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Acta Scientiarum. Education

versão impressa ISSN 2178-5198versão On-line ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.42  Maringá  2020  Epub 01-Dez-2019

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v42i1.41846 

História e Filosofia da Educação

Curtas metragens e narrativas docentes: problematizando diferença racial e branquitude

Short films and teaching narratives: problematizing racial difference and whiteness

Cortometrajes y narraciones docentes: discutiendo diferencia racial y blancura

Maria Angélica Zubaran1  * 
http://orcid.org/0000-0002-7506-7387

Joice Mari Ferreira da Cruz1 
http://orcid.org/0000-0003-4244-4016

1Universidade Luterana do Brasil, Av. Farroupilha, 8001, 92425-020, Canoas, Rio Grande do Sul, Brasil.


RESUMO.

O objetivo central do presente estudo é mapear e problematizar discursos e representações recorrentes acerca da diferença racial e da branquitude em entrevistas narrativas com professores da educação básica, a partir das provocações de dois curtas metragens: Cores e botas (Vicente, 2010) e Pode me chamar de Nadí (Cardoso, 2009), disponíveis no canal Youtube. Destaca-se a importância do uso de filmes no trato das questões raciais, a partir dos enfoques de Duarte (2000, 2002), Fabrís (2005, 2008), Fischer e Marcello (2011) e Militão (2013). As análises são realizadas na perspectiva teórica dos Estudos Culturais em Educação, a partir dos conceitos de representação e identidade, em autores como Hall (2011, 2016) e Silva (2010, 2013) e do conceito de branquitude, em autores como Piza (2000), Sovik (2009), Cardoso (2014) e Schucman (2014). Entre os resultados da análise, destaca-se que as representações mais recorrentes produzidas e disseminadas nas narrativas fílmicas e problematizadas nas entrevistas narrativas de docentes, foram representações racializadas marcadas pelos discursos da democracia racial e da mestiçagem e mediadas pelas noções de branquitude. Salienta-se ainda, que as narrativas fílmicas contribuem para tencionar e contestar representações racializadas e privilégios da branquitude no âmbito da educação básica e para problematizar padrões estéticos eurocêntricos, vinculados particularmente ao cabelo, como símbolo de identidade étnico-racial.

Palavras-chave: representações racializadas; identidade branca; professores

ABSTRACT.

The main objective of the present study is to map and problematize speeches and representations recurrent about the racial difference and the whiteness in narrative interviews with teachers of basic education, from the provocations of two short films: Colors and bouts (Vicente, 2010) e and Can call me Nady (Cardoso, 2009), available in Youtube Channel. Highlights the importance of the use of movies in the tract of racial issues, from the approaches of Duarte (2000, 2002), Fabrís (2005, 2008), Fischer and Marcello (2011) and Militão (2013). The analysis are made in the theoretical perspective of Cultural Studies in Education, by the concepts of representation and identity, in authors such as Hall (2011, 2016) and Silva (2010, 2013) and the concept of whiteness in authors such as Piza (2000), Sovik (2009), Cardoso (2014) and Schucman (2014). Among the results of the analysis, stands out that the most recurrent representations produced and disseminated in the film narratives and problematized in the narrative interviews of teachers, were racialized representations marked by the speeches of racial democracy and miscegenation and mediated by the notions of whiteness. It is also pointed out that the film narratives contribute to intend and contest racialized representations and privileges of whiteness in ambit of the basic education and to problematize aesthetic eurocentric standards, particularly linked to hair, as a symbol of ethnic-racial identity.

Keywords: racialized representations; white identity; teachers

RESUMEN.

El objetivo principal del presente estudio es localizar y debatir discursos y representaciones recurrentes acerca de la diferencia racial y de la blancura en entrevistas narrativas con profesores de la educación básica, a partir de las provocaciones de dos cortometrajes: Colores y botas (Vicente, 2010) y Puede llamarme Nadi Cardoso, 2009), disponibles en el canal de Youtube. Se destáca la importancia del uso de películas en el tema de cuestiones raciales a partir de los enfoques de Duarte (2000, 2002), Fabrís (2005, 2008), Fischer y Marcello (2011) y Militão (2013). Los análisis son realizados en la perspectiva teórica de los Estudios Culturales en Educación, a partir de los conceptos de representación e identidad, en autores como Hall (2011, 2016) y Silva (2010, 2013) y del concepto de blancura, en autores como Piza (2000), Sovik (2009), Cardoso (2014) e Schucman (2014). Entre los resultados del análisis, resalta que las representaciones más frecuentes producidas y diseminadas en las narrativas fílmicas y discutidas en las entrevistas narrativas de docentes, fueron representaciones con un tinte racial marcadas por los discursos de la democracia racial y del mestizaje y también mediadas por las nociones de blancura. Destacando-se además, que las narrativas fílmicas contribuyen para presionar y contestar representaciones de tinte racial y privilegios de los blancos en el ámbito de la educación primaria y para discutir padrones estéticos eurocéntricos, vinculados particularmente al cabello, como símbolo de identidad étnico-racial.

Palabras-clave: representaciones con tinte racial; identidad blanca; profesores

Introdução

O presente estudo analisa e problematiza discursos e representações recorrentes sobre a diferença racial e a branquitude em entrevistas com professores da educação básica, a partir da visualização de dois curtas metragens: Cores e botas (Vicente, 2010) e Pode me chamar de Nadí (Cardoso, 2009), ambos disponíveis no canal Youtube. Os dois curtas metragens foram selecionados como deflagradores de entrevistas narrativas com professores, por entender-se que são potentes ferramentas pedagógicas, que contribuem para a construção de uma educação antirracista, segundo os pressupostos da Lei 10.639 de 2003 e da Resolução CNE/CP nº 1, de 17 de junho de 2004, que institui as Diretrizes Curriculares para o Estudo das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Destaca-se também a importância da Lei 13.006 de 2014, que no parágrafo 8, decreta a obrigatoriedade do uso de filmes nacionais na educação básica: “A exibição de filmes de produção nacional constituirá componente curricular complementar integrado à proposta pedagógica da escola, sendo a sua exibição obrigatória por, no mínimo, duas horas mensais” (Lei 13.006, 2014). Neste sentido, pretende-se por meio da visualização dos dois curtas metragens tematizar a diferença racial e problematizar padrões de branquitude com professores da educação básica.

A coleta dos dados empíricos se desenvolveu entre 2016 e 2017, em quatro escolas públicas municipais de educação básica na cidade de Sapucaia do Sul, localizada na região metropolitana de Porto Alegre/RS. Os docentes selecionados assistiram aos curtas metragens antes de serem entrevistados e, neste sentido, esses curtas funcionaram como provocadores das discussões sobre diferença racial e branquitude na escola. Para facilitar a compreensão das análises e respeitando o que foi previamente combinado com cada um dos entrevistados, foram utilizados pseudônimos para nomeá-los. Além disso, as narrativas são apresentadas por meio de excertos das falas dos professores, em caixas de texto.

Vale destacar ainda, que as narrativas docentes são consideradas na perspectiva de Silveira (2007) e Andrade (2012), que entendem as entrevistas narrativas como eventos discursos complexos permeados pelas relações de poder entre entrevistador e entrevistado. As autoras concordam que as entrevistas são marcadas por disputas e negociações que questionam a suposta neutralidade e objetividade dessas narrativas, consideradas na sua historicidade. Silveira (2007) e Andrade (2012) têm como referência teórica as análises dos Estudos Culturais. Nesta perspectiva, Silveira (2007) destaca que as entrevistas são situações forjadas pelas interações e trocas entre entrevistador e entrevistado, em um jogo interlocutivo com múltiplas dimensões e significados. A presente análise compartilha desse entendimento.

Em termos teóricos, parte-se dos pressupostos dos Estudos Culturais em Educação e da chamada virada linguística, que considera a centralidade da cultura e o papel constitutivo da linguagem na produção de significados, que são entendidos como fluidos e contingentes e considerados na sua historicidade. Salienta-se o entendimento de que os discursos e representações contidos na linguagem possuem um potencial pedagógico que contribui para a formação e constituição de sujeitos, ensinando-os a conduzirem suas condutas e disseminando modos de ser e de estar no mundo. Neste sentido, os conceitos de representação e identidades são centrais para essa análise, assim como o conceito de branquitude.

Conforme argumenta Hall (2016), a representação é uma parte essencial do processo pelo qual os significados são produzidos e compartilhados na cultura. Na perspectiva construtivista, entende-se a linguagem, em sentido amplo, como a linguagem falada, escrita, as imagens visuais e musicais, que transmitam significados. Segundo o autor, a linguagem é a forma pela qual os indivíduos de uma mesma cultura compartilham suas emoções, conceitos, imagens e ideias e através da qual se interpreta o mundo por meio de ‘códigos culturais’.

Já sobre o conceito de identidade, Hall (2011) argumenta que as identidades nas sociedades da modernidade tardia se encontram em constante mudança, dependendo das formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais em que estamos inseridos. Portanto, importa destacar que a construção das identidades está relacionada às formas pelas quais os sujeitos são interpelados ou representados nos diversos artefatos culturais e que não são automáticas, mas podem ser ganhadas ou perdidas. Também Silva (2000), argumenta que é através da representação que a identidade e a diferença passam a existir. Para o autor as identidades são construídas através de oposições binárias e de forma contrastante, estabelecendo-se então o que ela é a partir do que ela não é. Segundo o autor, a marcação da diferença é imposta, disputada, através de oposições binárias, que estão em estreita relação com as relações de poder.

Quanto ao conceito de branquitude, apropriamo-nos das discussões de autores como Piza (2000), Sovik (2009), Schucman (2014) e Cardoso (2014). Segundo Piza (2000), no Brasil pouco se tem explorado os significados das identidades brancas. A autora argumenta que é necessário que se discuta sobre as representações de branquitude e sobre os privilégios de ser branco, pois a noção de raça não é instigada ou desenvolvida entre estes sujeitos. Piza (2000) argumenta que as pesquisas sobre as relações raciais no Brasil frequentemente salientam o legado da escravidão como explicativos da pobreza e da falta de representação de negros(as) na sociedade, mas pouco ou nada questionam sobre a relação dos brancos com as mazelas dessa violência.

Por outro lado, Sovik (2009), em seus estudos sobre a branquitude, enfatiza que não há constrangimento entre as pessoas consideradas brancas, representadas de forma desproporcional em diversos âmbitos da sociedade brasileira e produzindo um modo de ser que passa a ser lido e tido como ‘ideal’. A autora defende a necessidade de observarmos as representações de branquitude no contexto de diversos discursos disseminados na cultura, particularmente, nos meios de comunicação, em que sujeitos com características consideradas europeias são representados como o ideal de beleza, comportamento e status social, contribuindo para a exclusão de sujeitos não brancos.

Cardoso (2014) e Schucman (2014), também, salientam os privilégios raciais, simbólicos e materiais, da branquitude, que posicionam aos indivíduos brancos um lugar superior na hierarquia racial e que resultam em exclusões e discriminações raciais na sociedade brasileira. Essas exclusões, conforme afirmam os autores, constituem o privilégio racial branco. Os teóricos acima discutidos concordam que a branquitude necessita ser exposta e discutida a fim de visibilizar suas implicações na sociedade, colaborando para a identificação e o questionamento de privilégios de alguns em detrimento de outros, bem como para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária para todas as pertenças raciais.

Estudos sobre cinema e educação

Inicialmente, entende-se que uma breve reflexão merece ser feita a respeito do uso do cinema na educação. Neste sentido, aborda-se a seguir as contribuições de Duarte (2000, 2002), Fabrís (2005, 2008), Fischer e Marcello (2011) e Militão (2013), para as discussões sobre cinema e educação.

Duarte (2000) em seu estudo sobre A pedagogia da imagem fílmica: filmes como objeto de pesquisa em educação argumenta que as imagens fílmicas são responsáveis por muitas de nossas formas de ver e interagir com a realidade, pois se constituem em importantes fontes de produção de significados. A autora acredita que as pessoas do século XX não seriam o que são, se não tivessem entrado em contato com imagens fílmicas. Em seu livro sobre Cinema & Educação, Duarte (2002) argumenta que, assim como ler obras literárias, filosóficas e sociológicas, assistir filmes pode ser uma prática social importante para a formação cultural e educacional das pessoas. A autora afirma que algumas experiências culturais que contribuem na formação de identidades, podem estar relacionadas às histórias contadas através dos filmes, afinal muitas das opiniões que circulam em nossa cultura em relação ao amor romântico, fidelidade, sexualidade ou ideal de família, por exemplo, tem como referência significados que surgem das relações entre espectadores e filmes. Duarte (2002) destaca ainda, que embora os educadores trabalhem obras e autores da literatura com os estudantes, narrativas fílmicas consagradas permanecem desconhecidas e tratadas como irrelevantes.

Fabrís (2005), em sua tese de doutorado Em cartaz o cinema brasileiro: produzindo sentidos sobre escola e o trabalho docente, destaca a produção de pedagogias culturais da mídia, alertando para os ensinamentos que o cinema, a televisão e os videoclipes proporcionam, muitas vezes de forma mais sedutora e irresistível, facilitadas pelos recursos tecnológicos, que provocam o despertar de emoções e fantasias, diferentemente de outras pedagogias escolares. Neste sentido, a autora enfatiza a necessidade de que outras linguagens passem a fazer parte do cotidiano escolar a fim de uma melhor interação com o mundo das imagens. A autora ressalta ainda, a importância de uma segunda alfabetização englobando o mundo audiovisual e da informática, pois dessa forma a cultura da imagem poderá ser parte integrante do trabalho escolar, uma vez que a educação é um processo cultural amplo, que ultrapassa os limites da escola.

Fabrís (2008), em seu estudo Cinema e educação: um caminho metodológico aponta para a importância dos filmes na regulação dos modos de ser e estar na cultura, produzindo modos particulares de ser para os sujeitos e posicionando-os em lugares de sucesso ou fracasso, a partir de determinados padrões. A autora discute as articulações entre cinema e educação e relata que a partir dos Estudos Culturais passou a ver os filmes como sistemas de significação, que além de divertirem quem os assiste, são potentes artefatos culturais que produzem e fazem circular sentidos e significados no cotidiano cultural das pessoas. Fabrís (2008) salienta ainda, a necessidade de entendimento do processo de interpelação dos filmes sobre os sujeitos e ressalta a importância de se analisar o contexto cultural e histórico em que são produzidos os filmes, a fim de se problematizar os possíveis efeitos que emergem de tais produções que, para ela, são constituídas e constituidoras de práticas sociais. Neste sentido, Duarte (2002) e Fabrís (2008), concordam sobre o papel pedagógico desempenhado pelo cinema e argumentam que os filmes, quando explorados em sala de aula respeitando-se as faixas etárias dos alunos, podem tornar-se importantes instrumentos de enfrentamento de diversas situações conflitivas que permeiam o ambiente escolar.

Fischer e Marcello (2011), em Tópicos para pensar a pesquisa em cinema e educação, também, destacam o cinema como um artefato cultural que nos interpela e nos ensina a olhar certos temas de outros modos. As autoras sublinham a importância do cinema para tratar de temas do presente e salientam que é fundamental não reduzir a discussão das narrativas fílmicas a busca de uma única verdade que estaria contida na imagem, mas de valorizar as múltiplas possibilidades interpretativas que as imagens cinematográficas possibilitam, nos oferecendo outros modos de pensar.

Teruya e Felipe (2013), por seu turno, apontam para as possibilidades pedagógicas do uso de filmes como artefatos midiáticos que produzem representações culturais sobre o ‘eu’ e o ‘outro’. Os autores destacam a importância dos filmes como mediadores pedagógicos que mobilizam alunos/professores a discutirem questões relativas à educação das relações raciais contribuindo dessa forma, para a desconstrução de preconceitos e racismos no espaço escolar. Conforme Teruya e Felipe (2013) os filmes são importantes dispositivos metodológicos na implementação da lei 10.639 (2003) nas escolas.

Por último, destaca-se a dissertação de Militão (2013), A inversão de representações racializadas e a construção de pedagogias antirracistas no filme ‘Vista minha Pele’. A autora mapeou as representações étnico-raciais mais recorrentes sobre negros(as) neste curta-metragem, salientando as contribuições desse artefato cultural para tensionar representações estereotipadas sobre o outro. Conforme Militão (2013), a narrativa fílmica de Joel Zito proporciona aos espectadores a experiência de colocarem-se no lugar do outro e, assim, contribui para a contestação das situações de racismo que com frequência marcam as práticas escolares. Finalizamos essa breve revisão da literatura sobre cinema e educação, ressaltando que a partir das leituras acima mencionadas pode-se concluir que o uso do cinema na educação tem contribuído para problematizar verdades estabelecidas e tensionar representações estigmatizadas de grupos minoritários.

No que segue, apresentamos uma sinopse dos dois curtas metragens selecionados, para então prosseguirmos com as análises.

O primeiro curta metragem, Cores e botas (Vicente, 2010), é dirigido por Juliana Vicente, produzido em 2010 e tem duração de quinze minutos. Esse curta metragem conta a história de Joana, uma menina negra de família de classe média, que sonha em ser paquita da Xuxa e que participa de um concurso para ser paquita na escola em que estuda. O filme discute os padrões estéticos produzidos e disseminados pela mídia televisiva, a manutenção e reprodução desses padrões na escola, as representações racializadas que circulam na cultura e suas implicações na construção de subjetividades e identidades infanto-juvenis. Joana, a protagonista, assim como muitas meninas que tiveram sua infância nos anos 80, sonha em ser paquita da Xuxa, sendo incentivada pelos pais a perseguir seus ideais e a conquistar seus objetivos através do esforço individual. Entretanto, os pais de Joana demonstram dificuldade em reconhecer o preconceito racial na escola e o fato de que sua filha teria sido rejeitada no teste para paquita, em razão de suas características fenotípicas, que não se enquadram no padrão branco predominante do programa da Xuxa, assim como em muitos outros programas da mídia. O filme provoca reflexões sobre padrões estéticos e, particularmente, sobre privilégios brancos, demonstrando o quanto as marcas impressas nos corpos ainda são fatores que limitam as oportunidades de indivíduos considerados fora dos padrões hegemônicos.

O segundo curta metragem, Pode me chamar de Nadí, é dirigido por Déo Cardoso, produzido em 2009 e tem duração de vinte minutos. Esse curta metragem conta a história de Nadí, uma menina negra, moradora da periferia, que tem vergonha de seus cabelos crespos. O filme salienta as dificuldades de Nadí em aceitar seus cabelos, que são motivo de chacota dos meninos da vizinhança. Nadí, assim como muitas meninas de cabelos crespos e cacheados, não gosta de seus cabelos e tenta escondê-los com o uso de um boné. Ela procura fazer amizade com meninos da vizinhança, mas não é bem recebida, pelo contrário, os meninos zombam de seu cabelo e pegam seu boné, que vai parar no carrinho de um vendedor ambulante que se recusa a devolvê-lo. Nadí tenta sem sucesso recuperar o boné e o substitui por uma bandana. Então ela conhece Laila, uma modelo negra, que aguardava o ônibus em uma parada. Laila conversa com Nadí sobre o seu cabelo e mostra que não há motivo para escondê-lo, afirmando que ela tinha um cabelo bonito e sugere usá-lo solto. Nadí decide deixar seus cabelos crespos soltos, colocando sobre o cabelo uma flor de crochê que recebeu de presente de Laila. No final do curta, Nadí já não faz mais questão de recuperar seu boné.

A partir da visualização dos curtas metragens realizaram-se as entrevistas com sete professores: quatro professoras dos anos iniciais e duas professoras e um professor dos anos finais, que atuam em Escolas Públicas Municipais da região metropolitana de Porto Alegre/RS. Em um primeiro momento, problematizou-se a construção da diferença racial e das representações racializadas e de branquitude na escola, conforme segue.

Representações racializadas e de branquitude

As narrativas docentes sobre a construção da diferença racial e da branquitude no âmbito da escola mostraram-se ambíguas, pois tanto reconheceram que alunos brancos tinham privilégios na escola, como reafirmaram noções de democracia racial e meritocracia, negando a existência de questões raciais na escola e argumentando a existência de igualdade de oportunidades e de ascensão social para todos, independentemente de classe, gênero e cor.

Um exemplo dessas representações relacionadas às noções de democracia racial e meritocracia é a narrativa da professora Amanda, quando refere que seu sobrinho sofre preconceito por ser loiro.

Porque eles dizem, para ti é tudo mais fácil, só que ele estuda muito, ele é dedicado, só que ele sofre preconceito, eles dizem, tu és lindo, tu és loiro, para ti é tudo mais fácil. Só que não é, nesse caso não. Pode ser que sim, que abra mais portas para ele sim, só que ele também é esforçado, só que tem isso né, as pessoas acham isso porque é isso (Amanda).

A professora Sara, também, afirma a inexistência do preconceito na escola, mas reconhece que existe preconceito em outras escolas ao seu redor.

[...] aqui no nosso contexto não vejo isso, não percebo isso né... não sei se é porque a escola... o trabalho que é feito aqui... não se consegue observar isso, existe assim uma igualdade, os professores no geral tratam os alunos nesse sentido assim... no mesmo patamar... em relação a cor, ou até a própria... economicamente né, falando...eu acho que isso não existe, aqui pelo menos eu não percebo. Outras escolas que eu trabalhei, que eu passei, eu já percebi isso, mas aqui não (Sara).

A fala de Sara encontra amparo nos argumentos de Cardoso (2014), quando cita Fernandes para argumentar que ‘o brasileiro possui preconceito de ter preconceito’, marcando a dificuldade que brasileiros demonstram em assumir seu próprio preconceito. A negação do preconceito racial na escola é também uma estratégia que, de certa forma, isenta os professores de qualquer responsabilidade pelas desigualdades raciais presentes no ambiente escolar.

Schucman (2014) chama atenção também para o fato de que a ambiguidade é uma das características da branquitude, uma forma de manutenção dos privilégios brancos, que contribui para a continuidade do racismo e para a negação e invisibilidade desses privilégios na sociedade brasileira. Nesta direção, Gomes (2007) salienta a ambiguidade como uma característica do racismo brasileiro, como ‘uma das formas ardilosas do racismo se manter e se expressar’. Quando, a partir dos curtas metragens, discutimos os privilégios brancos, as narrativas docentes revelam uma representação recorrente de branquitude, que consiste em culpabilizar o outro não branco pela sua exclusão social.

O excerto da professora Tati exemplifica esse tipo de representação, quando cita o caso de uma aluna negra que segundo ela, não aceitou a ‘brincadeira de mosquitinho da dengue’ e se auto excluiu da atividade, referindo que ‘eles mesmos se excluem, né?’

Tati: Depende em que sentido da exclusão... muitas vezes dependendo a ocasião, a oportunidade, algumas coisas excluem, em outras eu acho que...

Joice: Consegue pensar em algum exemplo?

Tati: Vou dar um exemplo da Paloma, ela se compara muito com a questão da pele. Ela é negra. Então a gente brinca muito com ela por causa do mosquitinho da dengue e aí ela diz que ela não é o mosquito da dengue, porque ela é negra. Na maioria das vezes, eu acho que sim.

Joice: Que sim? Então existe essa exclusão?

Tati: Existe.

Joice: Na escola?

Tati: Muitas vezes até por parte dos alunos mesmo né, eles mesmos se excluem né... (Tati).

Contudo, estudos sobre a branquitude no Brasil destacam que, na perspectiva da supremacia branca, é o branco que detém o poder de nomear o outro e de excluí-lo, no entanto, frequentemente, o discurso da branquitude culpabiliza o outro não branco pela sua exclusão. Duschatzky e Sckliar (2001) sublinham que desde a modernidade, um dos modos mais recorrentes de controle do outro e de representação da alteridade é culpabilizar o outro como ‘fonte de todo o mal’. Também os estudos de Shohat e Stam (2006), consideram que a culpabilização do outro é uma das formas de manifestação do racismo moderno.

No que diz respeito à construção de diferenças raciais no ambiente escolar, Meyer (2002) afirma que também na escola estão em funcionamento diferentes mecanismos e estratégias envolvidos com a produção das diferenças raciais, posicionando os indivíduos de forma desigual. Em seu texto, a autora relata a história de uma menina negra, que após algumas semanas de aula, chorava e recusava-se a permanecer na escola e que quando questionada sobre seu comportamento, relatou que na escola ela não podia ser anjo, demonstrando o impacto das representações negativas da diferença racial no ambiente escolar.

Nesta direção, Abramowicz (2012) destaca que a maioria das pesquisas que investigaram a questão da criança negra nos espaços escolares demonstraram que, em geral, os professores tendem a reforçar desigualdades e a contribuir para a manutenção do racismo nos processos de socialização de crianças não brancas nas práticas escolares cotidianas.

Essas reflexões nos levam a indagar sobre a constituição da escola moderna, particularmente, sobre seu papel normalizador de condutas e maneiras de ser e estar no mundo. Neste sentido, Narodowski (2001) problematiza a escola enquanto instituição normatizadora e disciplinar e contribui também para a compreensão do processo de branquitude normativa que parece atravessar as narrativas de professores da educação básica.

De acordo com Narodowski (2001) foi a partir da construção moderna da infância que foi se constituindo a produção disciplinar, pautada nas ‘normalidades e patologias; progressos e regressões; benefícios e prejuízos’. Desta forma, a pedagogia se instaura em meio à normalização dos comportamentos e em muitos momentos, pela violência física e pelos ‘gritos do professor e o uso de castigos corporais’. Para Narodowski (2001) as heranças da pedagogia moderna podem ser vistas em suas pretensões de normalizar e homogeneizar não somente a conduta dos indivíduos, mas também métodos e conteúdos. Segundo o autor, nos últimos trezentos anos, apesar de muitas divergências, concorda-se que a infância é atravessada por categorias que estimulam sua normalidade e que homogeneízam seu desenvolvimento através de dispositivos de vigilância, disciplina e o controle de informações.

Destaco também os argumentos de Miskolci (2005), em seu estudo sobre gênero e sexualidade na escola, que demonstra a tendência da escola em invisibilizar aqueles que estão fora da norma. Para o autor, o não posicionamento de professores frente a situações incômodas vivenciadas por alunos, é uma tentativa de eliminar o problema e de ignorar o (a) diferente, reafirmando comportamentos considerados ‘bons’ e adequados, geralmente alinhados ao padrão hegemônico. Miskolci (2005) pontua que existe algo complexo e violento estabelecido no espaço escolar, ambiente em que muitas vezes se aprende a estranhar os ‘diferentes’. O silêncio sobre esses ‘diferentes’, seja por características físicas ou comportamentais, contribui para que os indivíduos rejeitem em si próprios tudo que neles diferir da maioria. O pesquisador propõe que este silêncio seja quebrado pelos professores e que situações cotidianas e embates sejam abordados de forma que todos se sintam respeitados em suas individualidades. Sublinha-se a seguir, que esse processo de normatização na escola, destacado pelos autores, está também articulado aos discursos e representações de branquitude associados aos padrões estéticos, particularmente, ao cabelo de alunos (as).

Representações de branquitude e padrões de beleza

Em um segundo momento, após assistirem aos dois curtas metragens, os docentes entrevistados foram indagados sobre branquitude e padrões de beleza na escola. Três professoras Laura, Elis e Bárbara destacaram o quanto os padrões de beleza branca são acionados e interiorizados com efeitos perversos para a construção das subjetividades negras. Elas referem, principalmente, as representações e práticas relacionadas aos cabelos crespos de meninas negras, que buscam de diversas maneiras, ‘esconder’ seus cabelos, representados frequentemente, como ‘cabelo ruim’. Neste sentido, Schucman (2014) destaca que, apesar do racismo biológico já ter sido desacreditado pela ciência desde o final da segunda grande guerra, o fenótipo continua sendo o principal marcador da pertença racial no Brasil e as referências aos atributos físicos aparecem de forma mais explícita nas representações pejorativas aos cabelos crespos.

As narrativas que seguem das professoras Elis, Laura e Bárbara, demonstram a hegemonia da branquitude nos padrões estéticos, particularmente no que se refere aos cabelos, demonstrando que meninas negras produzem estratégias de controle de seus cabelos crespos na escola para não serem agredidas, de forma semelhante as representações que foram produzidas e disseminadas nos dois curtas metragens. As narrativas docentes referem também pequenas mudanças nesses padrões, quando reconhecem que recentemente, algumas meninas estão assumindo padrões de beleza negra e exibindo seus cabelos crespos com orgulho.

A partir dos estudos de Pinho (2004), Gomes (2008) e Duarte (2012), problematiza-se os padrões de beleza eurocêntricos nos curtas metragens e no cotidiano escolar e seus impactos na construção de subjetividades e identidades negras.

No excerto que segue a professora Elis se refere à rejeição dos cabelos crespos entre meninas negras e às estratégias usadas para dissimulá-los e escondê-los.

Joice: No curta Pode me chamar de Nadí, os colegas da escola chamam Nadí de cabelo ruim e ao longo do curta, Nadí mostra que quer esconder seu cabelo com uso de boné ou um pano. Você acha que na sua escola ocorrem cenas parecidas com essa?

Elis: Seguidamente, as meninas entram pingando água dentro da minha sala e elas pedem pra ir no banheiro pra fazer xixi ou pedem pra ir tomar água e a gente nota que elas voltam com o cabelo molhado... eu noto que elas tão tentando assim né, domar o cabelo... eu noto que elas fazem bastante uso de chapinha, que elas fazem química no cabelo e ainda existe a coisa do cabelo ruim né, agora assim ó, nos últimos dois anos que eu tô vendo umas meninas assumirem assim, uns cabelos crespos ah... Parece que com mais orgulho (Elis).

Também a professora Laura reconhece que suas alunas negras usam de estratégias para dissimular seus cabelos crespos, conforme se pode observar no excerto abaixo.

Laura: Eu nunca vi eles se xingando de forma racista em sala de aula, não estou dizendo que não ocorra, porque quando eu trabalho com eles a questão de brincadeiras e tal, com cor e raça, eles dizem que já fizeram, quando eu pergunto quem é que já fez brincadeira racista e tal, eles levantam a mão, porque claro, eu sou a primeira a levantar a mão, porque é uma coisa cotidiana né, essa briga é cotidiana, eu já fui criança, já tive no meu contexto, eu já fiz, então eu sou a primeira a levantar a mão e aí eles se sentem mais tranquilos e levantam também, então são vários. Mas eu não vi diretamente eles comentando dos cabelos das meninas, mas eu percebo as meninas negras aqui na escola sempre tentando usar o cabelo preso, bem puxadinho assim, sabe? Puxado e amarrado assim não são nem aqueles penteados afros, algumas usam, mas não é sempre, é bem preso. Já questionei algumas alunas assim né, quando elas vêm de cabelo solto. A gente diz assim, ah teu cabelo é tão bonito, por que que tu não vens com ele solto mais vezes? Não, porque ele fica muito alto, porque não dá, porque não sei que, sabe? Fica dando uma série de desculpas porque aquele cabelo vai ficar diferente, então o diferente vai chamar a atenção e chamar a atenção pode ser fruto do comentário e também não é o padrão... e aí sempre muito ... os cabelos muito presos. Então eu acho que sim. Acho que ainda há para as mulheres e para as meninas, principalmente negras, uma dificuldade de andar com o cabelo solto e eu percebo olhando as alunas né (Laura).

A narrativa que segue da professora Bárbara sobre a sua filha, demonstra os sentimentos dos pais, “[...] que não querem que seus filhos sofram [...]” com o racismo na escola e que produzem representações positivas de beleza negra e do orgulho de ser negro (a) para contestar a branconormatividade na escola.

Bárbara: Para a escola ela não vem com o cabelo solto (...) na escola já criticaram, tinha um menino que falou para ela que o cabelo dela era ruim e que não sei o que e daí ela respondeu: se o meu cabelo fosse ruim eu raspava igual ao teu.

Joice: então ela já está respondendo aos comentários que ocorrem!

Bárbara: Sim e eu fico tranquila, as vezes até digo filha para que ser tão estúpida. Mas, por dentro eu estou dizendo YES, isso mesmo! E é aquela questão que a gente sempre conversou com ela, quando ela reclamava que: ai, me chamou de negra! E nós dizíamos, mas tu és negra filha, tu és negra igual a tua mãe, ao teu pai, tua vó, teus tios, tu és negra e nós temos que ter orgulho de sermos negros. Hoje ela está com onze anos, mas assim desde que ela era novinha, quando ela estava com quatro, para entrar para a escola com cinco anos a gente já começou, eu principalmente (...) porque tu não quer que teus filhos sofram né, tu queres que eles sempre lidem com isso, sempre colocamos todas as questões disso e daquilo, alertamos e dizemos: qualquer coisa que teus coleguinhas disserem tens que falar com a professora, então ela sempre levou assim, só que a Sofia nunca teve papas na língua né, nunca (risos), então falavam um negócio e ela já vinha de atravessado sabes? E daí esse coleguinha nunca mais tocou no assunto.

Bárbara: Nem sempre as famílias lidam bem com isso em casa ou orientam os filhos, as mães dizem para não dar bola, mas eu penso que não é bem assim, machuca, dói. Como tu vais dizer para teu filho não dar bola né? (Bárbara).

Nos relatos das professoras Laura, Elis e Bárbara é possível se observar que tanto as alunas negras adolescentes dos anos finais da educação básica, quanto a filha da professora Bárbara, são marcadas pelas representações racializadas que circulam na mídia e na escola. Elas respondem de diferentes formas ao racismo cotidiano ao qual são expostas, em alguns momentos tentando dissimular o volume do cabelo crespo para se protegerem dos comentários racistas de seus pares ou respondendo às agressões sofridas com afirmação da sua negritude, como ocorre com as protagonistas Joana e Nadí nos curtas exibidos.

Neste sentido, Gomes (2008) destaca que o cabelo é o símbolo mais evidente da identidade negra e salienta a presença de estratégias de manipulação e domesticação dos cabelos crespos na mídia, frequentemente representados na publicidade de produtos para o cabelo com expressões como ‘indomáveis’, ‘indisciplinados’ e ‘rebeldes’.

O relato que segue, da professora Tati, demonstra o quanto a branquitude está associada a características eurocêntricas, como por exemplo, o cabelo liso, colaborando na construção de uma imagem negativa daqueles que não possuem tais atributos e impactando negativamente a convivência entre brancos e não brancos na escola. Também Pinho (2004), em seu estudo sobre a construção de identidades étnico-raciais na Bahia, argumenta que o padrão de beleza eurocêntrico dominante tem contribuído para a estigmatização e ‘a baixa autoestima, principalmente entre negros jovens’. Segue o relato da professora Tati:

Joice: No curta, pode me chamar de Nadí, os colegas de escola chamam Nadí de cabelo ruim e ao longo do curta Nadí mostra que quer esconder o cabelo com um boné ou um pano, tu achas que na tua escola acontecem cenas como essa?

Tati: Sim.

Joice: Já presenciou?

Tati: Já. O exemplo da Paloma, né... ela vive de boné na cabeça porque ela diz que o cabelo dela é feio, ela diz que é cabelo de negro. Os guris debocham, dão risada do cabelo dela, aí ela vai de boné, eles vão e puxam o boné e ela nunca penteia o cabelo.

Joice: E alguma ação é feita, assim ... tu percebes que alguém fala alguma coisa para ela em outro sentido?

Tati: Olha, eu dentro da sala de aula, ela é minha aluna, e eu dentro da sala de aula sempre procuro dizer para os meninos que não podem fazer isso né, que cada um tem o seu tipo de cabelo, ela tem o tipo de cabelo dela, se ela tem o cabelo que ela não penteia... ‘um dia eu ainda brinquei com ela que eu ia trazer uma escova de presente’, ela disse que não precisava porque ela não gostava de pentear o cabelo (Tati, grifo nosso).

A narrativa da professora Tati, quando refere que ‘traria uma escova para dar de presente’ para sua aluna negra, a fim de que penteasse seus cabelos, revela suas próprias representações negativas sobre os cabelos crespos, historicamente desvalorizados e estigmatizados no convívio social dentro e fora da escola. Neste sentido, Duarte (2012) sugere que as representações que as professoras brancas constroem de crianças negras são elaboradas a partir das representações racializadas que circulam e são legitimadas na sociedade brasileira e que constituem o significado de ser negro e de ser branco, acionados nos episódios de conflitos étnico-raciais na escola. Duarte (2012) ressalta ainda, que na escola circulam representações racializadas subliminares que contribuem para naturalizar como verdades padrões estéticos brancos. De acordo com a autora, alguns professores, ainda que sem intenção explícita, tratam as crianças não brancas de forma diferente e desigual.

Também Guizzo (2011), quando discute as práticas corporais de embelezamento na educação infantil, argumenta que características fenotípicas e classe social são marcadores potentes, que conferem valores positivos a determinadas crianças e negativos à outras, reforçando representações racializadas. De acordo com Guizzo (2011) as representações que temos de beleza na sociedade atual advêm de múltiplos artefatos culturais como outdoors, revistas, jornais, televisão, por meios dos quais determinados padrões são repetidamente reforçados, interpelando os sujeitos na constituição de si mesmos e dos outros.

No excerto que segue, observa-se que quando a professora Sara é questionada sobre a existência de um padrão ideal de beleza, manifesta certo desconforto, afirmando ‘que existe gosto para tudo né’. Sua narrativa está também marcada pelo discurso da democracia racial, quando refere que ‘há oportunidades para qualquer tipo de raça’.

Joice: Na parada de ônibus uma moça negra, modelo, senta-se ao lado de Nadí e a incentiva a deixar os cabelos soltos, dizendo: teu cabelo é lindo, devia usar ele sempre solto. Como tu explicas essa afirmativa? De que padrão de beleza essa modelo está falando?

Sara: ‘Que existe gosto para tudo né e oportunidades para qualquer tipo de raça’. Acho que desse padrão que ela fala né, que a beleza não é só o exterior também, de repente o interior, que também a cor não quer dizer nada. Podem ter pessoas que são brancas belas, como negras também, acho que esse padrão é em relação a isso.

Joice: E no fim do curta, quando Nadí deixa seu boné caído na rua, o que mudou na cabeça dela?

Sara: Ela entendeu que ela também poderia ser bela né, ‘mesmo dentro da cor dela’, que ela poderia também mostrar a beleza dela, não teria o porquê de estar escondendo aquilo ali, aquela beleza que ela também teria. Acho que foi uma forma de se libertar até de todo aquele preconceito que já vinha em redor dela ali desde o nascimento (Sara, grifo nosso).

Pinho (2004) problematiza que a beleza e a feiura, assim como outros valores presentes em nossa sociedade são construídas socialmente e compartilhados na cultura. Neste sentido, a autora salienta que a construção cultural do que é belo expressa relações de poder, construídas de forma relacional e hierárquica, que implicam também na construção do seu oposto, o feio. A partir dessa perspectiva, é possível entender melhor o comportamento das protagonistas dos curtas metragens, que demonstram dificuldade de aceitar seus cabelos crespos.

Na abordagem teórica dos Estudos Culturais, as concepções de beleza são construídas de forma compartilhada na cultura por meio de sistemas de representação que vão constituindo modos de ser e agir, nos mais variados espaços sociais em que nos inserimos, por exemplo, na mídia cinematográfica e nos espaços escolares. Nesta perspectiva, entende-se que a construção de identidades e diferenças está relacionada ao processo de classificação em oposições binárias, que ordena o mundo social, por meio de relações hierárquicas de poder, excluindo aqueles que não possuem os atributos considerados padrão. Nesta ótica, o feio e o bonito, constituem um exemplo da estrutura de classificação binária e desigual de representação, produzidas e disseminadas na cultura, em diferentes artefatos culturais e que nos interpelam e nos ensinam a hierarquizar e atribuir diferentes valores aos corpos e aos cabelos. A partir dessas premissas pode-se melhor entender as falas das protagonistas Joana e Nadí, em Cores e botas (Vicente, 2010) e Pode me chamar de Nadí (Cardoso, 2009), assim como, as narrativas de professores da educação básica da zona metropolitana de Porto Alegre/RS, após terem sido desafiadas a pensar sobre a construção da diferença racial e da branquitude, a partir dos discursos e representações acionados pelos dois curtas-metragens.

Considerações finais

Os curtas-metragens Cores e botas (Vicente, 2010) e Pode me chamar de Nadí (Cardoso, 2009), ao tematizarem a construção da diferença racial e da branquitude, provocaram professores da educação básica a refletir sobre essas representações no âmbito da escola. Entre os resultados da análise, foi possível observar-se algumas recorrências nas representações racializadas e nos padrões de branquitude, que marcaram tanto as trajetórias das personagens Joana e Nadí, como as narrativas dos docentes entrevistados, o que demonstra o quanto estamos imersos e compartilhamos sentidos e significados na cultura.

Os curtas metragens abordados nesse estudo contribuem para a reflexão sobre o impacto das representações de branquitude na constituição de subjetividades e identidades, instituindo modos de ser/parecer branco e contribuindo para a baixa autoestima de indivíduos que não possuem as características fenotípicas consideradas ideais.

Entretanto, as identidades raciais podem ser contestadas e reconfiguradas, como mostram as últimas cenas de cada um dos curtas metragens, corroborando os estudos de Piza (2000), Sovik (2009), Schucman (2014) e Cardoso (2014), entre outros, quando destacam que a branquitude não possui um significado intrínseco, mas é construída nas relações sociais que são estabelecidas em cada cultura, podendo ser negociada, ressignificada e desconstruída.

As análises contribuem também para demonstrar a importância de intervenções pedagógicas que problematizem a construção das diferenças na escola, de forma a desnaturalizar discursos e representações estereotipadas e negativas, que de tão arraigados na cultura são tomados como verdades, contribuindo para discriminações, exclusões e para a baixa autoestima de alunos e alunas considerados fora dos padrões de normalidade. Como afirma Hall (2016), os sentidos e significados que são compartilhados na cultura, estão em permanente disputa e deslocamento e, portanto, são móveis e instáveis. Neste sentido, parece possível contestar e desconstruir representações racializadas e estigmatizadas, que continuam marcando sujeitos e corpos considerados fora da norma, de forma a tencioná-las, revertê-las e ressignificá-las, produzindo e fazendo circular formas alternativas e positivas de representação das diferenças dentro e fora da escola.

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5NOTA: Maria Angélica Zubaran e Joice Mari Ferreira da Cruz foram responsáveis pela concepção, análise e interpretação dos dados; redação e revisão crítica do conteúdo do manuscrito e ainda, aprovação da versão final a ser publicada.

1A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), sob o número de registro do CAAE 61512716.1.0000.5349.

2Conforme a professora, essa brincadeira era costumeiramente realizada com todos os alunos mais magrinhos da turma, desde que a docente trabalhou uma história que trazia o mosquitinho da dengue como protagonista e este era representado com a cor branca.

Recebido: 25 de Fevereiro de 2018; Aceito: 05 de Novembro de 2018

*Autor para correspondência. E-mail: angelicazubaran@yahoo.com.br

Maria Angélica Zubaran: Doutora em História na State University of New York, Pós-Doutorado no Birkbeck College da London University, professora adjunta do Curso de História e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), Pesquisadora do NEABI/ULBRA. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7506-7387 E-mail: angelicazubaran@yahoo.com.br

Joice Mari Ferreira da Cruz: Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), Especialista em Estudos Culturais em Educação e graduada em Educação Física Licenciatura em Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). Docente dos anos iniciais na rede Municipal de Ensino de Sapucaia do Sul/RS. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4244-4016 E-mail: joiceaqui@hotmail.com

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