimentos produzidos na academia. No intuito de gerar aproximação com a temática, refletimos sobre alguns mecanismos, acionados pelos sujeitos que aprendem para significar suas apropriações. Para isso, realizamos uma pesquisa bibliográfica, construída por meio do diálogo com autores que discutem os conceitos apresentados no estudo. Entendendo o conceito de rede como imprescindível ao estudo, discutimos acerca da mediação enquanto dispositivo favorável à sistematização de saberes, ao tempo em que consideramos as formas de aprendizagem cotidiana, utilizadas pelos estudantes da Educação do Campo, como fator preponderante para fortalecer a aprendizagem dos conhecimentos socializados na academia. A partir deste estudo, chegamos a conclusão de que é fundamental continuar investindo em pesquisas que nos ajudem a aprofundar os conhecimentos acerca dos saberes acionados pelos diversos sujeitos em processo de formação (inicial ou continuada), compreendendo a importância do trabalho coletivo dos professores formadores para a construção das pontes de encontro de saberes, como uma prática libertadora.

Palavras-chave: aprendizagens; formação de professores; saberes

ABSTRACT.

When reflecting on the formation of educators of the field, this work seeks to highlight the relevance of the forms of socialization of knowledge of the peasant communities, to enable dialogue with the knowledge produced in the academy. In order to generate approximation with the theme in focus, we reflect on some mechanisms, triggered by the subjects who learn to signify their appropriations. For this, we carried out a bibliographical research, constructed through the dialogue with authors that discuss the concepts presented in the study. Understanding the concept of networking as essential for study, we discuss mediation as a favorable device for the systematization of knowledge, while considering the forms of everyday learning used by Field Education students as a preponderant factor to strengthen knowledge learning socialized in academia. From this study, we conclude that it is fundamental to continue investing in research that will help us to deepen our knowledge about the knowledge of the various subjects in the process of formation (initial or continuing), understanding the importance of the collective work of the construction of bridges of encounter of knowledge, as a liberating practice.

Keywords: learning; training of educators;knowledge

RESUMEN.

Al reflexionar sobre la formación de educadores de la educación del Campo, este trabajo busca evidenciar la relevancia de las formas de socialización de saberes de las comunidades campesinas, para viabilizar el diálogo con los conocimientos producidos en la academia. Con el fin de generar aproximación con la temática en destaque, reflexionamos sobre algunos mecanismos, accionados por los sujetos que aprenden para significar sus apropiaciones. Para ello, realizamos una investigación bibliográfica, construida por medio del diálogo con autores que discuten los conceptos presentados en el estudio. En el concepto de red como imprescindible al estudio, discutimos acerca de la mediación como dispositivo favorable a la sistematización de saberes, al tiempo en que consideramos las formas de aprendizaje cotidianas, utilizadas por los estudiantes de la Educación del Campo, como factor preponderante para fortalecer el aprendizaje de los conocimientos socializados en la academia. A partir de este estudio, llegamos a la conclusión de que es fundamental continuar invirtiendo en investigaciones que nos ayuden a profundizar los conocimientos acerca de los saberes accionados por los diversos sujetos en proceso de formación (inicial o continuada), comprendiendo la importancia del trabajo colectivo de los profesores formadores para la construcción de los puentes de saberes, como una práctica liberadora.

Palabras-clave: aprendizaje; formación de professores; conocimiento

Introdução

Este trabalho tem como objetivo refletir sobre a formação de educadores da educação do Campo, ao tempo em que busca trazer para o debate o projeto de pesquisa Saberes acadêmicos e outros saberes: o desafio da aprendizagem na educação superior, em desenvolvimento no Centro de Ciências e Tecnologia em Energia e Sustentabilidade (CETENS/UFRB). O estudo se inscreve na tentativa de ampliar as discussões acerca da aprendizagem na educação superior, focalizando a Formação de Professores da Educação do Campo como um dos seus eixos prioritários, partindo da percepção de que, em algumas escolas do campo, o debate sobre as especificidades da ação educacional nestas realidades não se inscreve como parte do cotidiano das práticas educativas e, quando aparece, se apresenta de forma tímida e pouco tem contribuído para alterar os currículos urbanizados, atualmente preponderantes nas escolas campesinas, contexto descrito com frequência nos relatórios de estágio de estudantes do curso de Licenciatura em Educação do Campo - CETENS/UFRB.

Os estudantes de classes populares ingressam na Universidade com fragilidades das condições de estudo na educação básica e dos seus percursos de vida e, em certas circunstâncias, concluem a graduação sem a devida apropriação dos saberes correspondentes às exigências básicas do perfil requerido ao egresso em um curso Superior, situação que se agrava ainda mais quando se trata da formação de licenciados, visto que na precarização da formação dos professores1 está implícito o risco de fragilizar as práticas de ensino e de aprendizagem, sobretudo nas escolas frequentadas por estudantes das classes populares. Com essas preocupações, somadas à percepção de que nem sempre conseguimos alcançar sucesso na mediação dos conhecimentos com os estudantes que apresentam fragilidades nos seus percursos escolares, refletimos sobre a incompatibilidade entre o modo como o saber é socializado na academia e as dinâmicas de aprendizagens dos estudantes de classes populares. Destas preocupações emergiu o desejo de nos debruçar sobre as formas de socialização de saberes das comunidades populares, ou as diversas pedagogias que emanam das inúmeras maneiras de organização da vida e de resistência dos coletivos, que reagem às constantes formas de exploração da vida humana.

Neste sentido, buscaremos identificar e compreender possibilidades de construção de pontes entre os saberes produzidos nas comunidades onde esses estudantes estão inseridos e os saberes socializados na academia, perspectivando identificar indicadores de uma proposta didático-pedagógica que alcance os estudantes na condição em que eles se situam, o que não pode prescindir do constante diálogo entre os saberes e as disposições para aprendizagens construídas pelos licenciandos em suas itinerâncias formativas.

As fronteiras para a apropriação do conhecimento continuam existindo e, como menciona Dubet (2008, p. 31), “[...] os grupos mais favorecidos dominam melhor as estratégias e os recursos educativos”. E, se estes grupos lidam melhor com o conhecimento escolarizado, consequentemente saberão como mobilizar seus jovens a favor do êxito nos estudos. Na contramão desta realidade, as famílias de classes populares, por vezes, não têm condição de acompanhar seus filhos nas demandas escolares e não sabem como agir ou, como infere Dubet (2008), pensam que mobilizar os filhos para acessar as melhores oportunidades oferecidas pela escola não é uma tarefa de sua competência.

O que temos observado, com frequência, é que as pessoas pouco familiarizadas com a linguagem acadêmica adentram a Universidade e, constantemente, são desafiadas a construir pontes, nem sempre satisfatórias, para se aproximarem dos saberes socializados na universidade. Com esta problematização não queremos negar a responsabilidade dos estudantes em participar do movimento de fusão de horizontes para promover o encontro dos saberes produzidos em suas comunidades com os saberes que circulam na academia, todavia esta tarefa não pode ser delegada somente aos discentes. Trata-se de aprender com as pessoas das comunidades populares as suas dinâmicas de produção de saberes, para fugir do que Coulon (2008) chamou de má fé institucional. Neste caso, a má fé institucional estaria diretamente relacionada com um modo da instituição de ensino superior se apresentar ao estudante, em que o ‘estranhamento’ do novo espaço de convivência não é canalizado para o encontro de saberes, mas, tacitamente, é estabelecida a sobreposição dos saberes acadêmicos. O estranhamento faz parte do processo, contudo, a estrutura organizacional da instituição não pode significar motivo de afastamento dos alunos da comunidade acadêmica; o movimento de conexão de saberes acaba sendo de responsabilidade do estudante, dificultando, assim, os processos de ensino e de aprendizagem, o que resulta em prejuízos na afiliação à comunidade acadêmica e, como afirma Coulon (2008), não se ajuda o sujeito aprendente a entrar no ofício de ser estudante.

Nestas circunstâncias, a nossa intenção se orienta na tentativa de buscar soluções para um problema que, ao longo da história, vem se perpetuando e afeta, sobremaneira, as pessoas das classes populares. Trata-se da não aprendizagem ou baixa aprendizagem dos saberes socializados no espaço acadêmico. Convivemos com as constantes queixas de professores que identificam as dificuldades dos estudantes, muitas vezes vinculadas às deficiências da educação básica, mas não encontram alternativas plausíveis para resolver tais entraves e, assim, seguimos em direção à conclusão dos cursos, com relatos contundentes de estudantes que, tendo desenvolvido compromisso ético com a sua formação, não escondem a angústia pela consciência de não ter apreendido os conhecimentos que julgam indispensáveis para o exercício da profissão escolhida, isto sem falar naqueles que sequer tem consciência das fissuras de seus percursos escolares acidentados. Esta realidade aponta para a urgência de investimentos didático-pedagógicos, os quais entendemos requisitarem informações acerca das itinerâncias formativas dos sujeitos aprendentes, compreendendo que a aproximação desta realidade, além de nos situar nas suas dinâmicas de socialização de saberes, evidenciará também aspectos relevantes das dimensões socioeconômicas, políticas e culturais dos estudantes e de seus grupos sociais, fundantes para a organização de uma proposta pedagógica conectada com as formas de organização de aprendizagem dos sujeitos que aprendem. Para isso, realizamos uma pesquisa bibliográfica, construída por meio do diálogo com autores que discutem os conceitos apresentados no estudo, para que nos fosse possível adensar teoricamente a discussão levantada neste texto.

A relação com o saber e a produção de não existência

A busca investigativa de compreender o modo de apropriação de saberes de licenciandos da Educação do Campo remete a uma tentativa de aproximação do conjunto de relações estabelecidas por estudantes e como estes saberes se relacionam para dialogar com o saber considerado por Bourdieu (2007) como “saber legitimo”, específico de uma profissão, priorizado na academia.

A relação com o saber é a relação com o mundo, com o outro e consigo mesmo de um sujeito confrontado com a necessidade de aprender. A relação com o saber é o conjunto das relações que um sujeito estabelece com um objeto, um “conteúdo de pensamento”, uma atividade, uma relação interpessoal, um lugar, uma pessoa, uma situação, uma ocasião, uma obrigação etc, relacionados de alguma forma ao aprender e ao saber - consequentemente, é também relação com a linguagem, relação com o tempo, relação com a atividade no mundo e sobre o mundo, relação com os outros e relação consigo mesmo, como mais ou menos capaz de aprender tal coisa, em tal situação (Charlot, 2005, p. 45).

O modo como cada sujeito se articula para apreender algum conteúdo é, de certa forma, a expressão de como ele se articula para construir a sua relação com o mundo. Portanto, enquanto o sujeito se confronta com a necessidade de aprender, ele mobiliza o seu modo de estabelecer relações com tempo, com a terra, com suas dinâmicas de vida cotidiana, mobilizando a sua própria existência. Nestes termos, recorremos a Bernad Charlot (2005) para afirmar que o ato de aprender é individual e a aprendizagem de um determinado conteúdo não se faz com a ausência de sentido e muito menos com a separação do ‘eu epistêmico do eu empírico’.

Na situação específica do processo de formação de professores da Educação do campo, não é possível desconsiderar as formas de organização e as estratégias de produção de vida dos povos do campo, uma vez que não se trata de mediar uma formação para distanciar os sujeitos das suas vidas cotidianas, mas de fortalecer e criar melhores possibilidades de convivência com a realidade. O sujeito que aprende é, também, o sujeito que tem singularidade e vive um cotidiano específico. De acordo com Charlot (2005, p. 45), a aprendizagem é um processo individual, mas não prescinde da mediação de outras pessoas, “É o sujeito que aprende, mas ele só pode aprender pela mediação do outro e participando de uma atividade”. Isto nos faz problematizar o desafio posto ao professor formador, no sentido de entender a maneira como os sujeitos se articulam em suas redes de relações, para mediar os saberes acadêmicos de modo que os conhecimentos socializados na academia sejam alcançados também por estudantes que apresentem alguma lacuna na sua trajetória formativa. Essa construção de pontes entre os saberes populares e os saberes acadêmicos pode contribuir para criar políticas de sentido que viabilizem o envolvimento do indivíduo, na sua inteireza, no desenvolvimento da atividade intelectual, significando assim o seu estar no espaço da Universidade. É um percurso que pressupõe a inventividade no diálogo entre saberes interculturais, para a apropriação do ‘saber legítimo’ efetivamente fazer sentido para o educador em formação, o que pode favorecer a aprendizagem de uma atitude profissional sensível as diferentes realidades em que os processos educativos podem ser materializados.

De acordo com Arroyo (2014), isso não se faz desvinculado de um reconhecimento de quem são os sujeitos que adentram a escola e quais as formas de produção de desumanização a que foram submetidos ao longo da história, ao tempo em que cabe pensar nas matrizes formativas que os fazem resistir à condição de opressão, que, mesmo em condições adversas de trabalho e de produção da vida, se “[...] produzem como sujeitos sociais, culturais, éticos, humanos” (Arroyo, 2014, p. 35). Nesta discussão, o referido autor afirma ser urgente compreender as Pedagogias que emanam das formas de produção da vida no campo e nas periferias das cidades, da pluralidade de ações coletivas, organizações populares que se inscrevem como possibilidades de fazer frente às Pedagogias que produziram a invisibilidade dos grupos em condição de exclusão. De acordo com Arroyo (2014, p. 37),

Os grupos sociais, étnicos, raciais carregam para seus movimentos e para as escolas vivencias de como foram pensados e alocados na ordem social, econômica, política, cultural e pedagógica. Vivencias de resistências, de aprendizado. Vincular Outros Sujeitos com outras Pedagogias supõe indagar quem são esses Outros na especificidade de nossa história e reconhecer com que Pedagogias foram inferiorizados e decretados inexistentes, mas também com que pedagogias resistem e se afirmam existentes ao longo da história.

Essas Pedagogias trazem a exigência da compreensão do trabalho como princípio educativo e nos interpelam a uma maior aproximação dos movimentos sociais, para perceber em que medida as suas Pedagogias podem nos aproximar de formas de mediação de conhecimentos mais compatíveis com o fortalecimento da produção da vida dos estudantes das escolas do campo. Isto pressupõe evidenciar as redes de socialização de sabres construídas nas dinâmicas de produção da vida dos professores em processo de formação, para identificar e compreender possibilidades de construção de pontes entre os saberes produzidos nas comunidades onde estão inseridos e os saberes socializados na academia. Isso nos traz o imperativo de fortalecer o debate sobre os princípios que fundamentam a educação do Campo e transitar pelas redes de cooperação social que supomos serem parte do tecido de sustentação dos estudantes em suas trajetórias acadêmicas. Para situar a ideia de rede de cooperação, tomamos como referência os estudos do sociólogo alemão Nobert Elias (1994), quando assume o desafio de compreender a relação entre indivíduos e sociedade, tomando como metáfora a ideia de rede.

O autor recorre ao conceito de rede de tecido, para especificar a interligação de fios isolados na construção da forma de rede. Ressalta que

[...] nem a totalidade da rede nem a forma assumida por cada um de seus fios podem ser entendidos em termos de um único fio, ou mesmo de todos eles, isoladamente compreendidos; a rede só é compreensível em termos da maneira como eles se ligam, de sua relação recíproca (Elias, 1994, p. 35).

Assim, a composição do tecido da rede não suprime as particularidades dos fios que a compõem. Isto significa dizer que a ideia de rede precisa ser compreendida considerando o modo como os fios se interconectam para dar forma ao todo, e isso não se faz fora de uma prática colaborativa.

Uma rede de cooperação social constitui-se, portanto, como resultado de ações visíveis ou invisíveis que se interligam em uma dinâmica de trocas. Trocas que não podem ser mensuráveis; cada um oferece o que tem de melhor para cooperar com o alcance de um determinado objetivo (Pimentel, 2002). Como nas redes de relações entre indivíduos e sociedade, as formas de cooperação social são singulares porque, sendo expressas por sujeitos individuais, cada um parte de um ponto único, com as singularidades próprias do modo como cada sujeito conduz o seu estar sendo. Assim, uma rede de cooperação não pode ser compreendida como um todo homogêneo, sem considerar o papel dos fios interligados, os quais tecem a rede de cooperação com as particularidades das pessoas que intercambiam seus recursos colaborativos, sejam eles sociais, materiais e imateriais. Todavia, na perspectiva de um fazer acadêmico que não reconhece as formas de construção de saberes dos grupos pauperizados, o que deveria ser uma possibilidade de inclusão social acaba se transformando no reforço da sub cidadania que acomete as populações das classes populares.

Pimenta e Anastasiou (2008, p. 179) consideram que “[...] a prática educativa é um traço cultural compartilhado que tem relações com o que acontece em outros âmbitos da sociedade e de suas instituições”. Portanto, os nossos movimentos em torno de pesquisa das dinâmicas de socialização de saberes na academia precisam se impor como caminho para transformação das práticas que se constituem traços institucionais de um modo de fazer universidade que admite a perpetuação da não aprendizagem dos conhecimentos requeridos nessa etapa formativa.

Essa negação do direito à aprendizagem pode ser problematizada na perspectiva das reflexões do sociólogo Boaventura de Souza Santos (2010), quando trata das formas de produção de ‘não-existência’. Ao trazer para o cenário algumas lógicas de racionalidade, o referido autor critica a lógica da ‘razão metonímica’, compreendida como “[...] a razão obcecada pela ideia da totalidade sobre a forma de ordem” (Santos, 2010, p. 97). Uma razão que se pensa completa, exclusiva e que consegue contrair as experiências sociais do mundo, quando determina uma escala homogênea de valores e considera formas de pensar diferentes como não existentes. Santos (2010) evidencia que, embora na contemporaneidade a razão metonímica encontre-se desacreditada, ela ainda é predominante e, portanto, constrói modos de produção de não existência com lógicas diversas, que, porém, sintonizam-se (unem-se), por fazerem parte da mesma manifestação de ‘monocultura racional’. Para explicar os modos de produção de não-existência, Santos (2010) destaca cinco lógicas específicas:

a) a ‘monocultura do saber’ que toma a ciência moderna e a ‘alta cultura’ como único critério de verdade e de estética. “Tudo que o cânone não legitima ou reconhece é declarado inexistente” (Santos, 2010, p. 103);

b) a ‘lógica da classificação social’, que prevê ‘a monocultura da naturalização da diferença’;

c) a ‘monocultura do tempo linear’: a história tem somente um sentido, uma direção, e estes são conhecidos. De acordo com o autor, a direção e o sentido dessa lógica tem sido formulada com o referencial da globalização, crescimento, desenvolvimento, dentre outros, tendo em comum seguir os países centrais do sistema mundial e, portanto, as instituições, formas de conhecimento, sociabilidade defendidos por este bloco de países. Assim, tudo o que é assimétrico às normas temporais validadas pelo referido núcleo de referência é considerado não existente;

d) a lógica da ‘escala dominante’ - esta estabelece uma escala primordial e todas as escalas que fogem ao padrão da preponderante são consideradas não existentes;

e) já o modo de produção de não existência ‘produtivista’ é sustentado pela monocultura dos critérios de produção capitalista, o que significa ser a maximização do lucro a única forma concebível de produção, pois o crescimento econômico é o referencial da lógica produtivista.

Tais lógicas produzem modos de não existência representados por “[...] o ignorante, o residual, o inferior, o local e o improdutivo” (Santos, 2010, p. 104). Encontramos estas lógicas de produção da não existência, sobretudo aquelas da ‘monocultura do saber’ e da ‘classificação social’, impregnadas na maneira de conduzir as práticas pedagógicas na academia e nas relações com os estudantes ditos ‘inaptos’ a se apropriarem dos conhecimentos acadêmicos da maneira homogênea ao que historicamente se concebe o fazer educativo na Universidade.

A lógica da classificação social produz a não-existência como forma de “[...] inferioridade insuperável porque natural” (Santos, 2010, p. 103), de maneira semelhante à compreensão de Bourdieu (2007), quando trata da ocupação dos espaços sociais. Na realidade, muda-se o tipo de exclusão, mas os efeitos da naturalização dos processos excludentes são igualmente devastadores. Por conta desse fator, este modo de não existência se sustenta com a categorização das populações, de modo que naturalizam-se hierarquias e conviver com a realidade dos estudantes que passam pela universidade sem desenvolver as habilidades intelectuais requeridas na educação superior. Esta dicotomia já não configura motivo de estranhamento suficiente para o encontro de condições que permitam superar as lacunas deixadas pela precariedade de seus percursos de vida e da educação básica. Lacunas que remetem às injustiças históricas e sociais, apontadas por Santos (2010) como injustiças cognitivas, vinculadas às formas globais de injustiças sociais. Para Santos (2010, p. 22), “[...] não existe justiça social global sem justiça cognitiva global”. A busca deste conceito extrapola o desejo de encontrarmos uma expressão adequada para tratar das situações de não aprendizagem vivenciadas pelos estudantes. Isso faz parte de uma escolha epistemológica que propõe a desconstrução de um tipo de concepção instrumental cognitiva, a qual se pensa completa, invizibilizando tempos de aprender, injustiças sociais globais e negando a inventividade de outros modos de se relacionar com o modelo cognitivo hegemônico.

Com esta escolha política, estamos colocando em questão os conceitos de dificuldade de aprendizagem operados com preponderância no universo da educação brasileira, o qual tende a atribuir ao sujeito aprendente a responsabilidade única por seus insucessos nos estudos. Nesta problematização, vislumbramos um pensamento que, como afirma Santos (2010, p. 27), “[...] tem como premissa a ideia da diversidade epistemológica do mundo, o reconhecimento da existência de uma pluralidade de formas de conhecimento além do conhecimento científico”. Pensamento conceituado pelo referido autor como ‘pós-abissal’, ou o que encontra-se do outro lado da linha que reúne os saberes do cânone ocidental (a ciência, a filosofia e a teologia). Todavia, não se trata de substituir racionalidades, mas de não tornarmos não existentes os saberes não legitimados pelo cânone e estabelecer o diálogo, inclusive com a ciência moderna.

Retomamos as reflexões de Charlot (2005) sobre o reconhecimento de que o ato de apropriação dos saberes é uma prática individualizada: ‘é o sujeito que aprende’, mas esse feito não pode ser concretizado sem a mediação de outras pessoas ou de alguma atividade. Na mesma perspectiva, Freire (2005) defendia a interação entre as pessoas como algo imprescindível nas relações educativas. “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (Freire, 2005, p. 78).

Ao tratar da ação mediadora, enquanto processo constitutivo da aprendizagem, Freire questiona o paradigma da educação bancária, ao tempo em que problematiza os papéis de estudantes e educadores na interação com o objeto cognoscível. Ao afirmar que os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo, ele nos provoca a pensar na relevância dos conhecimentos legitimados (saberes do cânone), como direito e possibilidade de emancipação social, sem, contudo, deixar de problematizar o modo como o educador conduz a mediação. Isto traz a urgência de se pensar o educador como sujeito em contínuo processo de aprendizagem. Na arte de ser professor se aprende sempre: aprendemos quando estudamos para planejar as nossas aulas, aprendemos, sobretudo, quando enxergamos o estudante como o Outro da nossa dinâmica de ensinar e aprender.

A grande arte do educador é descobrir pontes para estabelecer um diálogo compreensível entre os saberes do mundo do estudante (suas formas de ler o mundo) e os objetos cognoscíveis, “[...] que, na prática ‘bancária’, são possuídos pelo educador que os descreve ou os deposita nos educandos passivos” (Freire, 2005, p. 79, grifo nosso). Com esta reflexão, somos interpelados a pensar: de que maneira os saberes acadêmicos podem dialogar com os saberes produzidos nas comunidades populares, para não produzirmos o que Freire (2005) denomina de autodesvalia2 no estudante? Quais pedagogias da vida produtiva favorecem a produção de sentido dos saberes socializados na academia? De acordo com pesquisas desenvolvidas pelo sociólogo Bernard Charlot (2005, p. 41), entendemos ser imprescindível descobrir “[...] como o sujeito categoriza, organiza seu mundo, como ele dá sentido a sua experiência e especialmente à sua experiência escolar [...]”, reconhecendo isso como elemento determinante para repensarmos a formação de professores, a formação continuada de professores formadores e, consequentemente, construirmos um projeto educativo conectado com o diálogo entre os saberes acadêmicos e os modos de construir conhecimentos pelos estudantes, nas suas redes de socialização de saberes, que, sem dúvidas, fazem parte da vida produtiva dos sujeitos e se configuram como forma de produção da vida.

Considerações finais

Enveredar pelo caminho do encontro de saberes acadêmicos e populares constitui-se tarefa desafiadora, uma vez que questionar a racionalidade preponderante na universidade não tem sido uma prática comum e o debate acerca de como as pessoas das classes populares socializam seus saberes e as implicações dessa articulação para aprendizagem dos saberes formais ainda se configura como realidade pontual, quase invisibilizada. O fato é que, com o ingresso de um número mais significativo de pessoas das classes populares na educação superior, a demanda por compreender como os sujeitos organizam suas aprendizagens emerge com muita força.

Observamos que, pela pouca habilidade de quem media os saberes acadêmicos ou pela pouca familiaridade com o universo dos saberes dos estudantes das classes populares, a academia acaba por seguir invisibilizando as possibilidades de diálogos com os modos de socialização de saberes das comunidades populares, deixando aos estudantes a responsabilidade por fazer acontecer esta fusão de horizontes. Quando esta fusão não pode se consolidar sem a mediação do professor ou de um colega mais experiente, a tendência é seguir na batalha para concluir o curso sem a devida apropriação dos saberes definidos como indispensáveis à formação dos estudantes, nas especificidades dos cursos escolhidos. No caso especifico da Educação do campo, significaria não gerar o impacto necessário à melhoria da qualidade do ensino e da aprendizagem ofertada nas escolas campesinas, retardando ainda mais uma prática pedagógica significativa para as pessoas que vivem e trabalham no campo brasileiro. Outra implicação da fragilidade da formação dos educadores do campo seria o esvaziamento das escolas e a geração de justificativas, plausíveis, para legitimar a prática avassaladora de fechamento das unidades escolares do campo. Isso para não falar dos prejuízos indiretos, a exemplo do enfraquecimento da agricultura familiar, o desequilíbrio ambiental, tão frequente nos espaços em que o campo é esvaziado e o agronegócio, muitas vezes, dita as regras da vida no campo ou a sua destruição.

Com estas percepções, não queremos negar a importância dos programas e projetos implementados para dar suporte ao estudante com fragilidades no desempenho acadêmico; reconhecemos a relevância dessas ações; contudo, defendemos ações mais contundentes e mais conectadas, no que se refere ao encontro dos saberes das pessoas diretamente envolvidas com as dinâmicas de ensino e de aprendizagem, para efetivamente criarmos condições de pertencimento ao espaço universitário e a edificação de pontes entre os diversos saberes, permitindo que estes circulem como experiência de produção de existências.

Na medida em que o docente compreende as formas como os sujeitos categorizam e significam os seus conhecimentos, reconhece também o discente como o interlocutor de saberes que são diferentes, mas indissociáveis para a concretização de aprendizagens. Pensando por esta perspectiva, podemos, assim, ensaiar a construção de uma lógica de construção de conhecimento que, ao caminhar na contramão da ‘razão metonímica’, deixa emergir outras formas de conceber o tempo, a história, a racionalidade, as ‘Pedagogias da vida produtiva’ (Arroyo, 2014) - Pedagogias que emergem das lutas cotidianas dos coletivos populares. Deste modo, a experiência de produção de não existência, tantas vezes vivenciada pelos estudantes de classes populares, pode se transformar em um projeto emancipador que faz da vivência acadêmica um movimento de produção de existências e, portanto, do sentido de existir. Para tanto, é fundamental continuar investindo em pesquisas que nos ajudem a aprofundar os conhecimentos acerca dos saberes acionados pelos diversos sujeitos em processo de formação (inicial ou continuada), compreendendo a importância do trabalho coletivo dos professores formadores para a construção das pontes de encontro de saberes, em vista de fazermos acontecer uma experiência educativa que, na sua inteireza, possa se configurar como uma prática libertadora, construída na tessitura de uma rede entrelaçada pela diversidade dos sujeitos e das experiências, que os fazem parte desta tessitura complexa.

Referências

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1Importante ressaltar que não estamos considerando a precarização da formação de professores como o único fator responsável pela baixa qualidade da educação, mas estamos reconhecendo a importância de uma boa formação inicial para gerar mudança nas práticas educativas das escolas do campo.

2Freire (2005) utilizava o termo autodesvalia para se referir a introjeção que os oprimidos fazem “da visão que deles têm os opressores”. Neste caso específico, recupero a expressão de Freire para tratar da introjeção, por parte de alguns estudantes, da desqualificação dos saberes produzidos nas comunidades populares.

Recebido: 17 de Outubro de 2017; Aceito: 03 de Julho de 2018

*Autor para correspondência. E-mail: klaytonuesb@hotmail.com

Idalina Souza Mascarenhas Borghi: Doutora e Mestre em Educação pela Universidade Federal da Bahia- UFBA. Licenciada em Pedagoga pela Faculdade Integrada Olga Metting. Professora adjunta (A) da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Tem experiência na área de Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: Formação de professores, Educação de Jovens e Adultos e Políticas públicas na Educação Superior. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0724-920X E-mail: ismborghi@gmail.com

Klayton Santana Porto: Doutor e Mestre em Ensino, Filosofia e História das Ciências pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Educação Inclusiva e Especial pela Faculdade do Noroeste de Minas e especialista em Mídias na Educação pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB. Licenciado em Física pela UESB. Professor adjunto (A) da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Participa de projetos de pesquisa que envolvem investigação em ensino-aprendizagem de conteúdos de Ciências, Física e Matemática com ênfase no desenvolvimento de metodologias qualitativas e quantitativas de avaliação da aprendizagem, no uso da Argumentação e no uso de TIC no contexto educacional e na formação inicial e continuada de professores de Ciências da Natureza, Física e Matemática. Tem experiência na área de Física, Matemática, Educação do Campo, Educação Inclusiva e Especial, com ênfase em Ensino de Ciências e de Matemática. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4024-6737

NOTA: Os autores Idalina Souza Mascarenhas Borghi e Klayton Santana Porto foram responsáveis pela concepção, análise e interpretação dos dados; redação e revisão crítica do conteúdo do manuscrito e ainda, aprovação da versão final a ser publicada.

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