Introdução
O objetivo deste ensaio é analisar quais os principais mitos - que funcionam como ‘obstáculos epistemológicos’ - que se fazem presentes nos discursos a respeito da interdisciplinaridade e indicar as potencialidades como elementos que possibilitam a compreensão do conhecimento e de seus processos. Primeiramente, afirma-se a concordância com Bachelard (1996, p. 17) quando diz que “[...] é em termos de obstáculos que o problema do conhecimento científico deve ser colocado [...]” e quando reforça que tais obstáculos não são meramente objetivos (complexidade e fugacidade) ou subjetivos (fragilidade dos sentidos e do espírito humano); são, sim, intrínsecos ao ato de conhecer e se mostram como uma “[...] espécie de imperativo funcional, lentidões e conflitos [...]”, isso é, fazem parte do ato de conhecer ou de produzir conhecimento, como uma condição obrigatória, prática, vagarosa e conturbada, a qual é, por Bachelard, denominada de ‘obstáculos epistemológicos’.
Desse modo, os obstáculos são parte integrante do ato de conhecer e, por consequência, “[...] o conhecimento do real é sempre luz que projeta algumas sombras” (Bachelard, 1996, p. 17), o que implica reconhecer que o ímpeto natural de conhecer não é alcançado em sua plenitude, pois é um processo sempre parcial e imperfeito que trata do contingente, e que, pelo prazer da certeza fácil, agarra-se às ‘compreensões primeiras’, fazendo afirmações que funcionam como empecilho para a compreensão. É nessa direção que se formam os mitos interdisciplinares, que são afirmações e sentenças apressadas a respeito da interdisciplinaridade, que funcionam como obstáculos à construção de novas formas de compreensão e ação.
A história é reveladora de tais equívocos e reforça a tese bachelardiana de que o ato de conhecer é destruidor e retificador, afirmando que “[...] o ato de conhecer se dá contra um conhecimento anterior, destruindo conhecimentos mal estabelecidos, superando o que, no próprio espírito, é obstáculo à espiritualização” (Bachelard, 1996, p. 17). Assim, o sujeito que conhece ao mesmo tempo em que reconstrói e retifica o seu conhecimento do mundo, reconstrói as próprias estruturas e as condições que lhe permitem conhecer, por isso, o espírito para ser científico precisa ser capaz de reconstruir o próprio saber, autoformar-se. É nessa direção que se considera salutar enfrentar alguns mitos gestados na polissemia do conceito de interdisciplinaridade, quais sejam: (i) é necessário acabar com as disciplinas; (ii) tudo pode ser estudado de forma interdisciplinar; (iii) a reunião de especialistas caracteriza a interdisciplinaridade; (iv) pesquisa qualificada é somente a interdisciplinar; (v) existe uma verdadeira interdisciplinaridade.
Nesse sentido, nos propomos, na primeira parte deste texto, a tratar desses mitos. Para tanto, superando o obstáculo da ‘compreensão primeira’, indicamos alguns caminhos que podem ser percorridos no sentido de ressaltar o potencial crítico e criativo da interdisciplinaridade por meio da compreensão dialética entre epistemologia e metodologia interdisciplinar e assinalamos questões importantes no que concerne ao exercício da vigilância epistemológica na produção do conhecimento, que comporá a segunda parte de nosso texto.
A pesquisa desenvolvida caracteriza-se, quanto aos seus objetivos, como exploratória, e, quanto aos procedimentos, como bibliográfica. Metodologicamente, consiste numa análise teórica, buscando elucidar a problemática posta pela seguinte pergunta orientadora: Quais são os principais mitos presentes nos discursos a respeito da interdisciplinaridade e que potencialidades podem ser produzidas a partir da sua compreensão? A construção do problema, assim como as alternativas criadas para o seu enfrentamento, se efetivaram junto ao Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Superior (GEPES/UPF1), que desenvolve o projeto de pesquisa Interdisciplinaridade, docência universitária e políticas educacionais (2016-2018). O projeto tem como objetivo geral compreender os fundamentos epistemológicos e paradigmáticos que perpassam a docência universitária na perspectiva da interdisciplinaridade, tendo em vista os desafios do atual cenário da expansão da educação superior, suas fragilidades e suas possíveis consequências para os processos formativos. Dentre as atividades desenvolvidas, destacam-se as leituras sistemáticas, que ocorrem nos encontros quinzenais do grupo de estudo, composto por doutorandos, mestrandos, bolsistas de iniciação científica, alunos da graduação e professores da educação básica, da graduação e da pós-graduação em nível de stricto sensu. No ano de 2016, no Programa de Pós-Graduação em Educação (Mestrado e Doutorado) da Universidade de Passo Fundo, Rio Grande do Sul, Brasil, foram ofertadas duas disciplinas de leituras dirigidas (Bachelard e a educação; Ambições e limites da interdisciplinaridade), as quais muito contribuíram para o movimento de pesquisa em torno da problemática dos mitos e da potencialidade da interdisciplinaridade.
A polissemia do conceito de interdisciplinaridade e seus mitos
Dispor-se a tratar do conceito de interdisciplinaridade exige a disposição de enfrentar um conceito polissêmico que tem a sua gênese ligada às iniciativas que buscavam propor uma nova forma de compreensão a respeito do conhecimento e sua produção, como alternativa ao trabalho disciplinar. Sommerman (2015), em pesquisa realizada nos campos da educação, da saúde e do ambiente, destaca o aparecimento do termo como substantivo e como adjetivo. O filósofo e educador mostrou que, em livros, o termo aparece como substantivo em 1874 e como adjetivo em 1890; em artigos como substantivo, começa a aparecer na década de 1970 e como adjetivo na década de 1980. Enquanto substantivo, busca nomear; enquanto adjetivo, qualificar. É possível perceber que inicialmente os esforços estão ligados ao ato de nomear e qualificar uma nova forma de interação e articulação entre as disciplinas (forjadas historicamente na tentativa de organizar o conhecimento produzido) de modo a contribuir para o avanço do conhecimento. A partir de tal nomeação, se passa a qualificar como interdisciplinares as pesquisas, as práticas, os sujeitos, os projetos, os currículos e o conhecimento, os quais fogem da perspectiva monodisciplinar (uma disciplina), multidisciplinar (muitas disciplinas que coexistem e se reconhecem, porém, sem trocas entre si) e pluridisciplinar (há trocas muito pontuais e eventuais entre as disciplinas, as quais podem estar ligadas ao objeto, método e/ou sujeito).
Transcorridos 46 anos do primeiro evento, realizado em setembro de 1970 (1º Seminário Internacional sobre a pluridisciplinaridade e a interdisciplinaridade), na França, e das primeiras aparições do termo como substantivo/adjetivo, ainda se percebem dificuldades conceituais na definição do que é o ‘interdisciplinar’ e na qualificação de conhecimentos, objetos, métodos, práticas e sujeitos como interdisciplinares. Sommerman (2015) nos ajuda a percorrer esse caminho destacando as contribuições pioneiras de Gusdorf na década de 1960; de Piaget e Jantsch na década de 1970; de Klein em 1990; de Repko no final da década de 2000, dentre outros que figuram como marcos no cenário internacional. No cenário brasileiro, têm destaque as iniciativas de Hilton Japiassú e Ivani Fazenda, iniciadas na década de 1970 e que ainda hoje são referenciais imprescindíveis nas pesquisas sobre interdisciplinaridade. A leitura da obra de Japiassú2 Interdisciplinaridade e patologias do saber (1976) e das obras de Fazenda3 Integração e interdisciplinaridade no ensino brasileiro: efetividade ou ideologia (1979), Interdisciplinaridade - um projeto em parceria (1991),Práticas Interdisciplinares na escola (2001) e Interdisciplinaridade: história, teoria e pesquisa (1994) são referência obrigatória para reconstruir a trajetória precursora do debate epistemológico e educacional sobre a temática no Brasil.
Ao retomar as definições e classificações feitas por tais estudiosos, Sommerman (2015) afirma que é possível extrair uma compreensão ou definição comum que inclui interação entre disciplinas de forma coordenada e prolongada, a fim de resolver um determinado problema complexo que não pode ser resolvido pela via monodisciplinar. Desse modo, ocorreria “[...] integração dos discursos; criação de uma terminologia comum; formulação de uma metodologia comum; geração de um conhecimento novo” (Sommerman, 2015, p. 208). Assim, um simples processo de aproximação, comunicação e trocas entre as disciplinas ficaria no nível da multidisciplinaridade (coexistência) e da pluridisciplinaridade (trocas pontuais e eventuais), as quais podem funcionar como o dispositivo inicial para o processo interdisciplinar.
A interdisciplinaridade não tem como fim criar uma nova disciplina, porém, isso pode acontecer devido ao alto grau de dependência entre as disciplinas na explicação e compreensão do problema em questão. Sommerman (2015) destaca, ainda, que pode haver uma ‘pequena’ e uma ‘grande’ interdisciplinaridade. A primeira ocorre entre categorias próximas de uma mesma área do conhecimento, e a segunda, por categorias distantes, de diferentes áreas.
Esses apontamentos nos ajudam a combater o primeiro mito ligado à interdisciplinaridade: (i) para que ocorra a interdisciplinaridade, é necessário acabar com as fronteiras entre as disciplinas. O que acontece é justamente o contrário, ou seja, pelo reconhecimento da necessidade de contribuição do conhecimento especializado no enfrentamento do problema em questão é que se busca a integração de outras disciplinas, seja na própria área ou fora dela. Dependendo dos resultados alcançados pela investigação, poderá, em decorrência das interdependências entre as disciplinas envolvidas, surgir uma nova disciplina. Do contrário, se contribui significativamente para ampliação do conhecimento do objeto em questão e com as disciplinas já existentes. Tal postura é reafirmada por Raynaut (2011) ao afirmar que a nossa capacidade de conhecer o mundo e a nós mesmos está amparada na construção de conceitos, métodos e modalidades de validação que são disciplinares. Isso implica reconhecer que antes de pensar em acabar com as fronteiras disciplinares é preciso reconhecer as inúmeras contribuições propiciadas pelo diálogo, pela cooperação e pela integração entre elas.
Nessa direção, é possível combater, também, o segundo mito: (ii) todos os objetos de pesquisa podem ser estudados interdisciplinarmente. Na visão de Raynaut (2011), não são todos os objetos que demandam a integração entre as diferentes disciplinas, o que é reforçado pela visão de Sommerman (2015), que, conforme pontuado anteriormente, chama atenção para o fato de que determinados problemas complexos que demandam um enfrentamento interdisciplinar. Desse modo, a pesquisa interdisciplinar é dependente da construção que se faz do objeto de estudo, assim como dos objetivos almejados com tal investimento, ressaltando que o julgamento de valor a respeito da pertinência de um estudo não se dá unicamente pelo critério interdisciplinar.
Essa consideração ajuda a enfrentar o terceiro mito: (iii) pesquisa qualificada é a desenvolvida de modo interdisciplinar. Cabe ressaltar que a visão interdisciplinar contribui significativamente para ampliação do conhecimento e de abertura de novas possibilidades investigativas, no entanto, é precoce e descuidada a afirmação de que somente as pesquisas interdisciplinares são qualificadas. Isso por dois motivos: primeiro porque é reconhecida a contribuição do conhecimento disciplinar para a geração de novos conhecimentos e para a inovação; segundo, porque muitas das pesquisas, pelas características e especificidades de seu objeto de estudo, podem suprir suas necessidades de diálogo com as outras disciplinas pela via pluridisciplinar sem que isso desqualifique suas contribuições.
Cabe reconhecer, nessa direção, que um dos méritos da construção de uma problemática de pesquisa está ancorado na capacidade de definir os limites entre aquilo que lhe diz respeito ou não (Raynaut, 2011), expresso pela delimitação do tema de pesquisa. A exigência de diálogo interdisciplinar se coloca, no entanto, como critério para avaliação de projetos e tanto pode resultar em uma colaboração positiva, conduzindo os pesquisadores ao desafio na construção de objetos interdisciplinares, quanto em um denominador negativo, levando-os à construção de arranjos improvisados e forçados de interações entre as disciplinas (modelo patchwork).
No primeiro, há o incentivo para novas buscas e formas de produção de conhecimento, o que contribui para a qualificação desse processo; no segundo, uma contribuição para a improvisação no seu sentido negativo4, que é arranjar ou inventar descuidadamente para atingir um determinado fim (Fávero & Tonieto, 2015). Integrar as disciplinas não é algo que se faz às pressas ou de modo arranjado, ocasional ou acidental; é, ao contrário, uma ação que demanda clareza epistemológica e metodológica aplicada à construção de um objeto de estudo. Nesse sentido, é um percurso preparado, arrematado e formalizado.
Nessa mesma direção surge o quarto mito: (iv) onde há a reunião de diferentes especialistas para tratar de algum tema, está ocorrendo a interdisciplinaridade: o que os especialistas têm a dizer sobre? O simples fato de especialistas estarem reunidos para discutir um tema ou problema em questão não garante a interdisciplinaridade, uma vez que esses estudiosos podem simplesmente externar compreensões a respeito do tema em questão, limitando-se a uma troca de informações ou partilha de conhecimentos, respaldada pela multidisciplinaridade. Não há, assim, a construção de um problema interdisciplinar, nem o reconhecimento da necessidade de integração entre as disciplinas com o propósito de produzir uma melhor compreensão a respeito da questão posta. Tampouco há a percepção sobre a necessidade do trabalho em equipe, de modo articulado. Essa postura, na abordagem de Pombo (2004), contribui para uma visão caricatural e superficial do que seja a interdisciplinaridade, reduzindo-a a um fazer espontâneo e de momento.
O quinto mito a respeito da interdisciplinaridade nasce da tentativa de superar a polissemia do conceito e das diversas formas que ela pode assumir: (v) existe uma verdadeira interdisciplinaridade, a partir da qual é possível qualificar pesquisas, práticas e sujeitos. Desse modo, as premissas que justificam tal conclusão são definidas a priori e a partir de uma única concepção de interdisciplinaridade, negando formas criativas e inovadoras de inseri-la no cotidiano da produção do conhecimento. Nesse sentido, vale retomarmos, ainda que de modo breve, duas concepções de interdisciplinaridade que nos ajudam a perceber que concepções fixistas funcionam como um entrave para o desenvolvimento da ideia de interdisciplinaridade.
A primeira é a concepção de Heckhausen (2006), que, ao falar de seis tipos de relações interdisciplinares, de acordo com o seu nível de maturidade teórica e metodológica: (1) heterogênea (combinação que se dá no nível do ensino, de modo a equilibrar a disciplinaridade); (2) pseudointerdisciplinaridade (combinação que se dá no nível da ciência e está ligada à concepção equivocada de que há uma interdisciplinaridade intrínseca/espontânea, por isso, limitando-se ao emprego dos mesmos instrumentos de análise); (3) composta (ligada ao campo profissional, se dá pela integração/articulação entre diferentes disciplinas para resolver um problema colocado pela sociedade); (4) auxiliar (ligada ao campo da ciência, em que as disciplinas intercambiam métodos e técnicas); (5) complementar (aparece nos limites/fronteiras disciplinares, caracterizando uma integração teórica); (6) unificadora (oriunda da coerência e da interdependência de disciplinas no nível e integração teórica e metodológica).
Partindo do critério da maturidade teórica e metodológica, Heckhausen (2006) mostra diversas possibilidades de realização da interdisciplinaridade, o que nos desafia à criatividade para potencializar tais espaços de integração possíveis nos campos do ensino, do exercício profissional e da ciência. Na visão de Alvarenga, Philippi Jr., Somermann, Alvares, e Fernandes (2011), Heckhausen busca compreender a interdisciplinaridade em si mesma, ou seja, busca caracterizá-la ou dizer o que ela é, definindo-a como relações possíveis de acontecerem entre campos disciplinares, as quais podem acontecer de uma forma mais elementar ou mais complexa, no entanto, está a acontecer, não estando restrita a uma forma/fórmula perfeita.
A segunda concepção é a de Lenoir (2011), que busca caracterizar a interdisciplinaridade escolar e a interdisciplinaridade científica. Para fazer essa distinção, o estudioso parte da concepção de que, apesar de semelhantes, as disciplinas científicas são diferentes das disciplinas escolares. As disciplinas científicas “[...] respondem a uma outra lógica de estruturação interna e possuem outras finalidades” (Lenoir, 2011, p. 47). Assim, a interdisciplinaridade escolar se relaciona com as disciplinas escolares e não com as disciplinas científicas. As distinções entre a interdisciplinaridade científica e escolar consideram: (1) finalidade - a científica busca a produção de novos conhecimentos e respostas para as demandas sociais, enquanto que a escolar tem como objetivos a disseminação do conhecimento e a formação humana, integrando aprendizagens e conhecimento; (2) objetos - a primeira tem como objeto as disciplinas científicas, a segunda, as disciplinas escolares; (3) modalidades de aplicação - a científica está ligada à pesquisa tendo como referência a produção do conhecimento, já a escolar está ligada ao ensino e à formação, tendo como referência o sujeito que aprende e sua relação com o conhecimento; (4) sistema referencial - a primeira volta para a disciplina como ciência; enquanto que a segunda volta à disciplina como matéria escolar não restrita ao arsenal científico; (5) consequência - a científica conduz à produção de novos conhecimentos e à criação de novas disciplinas, já a escolar leva à construção de novas ligações entre as matérias escolares (Lenoir, 2011).
Prossegue Lenoir (2011) observando que a interdisciplinaridade pode assumir duas perspectivas: a conceitual e a instrumental. A conceitual visa à unidade do conhecimento e a instrumental visa à resolução de problemas concretos, no entanto, apesar de a segunda ser mais comum e propagada, elas são complementares. Um dos espaços em que se pode perceber tal complementaridade é na interdisciplinaridade escolar, na qual é salutar manter a vinculação entre o epistemológico e o prático, a fim de evitar o idealismo que negligencia a realidade escolar e a visão técnico-instrumental em que as avaliações e valorações são estabelecidas pelo sucesso imediato. Desse modo, a interdisciplinaridade trabalha com três campos de operacionalização: investigado/pesquisa, professado/ensinado e praticado/aplicado. Na visão de Sommerman (2015), Lenoir, ao fazer a diferenciação entre a disciplinaridade científica e escolar, chama atenção para questões que geralmente não são consideradas por outros pesquisadores da interdisciplinaridade, tais como a origem do equívoco de transplantar para a escola o modelo verdadeiro de interdisciplinaridade realizado pelas disciplinas científicas sem considerar as especificidades das disciplinas escolares e dos problemas do cotidiano escolar.
Diante das contribuições trazidas até então para o enfrentamento dos mitos a respeito da interdisciplinaridade, buscamos mostrar, a seguir, as potencialidades da interdisciplinaridade enquanto campo teórico e prática em construção, aberto a novas possibilidades de compreensão e ação.
Potencialidades da interdisciplinaridade
Uma das potencialidades que se dá no enfrentamento da polissemia do conceito e de alguns mitos é a abertura para a criatividade. O reconhecimento de tal abertura não pode, contudo, ignorar as questões teóricas, epistemológicas e de aplicações envolvidas na produção do conhecimento e inovação quando se trata da interdisciplinaridade. Isso significa que é necessário compreender as classificações, ou as tentativas de alguns autores que se dedicaram e se dedicam à explicitação dos pressupostos que envolvem esse conceito, uma vez que esses estudiosos buscam a compreensão de questões centrais para o trabalho interdisciplinar.
Na visão de Alvarenga et al. (2011), se trata de enfrentar os desafios de compreensões apressadas que se reduzem a simples questões operacionais ou jogo de palavras, desconsiderando que se trata de objetos complexos e que, ainda que momentaneamente, as classificações devem ocupar a atenção, a fim de identificar o posicionamento epistemológico que lhe dá suporte. Nesse sentido, vale retomar as reflexões no sentido de que é a teoria que nos auxilia a projetar o que fazer, como fazer, para onde ir, para onde direcionar o interesse, o que observar e o que fazer com o percebido. Do mesmo modo, importante ter clareza de que é a partir de preceitos teóricos que se colocam e se constroem problemas (Fávero & Tonieto, 2016).
Desse modo, evita-se, como nos lembram Alvarenga et al. (2011, p. 48), “[...] o simples empirismo ao se tomar de maneira descontextualizada tais classificações, sem considerar o contexto e os pressupostos que as fundamentam [...]”, assim como o imobilismo, que, pelo seu apreço ao preciosismo teórico, não considera iniciativas ou experiências que exijam ajustes em seu arsenal interpretativo. Bachelard (1968) classificou essas posturas de ‘etiquetas clássicas’ e denunciou que elas funcionam como obstáculo ao desenvolvimento do pensamento científico, a partir da oposição empirismo/realismo x racionalismo/idealismo, vista como uma polarização epistemológica (Bachelard, 1968), ou seja, presume-se que, na produção científica, existem dois polos, e, numa visão ingênua, um representa a exclusão do outro. Porém, numa visão mais apurada, filosofica e cientificamente, há o reconhecimento de que ambos contribuem significativamente para o avanço da ciência, ou seja, um é o complemento do outro, o que torna necessário o movimento dialético.
Nesse contexto, se reconhece, de um lado, que o empirismo necessita de leis e princípios para ser pensado e ensinado; de outro, que o racionalismo precisa de experiências para mostrar sua capacidade de aplicação. Analogicamente, pode-se afirmar que a interdisciplinaridade precisa de leis e princípios para ser pensada e de experiências para mostrar sua capacidade de aplicação, isso é, precisa ser compreendida epistemologica e metodologicamente. Algumas experiências, como as relatadas por Pedro e Scheibe (2011); Beck et al. (2011); Oliveira Dziedzic, e Fernandes (2015) e Varella e Fazenda (2017), apontam para as possibilidades criativas abertas por uma concepção de interdisciplinaridade amparada no diálogo rigoroso entre a teoria e a prática interdisciplinar, em que as conquistas, os limites e os desafios são pensados dialeticamente e fomentados pela construção de objetos interdisciplinares em negação a receitas dogmáticas e fixistas.
Alinhada a essa primeira potencialidade, de pensar a abertura a novos modos de compreender e fazer a interdisciplinaridade, alimentada pelo diálogo epistemológico-metodológico, ressalta-se a vigilância epistemológica como a compreendeu Gaston Bachelard, ou seja, como uma segunda potencialidade da interdisciplinaridade. Para Bachelard (1977), não existe conhecimento por justaposição, mas organização e reorganização, chamadas de continuidades e descontinuidades epistemológicas, as quais podemos identificar no diálogo entre o disciplinar e o interdisciplinar, em um contexto no qual a continuidade do primeiro é condição para a gênese do segundo; entretanto, o segundo somente é possível pela ruptura com o modelo do primeiro (concepções de conhecimentos, objetos, métodos, pesquisas e práticas). Tal processo acontece sempre orientado pelo vetor epistemológico do ‘racionalismo aplicado’, o que implica necessariamente “[...] que um fato julgue um método [...]” e que “[...] um método tenha a sanção de um fato” (Bachelard, 1977, p. 97). Assim, toda noção ou conceito deve “[...] enfrentar uma dupla prova de valor [...]”, pois “[...] não é evidente que uma noção seja automaticamente clara em seus dois extremos filosóficos, em sua aplicação técnica e em sua pertinência teórica” (Bachelard, 1977, p. 45). Esse é o caso da interdisciplinaridade que, como noção/conceito provocador de rupturas e continuidades, precisa de esclarecimentos a nível epistemológico e metodológico.
A cientificidade do pensamento não é oriunda apenas de uma concepção epistemológica e da aplicação rotineira e mecânica de um método formalizado, mas também da capacidade da consciência de julgar a si mesma, ou seja, do modo como compreende e do método do qual se utiliza. Implica, portanto, uma vigilância epistemológica, a qual é, por Bachelard, classificada em três dimensões: vigilância de si, vigilância da aplicação rigorosa do método e vigilância do método.
A vigilância de si consiste nos cuidados teórico-metodológicos para a construção de um objeto, tendo consciência dos preparativos e dispositivos necessários para se adentrar na sua construção. Por isso, consiste numa análise crítica de si mesmo e dos processos de tomada de decisão em relação a seu objeto de estudo, o que implica reconhecer quais objetos de estudo podem - ou não - ser tratados de forma interdisciplinar. Constitui-se, assim, a partir da coragem de “[...] denunciar com segurança os erros e os símiles de compreensão” (Bachelard, 1977, p. 92). Assim, pode-se afirmar que a vigilância de si é a tomada de consciência do processo de produção do conhecimento e dos obstáculos inerentes a ele, pois implica a “[...] consciência de um sujeito que tem um objeto: e consciência tão clara que o sujeito e seu objeto se esclarecem ao mesmo tempo” (Bachelard, 1977, p. 93). A vigilância de si, no entanto, não basta por si própria, de modo isolado, pois também é necessário avaliar o método, visto que ele não tem valor em si mesmo. Seu valor é fruto de um julgamento sobre suas regras e sua aplicação. Esse é o momento da ‘vigilância elevada ao quadrado’, isso é, da vigilância elevada ao quadrado, que consiste na “[...] nítida consciência da aplicação rigorosa de um método” (Bachelard, 1977, p. 94).
Aplicar um método, desse modo, não significa apenas fazer cumprir um conjunto de regras e procedimentos, mas a capacidade de julgá-los e de avaliar o que acontece a partir de uma concepção de conhecimento (sua gênese e produção). Nessa direção, não existe o método interdisciplinar, mas métodos considerados mais pertinentes do que outros para conduzir uma investigação ou uma prática que se diga interdisciplinar. Entretanto, eles não são escolhidos aleatoriamente, mas por meio de um processo cuidadoso de análise e crítica de modo a fazer as melhores opções. No caso das escolhas interdisciplinares, nem sempre os métodos disponíveis dão conta dos desafios apresentados, sendo necessária a criação de novos métodos. Por isso, no nível interdisciplinar, não se trata apenas de aplicar um método, mas de construir um método respaldado por uma concepção epistemológica, uma vez que toda técnica, prática ou experimentação é sempre informada pela teoria (Bachelard, 1977). Por isso, é possível afirmar que não existe o método interdisciplinar, mas possibilidades metodológicas amparadas/orientadas por concepções epistemológicas.
Considerando tais elementos, a ‘vigilância elevada ao quadrado’5 atua “[...] esclarecendo as relações da teoria com a experiência, da forma com a matéria, do rigoroso com o aproximado: todas as dialéticas que exigem censuras especiais para que não passemos sem cautela de um termo ao outro” (Bachelard, 1977, p. 94). Levando em consideração todos esses nuances da vigilância ao quadrado, chega-se ao momento de julgar o próprio método, que consiste na ‘vigilância elevada ao cubo’.
Nas palavras de Bachelard (1977, p. 95), a ‘vigilância elevada ao cubo’ “[...] exigirá que ponha o próprio método à prova; exigirá que se arrisque na experiência as certezas racionais, ou que sobrevenha uma crise de interpretação de fenômenos devidamente constatados”. Esse é o momento da crítica aguda ou radical em que não se interroga somente o sujeito e o seu esforço de conhecimento, mas todos os seus antecedentes, ou seja, a cultura científica do ensino tradicional e a cultura normalizada pela razão. Assim, uma vigilância que questione criticamente e coloque à prova o próprio método, culmina na prontidão permanente do sujeito em relação às novas formas de manifestação do pensamento científico, seja na sua forma pedagógica, seja na sua normalização racional (Pepê, 1985). Nessa direção, as iniciativas interdisciplinares, quando levadas a feito, estão colocando à prova as suas certezas epistemológicas e metodológicas, defrontando-se com as facilidades e dificuldades, as quais exigirão, muitas vezes, que se reconstruam as bases teóricas e metodológicas da própria interdisciplinaridade.
A ‘vigilância epistemológica elevada ao cubo’, assim referida, faz parte da ruptura epistemológica, não somente em relação ao conhecimento comum, mas também em relação ao próprio conhecimento científico, que, por recorrência epistemológica, se refaz em novos valores e novas bases. A ciência, afirma Bachelard (1977, p. 41), uma vez constituída, “[...] não comporta regressão [...]”, ela é “[...] sempre escola, uma escola permanente” (Bachelard, 1977, p. 38), e, como tal, trabalha em prol da reconstrução do seu objeto, o que implica mais em negação do que em afirmação, isso é, mais na retificação de conhecimentos do que na sua acumulação. A vigilância epistemológica, nas suas três dimensões, aponta para as possibilidades e potencialidades da interdisciplinaridade, não comportando mais concepções e métodos absolutos, fixistas e definitivos de se alcançá-la. Pelo contrário, abre a possibilidade de novas formulações teóricas e metodológicas que permitam experimentá-la a partir da construção criativa de conceitos, objetos, objetivos, sujeitos, práticas e métodos. A partir de tais constatações, reconhecemos a interdisciplinaridade como um complexo e potente campo de conhecimento em construção, que, pela sua trajetória e atualidade, requer uma permanente vigilância epistemológica para explorar de todas as formas seu potencial crítico e criativo.
Considerações finais
Certamente não seria exagero dizer que ocorre, no cenário atual, uma banalização da interdisciplinaridade. Não somente no cotidiano escolar ou nos espaços acadêmicos, mas também nas produções científicas, a interdisciplinaridade é muitas vezes usada de forma apressada, inconsistente, imprecisa e confusa. Como sabiamente adverte Pombo (2004, p. 11-12, grifo da autora), “[...] a palavra ‘interdisciplinaridade’ foi-se impondo como password universal [...]”, tomando conta “[...] da investigação científica e dos novos modelos de comunicação entre os pares [...]”, sem os cuidados necessários, fazendo “[...] dela uma utilização selvagem, abusiva e caricatural”.
É na trilha desse uso abusivo que se apontam os principais mitos presentes nos discursos a respeito da interdisciplinaridade. Com isso, não se minimiza sua importância ou se desautoriza sua presença; ao contrário, indica-se a necessidade que a temática seja tratada com seriedade, identificando, em termos bachelardianos, os obstáculos epistemológicos que geram confusão e imprecisão no seu uso.
Nesse processo, uma vez realizada a identificação dos principais mitos pela forma descuidada com que é empregado o conceito polissêmico de interdisciplinaridade, tornou-se oportuno indicar as potencialidades enquanto maneira criativa de exercitar a vigilância epistemológica nos processos investigativos e educacionais. Sobre isso, concorda-se novamente com Pombo (2004, p. 19) quando diz que “[...] estamos pois perante transformações epistemológicas profundas [...]”, onde a compreensão do “[...] progresso do conhecimento já não se dá apenas pela especialização crescente [...]”, mas por “[...] um processo que exige um olhar transversal [...]”. Não resta dúvida de que existem imensos desafios pela frente, tanto na perspectiva epistemológica quanto na metodológica, para pensar e agir de forma interdisciplinar.