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Acta Scientiarum. Education

versión impresa ISSN 2178-5198versión On-line ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.42  Maringá  2020  Epub 02-Ene-2020

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v42i1.44862 

História e Filosofia da Educação

A constituição do direito social à educação em legislações mineiras da década de 1920

La constitución del derecho social para la educación en los legislación de lo estado Minas Gerais (Br) de la década de 1920

Marlos Bessa Mendes da Rocha1 
http://orcid.org/0000-0003-1544-6892

1Universidade Federal de Juiz de Fora, Rua José Lourenço Kelmer, s/n, 36036-900, Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil.


RESUMO.

O trabalho apresenta pesquisa sobre duas legislações surgidas nos anos de 1920 no Estado de Minas Gerais. A primeira refere-se à lei 800, de 27 de setembro de 1920 (reorganiza o ensino primário do Estado e contém outras disposições); a segunda, produz a regulamentação da lei 800, aprovada em 1924. O suposto é de que a legislação expressa um tempo histórico, vale dizer, mais do que intenções de elites governantes, ela é expressão de uma época, com seus problemas, bem como de valores que ordenam o tratamento das questões. A hipótese que procuramos demonstrar é de que tais legislações são indicadoras de um tempo histórico já na fase do ‘entusiasmo educacional’, na caracterização de Jorge Nagle (2001), porém ainda precedendo a constituição do direito social à educação, marco da modernidade educacional brasileira e mundial. A dimensão faltante para o ingresso no novo tempo é precisamente a permanência de uma concepção genérica de cidadania revelada numa ordenação escolar que fragiliza o protagonismo público. Isso ocorre seja através de concepção de obrigação da oferta educacional dividida com a sociedade, seja através da exigência de ‘consciência cívica’ do povo antecedendo a oferta, numa clara culpabilização deste que limita a expansão escolar. O procedimento do trabalho faz-se pela exegese das fontes legais normativas e regulatórias, incluindo nestas as Atas escolares, bem como pelos debates legislativos registrados.

Palavras-chave: direito social à educação; legislações mineiras; ensino primário

RESUMEN.

El documento presenta investigaciones sobre dos legislaciones que surgieron en la década de 1920 en el estado de Minas Gerais. El primero se refiere a la ley 800 de 27 de septiembre de 1920 (reorganiza la educación primaria del Estado y contiene otras disposiciones); el segundo, produce la regulación de la ley 800, aprobada en 1924. Se supone que la legislación expresa un tiempo histórico, vale la pena decir, más que intenciones de las élites gobernantes, es una expresión de un tiempo, con sus problemas, así como valores que ordenan el tratamiento de las cuestiones. La hipótesis que buscamos demostrar es que tales legislaciones son indicadores de un tiempo histórico ya en la fase de "entusiasmo educativo", en la caracterización de Jorge Nagle (2001), pero aún precediendo a la constitución del derecho social a la educación, un marco de Modernidad educativa brasileña y global. La dimensión que falta para entrar en el nuevo tiempo es precisamente la permanencia de una concepción genérica de la ciudadanía revelada en una ordenación escolar que debilita el protagonismo público registrados. Esto ocurre ya sea a través de la concepción de la obligación de la oferta educativa dividida con la sociedad, ya sea a través de la exigencia de "conciencia cívica" de las personas que preceden a la oferta, en una clara culpabilidad de esta que limita la expansión escolar. El procedimiento de trabajo se realiza mediante la exégesis de fuentes legales normativas y reglamentarias, incluso en estas actas escolares, así como por los debates legislativos registrados.

Palabras clave: derecho social a la educación; leyes mineras; primaria

ABSTRACT.

This research aims to present two legislations created in 1920 in Minas Gerais. The first one is about the law 800 from 27th November 1920 which reorganizes the primary school in the State and it also contains others rules. The second one regulates the law 800 that was endorsed in 1924. The alleged is that the legislation expressed a historical time, that is to say, more than intentions of ruling elites, it is an expression of an era, with their problems, as well as ordering the treatment of values issues. The hypothesis that we seek to demonstrate is that such laws are indicative of a historical time in the phase of educational enthusiasm, on characterization of Jorge Nagle (2001), but even preceding the establishment of the social right to education, that is a historical watershed of the modernity of Brazilian and worldwide educational. The missing dimension for to enter into the new time is precisely the permanence of a generic conception of citizenship unveiled at an ordination that weakens the role public school. It occurs either through the obligation of the public offer of educational shared with the society, either through the requirement of civic consciousness of the people preceding the public offer, in a clear scapegoating this school expansion limits. The work procedure is done by legal sources exegesis and regulatory standards, including in the school minutes, as well as the legislative debates.

Keywords: right social to education; Minas Gerais’s law; primary school

Introdução1

O trabalho apresenta uma pesquisa sobre duas legislações surgidas nos anos de 1920 no Estado de Minas Gerais. A primeira refere-se à Lei n. 800, de 27 de setembro de 1920 (reorganiza o ensino primário do Estado e contém outras disposições); a segunda produz a regulamentação da Lei n. 800, aprovada apenas em 1924. O suposto é de que a legislação expressa um tempo histórico, vale dizer, mais do que intenções de elites governantes, ela é expressão de uma época, com seus problemas, que a legislação busca enfrentar, bem como de valores que ordenam o tratamento das questões. A hipótese que procuramos demonstrar é de que tais legislações são indicadoras de um novo tempo histórico que vem se constituindo, qual seja o do direito social à educação. Tal direito não está em continuidade com a educação como obrigação civil ou como razão política, conforme se estruturou ao longo do séc. XIX. Trata-se agora do direito social dos indivíduos, significando isso um processo de reestruturação da cidadania vigente entre nós brasileiros.

O que buscamos observar é como ocorre a configuração dessa cidadania educacional, sem que o paradigma valorativo prévio do que seja cidadania determine a investigação. Diga-se que o processo histórico de constituição do direito social à educação é mais amplo, pois já vem ocorrendo desde meados do Oitocentos no Ocidente, incluindo nações próximas, como Argentina, Chile, Uruguai que adentraram as transformações ao final daquele século. Assim, fomos um tanto retardatários na entrada ao novo tempo, pois só o fizemos no início da quarta década republicana. A dificuldade de análise dos documentos se dá justamente no hibridismo do tempo histórico. Por mais que possamos perceber rupturas constitutivas do novo tempo, com o surgimento de aspectos significativamente novos nos argumentos formulados, há, ainda assim, heranças passadas muito fortes que marcam as instituições educacionais.

Nosso procedimento metodológico é o trabalho exegético sobre as fontes, buscando a dimensão compreensiva através da noção de temporalidade histórica, nos termos definidos por Paul Ricoeur (2010), vale dizer, tempo cronológico que se cruza com as dimensões fenomênicas do tempo2. As fontes que trabalhamos são as ditas legislações, os debates ocorridos na Assembleia Legislativa do Estado de Minas no próprio ano de promulgação das legislações (1920/1924), Atas escolares de grupos escolares da cidade de Juiz de Fora, bem como fontes jornalísticas de época.

A questão do direito social à educação

Há um paradoxo fundador da modernidade educacional, entendida aqui como o tempo histórico da constituição do direito social à educação. Ela precisa se abrir à universalidade do acesso e ao fazê-lo se vê envolvida pela diversidade humana, social e cultural dos que a ela ascendem. Esse paradoxo atravessa os tempos da modernidade, bem como da contemporaneidade educacional. A vigência do paradoxo no nosso tempo revela-se na sempre renovada dificuldade da escola de lidar com a diversidade humana que está fora de qualquer perfil previamente estabelecido.

O esforço da nossa pesquisa está justamente na tentativa de perceber a instalação desse grande paradoxo educacional, de caráter universal, nos primórdios da nossa modernidade, mais especificamente o que precisou ser superado para que ele pudesse se instalar plenamente como marca dessa modernidade. A política pública de educação é coisa antiga, vem de tempos coloniais, quando o Estado português aqui instala as aulas públicas em tempos pombalinos (Boto, 2010). O Estado independente que aqui se instala já se quer, desde origem, como estado de direito dotado de sociedade civil, o que se chama de Estado moderno na definição de Hegel (2000). A despeito de profundas desigualdades sociais, e da vigência de relações escravistas, entre nós se introduz ineditamente uma dimensão de igualdade civil entre homens livres. A dimensão de igualdade introduzida produz os seus efeitos na ordem social e na ordem política, como nos diz uma historiografia recente (Graham, 1999; Grinberg, 2002; Mattos, 2009). A política de educação pública desde os primórdios da nação independente aí se coloca e se justifica. Que o diga a gratuidade do ensino elementar garantida pela Constituição de 1824 (Nogueira, 1999) e o compromisso da oferta público já estabelecido pela primeira lei educacional de 1827.

No entanto, a educação que se estabelece está longe de se constituir como direito social. Trata-se antes de educação comprometida com a formação de um estado civilizatório própria às sociedades civis modernas, onde a educação quer forjar a nova categoria social/política de cidadãos, que serão chamados à participação eleitoral. Da mesma forma como essa cidadania não é extensiva, mas hierarquizada, e sofrendo as restrições de renda, também a educação far-se-á restrita às possibilidades da oferta pública. O interessante é que ela se faz desde o princípio como educação voltada principalmente para pobres e remediados. Isso não quer expressar qualquer caráter filantrópico do estado moderno primordial, mas antes a natureza fortemente hierarquizada da sociedade, onde o Estado não precisa se preocupar com a formação elementar das classes sociais abastadas, pois essas têm os seus próprios recursos para tal3.

A despeito da educação ao longo dos Oitocentos não ser um contínuo, como quer recorrentemente certa historiografia, mas perpassado por fases históricas, como procurei demonstrar em outro trabalho (Rocha, 2010), o caráter de uma oferta pública relativa, segundo as possibilidades do Estado, sem compromisso estrito com a demanda, apenas com o dever cívico do Estado de constituí-la, mantém-se atravessando o século. As primeiras três décadas republicanas ainda são fortemente marcadas pela velha matriz, como pressupõe Jorge Nagle, embora sem demonstrar (Nagle, 2001). As coisas começam a mudar quando se esboça entre nós um novo tempo histórico que se apresenta trazendo novas preocupações na política de educação. O traço novo começa a se esboçar quando se dá precisamente a exigência de abarcar pela escolaridade todas as crianças e jovens em certa faixa de idade considerada obrigatória. Essa nova exigência traz como correlato o compromisso da oferta pública, trazendo ao Estado um maior e definitivo protagonismo no ensino elementar, ainda que admitido a livre oferta privada. Verbas orçamentárias públicas, nas várias esferas dos entes federativos, começam a se tornar obrigatórias.

Agora, é preciso atentar de que falamos de um novo tempo histórico que coloca a questão da universalização ou abrangência de crianças e jovens em faixa de idade obrigatória na escola, vale dizer, um horizonte de futuro que afeta a política pública de educação precisamente porque se torna necessário que a política no novo tempo leve em conta àquela exigência. Não se trata ainda, entretanto, de uma realização sociológica daquela abrangência, que de resto é um compromisso político que ainda hoje nos perpassa.

Outra dimensão necessária de ser precisada é relativa ao tempo histórico que atribuímos como atravessando as transformações que começam a ocorrer entre nós no tempo cronológico das décadas de 1920 e 1930. Como o conceito o define, o tempo histórico é um tempo público que a tudo abarca, tanto a esfera das legislações, como das representações, como das culturas localizadas, como no caso a cultura escolar. Por outro lado, não é um tempo que nos isola do resto do mundo, mas ao contrário nos integra ao mundo. Vale dizer, nos coloca na dinâmica de transformações políticas e sociais que vêm ocorrendo no âmbito do Ocidente. Trata-se, assim, de dimensão diacrônica que afeta as circunstâncias e os contextos políticos historicamente mais precisos. Como diz Fernand Braudel (2014), toda história é sempre uma história mundial4.

Considerações sobre histórias regionais e discussão historiográfica

O foco neste trabalho são duas legislações mineiras, situadas na década de 1920. Algumas considerações historiográficas sobre a regionalidade do enfoque precisam ser precisadas. O nosso entendimento é o de que a abordagem histórica regional assume significação quando busca perceber a instalação de um sentido histórico que ali ocorre, mas que de alguma forma aponta para algo mais abrangente à nação e ao contexto de inserção mundial do país. Embora possa ser perpassada por dimensões específicas, a significação da regionalidade será sempre ampla, pois remonta à caracterização do tempo histórico. Muitas das dificuldades de uma historiografia educacional brasileira contemporânea, que tem a pretensão de criar uma história comparativa, fundada nos estudos das políticas de educação regionais (estaduais), nascem precisamente da ausência de embasamento na categoria do tempo histórico. O tempo histórico é um tempo público que estabelece fases de articulação das contingências históricas. Ele nos permite perceber de que tempo viemos e no quê constituiu a mudança histórica. Trata-se de uma categoria fundamental no processo interpretativo da história, como diz Paul Ricoeur (2010), seguindo a tradição historiográfica moderna da Escola dos Annales.

Voltando à questão dos estudos comparativos, parece-nos crucial estabelecer o critério da comparação. Para que a comparação seja possível, é necessário estabelecer em relação a quê se compara, sob pena de que as características das situações históricas diversas que se pretende comparar sejam incomensuráveis. Não há outro critério senão o da temporalidade histórica, vista naturalmente para além da sua dimensão cronológica. Quais são as marcas fenomenológicas de um tempo histórico? O que registra a mutação? O que permanece como herança do passado? Pensamos que são a partir dessas questões que podemos perceber em quê medida determinada realidade histórica ingressa em tempo novo ou permanece estritamente presa aos traços de uma tradição5.

Se vamos tratar de estudo histórico regional relativo à década de 1920, não podemos deixar de nos referir ao autor Jorge Nagle (2001) que fez o melhor estudo comparativo das reformas de ensino dessa década. A superioridade da historiografia de Nagle (2001), independentemente de sua perspectiva epistemológica e de aspectos discutíveis de sua interpretação (Carvalho, 1998), está justamente na percepção de que aquelas reformas apontam para mudanças estruturais no tempo histórico no conjunto da nação. A sintonia fina com que percebe sentidos nas mudanças culturais, legislativas, administrativas, curriculares, pedagógicas o leva a buscar uma significação abrangente, de caráter histórico. Nesse sentido, os estudos historiográficos comparativos contemporâneos, pautados pela fragmentação, vão em direção oposta ao inaugurado por Nagle (2001).

O estudo de Nagle (2001) é importante porque percebe com sutileza momentos crucial de mudança na legislação. É no debate com os sentidos atribuídos pelo autor que iremos forjar a nossa argumentação. As concordâncias e contra-argumentos, que a partir do debate com Nagle (2001) iremos formular, nos servirão de hipóteses a partir das quais, em outra seção, buscaremos interpretar as legislações e os debates legislativos que temos como foco neste trabalho, sustentando tais hipóteses.

A primeira grande reforma educacional atribuída por Nagle (2001) à década de 1920 é a reforma Sampaio Dória em São Paulo. Sem entrar nos meandros da exposição do autor sobre a reforma, basta-nos explicitar o âmago do seu argumento. Ele nos diz que essa reforma já sintoniza com um novo tempo, o do ‘entusiasmo educacional’, precisamente porque coloca a preocupação de abrangência de todas as crianças na idade obrigatória (que será redefinida entre 9 e 11 anos), ainda que com redução das séries (apenas duas). É essa razão republicana e democrática, de abrangência de todos, que faz de tal reforma a mais definida politicamente nesse período, segundo ele. Não se pretende tornar insuficiente o ensino primário, mas sintetizá-lo em duas séries obrigatórias, por isso exigindo idade pouco mais madura da criança para a absorção do adensamento curricular. O que é inadmissível é deixar parcela da população escolar fora da escola. Se as verbas do orçamento estatal não são capazes de uma absorção de todas as crianças de 7 a 14, na velha escola pública de quatro séries, então, é preciso repensá-la para efetivamente absorvê-las na totalidade, sob pena de constituir cidadãos de categorias diferentes. É precisamente essa sintonia política, republicana e democrática, conduzindo a reforma educacional, que faz desse período um novo tempo histórico na educação, marcado pela tarefa política da educação na formação da cidadania brasileira, segundo Nagle (2001).

Entretanto, o novo tempo, o do ‘entusiasmo educacional’, inaugurado na década de 1920 pela reforma Sampaio Dória, não é todo ele homogêneo, podendo-se perceber nele duas fases históricas, distinguidas grosso modo entre o primeiro e o segundo quinquênio. Se as reformas cearense e baiana em inúmeros aspectos se aproximariam da Sampaio Dória, por outro lado, a mineira, a pernambucana e, especialmente, a do Distrito Federal, ainda que constituindo um desdobramento do ‘entusiasmo educacional’, porque continuariam a colocar papel relevante da educação na ordem social, são entretanto uma nova fase, com características bem diferentes. Agora a questão política de uma cidadania estendida a todos já não é o argumento crucial. A essa sobrefase, Nagle (2001) chamou de ‘otimismo pedagógico’. A perda política da dimensão republicana e democrática seria o marco da segunda fase, acentuando, ao invés da extensão da escolaridade, o aprimoramento pedagógico da escola, tomando-a como finalidade em si mesma, sem subordiná-la a razões políticas outras.

A crítica às categorias de Nagle (2001), ‘entusiasmo e otimismo pedagógico’, está feita pela historiografia, nem sempre com justiça. Se se pode dizer, com razão, com Carvalho (1998), que não há despolitização entre a primeira e a segunda fase, mas transformação da natureza política do enfoque educacional, entretanto, a percepção do novo tempo histórico da abrangência educacional é dimensão relevante da qual não se pode abrir mão. De fato, a reforma Sampaio Dória anuncia um novo tempo, expressão que é do movimento de descontentes com a república existente, que exige a incorporação do povo à política, buscando um novo arreglo institucional que não mais se submeta ao jogo intra-elites que marcava o velho regime (Lessa, 1988). Ocorre que o tempo novo não surge puro sangue, como de resto sempre, mas maculado com antigas heranças provenientes de tempos do Império. Esse é um problema da análise de Nagle (2001). Ele não é um entusiasta das reformas educacionais das primeiras décadas republicanas, bem percebendo que o novo somente surge na quarta e última década da Velha República. Porém, a sua análise histórica se recente desse tempo pregresso, não justificando satisfatoriamente no quê as primeiras décadas republicanas são continuadoras da educação do período imperial, bem como também os anos de 1920, especialmente na primeira metade, ainda é devedor daquela matriz antiga.

No nosso entendimento é no tempo imperial que se pode perceber a formação das heranças que irão marcar a política educacional das primeiras décadas da República que, a despeito dos seus arroubos declaratórios de ruptura, são indeléveis no novo regime. Há fundamentalmente duas dimensões que são herdadas da época imperial. A primeira diz respeito a algo constitutivo do velho regime que se queria como res publica, ou seja, como Estado de direito formado por sociedade civil, onde a educação aparece como dever cívico. Ela é um dos elementos formador do eleitor. O Estado se obriga a essa formação, ainda que de maneira restrita às suas possibilidades. Como dissemos acima, não se trata ainda de uma educação como direito social, pois ela não é extensiva, como também não o é a própria representatividade política a qual se liga.

A outra dimensão refere-se a algo que surge apenas ao final do Império; não é portanto estrutural a ele. Trata-se do desgaste da ação pública frente à insuficiência dos resultados obtidos no âmbito da educação popular. A centralidade monárquica está na raiz desse desgaste, resultando daí a compreensão generalizada de que a ação pública é sempre insuficiente para dar conta da ampliação da educação. Roque Spencer de Barros (Barros, 1986) bem percebeu tal desgaste da política imperial ao atribuir a ele a razão do por que fomos tão retardatários na construção universitária. O resultado dessa compreensão é uma formulação doutrinária de que o ímpeto principal da ação educacional pertence à sociedade, com a colaboração do poder público. Essa inversão, no contrapé do que se passava no próprio mundo de referência, a América e o Ocidente europeu, na segunda metade dos Oitocentos, lido evidentemente em outros termos pelos nossos políticos, a exceção de ilustres cabeças, como Ruy Barbosa, é o que vai se configurar plenamente no Decreto Leôncio de Carvalho, de 1879 (Decreto nº 7.247).

Então, são esses dois paradigmas históricos que serão herdados pelos nossos republicanos, sem que se dessem conta dos vínculos com o antigo regime: educação como dever cívico e educação como política de Estado, porém com a colaboração material da sociedade, seja através das iniciativas livres, seja na meação da ação pública. Essa é a análise histórica faltante na interpretação de Nagle (2001), o que pode remeter a outra compreensão da reforma Sampaio Dória. Não resta dúvida, como dissemos, que tal reforma inaugura um novo momento histórico, muito bem percebido por aquele autor, especialmente pelo seu compromisso com a incorporação abrangente da população escolar. No entanto, o faz não apenas comprometida com contexto político crítico ao regime republicano, já desgastado com sua incapacidade de incorporação cívica do povo, mas também comprometido com aquelas tradições do império não superadas: colaboracionismo social com a educação, através das amplas campanhas alfabetizantes, que marcaram os movimentos cívico-nacionalistas dos anos de 1910, do qual o próprio Sampaio Dória é um dos protagonistas; e educação entendida como dever cívico da nacionalidade, o que implica numa imputação de culpa à sociedade ao não cumprimento desse dever.

No novo contexto republicano, os anos de 1920, o Estado assume o dever de ampliar as possibilidades educacionais do povo, porém com colaboração da sociedade e com sansões públicas à ‘incúria do povo’6. Não se pode deixar de destacar uma importante inflexão que a reforma Sampaio Dória produz no próprio movimento cívico-nacionalista da década anterior, ao propor não mais mera campanha alfabetizante, mas efetivamente a expansão da construção do aparelho escolar. Entretanto, a redução das séries escolares efetivada não deixa de estar comprometida com a vulgarização dos processos alfabetizantes, ainda que pedagogicamente tenha pretendido ser mais do que isso.

A análise histórica de Jorge Nagle (2001) não se reduz à percepção do novo tempo histórico que se configura na década de 1920, o ‘entusiasmo educacional’. A agudeza de sua compreensão remete também, como já dissemos, ao desdobramento dessa fase em outra que, embora ali inserida, a rigor possui características bem distintas como acima distinguimos. É a fase histórica do ‘otimismo pedagógico’ que engloba, ainda na década de 1920, algumas reformas educacionais, tais como a mineira, a pernambucana e, especialmente, a do Distrito Federal. Já não se pretenderia, segundo a análise do autor, uma escola orientada politicamente para a formação cidadã extensiva, mas uma escola de qualidade pedagógica que não se limite à transmissão das regras básicas da cultura, ler e escrever. A perda política na orientação da escola expressaria uma mutação social importante, qual seja a culminância de uma transição de uma sociedade agrária para outra urbano-industrial. Em última instância, de uma sociedade estamental para uma sociedade classista.

Por mais que possamos compreender contemporaneamente as atribuições interpretativas do autor como algo datado, fruto de um determinismo econômico-sociológico no pensamento social de época, não resta dúvida que se trata de percepção sutil, atenta aos discursos da cultura, das legislações e da pedagogia, antes de qualquer substrato de razão econômica. Não obstante, a crítica que se pode fazer diz respeito a sua formulação abstrata do liberalismo, quando atribui esta adesão ideológica aos nossos escolanovistas, que tanto influenciaram política e pedagogicamente especialmente a fase do ‘otimismo pedagógico’7. Parece ao autor que o termo define-se em si mesmo, sem qualquer referência sequer à controvérsia doutrinária sofrida pelo conceito ao longo dos tempos. Consequentemente, também não se indaga sobre as condicionalidades ideológicas do ‘liberalismo’ dos nossos escolanovistas. Sua percepção justa de que o escolanovismo entre nós instala-se via políticas públicas, diferentemente da expansão do ideário pedagógico na Europa e na América do Norte, ocorrida através de experiências privadas e localizadas, não afeta o seu abstracionismo conceitual. Decididamente nossos escolanovistas eram publicistas em matéria educacional, o que em si mesmo já relativiza sua pretensa adesão ideológica ao liberalismo simplesmente. A cegueira do autor parece-nos que decorre do determinismo econômico de sua interpretação geral sobre a mutação histórica sofrida naqueles anos de 1920, a medida em que daí decorre um dualismo simplista: sociedade estamental versus sociedade classista, o liberalismo abstrato correspondendo a adesão ideológica a esta última.

As considerações acima são importantes para o nosso processo interpretativo, porque iremos atribuir à inflexão percebida por Nagle (2001) dentro da fase histórica do ‘entusiasmo educacional’, constituindo o ‘otimismo pedagógico’, como pertinente a uma mutação histórica relevante, porém distinta, qual seja a constituição no contexto brasileiro do moderno direito social à educação. O nosso entendimento é que finalmente chega ao nosso espaço público algo que já vinha ocorrendo em várias partes do mundo ocidental, qual seja o surgimento do direito não mais como conquista de categoria social, mas como direito dos indivíduos, vale dizer, como direito público que a todos se estende8. Trata-se assim de dimensão estrutural, diacrônica, que marca uma nova inflexão do processo histórico de formação de direitos no Ocidente, que já vem ocorrendo em inúmeros países europeus e na América do Norte, pelo menos desde o último quartel do século XIX, senão pouco antes. Inaugura-se, então, a nova fase histórica, que marcará o século XX pela conquista de múltiplos direitos sociais, e dos quais o direito social à educação antecede. A análise textual que se segue pretende dar consistência interpretativa às hipóteses gerais levantadas.

As legislações mineiras de educação da primeira metade da década de 1920

Aqui trabalhamos, como indicado no início, duas legislações mineiras da primeira metade da década de 1920, a Lei n. 800, de 27 de setembro de1920, que reorganiza o ensino primário do Estado, proposta e aprovada pelo Presidente do Estado Arthur Bernardes; e a Lei n. 864, de 19 de setembro de 1924, que aprova a regulamentação do ensino primário, sancionada pelo Presidente do Estado Olegário Maciel. Não teremos a preocupação de exaurir todos os aspectos das respectivas leis, apenas de destacar aqueles que nos interessam para fundamentar nossas hipóteses interpretativas já esboçadas no debate anterior.

Iniciamos as considerações destacando a ‘apresentação’ do projeto de lei feita à Assembleia Legislativa de Minas na Ata da sessão de instalação do Congresso em 17 de junho de 1920. Logo no início da ‘apresentação’, o governante diz o seguinte: “A educação popular que, em quadras normais, deve constituir um campo de eleição para a atividade de todo governo consciente, tornou-se, agora, o problema vital, o máximo problema da nacionalidade”9. Já nesse início de formulação da ‘apresentação’ temos algo bem significativo. Arthur Bernardes faz referência há dois tempos históricos. Ao que estava na tradição do trato da educação popular, nas ‘quadras normaes’ da vida pública, na qual a obrigação do governante é a de eleger a ação educativa da população em geral como dimensão do dever ‘consciente’, vale dizer, como ação pública necessária ao governante em sintonia com o caráter da natureza do Estado, que é a de formação da sociedade civil. Esta ação pública será uma escolha do governante, pois se trata de algo que está nos fundamentos do Estado, porém não fruto da premência de questões a serem enfrentadas pelo governo. Ora, a percepção de Arthur Bernardes é a de que, na sua contemporaneidade, esse tempo mudou. Trata-se agora de uma premência, de uma questão vital à vida pública, de um problema que o governante não pode simplesmente escolher enfrentar, pois se trata da maior questão do país, a formação da nacionalidade, já não mais como mera questão de fundamento do Estado, mas como exigência de políticas que tratem imediatamente dessa necessidade.

A mutação ali expressa tem certamente a ver com uma razão sociológica do crescimento da demanda de educação, especialmente das populações urbanas, mas também com certeza do surgimento, já na década de 1910, de um novo sentimento cívico acusatório da incapacidade da república de incorporar a população nos destinos do país. O governante Arthur Bernardes, embora usufrutuário e sustentáculo do velho regime republicano, ainda assim paradoxalmente expressa o novo sentimento cívico, pois se trata de uma subjetivação pública que ultrapassa a percepção dos atores do papel que executam no quadro institucional da política. O resultado é que já não se trata mais de simples escolha do governante enfrentar ou não a questão, mas sim exigência do tempo histórico, do qual governante algum pode escapar, sob o custo de rapidamente ficar politicamente ultrapassado.

O argumento inicial prossegue sobre a exigência de valorização do homem que habita a terra para vencer o contraste entre “[...] a opulência, as pompas, as grandezas do território e a miséria, a pequenhez, a desconsolada fraqueza do homem que o habita. [...] A pedra angular dessa immensa e generosa construção patriótica há de ser o combate [...] do analfabetismo” (p. 30)10. Percebe-se aqui o comprometimento com aquele espírito crítico trazido pelos movimentos cívico-nacionalistas da década de 1910, que aventaram a luta contra o analfabetismo como grande apanágio da reformulação nacional. Viu-se que a reforma paulista de 1920 também se encontra comprometida com tal ideal de luta, e que nesse aspecto revela situar-se ainda numa tradição de colaboracionismo da sociedade com a educação, pois a luta contra o analfabetismo a todos convoca civicamente, omitindo o papel protagonista do Estado na matéria educacional, traço decisivo do tempo novo, o da modernidade educacional, que surgirá entre nós a seguir.

A despeito do hibridismo, não se pode dizer que a reforma mineira de 1920, em suas especificações, não sintonize com o tempo do ‘entusiasmo educacional’, como já indica o preâmbulo da ‘apresentação’ na lúcida formulação do governante. Inúmeros argumentos podem ser buscados tanto na letra da reforma, como nos argumentos justificadores da ‘apresentação’, enviados pelo governo à Assembleia mineira. Ainda nesta última, há a indicação de que para enfrentar a nova demanda já não basta o velho expediente de transferir escolas, quando grupos escolares são criados. É preciso enfrentar a “[...] fragrante insufficiencia para extensão do Estado e a sua população escolar” (p. 31). “Cumpre, antes de mais nada, attender a essa falha, multiplicando, com efficiencia, as casas de educação, onde quer que ellas sejam com razão reclamadas” (p. 31). O mais interessante nessa argumentação da ‘apresentação’, é que o governante percebe que nem em todo lugar o crescimento da oferta escolar pode ser dependente da demanda, como na passagem abaixo.

Parece de elementar justiça o consignar que, si preferência pode haver, neste particular, entre as exigências das cidades e a das povoações ruraes, deve propender para estas últimas a balança do poder publico, uma vez que a pobreza, a ignorância, a ausência de solicitações estimulantes do meio tornam muito mais difficil e rara, entre os homens do campo, a substituição da acção official pela iniciativa individual (p. 31).

Seja por razões ligadas aos interesses políticos de apoio em áreas agrícolas e rurais do Estado de Minas do governante Arthur Bernardes, ou já como sintonia com o tempo do ‘entusiasmo educacional’, o fato é que com essa argumentação descola-se a ação pública escolarizante da demanda, de certa forma colocando o protagonismo do Estado em outro patamar, onde a solicitação da sociedade já não é o fator crucial da oferta. Por outro lado, em termos orçamentários, propõe-se a consignação anual no orçamento “[...] tendo em vista a maior ou menor folga de recursos [...]” para a multiplicação de escolas (p. 31). Portanto, longe estamos ainda, com o último argumento, de uma fixação orçamentária permanente para a educação, característica relevante tempo do direito social à educação, pois se fica à mercê das possibilidades do Estado a cada ano.

Percebe-se, assim, o hibridismo da argumentação nessa fase histórica. Porém, é preciso atentar que a mistura de conceitos e visões de mundo não pode naturalizar a transição histórica, pois assim consideraríamos que está implícito na transição um destino, ou seja, uma pré-fixação do resultado a que se chegará, à moda de uma teleologia, purificando a protoforma. Nossa compreensão é outra. O hibridismo, entendido como emergência numa fase histórica de dimensões do novo, ao lado de permanências de uma tradição, precisa ser compreendido como um contexto histórico que tem sentido em si mesmo. O que permanece não é apenas um resquício de tempos passados; a ele agrega-se o sentido da reincidência do passado no novo contexto histórico, onde já começa a emergir a alteração do tempo. A fase do ‘entusiasmo educacional’ é tipicamente um período histórico híbrido de formas de compreensão de mundo. Como não há desdobramento necessário, automático, é preciso indicar o que se altera na tradição para a entrada no novo tempo. É isso que procuraremos identificar nos argumentos de época e nos termos das legislações.

Obrigatoriedade escolar

A discussão sobre a obrigatoriedade escolar é uma das dimensões mais interessantes para a percepção das questões da temporalidade histórica. Em termos gerais, não é questão nova, pois provêm de tempos imperiais. A primeira legislação mineira da educação, de 1835, já a coloca, até com certo rigor punitivo aos pais, tutores e responsáveis que não a cumprissem. O traço desse longo período que vai até à penúltima década do Império é o de uma obrigatoriedade escolar formulada, pois constitui dever cívico do Estado exigi-la, mas que não se pode cobrar por conta de que é dependente da diminuta oferta pública de escolas. Isso se altera quando as legislações provinciais começam a imputar ao povo a culpa pela não frequência escolar. Em outro trabalho aqui já referido, chamamos a mudança de alteração do vilão da história: já não mais a culpa ao Estado, mas à sociedade. A partir de então, há mais rigor na verificação da frequência escolar, pois ao Estado compete combater a ‘incúria’ do povo na obrigação escolar, usando o termo da lavra de Leôncio de Carvalho, conforme citado acima. Na República a questão foi relegada aos estados, como de resto todas as questões relativas ao ensino elementar. Em Minas, a obrigatoriedade da matrícula escolar, embora contemplada nas reformas que antecedem a de 1920, possui basicamente o mesmo caráter que prevaleceu ao final do Império: ao Estado compete a cobrança do dever cívico aos cidadãos de frequentá-la, frente à indiferença ou a ‘desídia do povo’ quanto à questão11.

Na reforma de 1920, a questão da obrigatoriedade escolar vê-se um tanto alterada. A começar porque se pretende abarcar nela tanto pobres como não pobres, incluindo a educação doméstica, que será verificada via exames seriados em escolas públicas. O horizonte de futuro de uma escolaridade que a todos abrange já aí se revela. Mas se mantém ainda as exceções, seja das crianças pobres que estão fora do perímetro escolar das escolas gratuitas (Art. 22, §1º), seja dos que estão dentro, mas não podem frequentá-la por razões de pobreza ou falta de vagas (Art. 218, § 5º)12. As exceções parecem indicar a manutenção dos velhos paradigmas. No entanto, há diferença a partir da busca do Estado de a todos recensear, os que estão na escola e os que não estão (Art. 36), ou seja, os que não estão se constituem como problema da política pública setorial, expressando o horizonte de futuro de a todos abarcar. E aqui já estamos enveredando por outra importante consigna da modernidade educacional que é a retomada do protagonismo público na oferta da escolaridade.

Dissemos retomada, porque a matriz primeira da constituição educacional, lá no Império, foi a da iniciativa pública fundamentalmente. Essa matriz se perdeu ao final do antigo regime, a última década, se tomar a reforma do município da Corte, o Decreto-lei Leôncio de Carvalho (Decreto nº 7.247, 1879), como referência paradigmática. Ali se constituiu a parceria público/privado na qual competia ao Estado os estímulos às iniciativas da sociedade, bem como as fiscalizações, mais no âmbito moral do que pedagógico. O quadro começa a mudar precisamente nessa década de 1920 com a emergência do papel do protagonismo público na educação. A colaboração da sociedade persiste, porém é visível a função ampliada do Estado, já não mais apenas na fiscalização, mas inclusive na oferta do ensino. As parcerias continuam a se fazer, mas já não se trata de contar fundamentalmente com a iniciativa privada na educação, e sim com parcerias que se dão seja com outros entes públicos, como os municípios, seja com entes privados subsidiados, visando no futuro tornar pública a iniciativa. Nos estímulos que o estado dá à criação de grupos escolares nos municípios, já aparece a contribuição da verba estadual (a metade) para a construção predial (Art. 162), o que antes era dependente da doação do prédio.

Voltando à questão da abrangência de todas as crianças na idade escolar, há uma dimensão crucial a ser enfrentada pela escolaridade pública, que é a educação dos muito pobres. Como se viu acima, no Art. 218, §5º, eles estão até excetuados da frequência obrigatória. Ocorre que isso se constitui como problema, pois a tradição de escola pública entre nós, vinda desde tempos primordiais, foi sempre o de uma escola para pobres. Já disse mais acima que esse traço não indica qualquer filantropia do Estado, mas fundamentalmente expressão de sociedade fortemente hierarquizada, onde a educação de filhos das elites no nível elementar não é preocupação do Estado, mas das próprias classes privilegiadas ou remediadas. Sequer se cobra a obrigatoriedade escolar desses segmentos sociais, pois a educação doméstica não é verificada, coisa que se altera, como vimos, a partir das legislações da década de 1920. Frente a essa tradição antiga, é preciso responder ao processo de afastamento das classes populares das escolas, quando da mudança da composição social das escolas públicas, especialmente nos centros urbanos dotados de grupos escolares. Com certeza, a melhor qualidade dos prédios públicos e os novos procedimentos pedagógicos estão na raiz da atração da escola pública pelos novos segmentos sociais (Faria Filho, 2000). Diga-se também que toda a estruturação da distribuição escolar pela cidade e pelas zonas distritais e rurais obedece a uma hierarquização. Da capital municipal aos distritos e zonas rurais as escolas obedecem a diferentes tipos; mais complexas naquelas, com maior número de séries, e mais simplificadas nas últimas (Art. 118). Hierarquização regional e social são as soluções encontradas pelos republicanos dessa fase histórica frente a maior vulgarização da escolaridade.

Caixa escolar

Retomando a questão da exclusão dos pobres da escolaridade pública, especialmente dos grupos escolares das sedes municipais, encontrou-se solução através do acento em um antigo instrumento, a caixa-escolar. A instituição é proveniente do período imperial, pois como se disse toda a educação pública primária dos tempos primordiais voltou-se para crianças livres e pobres. Não faltaram regulamentações provinciais com a pretensão de garantir vestimenta adequada para a frequência escolar, bem como material didático, para quem fosse desprovido de renda para tal. A ajuda naquela primeira fase histórica do Império era pública, não filantrópica, quase um direito social. Entretanto, ao final do antigo regime, quando se dilui o argumento de expansão da escolaridade como exigência da formação cidadã do povo, substituído pelo argumento de evitar o crescimento da marginalidade social - período da política do livre-ensino - tem-se o acento no caráter filantrópico com apelo à sociedade para que crianças pobres frequentem a escola. A República nos seus primórdios herda fortemente essa matriz filantrópica no que diz respeito ao colaboracionismo da sociedade com a educação. Ainda na década de 1910, há apelos das autoridades públicas para a formação de ‘livros-ouro’, assinado por ilustres figuras, para a caixa-escolar. Na época republicana que estamos estudando, década de 1920, há ligeira inflexão sobre a questão. Já não é tanto o apelo à sociedade em geral, mas ao público de cada escola, inclusive aos profissionais da própria escola, através de doações ‘espontâneas’. As festas escolares ao longo do ano são também importantes fontes de renda da caixa-escolar. Por outro lado, há importante crescimento de fontes públicas, tais como rendas provenientes de sanção financeira ao professor faltoso da escola. À caixa-escolar cabe a sustentação da doação de roupas, calçados e material didático, bem como a merenda escolar aos alunos necessitados.

Enfim, o que buscamos com essas considerações é a compreensão do sentido de época que ali se expressa. No nosso entender, nessa última fase republicana, tratou-se de manter o impostergável compromisso da abrangência da escolaridade para com as crianças em idade obrigatória, o que incluía as crianças pobres, especialmente nos lugares em que elas se viam compelidas à exclusão, nos grupos escolares centrais das cidades, por conta da maior demanda de outros segmentos sociais até então afastados de escolaridade pública. Porém, os termos da política de incorporação dão-se até certo ponto em moldes antigos, com apelo social, embora já se possam perceber alterações na tradição, com maior comprometimento público, ainda que localizado no espaço de cada escola. A caixa-escolar parece mudar novamente a sua natureza, retomando certa dimensão pública perdida. O apelo à sociedade para a colaboração com a caixa-escolar parece ainda vigorar na nova fase, mas de forma restrita às famílias das crianças escolarizadas e às iniciativas festivas da própria escola. São características perfeitamente compatíveis com a fase histórica que Jorge Nagle (2001) chamou de ‘entusiasmo educacional’, pois comprometida, em termos de preocupação pública, com a abrangência de todas as crianças na idade escolar, mas marcado pelo forte apelo ao dever cívico da população à frequência escolar.

Matrícula e frequência

Entramos, assim, na última característica que pretendemos assinalar neste trabalho, mas com certeza a mais relevante para o nosso processo compreensivo dessa fase histórica. Trata-se da questão da matrícula e da frequência escolar. Enveredamos aqui por itens específicos do que Jean-Claude Forquin chamou de ‘cultura escolar’, ou seja, a normatividade pública que regula o fazer escolar, em diferenciação com a cultura das práticas escolares no interior de uma instituição, que ele chamou de ‘cultura da escola’ (Forquin, 1993). É bom destacar de início que tal questão não se constitui como mero problema de controle da efetiva participação da população na escolaridade oferecida pelo Estado. Bem mais do que isso, a matrícula e a frequência escolar é dimensão estruturante de todo o arcabouço institucional do aparato escolar público. A começar porque é a matrícula que autoriza a instalação de cada escola a cada início de semestre letivo. Posteriormente, é a frequência efetiva na escola que determinará a natureza institucional da própria escola. Entrando mais a miúdo, há que se assinalar que a hierarquização escolar dá-se em função de sua localização (rural, distrital, urbana - sede do município), bem como em função da frequência. Mesmo os grupos escolares, de modo geral situados nas sedes dos municípios, são hierarquizados segundo a quantidade de salas de aula e à frequência. Caso percam a ‘frequência legal’ poderão ser destituídos até da própria condição de grupo escolar, tornando-se ‘escolas reunidas’ (Art. 167). A frequência também determina os desdobramentos de classes e de turnos, trazendo consequências nas vagas de professores e adjuntos da escola (Art. 171). No Art. 227), há a regulamentação da matrícula que antecede a instalação ou abertura do ano letivo escolar. A matrícula é condição prévia para que a escola possa existir naquele ano letivo. Pode-se observar que a ritualização da matrícula, com prazos rígidos, notificações, avaliações de isenção de obrigatoriedade da matrícula, atas e termos, comunicações oficiais, enfim toda a burocracia existente, não deixa de ser indicativo da existência do peso da matrícula e frequência no ordenamento escolar. A não frequência gera uma série de sanções e desclassificações de escolas e até mesmo do grupo escolar (Art. 240). No entanto, a despeito dos mínimos necessários para a institucionalização de escolas, grupos e classes (salas de aula por série), se excetuam do rigor as classes de 4ª série, pois se leva em conta a inevitável evasão. Conforma-se o duro regimento escolar à imposição da realidade13.

Quê significação se pode encontrar para a delimitação do tempo histórico nessa rápida caracterização do regramento escolar, no que diz respeito à matrícula e à frequência? A princípio, percebemos um aspecto sociológico básico que está fundamentando, como pano de fundo, todo o processo da regulação escolar, qual seja a massificação da escolaridade como dimensão histórica nova, que somente nessa década de 1920 começa a nos ocorrer, em defasagem com países europeus e norte-americanos, mas também em relação a vizinhos muito próximos, como Argentina, Uruguai e Chile, que já ao final do século anterior faziam a sua revolução escolar. A escola é instituição antiga, mas entre nós sempre foi algo muito restrito. Ao final do Império, no município da Corte, somente 10% de crianças na idade escolar eram absorvidas pela instituição, a se levar a sério declarações de ministros dos Negócios do Império, ministério ao qual se ligava a política setorial. A República não muda consideravelmente o quadro de absorção, a despeito da criação de instituição nova, o grupo escolar, muito lentamente espalhado pela capital e municípios do interior. Diga-se que a própria legislação que estamos estudando, a de 1924, proíbe a criação de grupo escolar em distritos. Enfim, a escola expandida é algo novo no nosso contexto histórico, daí resultando resistências sociais de toda ordem. Ao mesmo tempo em que as populações urbanas demandam crescentemente a instituição, elas resistem aos seus regramentos que alteram os ritmos da vida estabelecida. P. ex., a formação de turnos nas escolas e grupos escolares, exigência do aumento da demanda, coisa absolutamente inédita, cria horários de refeições completamente fora dos padrões vigentes, mudando a fisiologia da sensação de fome dos organismos, bem como a disponibilidade de crianças para levar almoço a seus pais trabalhadores. As imposições de matrícula e frequência são, assim, dimensões disciplinadoras que querem regular o crescente gasto público com educação frente às resistências da população à regulação escolar.

Para além, entretanto, dessa dimensão sociológica, de mudança do quadro social, há que se perceber em que contexto de ideário social tais mudanças ocorrem. É nesse âmbito que se pode detectar de que mundo emerge a mudança. Em outros termos, trata-se de argumentar que a mudança social que altera o tempo histórico não se faz de maneira automática, no acúmulo puro e simples do acontecer. Ela requer a transformação da concepção de mundo que até então vigorou. Isso naturalmente nos aguça na percepção de qual é o ponto decisivo para que se possa dizer da alteração do mundo, ou seja, da emergência de um novo tempo histórico. A grande herança deixada desde tempos do império, embora atenuada na fase final, fortemente acentuada pela república nas primeiras décadas, como se viu, é a compreensão da educação como dever cívico. Nas duas primeiras décadas, tratou-se de exaltar a formação do novo cidadão republicano; nas décadas seguintes, já de crise republicana, de fazer cumprir pela educação a promessa não cumprida pela República de incorporação do povo à cidadania representativa.

As fontes trabalhadas, das legislações e dos debates parlamentares, da primeira metade dos anos de 1920, parecem indicar que o paradigma da educação como dever cívico permanece. E a questão da matrícula e da frequência escolar é, talvez, a que mais o evidencia, pois ali se tem um ordenamento fortemente impositivo de que o gasto público com educação far-se-á à medida que a população de usuários saiba reconhecer o valor desta para a sua condição de cidadão. Há, portanto, uma suposição embutida, embora às vezes até explicitada, de que o povo não dotado de consciência cívica é perpassado pela ‘insídia’ ou pela ‘incúria’, como diriam nossos monarquistas do final do antigo regime.

Assim, o ponto decisivo para a transformação do momento histórico, para a mudança do contexto e desdobramento pelas novas questões da educação como direito social, consiste no abandono de uma ação pública que, na fase histórica das duas legislações trabalhadas, ainda se faz dependente do interesse prévio demonstrado pela população, ou seja, pela precedência de sua consciência cívica do valor da educação. Quando a ação pública descola-se dessa condicionalidade, assumindo inteiramente o seu caráter protagonista na conformação de uma demanda pública, aí sim, começa a se configurar um novo contexto histórico que se pode chamar do moderno direito à educação.

Os termos e preocupações das legislações que são objeto deste trabalho, relativas à primeira metade dos anos de 1920, indicam que elas ainda estão inteiramente contidas no paradigma da educação como dever cívico. A análise das narrativas nos permitiu perceber certa caracterização da fase histórica, bem como o ponto crucial que articula o conjunto, que é precisamente a permanência dessa herança profunda, de uma educação que mais se faz por razão política de um Estado que requer dos cidadãos consciência cívica, do que em sintonia com as transformações políticas ocidentais nas quais direitos civis genéricos se configuram agora como direitos sociais dos indivíduos. O que então caracteriza fundamentalmente essa fase histórica da primeira metade dos anos de 1920 é a compreensão da educação ainda como mero direito civil, a qual compete ao Estado exigi-lo de suas populações, devedoras do dever cívico.

A título de conclusão: busca de significação global da fase histórica

Voltemos então à historiografia de Jorge Nagle (2001) para discutir a sua sutil percepção da mutação histórica ocorrida naqueles anos de 1920, nas reformas educacionais do período. Entre o primeiro e o segundo quinquênio daquela década, teria acontecido para ele uma importante alteração na fase histórica do ‘entusiasmo educacional’ que foi o surgimento da sobrefase do ‘otimismo pedagógico’, como já se disse. Com muita pertinência, Nagle (2001) percebe a mutação que se revelaria em diversos aspectos, desde aqueles qualificadores da pedagogia até à dimensão institucional da própria escola, considerada agora como um valor em si mesmo, não dependente de qualquer pretensão política civilista. A isso o autor atribuiu perda do valor político da educação. A crítica historiográfica que a ele se fez lhe atribuiu equívoco por não perceber que o que houve não foi perda política, mas transformação da política já não mais civilista, agora voltada para o amoldamento da consciência popular, segundo a intencionalidade de elites intelectuais de perfil autoritário. Essa crítica historiográfica pautou-se em grande medida pela denúncia do caráter político autoritário daquela geração que constituiu a modernidade educacional brasileira.

Pode-se agora retomar a questão da mutação histórica quando do surgimento do ‘otimismo pedagógico’. Antes de tudo, valorizando a percepção de Nagle (2001) daquela transformação histórica; porém acentuando que a transformação se deve a um abandono valorativo crucial, qual seja a educação compreendida como dever cívico da sociedade. Nagle (2001) percebeu, como já se disse, o afastamento da questão civilista. Equivocou-se, no entanto, ao atribuir ali o afastamento da política, não compreendendo que no tempo novo que está emergindo os indivíduos são dotados de direitos, e que esta é a forma política do novo tempo. Assim compreendido, o viés da nossa crítica a Nagle (2001) já não é a denúncia do autoritarismo daquela geração constituidora da modernidade educacional brasileira, de resto algo que perpassa quase todos os atores àquele tempo, especialmente se tomarmos os critérios contemporâneos de cidadania como referência.

O trabalho aqui apresentado não envereda pelo novo contexto, que segundo a formulação de Nagle (2001), estaria abrangido a partir da segunda metade dos anos de 1920. A pesquisa aqui expressa indica apenas os fortes indícios de que esse novo tempo em Minas ainda não está constituído naquele primeiro quinquênio da década. Mais do que isto: ela precisa da permanência da questão civilista, herdada do período imperial, como dimensão articuladora daquele contexto, justamente o que precisaria ser superado para que possa se dar o desdobramento histórico.

Retomando o paradoxo primeiro do tempo da modernidade escolar que apontamos no início do trabalho, afirmamos que a condição primordial para que a diversidade humana e cultural possa se constituir como problema no processo educacional brasileiro está justamente na superação do generalismo da condição de civilidade, vale dizer, tratar os indivíduos já não mais como seres genéricos, mas como indivíduos dotados de direitos, processo histórico que está em plena realização nos países ocidentais das primeiras décadas do século XX.

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1Este trabalho é fruto de pesquisa que contou com o apoio do CNPQ (2013 / 2014) e da FAPEMIG (2014/2016), ambos e Editais Universais.

2Para Ricoeur (2010) o tempo histórico possui uma dupla face: tempo cósmico ou cronológico ou do calendário, e tempo fenomenológico, que remete às experiências de mundo expressa pela narrativa. Também o tempo do calendário é uma produção fenomênica do vivido, já que é através da experiência de passado, presente e futuro que ele se estabelece. Porém, o tempo cronológico se fixa como pontos axiais no eixo do contínuo temporal, permitindo a marcação cósmica. O acontecimento histórico registra-se então duplamente: pelo tempo do mundo, tempo do calendário, e pelo tempo vivido, marcado pela enunciação, pela narrativa. Toda narrativa será sempre expressão de um tempo histórico. É através da narrativa que o tempo do mundo se reinscreve no tempo humano. Ver a respeito: (Ricoeur, 2010, cap.7).

3No Decreto-lei Leôncio de Carvalho (Decreto nº 7.247 de 1879), o que mais acentua a obrigatoriedade, há referência ao ensino domiciliar, porém bastando apenas o compromisso dos pais, tutores ou protetores para que ele se faça (Art. 2 - caput). Somente na década de 1920 a comprovação será exigida através de ‘exames livres’ em escolas regulares.

4Há nas obras de Fernand Braudel inúmeras referências à exigência de uma história amplificada de caráter mundial. Restringimo-nos a citar uma delas: (Braudel, 2014, p. 254)

5A percepção do tempo histórico como categoria para pensar comparativamente sistemas educacionais não é novidade na historiografia da educação. A primeira publicação da Sociedade Brasileira de História da Educação (SBHE), intitulada Educação no Brasil, publicou em 2001 um trabalho de Mariano Narodowski (Narodowski, 2000), ex-presidente da Sociedade Argentina de História da Educação, que se constitui como referência para essa abordagem.

6O termo é usado por Leôncio de Carvalho em suas justificativas ao Parlamento da Reforma da Educação de 1879, antes de promulgá-la como decreto-lei.

7Ver a respeito: Nagle (2001, p. 310).

8Marshall, acima citado, faz a demonstração histórica dessa transformação na sociedade inglesa do fim do século XIX e início do XX.

9Acta da Assembléia Legislativa de Minas Gerais (1920, p. 30). As citações que se seguem serão indicadas apenas pela página.

10A digitalização do texto automaticamente atualizou a escrita de época, especialmente em alguns acentos, inexistentes ao tempo, impedindo a reprodução exata dos termos.

11O termo ‘desídia’ é usado no Art.173, §4º, do Regulamento do Ensino Primário, de 1924 (Decreto 6655, 1924), para designar uma possível razão de não frequência escolar, o que resultaria em suspensão do ensino na unidade. No que se refere à questão da obrigatoriedade nas reformas mineiras republicanas anteriores a 1920, diga-se que a exceção é a reforma de João Pinheiro, de 1906, que num lapso de sinceridade, logo no preâmbulo, afirma que não adianta regulamentar obrigatoriedade quando o Estado não tem orçamento para oferecer escolas a todo o público em idade escolar. A obrigatoriedade irá se instalar mais adiante, com Delfim Moreira à frente da Secretaria do Interior. Daqui por diante indicaremos no texto ou em notas apenas os artigos e parágrafos deste regulamento do ensino.

12Art. 22, § 2º Perímetro escolar é a circunferência cujo centro é o estabelecimento público ou subvencionado e cujo raio é igual a 2 km, para o sexo feminino, e a 3 km para o masculino, nas cidades e villas, com o accrescimo respectivo de meio kilômetro, nas povoações e zonas rurais.

13Nossa pesquisa abrangeu Atas Escolares dos Grupos Centrais José Rangel e Delfim Moreira da cidade de Juiz de Fora, MG, no período de 1907 a 1920. Os dois grupos ocupavam um mesmo espaço à época: o Palacete Mafalda, no centro da cidade. O acesso a essas Atas foi possível graças a pesquisa anterior, dirigida pela Profª Dra. Dalva Yasbeck, que as fotocopiou. Registro aqui o agradecimento a antigos bolsistas daquela professora que me deram acesso a tais Atas, especialmente a Marina Fernandes Braga Nakayama.

28NOTA: O autor foi responsável pela concepção, análise e interpretação dos dados; redação e revisão crítica do conteúdo do manuscrito e ainda, aprovação da versão final a ser publicada.

14This work is the result of research with the support of CNPQ (2013/2014) and FAPEMIG (2014/2016), both Universal Announcements.

15According to Ricoeur (2010), historical time has two sides: cosmic or chronological or calendar time, and phenomenological time, which refers to the world experiences expressed by the narrative. In addition, the time of the calendar is a phenomenal production of the lived, since it is through the past, present and future experience that it is established. However, chronological time is fixed as axial points on the temporal continuum axis, allowing cosmic marking. The historical event is then recorded twice: by world time, calendar time, and lived time, marked by enunciation, by narrative. Every narrative will always be an expression of a historical time. It is through narrative that world time is rewritten in human time. See about it: (Ricoeur, 2010, chap.7).

16In the Decree-Law Leôncio de Carvalho (Decree No. 7.247 of 1879), which most emphasizes the obligation, there is reference to home education, but only the commitment of parents, guardians or protectors are necessary for it to be allowed (Art. 2 - caput). Only in the 1920s will proof be required through ‘free examinations’ in regular schools.

17In Fernand Braudel’s works there are numerous references to the need for an amplified world-wide history. We simply cite one of them: (Braudel, 2014, p. 254)

18The perception of historical time as a category for comparative thinking of educational systems is not new in the historiography of education. The first publication of the Brazilian Society of History of Education (SBHE), entitled Education in Brazil, published in 2001 a paper by Mariano Narodowski (Narodowski, 2000), former president of the Argentine Society of History of Education, which constitutes as reference for this approach.

19The term is used by Leôncio de Carvalho in his justifications to the Education Reform Parliament of 1879, before promulgating it as a decree-law.

20See on the subject: Nagle (2001, p. 310).

21Marshall, cited above, demonstrates this transformation in the English society of the late nineteenth and early twentieth centuries.

22Minutes of the Legislative Assembly of Minas Gerais (1920, p. 30). The following quotes will be indicated by the page only.

23The digitization of the text automatically updated the period writing, especially in some accents, nonexistent to the time, preventing the exact reproduction of the terms.

24The term ‘idleness’(desídia) is used in Art.173, §4º, of the Primary Education Regulation of 1924 (Decree 6655, 1924) to designate a possible reason for not attending school, which would result in suspension of teaching at the unit. With regard to the issue of mandatory republican mining reforms prior to 1920, it should be noted that the exception is the 1906 João Pinheiro reform, which in a lapse of sincerity, right in the preamble, states that there is no point in regulating mandatory attendance when the State had no budget to offer schools to all school age public. The obligation will be installed later, with Delfim Moreira at the head of the Interior Secretariat. Hereafter we shall indicate in the text or in notes only the articles and paragraphs of these teaching regulations.

25Art. 22, § 2º School perimeter is the circumference whose center is the public or subsidized establishment and whose radius is 2 km, for females, and 3 km for males, in cities and villas, with the respective accretion of half a kilometer in villages and rural areas.

26Our research covered the School Minutes of the José Rangel and Delfim Moreira Central Groups from the city of Juiz de Fora, MG, from 1907 to 1920. The two groups occupied the same space at the time: the Mafalda Palace, in the city center. Access to these minutes was made possible by previous research, directed by Prof. Dalva Yasbeck, who photocopied them. Here I thank the former scholarship holders of that teacher who gave me access to such Minutes, especially Marina Fernandes Braga Nakayama.

Recebido: 04 de Outubro de 2018; Aceito: 23 de Maio de 2019

E-mail: marlos.bessa@ufjf.edu.br; marlosbessa@ig.com.br

Malos Bessa Mendes da Rocha: O autor é doutor em Educação pela Faculdade de Educação da USP. Doutorou-se em 2002 com a tese Matrizes da Modernidade Republicana: cultura política e pensamento educacional no Brasil. Realizou o mestrado em Ciência Política na UNICAMP em 1990, com a dissertação Educação Conformada: política pública de educação no Brasil (1930-45). A graduação é em Ciências Sociais na UFF. Foi coordenador do Grupo de Pesquisa em História da Educação na FACED - UFJF (2006-2016) e editor-chefe da Revista Educação em Foco (1996-2015), daquela unidade acadêmica. Foi professor do Programa de Pós-Graduação da mesma unidade, orientando teses e dissertações. Publicou os livros de autoria: Matrizes da Modernidade Republicana. Cultura política e pensamento educacional no Brasil, pela Autores Associados (Campinas, 2004), em breve saindo em segunda edição; e Educação Conformada: política pública de educação na Brasil (1930-45), pela Editora da UFJF (2000), com apoio do INEP. Seus artigos estão publicados em revistas e livros da área de Educação ou História da Educação. Atualmente é Professor Associado IV (aposentado). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1544-6892 E-mail: marlos.bessa@ufjf.edu.br; marlosbessa@ig.com.br

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