SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.42Rebouças brothers in the Paraná of the 19th century and the black intellectualsOrganicity, institutionality and symbolic dimension of the Federal Institute of Paraná State: an analysis from Pierre Bourdieu's perspective author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Services on Demand

Journal

Article

Share


Acta Scientiarum. Education

Print version ISSN 2178-5198On-line version ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.42  Maringá  2020  Epub Mar 01, 2020

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v42i1.46428 

HISTÓRIA E FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

Jean-Jacques Rousseau: educação para a tolerância religiosa

Jean-Jacques Rousseau: educación para la tolerancia religiosa

Gustavo Araújo Batista1 
http://orcid.org/0000-0002-8528-3833

1Universidade de Uberaba, Avenida Nenê Sabino, 1801, 38055-550, Uberaba, Minas Gerais, Brasil.


RESUMO.

Pesquisa teórica sobre Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), cujo objetivo é demonstrar que suas ideias revelam-se profícuas no tocante à reflexão acerca da educação para a tolerância religiosa. A justificativa desta investigação sustenta-se pelo fato das religiões terem influenciado fortemente a maneira de pensar, de sentir e de agir de grandes parcelas da humanidade ao longo da sua história; embora não sendo, necessariamente, o seu propósito, inevitavelmente, as religiões acabam tornando-se pretextos para que alguns dos seus adeptos desenvolvam posturas intolerantes em relação a quem não partilha do seu conjunto de crenças. Em Emílio ou Da Educação (Rousseau, 2004), há um opúsculo (‘Profissão de fé do vigário Saboiano’); nele, discorre-se sobre dificuldades levantadas por concepções acerca da divindade e de alguns de seus correlatos; perante a indissolubilidade desses problemas, resta a prática da tolerância, cabendo aos indivíduos respeitarem-se mutuamente no que se refere ao que cada um no tocante à religião; o vigário Saboiano constitui a alegoria pela qual Rousseau exprime suas ideias acerca da tolerância em matéria religiosa. Eis a questão a ser respondida: Que proposições feitas pelo vigário Saboiano permitem apoiar a educação para a tolerância em questões de crenças, nas quais se fundamentam as religiões? Verificou-se que a educação baseada nessa profissão de fé propicia a tolerância religiosa, haja vista que confere a cada ser humano a liberdade da convicção interna quanto às crenças a serem aderidas, ao invés da imposição externa; o vigário Saboiano é a personificação do ponto de equilíbrio entre tais extremos, os quais, seja por falta, seja por excesso, não contribuem para o cultivo da espiritualidade pessoal, cujo âmago deve ser a consciência. Aquilo que alicerceia as crenças é a convicção que cada indivíduo delas carrega em seu foro íntimo, não sua coerção feita por autoridades laicas ou religiosas.

Palavras-chave: educação; Jean-Jacques Rousseau; religião; tolerância

RESUMEN.

Investigación teórica sobre Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), cuyo objetivo es demostrar que sus ideas resultan fructíferas en la reflexión sobre la educación para la tolerancia religiosa. Suya justificación es que las religiones han influido fuertemente en la forma de pensar, sentir y actuar de grandes partes de la humanidad a lo largo de su historia; si bien no necesariamente su propósito, las religiones inevitablemente se convierten en pretextos para que algunos de sus seguidores desarrollen actitudes intolerantes hacia aquellos que no comparten sus creencias. En Emilio o De La Educación (Rousseau, 2004), hay un folleto (‘Profesión de fe del vicario de Saboya’); que discute las dificultades planteadas por las concepciones sobre la divinidad y algunos de sus correlatos; Frente a la indisolubilidad de estos problemas, la práctica de la tolerancia permanece y corresponde a los individuos respetarse unos a otros con respecto a la religión; el vicario de Saboya es la alegoría con la que Rousseau expresa sus ideas sobre la tolerancia en asuntos religiosos. La pregunta que debe responderse: ¿Qué proposiciones formuladas por el vicario de Saboya apoyan la educación para la tolerancia en cuestiones de creencias en las que se basan las religiones? Se ha encontrado que la educación basada en esta profesión de fe fomenta la tolerancia religiosa, ya que otorga a cada ser humano la libertad de convicción interna en cuanto a las creencias a las que se debe adherir, en lugar de la imposición externa; el vicario de Saboya es la encarnación del equilibrio entre tales extremos, que, ya sea por falta o por exceso, no contribuye al cultivo de la espiritualidad personal, cuyo núcleo debe ser la conciencia. Lo que subyace a las creencias es la convicción de que cada individuo lleva dentro de ellos, no su coerción por parte de autoridades laicas o religiosas.

Palabras clave: educación; Jean-Jacques Rousseau; religión; tolerancia

ABSTRACT.

Theoretical research on Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), whose aim is to demonstrate that his ideas are fruitful in the reflection on education for religious tolerance. The justification of this investigation is supported by the fact that religions have strongly influenced the way of thinking, feeling and acting of large portions of humanity throughout its history; although not necessarily its purpose, religions inevitably become excuses for some of their adherents to develop intolerant positions towards those who do not share their beliefs. In Emily or On Education (Rousseau, 2004), there is a pamphlet (‘Profession of faith of the Savoyard vicar’); in it, one discusses difficulties raised by conceptions about divinity and some of its correlates; in view of the indissolubility of these problems, there remains the practice of tolerance, and it is up to individuals to respect each other as regards what each one on religion; the Savoyard vicar is the allegory by which Rousseau expresses his ideas about tolerance in religious matters. Here is the question in order to be answered: What propositions made by the Savoyard vicar allow to support education for tolerance in matters of beliefs, on which religions are based? It was verified that the education based on that profession of faith propitiates the religious tolerance, since it confers to each human being the freedom of the internal conviction in relation to beliefs to be adhered, instead of the external imposition; the Savoy vicar is the personification of the point of balance between such extremes, which, whether by lack or by excess, do not contribute to the cultivation of personal spirituality, whose core must be conscience. What underlies beliefs is the conviction that each individual carries within his inner forum, not his coercion, made by secular or religious authorities.

Keywords: education; Jean-Jacques Rousseau; religion; tolerance

Introdução

As ideias concebidas por Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), filósofo suíço da era moderna iluminista, apresentam-se profícuas para a reflexão acerca da questão da educação para a tolerância religiosa, conforme o demonstra o seu opúsculo intitulado ‘Profissão de fé do vigário Saboiano’, inserto no Livro IV da sua obra maior sobre a temática pedagógica, Emílio ou Da Educação, publicado, pela primeira vez, em 1762. De acordo com Dent:

O seu pretexto para incluir ‘A profissão de fé’ nesse ponto do livro é a necessidade de apresentar a Emílio ideias de religião e de expor o gênero de crença e obediência religiosa que seria apropriado à sua educação, de acordo com os requisitos adequados ao cultivo e à preservação da natureza intata. Rousseau estivera considerando essas questões independentemente do resto do Emílio, e esta obra dificilmente teria sido afetada, exceto na dimensão religiosa específica que a ‘A profissão de fé’ lhe confere, se tivesse sido publicada em separado (como foi ulteriormente) (Dent, 1996, p. 186, grifos do autor).

Como justificativa desta investigação, apresenta-se que religiões têm influenciado fortemente a maneira de pensar, de sentir e de agir de grandes parcelas da humanidade ao longo da sua história; inegável que a palavra de líderes religiosos tem forjado pensamentos, sentimentos e ações, tanto naqueles que os aceitam ou obedecem quanto naqueles que os repudiam ou desobedecem.

Embora não sendo, necessariamente, o seu propósito, inevitavelmente, as religiões acabam tornando-se pretextos para que alguns dos seus adeptos desenvolvam posturas intolerantes em relação a quem não partilha do seu conjunto de crenças; por isso, o recurso ao pensamento do autor genebrino mostra-se propício ao combate do fanatismo religioso ao qual se possa ser propenso.

Desse modo, a questão a ser respondida neste texto formula-se da seguinte maneira: Que proposições feitas pelo vigário Saboiano permitem apoiar a educação para a tolerância em questões de crenças, nas quais se fundamentam as religiões? Perante tal indagação, eis o objetivo do presente texto: demonstrar que as ideias de Jean-Jacques Rousseau revelam-se profícuas no tocante à reflexão acerca da educação para a tolerância religiosa.

Uma vez enunciando-se a problematização e o objetivo deste artigo, sua situação no estado da arte da pesquisa encontra-se no debate em torno das relações entre a educação e a religião; tal discussão, por sua vez, considera-as parte da cultura e, como tais, também são por ela consideradas como componentes do universo simbólico construído pela humanidade. Pressupondo-se que: “[...] a religião e a educação são formas de pensar que se complementam e ordenam na cultura, um modo de ser e estar no mundo” (Ferreira & Noronha, 2017, p. 80), o vigário Saboiano simboliza a reflexão feita acerca da intersecção do imaginário educacional com o imaginário religioso; tal afirmação é o fundamento do diálogo desta pesquisa com a produção acadêmica que lhe é pertinente.

A alegoria do vigário Saboiano

A indagação, inicialmente, susceptível de ser aventada é esta: o vigário Saboiano é alegoria? Para respondê-la, há que se definir, anteriormente, o que tal palavra significa. Segundo Durozoi e Roussel (1993, p. 19): “Termo que designa ao mesmo tempo um tipo de leitura e uma categoria de obras”. Conforme essa definição, se for considerado que Rousseau utiliza-se do vigário Saboiano, como modalidade de interpretação (tipo de leitura) da religião, assim como ícone do seu ideário religioso (categoria de obras), então, trata-se de alegoria, já que é precisamente isso que ele representa no âmbito do seu pensamento.

Servindo-se de ficções para expressar convicções, o vigário Saboiano é, especificamente, a alegoria por meio da qual Rousseau expõe suas ideias acerca da tolerância em matéria de crença. O clérigo concebido pelo filósofo genebrino é por ele introduzido como um simples homem de fé, mas também de razão; não um homem de letras, versado em aprimoradas técnicas discursivas, próprio dos ambientes acadêmicos; tampouco um homem de armas, que recorre ao uso da força para fazer triunfar seus propósitos; nem militar, nem orador, alheio tanto à estratégia quanto à retórica, o presbítero em questão é alguém que, tão-somente, propõe-se a tratar daquilo que pensa e sente em seu âmago. Eis como ele se apresenta:

Meu filho, não esperes de mim nem discursos sábios nem profundos raciocínios; não sou um grande filósofo e pouco me preocupo em sê-lo. Mas às vezes tenho bom senso e amo sempre a verdade. Não quero argumentar contigo, nem mesmo tentar convencer-te; basta-me expor-te o que penso na simplicidade de meu coração. Consulta o teu durante o meu discurso, é tudo o que te peço. Se me engano, é de boa-fé; isso basta para que meu erro não me seja imputado como crime; mesmo que te enganasse da mesma forma, pouco mal haveria nisso. Se eu pensar bem, a razão é-nos comum e temos o mesmo interesse em escutá-la: por que não pensarias como eu? (Rousseau, 2004, p. 372-373).

Após a sua introdução, como clérigo racional e amante da verdade, ainda que não seja profissionalmente filósofo, disposto apenas a discursar sem persuadir, assim como inclinado a propor, não a impor, segue-se a narração de suas origens humildes. Nascido de pobres pais plebeus, foi, entretanto, destinado ao sacerdócio católico romano, mais por questão de conveniência do que por vocação. Ao passar pelos estudos inerentes à sua educação sacerdotal, a formação filosófica e teológica, requisito para o exercício do ofício clerical, foi ordenado presbítero. Aceitando a doutrina defendida pela instituição eclesiástica, para cuja hierarquia entrara, logo percebeu, ao fazê-lo, que se comprometera a negar a sua natureza humana, algo que não poderia cumprir:

Nasci pobre e camponês, destinado por condição ao cultivo da terra. Acharam, porém, que seria melhor eu aprender a ganhar meu pão com a profissão de padre, e conseguiram os meios de fazer-me estudar. Com certeza, nem meus pais nem eu nos importávamos muito com saber o que era bom, verdadeiro e útil naquilo, mas sim o que era preciso saber para ser ordenado. Aprendi o que quiseram que eu aprendesse, disse o que queriam que eu dissesse, assumi os compromissos que quiseram e fui ordenado padre. Mas não demorei para perceber que, ao me comprometer a não ser homem, prometera mais do que poderia cumprir (Rousseau, 2004, p. 373).

Celibatário, o neossacerdote concebia o matrimônio como a mais sagrada instituição natural, não obstante estar dele privado, em virtude dos votos feitos por ocasião da sua ordenação, os quais não quis quebrar. Paradoxalmente, isso foi a causa da sua ruína, haja vista que seguir as regras às quais se jura obedecer não é, consequentemente, garantia de livrar-se da desdita:

Essa decisão foi justamente o que me perdeu. Meu respeito pelo leito alheio deixou a descoberto as minhas culpas. Foi preciso expiar o escândalo; preso, interdito, expulso, fui bem mais a vítima dos meus escrúpulos do que de minha incontinência, e pude compreender, pelas censuras de que minha desgraça foi acompanhada, que não raro é preciso agravar o erro para escapar ao castigo (Rousseau, 2004, p. 374).

Ao cair em desgraça, o perplexo clérigo viu-se imerso em incredulidade, traído por suas próprias convicções. Arrastado pelo vórtice da dúvida, fustigado pelo látego da incerteza e sacudido pelo tremor da inquietação, suas ideias pereciam ao calor da confusão, enquanto seu espírito chafurdava-se cada vez mais em obscuridade. Não obstante, o seu amor pela verdade permanecia; as contradições da sua desdita não foram fortes o bastante para fazê-lo desistir de procurar por ela, por mais que dele ela se esquivasse: “Pensava comigo mesmo: amo a verdade, procuro-a mas não posso reconhecê-la; mostrem-ma e permanecerei ligado a ela; por que se furta à solicitude de um coração feito para adorá-la?” (Rousseau, 2004, p. 375). Em seu anseio por procurar o conhecimento da verdade, o presbítero depara-se com dois obstáculos, a saber: o cepticismo filosófico acadêmico e o dogmatismo teológico eclesiástico.

O cepticismo filosófico acadêmico é causa de inquietude, uma vez que o espírito humano não se contenta peremptoriamente com a dúvida, a qual, contudo, é temporariamente aceitável. Assim, a sua aspiração pela verdade só será suprida pela própria verdade. A dúvida pertence ao reino da obscuridade e da confusão, haja vista que pode induzir ao engano, ao erro, à falsidade ou à ilusão. Só a verdade trará a clareza e a distinção, com as quais a mente humana que reflete ficará satisfeita, já que, desse modo, permanecerá segura quanto àquilo que é ou não é, assim como no tocante àquilo que deve ser feito ou evitado. Portanto, ser céptico, sob tal perspectiva, significa inexistência ou infelicidade:

Como se pode ser cético por sistema e de boa-fé? Não sou capaz de compreendê-lo. Ou esses filósofos não existem, ou então são os mais infelizes dos homens. A dúvida sobre as coisas que nos importa conhecer é um estado violento demais para o espírito humano; ele não resiste muito tempo nesse estado; acaba decidindo-se de uma maneira ou de outra e prefere enganar-se a não crer em nada (Rousseau, 2004, p. 375).

O dogmatismo teológico eclesiástico é causa de absurdidade, pois, além de proibir a dúvida, força a crer naquilo que se contradiz racionalmente. O dogma, ao dirimir o ato de duvidar, converte-se em fator pelo qual se exerce o pensamento de forma autoritária, obliterando a divergência, indispensável ao movimento do raciocínio. Logo, não serve para quem se propõe a investigar, livre e logicamente, a verdade, sem o jugo da autoridade que lhe é avessa ou estranha, razão pela só resta à mente reflexiva renunciá-lo, haja vista que, ao encerrar o questionamento, o dogmatismo paralisa a reflexão, sem a qual é impossível raciocina de maneira independente:

O que duplicava meu embaraço era que, tendo nascido numa Igreja que tudo decide, que não permite dúvida, se eu rejeitasse um só ponto rejeitaria todo o resto, e a impossibilidade de admitir tantas decisões absurdas separava-me também das que não o eram. Ao me dizerem creia em tudo, impediam-me de crer em algo, e eu já não sabia quando parar (Rousseau, 2004, p. 375).

Depois de renunciar ao cepticismo filosófico acadêmico, que de tudo duvida, assim como ao dogmatismo teológico eclesiástico, que tudo submete à autoridade, o vigário Saboiano, mostra que não há necessidade de ser céptico; tampouco, dogmático. Contra o cepticismo, propõe que é possível restringir os pensamentos àquilo que mais importa no momento, a conviver com a ignorância daquilo não é preciso conhecer e preocupar-se apenas quando a dúvida referir-se àquilo que for impreterível: “O primeiro fruto que tirei dessas reflexões foi aprender a limitar minhas pesquisas ao que me interessava imediatamente, a contentar-me com uma profunda ignorância sobre tudo o mais e a só me inquietar até a dúvida com as coisas que me importava saber” (Rousseau, 2004, p. 376-377). Contra o dogmatismo, propõe que a única autoridade a ser reconhecida é a consciência, o lume individual interno, que cada um traz consigo, o qual norteia seus pensamentos, seus sentimentos e suas ações; embora não sendo infalível, ao menos, é mais confiável do que opiniões externas, susceptíveis de estarem ainda mais longe da verdade, tão cara ao clérigo:

Compreendi também que, longe de me libertar de minhas inúteis dúvidas, os filósofos só fariam multiplicar as que me atormentavam e não resolveriam nenhuma. Tomei, então, um outro guia e disse com meus botões: consultemos a luz interior, desorientar-me-á menos do que eles me desorientam, ou, pelo menos, meu erro será meu e perverter-me-ei menos seguindo minhas próprias ilusões do que me entregando às suas mentiras (Rousseau, 2004, p. 377).

Ao expor as razões de sua aversão em ser, por um lado, céptico e, por outro, dogmático, o vigário Saboiano, todavia, combina elementos do cepticismo e do dogmatismo em seu pensamento, a saber: a dúvida e a autoridade. A dúvida é admitida quanto àquilo que é indiferente, insolúvel ou inútil, não sendo, pois, causa de perturbação. A autoridade, por sua vez, é delegada à consciência, pois, graças a ela, cada um percebe aquilo que é verdadeiro em seu âmago, sem quaisquer obliterações. Seu princípio filosófico é o amor pela verdade e a sua regra metodológica consiste na facilidade e na simplicidade das proposições, sem quaisquer rebuscamentos retóricos ou sofisticações argumentativas:

Trazendo pois em mim o amor à verdade como única filosofia, e como único método uma regra fácil e simples que me dispensa da vã sutileza dos argumentos, retomo com essa regra o exame dos conhecimentos que me interessam, decidido a admitir como evidentes todos aqueles a que, na sinceridade de meu coração, não possa recusar meu consentimento, como verdadeiros todos os que me pareçam ter uma ligação necessária com os primeiros e a deixar todos os outros conhecimentos na incerteza, sem rejeitá-los nem admiti-los, e sem me atormentar para esclarecê-los quando não me levem a nada de útil para a prática (Rousseau, 2004, p. 378).

Abandonados que foram o cepticismo e o dogmatismo, com suas respectivas controvérsias filosóficas e teológicas, seguiu-se a exposição do princípio e do método do vigário Saboiano. Uma vez expostos, resta-lhe aplicá-los; o presbítero percebe que, ao fazê-lo, doravante, deve começar pelo autoconhecimento, já que, somente a partir de si próprio, verificar-se-á o que será ou não cognoscível, assim como virão à tona os recursos dos quais se dispõe para tal empreendimento e o grau de credibilidade a ser-lhes atribuído: “Devo, pois, voltar o olhar primeiro para mim, a fim de conhecer o instrumento de que me quero servir e saber até que ponto posso confiar em seu uso” (Rousseau, 2004, p. 378).

O autoconhecimento inicia-se pela percepção da matéria, porquanto o processo cognoscitivo fundamenta-se na sensibilidade, que é a faculdade das sensações, que são as afecções sensoriais exteriores, graças às quais são percebidas, ao serem exercidas as funções dos órgãos sensíveis, as coisas físicas ou os objetos materiais. A percepção da existência de si mesmo depende da percepção sensória externa; não obstante, por seu intermédio, não é possível inferir se a existência própria é algo que depende ou não daquilo que é perceptível. Desse modo, o vigário Saboiano rompe com a concepção racionalista, para a qual a existência de si mesmo independe daquilo que se percebe sensorialmente, do mesmo modo que não adere à concepção empirista, a qual concede que cada indivíduo reduz-se ao conjunto das percepções que acumula ao longo da sua trajetória pela vida:

Existo e tenho sentidos pelos quais sou afetado. Eis a primeira verdade que me atinge e com a qual sou forçado a concordar. Terei um sentimento próprio de minha existência, ou só a sinto por minhas sensações? Eis a minha primeira dúvida, que me é, no momento, impossível de resolver. Pois sendo continuamente afetado por sensações, ou imediatamente, ou pela memória, como posso saber se o sentimento do ‘eu’ é alguma coisa fora dessas mesmas sensações e se pode ser independente delas? (Rousseau, 2004, p. 378-379, grifo do autor).

O empirismo, de tendência materialista, e o racionalismo, de tendência idealista, conforme a posição assumida pelo vigário Saboiano, não são suficientes para a resolução da problemática da existência individual, pois este se polariza na subjetividade do cognoscente, enquanto aquele se centraliza na objetividade do cognoscível. Contrariamente ao materialismo empirista, a alegação é que: “Assim, não apenas eu existo, mas existem outros seres, a saber, os objetos de minhas sensações, e mesmo que esses objetos não passassem de ideias, continua sendo verdade que essas ideias não são eu” (Rousseau, 2004, p. 379). Contrariamente ao idealismo racionalista, a alegação é que: “Ora, tudo o que sinto fora de mim e que age sobre os meus sentidos eu chamo de matéria, e todas as porções de matéria que concebo reunidas em seres individuais eu chamo de corpos” (Rousseau, 2004, p. 379).

Ao ser apresentada a alegoria do Vigário Saboiano, o clérigo imaginário, avesso tanto ao cepticismo quanto ao dogmatismo, não, porém, menos relutante, seja em relação ao racionalismo, seja em relação ao empirismo, verifica-se que o seu autor expõe, destarte, as suas concepções acerca daquilo que julga necessário e útil conhecer em matéria de religião. A ‘Profissão de fé do vigário Saboiano’ não é aleatoriamente inserida no IV Livro do Emílio ou Da Educação, considerando-se que:

O ensino da religião acontece apenas agora porque Emílio tem condições de compreender que os mistérios - constitutivos da religião - são no fundo incompreensíveis. De que adianta falar de mistério quando não se tem condições de distingui-los dos fatos? Essa confusão é responsável por uma educação vazia, de repetição de palavras que não sejam ecos do coração nem expressão de pensamentos aceitáveis racionalmente (Streck, 2008, p. 43).

Partindo-se da matéria, eleva-se ao espírito; da discussão física, passa-se ao debate metafísico. Desse modo, transcorrendo sobre o reino da matéria e do movimento, o presbítero da Saboia conclui que o materialismo mecanicista, consequência do cepticismo e do empirismo, é insuficiente para explicar os princípios e leis pelos quais uma e outro são regidos, os quais são reclamados pelo dogmatismo e pelo racionalismo. Em resposta, expõe que o universo não se reduz à sua dimensão físico-motora, pois tal redução deixaria por ser respondida a questão da causa primeira; isto é: se existem corpos e leis que os regulam, então, qual seria a sua razão primordial? A discussão dessa pergunta passa pela discussão sobre a origem do próprio universo.

Em se tratando da questão segundo a qual o universo teria ou não início, Rousseau, via vigário Saboiano, reconhece que essa interrogação não é fácil de ser respondida; talvez seja mesmo algo impossível de ser solucionado, dada a limitação do intelecto humano; contudo, é possível sentir a existência do Autor, Criador, Governador ou Legislador Cósmico, que é Deus. Humanamente incognoscível, Deus é, não obstante, humanamente sensível, ou seja: Deus, apesar de incompreensível para o ser humano em sua totalidade, em contrapartida, permite-se fazer sentir na intimidade humana, sendo, igualmente, sensorialmente perceptível, através daquilo que criou: “Percebo Deus por toda parte em suas obras; sinto-o em mim, vejo-o por toda parte ao meu redor; mas assim que quero contemplá-lo em si mesmo, assim que quero procurar onde ele está, o que ele é, qual a sua substância, ele me escapa e meu espírito perturbado nada mais percebe” (Rousseau, 2004, p. 390).

Se tal é a condição humana perante a natureza divina, então, frustram-se as especulações teológicas mais avançadas e profundas, porque tais elucubrações metafísicas acerca de Deus reduzem-se a concepções que fogem à racionalidade da qual o homem é capaz. Conforme salienta Salinas Fortes:

Ao contrário das pretensões da metafísica, não há como penetrar mais além na natureza mais profunda dessa realidade primeira. Mas também não há motivo para se inquietar com isso, uma vez que tal aprofundamento nada acrescenta à nossa conduta na vida. O que importa reter a partir dessas verdades primeiras é a ideia do universo como uma ‘ordem’ inteligente, como uma vasta cadeia de seres que se interligam e onde cada um ocupa um lugar bem preciso, que melhor se coaduna com os desígnios impenetráveis, da boa vontade inteligente, criadora do todo (Salinas Fortes, 1989, p. 36, grifo do autor).

No processo cognoscitivo exposto pelo Vigário da Saboia, o homem primeiro precisou conhecer-se a si mesmo. Ao fazê-lo, teve de perceber o mundo, a fim de estabelecer relações entre si próprio e os seus elementos; depois, elevou-se aos seus princípios e leis; então, sentiu, embora sem compreender, o seu autor, Deus, criador tanto da matéria quanto do espírito, que também é providente, já que governa a sua obra. Constatando o homem não ser constituído apenas de corpo, mas de alma, concluiu pertencer tanto ao mundo físico quanto ao mundo psíquico, ou seja: “O homem não é um ser simples; ele se compõe de duas substâncias” (Rousseau, 2005, p. 48). Devido à observação das faculdades das quais dispõe, o homem encontrou o seu lugar privilegiado na ordem cósmica. Sua razão calculadora, sua inteligência perscrutadora e sua vontade livre, à guisa de exemplos, em se comparando com os demais seres, colocam-no em posição vantajosa. Por tal motivo, o vigário Saboiano conclui:

É verdade, portanto, que o homem é o rei da terra que habita, pois não somente ele doma todos os animais, não somente dispõe dos elementos por sua indústria, mas também só ele na terra sabe dispor deles, e ainda se apropria, pela contemplação, dos próprios astros de que não pode aproximar-se (Rousseau, 2004, p. 391).

Como filho de seu tempo, Rousseau partilha da concepção humanista, de acordo com a qual o homem é o ápice da natureza, o cerne do cosmo. Ainda que a sua situação seja ímpar no universo, o homem, por mais poderosos que sejam os órgãos dos quais dispõe em seu corpo e por mais perspicazes que sejam as faculdades das quais a sua alma está provida, não consegue comprovar, conquanto possa pensar e sentir, a sua própria imortalidade psíquica, não sabendo, pois, se sobreviverá ao seu perecimento somático. Para o vigário Saboiano, a vida eterna é apenas presumível, já que tal questão está além das capacidades cognoscitivas humanas. Por mais aporética que seja a problemática da imortalidade psíquica humana, não é insensato acreditar nela; a razão disso é que, considerando-se a aspiração da natureza humana à perpetuação da sua própria existência, sua imortalidade psíquica, perante sua degenerescência somática, é consolatório, além de estar consoante à ordem universal, da qual o clérigo está convencido:

Mas qual é essa vida? É imortal a alma por sua natureza? Meu entendimento limitado nada concebe sem limites; tudo o que chamam infinito me escapa. Que posso negar ou afirmar? Que raciocínios posso realizar sobre o que não posso conceber? Creio que a alma sobreviva ao corpo o suficiente para a manutenção da ordem; quem sabe se é o suficiente para durar para sempre? Todavia, concebo como o corpo se desgasta e se destrói pela divisão das partes, mas não posso conceber uma tal destruição do ser pensante e, não imaginando como ele possa morrer, presumo que ele não morre. Já que essa presunção me consola e não tem nada de insensato, por que temeria entregar-me a ela? (Rousseau, 2004, p. 400).

A discussão acerca da imortalidade psíquica do homem também tem caráter escatológico, uma vez que se refere àquilo que sucederá à sua morte. Perante o implacável momento no qual a separação entre a alma e o corpo será simplesmente inevitável, o homem interroga-se a respeito do seu próprio porvir. Tal indagação, por sua vez, relaciona-se àquilo que cada homem tiver feito ou evitado ao longo da sua vida terrena, segundo os princípios e as leis estabelecidos por Deus, o que implicará em punição ou recompensa; aquela para os iníquos ou maus, que os transgrediram, esta para os bons ou justos, que lhes obedeceram. Essas doutrinas fazem parte da tradição religiosa judaico-cristã-islâmica, da qual Rousseau tinha conhecimento e que já se fazia presente na Europa de sua época. Não obstante, ele levanta a dificuldade da coexistência entre a ideia da condenação eterna com a ideia da justiça e da misericórdia de Deus, já que os homens tornam-se perversos apenas por força dos seus vícios, alimentados, por sua vez, por necessidades efêmeras e por desejos desvairados, os quais, na eternidade, não mais teriam razão para persistirem; logo, ao serem supressas as suas causas, por que permaneceriam os seus efeitos?

Onde terminam nossas necessidades perecíveis, onde cessam nossos desejos insensatos, devem cessar também nossas paixões e nossos crimes. De que perversidade espíritos puros seriam suscetíveis? Não precisando de nada, por que seriam maus? Se, destituídos de nossos sentidos grosseiros, toda a sua felicidade reside na contemplação dos seres, eles só podem querer o bem; e quem deixa de ser mau pode ser miserável para sempre? Eis o que me inclino a acreditar, sem me esforçar por me decidir a respeito. Ó Ser clemente e bom! Quaisquer que sejam teus decretos, adoro-os; se punes os maus, anulo minha fraca razão perante a tua justiça. Mas, se os remorsos desses desafortunados devem extinguir-se com o tempo, se seus males devem acabar e se a mesma paz nos espera todos um dia, louvo-te. Não é o mau meu irmão? Quantas vezes não tentei parecer-me com ele! Liberto de sua miséria, perca ele também a malignidade que a acompanha; seja feliz como eu; longe de provocar ciúme, sua felicidade só aumentará a minha (Rousseau, 2004, p. 402).

A reflexão empreendida pelo vigário Saboiano, em torno do destino último da natureza humana, trouxe consigo tanto a questão da moralidade quanto a questão da felicidade; sendo esta o fim máximo ao qual aspira o homem, sua consecução não ocorre sem aquela, da qual, igualmente, depende não alcançá-la. Interrogando-se a si mesmo sobre o fundamento da moralidade, eis a resposta obtida: a consciência; emergindo do âmago do ser humano, ela aprova ou reprova a sua conduta; ademais, é o seu mestre interior, a orientá-lo infalivelmente; se o homem é naturalmente bom, então, ele o deve à sua consciência; seu primado legitima-se por ser isenta de engano ou livre de erro; ela é o árbitro dos conflitos entre as inclinações somáticas e as tendências psíquicas; desse modo, não há razão para hesitar-se em segui-la, porquanto ela é intrínseca à natureza humana; contrariá-la significa contrariar a própria essência da humanidade:

Basta consultar-me sobre o que quero fazer; tudo o que sinto estar bem está bem, tudo o que sinto estar mal está mal. O melhor de todos os casuístas é a consciência, e só quando regateamos com ela recorremos às sutilezas do raciocínio. O primeiro de todos os cuidados é o de si mesmo; no entanto, quantas vezes a voz interior diz-nos que ao fazer o que é bom para nós à custa dos outros fazemos o mal! Acreditamos seguir o impulso da natureza e resistimos a ela; ao escutar o que ela diz aos nossos sentidos, desprezamos o que ela diz aos nossos corações; o ser ativo obedece, o ser passivo manda. A consciência é a voz da alma, as paixões são a voz do corpo. Será espantoso que muitas vezes que muitas vezes essas duas linguagens se contradigam? E então, qual das duas devemos escutar? Vezes demais a razão nos engana, conquistamos até demais o direito de recusá-la, mas a consciência nunca nos engana. Ela é o verdadeiro guia do homem; ela está para a alma assim como o instinto está para o corpo: quem a segue obedece à natureza e não tem medo de se perder (Rousseau, 2004, p. 404-405).

A primazia conferida, por Rousseau, à consciência, anunciada pelo vigário Saboiano, ao colocá-la acima até mesmo do intelecto e da razão, faz com que ele se converta em crítico do próprio movimento do qual faz parte, haja vista que a intelectualidade e a racionalidade, tão caras aos filósofos iluministas, têm a sua credibilidade questionada por um dos seus representantes mais expressivos. Contudo, não se trata de desprezá-las, fazendo-se apologia à ininteligibilidade e à irracionalidade; trata-se de considerá-las falíveis, limitadas ou ludibriáveis; perante tal possibilidade, existe a consciência, na qual sempre se poderá confiar; eis a esperança para a qual aponta o filósofo genebrino:

Consciência! Consciência! Instinto divino, imortal e celeste voz; guia seguro de um ser ignorante e limitado, mas inteligente e livre; juiz infalível do bem e do mal, que tornas o homem semelhante a Deus, és tu que fazes a excelência de sua natureza e a moralidade de suas ações; sem ti nada sinto em mim que me eleve acima dos animais, a não ser o triste privilégio de perder-me de erros em erros com o auxílio de um entendimento sem regra e de uma razão sem princípio (Rousseau, 2004, p. 411-412).

Dogma e moral são as duas partes constitutivas das religiões, segundo Rousseau. Os dogmas, por sua vez, são classificados em: teóricos (metafísicos); e práticos (éticos); os primeiros referem-se à dimensão puramente especulativa da religião, ou seja: às suas primeiras causas ou princípios; os segundos, à sua dimensão ética, isto é: aos fundamentos daquilo que orienta a ação humana, a saber, a moral. Conforme se verifica nesta passagem, extraída da primeira das suas ‘Cartas escritas da montanha’:

Distingo na religião duas partes, além da forma de culto, que não passa de um cerimonial. Essas duas são o dogma e a moral. Divido ainda os dogmas em duas partes, a saber, aquela que, estabelecendo os princípios de nossos deveres, serve de base à moral e aquela que, puramente restrita à fé, contém apenas dogmas especulativos (Rousseau, 2006, p. 156).

O critério dogmático-moral, pelo qual Rousseau define as religiões, propicia-lhe, igualmente, classificá-las, segundo a lógica e a ética; desse modo, logicamente, as religiões são classificadas em: verdadeiras, falsas ou duvidosas; eticamente, as religiões são classificadas em: boas, más ou indiferentes. A seguinte citação vem corroborar tal afirmação: “Dessa divisão, que me parece exata, resulta aquela das opiniões sobre a religião, de um lado, em verdadeiras, falsas ou duvidosas e, de outro, em boas, más ou indiferentes” (Rousseau, 2006, p. 156).

De acordo com o exposto até então, a educação concebida por Rousseau não prescinde da importância da espiritualidade ou da religiosidade, porquanto: “A religião é útil e até mesmo necessária aos povos” (Rousseau, 2006, p. 157). Porém, verifica que existem religiões, tais como eram pensadas e praticadas em sua época, que se mostravam inadequadas ao seu modelo de homem e de sociedade. Ao estabelecer os princípios a partir dos quais almeja educar o seu discípulo imaginário, demonstra ser desnecessário banir as crenças, desde que não sejam nocivas ao seu projeto humano e social; apenas há que se redirecioná-las, de modo que não se tornem causas de males tanto para os indivíduos quanto para as sociedades, dentre os quais, indubitavelmente, encontra-se a intolerância.

A educação para a tolerância religiosa, auferida a partir da ‘Profissão de fé do vigário Saboiano’, resume-se em três principais artigos de fé, quais sejam:

A) Deus como vontade motora do macrocosmo (universo) e do mesocosmo (natureza): “Eis o meu primeiro princípio. Creio, portanto, que uma vontade move o universo e ainda a natureza. Eis meu primeiro dogma, ou meu primeiro artigo de fé” (Rousseau, 2004, p. 384);

B) Deus como inteligência legisladora e vontade motora do mundo físico: “Se a matéria movida me indica uma vontade, a matéria movida segundo certas leis me indica uma inteligência: este é o meu segundo artigo de fé” (Rousseau, 2004, p. 386).

C) A liberdade humana causada pela sua alma: “O homem, portanto, é livre em suas ações e, como tal, animado de sua substância imaterial: este é o meu terceiro artigo de fé” (Rousseau, 2004, p. 396).

Considerações finais

Considerando-se o objetivo em função do qual esta pesquisa teórica foi realizada, verifica-se o seu alcance, ao ter-se demonstrado, ao longo deste texto, que as ideias do filósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau revelaram-se profícuas no tocante à reflexão acerca da educação para a tolerância religiosa, haja vista que a alegoria do vigário Saboiano é uma apologia à concepção de acordo com a qual a religião pode ser pensada e praticada sem fanatismo, sem obscurantismo, sem superstição, sem tirania e sem violência.

Quanto à interrogação em torno da qual circundou a presente investigação, alega-se que as proposições feitas pelo vigário Saboiano, que permitem apoiar a educação para a tolerância em questões de crenças, nas quais se fundamentam as religiões, resumem-se às seguintes:

1) Deus é o autor (criador) e o governador (legislador) cósmico (universal); sua vontade tudo move e sua inteligência tudo dirige; suas obras são tanto físicas ou materiais quanto psíquicas ou espirituais; intangível aos sentidos; incognoscível ao intelecto ou incompreensível à razão em sua totalidade; não obstante, sensível ao coração humano;

2) O homem é formado de duas substâncias, a saber: matéria (corpo) e espírito (alma); seu corpo é certamente corruptível, como tudo que é material; sua alma, no entanto, é plausivelmente incorruptível, como se supõe ser tudo que é espiritual; o corpo é sensorialmente perceptível, através de suas partes; a alma, intelectualmente, através de suas faculdades;

3) O homem é naturalmente livre, por ser dotado de consciência; graças a ela, situa-se acima dos demais seres, aproximando-se, destarte, de Deus; a consciência confere moralidade ao ser humano, já que lhe franqueia o conhecimento do bem a ser feito e do mal a ser evitado; sem ela, o homem não teria regras para o seu intelecto, tampouco princípios para a sua razão; a consciência é o infalível mestre interior do homem, na qual sempre poderá confiar sem hesitar, a fim de atingir a felicidade a que aspira.

A educação para a tolerância em matéria religiosa, baseada na ‘Profissão de fé do vigário Saboiano’, confere às crenças a liberdade da convicção pessoal, motivo pelo qual delas se exclui tanto o cepticismo, cuja tendência é a irreligião, quanto o dogmatismo, cuja inclinação é a intolerância; ambos mais atrapalham que auxiliam o cultivo da espiritualidade ou da religiosidade individual; um, pela falta de fé; outro, pelo excesso de fé. O empirismo e o racionalismo, por sua vez, também são extremos, pois o primeiro tende ao materialismo; o segundo, ao idealismo; aquele reduz a realidade ao concreto; este, ao abstrato.

A alegoria do vigário Saboiano é a personificação da mente que se equilibra entre o cepticismo e o dogmatismo, assim como entre o empirismo e o racionalismo: eis o que requer a educação para a tolerância religiosa, o ponto de equilíbrio entre tais extremos, os quais, seja por falta, seja por excesso, não contribuem para o cultivo da espiritualidade pessoal, cujo âmago deve ser a consciência. A religiosidade, sob tal perspectiva, passa a ser fundamentada subjetivamente, não objetivamente, pois aquilo que alicerceia as crenças é a convicção que cada indivíduo delas carrega em seu foro íntimo, não a sua coerção, feita por autoridades, sejam elas laicas ou religiosas. Se respeitar as crenças é preciso, logo, isso se deve ao respeito pela liberdade das pessoas que as detêm, já que não há autoridade sobre elas, que pertencem ao reino da suposição não ao da certeza.

Em relação ao estado da arte da pesquisa, afirma-se que as considerações acerca do imaginário educacional e religioso, sintetizadas no discurso da ‘Profissão de fé do vigário Saboiano’, somam-se às contribuições que alicerceiam tanto especulativa quanto pragmaticamente a educação para a tolerância religiosa, pois, apesar de serem resultados de reflexões feitas no Século XVIII, comportam valores hodiernos, haja vista que o recrudescimento do fundamentalismo tanto no Ocidente quanto no Oriente tem chamado a atenção para a importância do debate acerca da religião em geral e, em particular, da formação para a coexistência pacífica entre diferentes conjuntos de crenças.

Referências

Dent, N. J. H. (1996). Dicionário Rousseau. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor. [ Links ]

Durozoi, G., & Roussel, A. (1993). Dicionário de filosofia. Campinas, SP: Papirus. [ Links ]

Ferreira, A. C., & Noronha, V. (2017). O imaginário entre fronteiras da educação e da religião. Horizonte, 15(45), 68-91. Doi: 10.5752/P.2175-5841.2017v15n45p68. [ Links ]

Rousseau, J.-J. (2004). Emílio ou Da Educação. São Paulo, SP: Martins Fontes. [ Links ]

Rousseau, J.-J. (2005). Carta a Christophe de Beaumont e outros escritos sobre a religião e a moral. São Paulo, SP: Estação Liberdade. [ Links ]

Rousseau, J.-J. (2006). Cartas escritas da montanha. São Paulo, SP: Unesp. [ Links ]

Salinas Fortes, L. R. (1989). Rousseau: o bom selvagem. São Paulo, SP: FTD. [ Links ]

Streck, D. R. (2008). Rousseau & a Educação. Belo Horizonte, MG: Autêntica. [ Links ]

2NOTA: O autor foi responsável pela concepção, análise e interpretação dos dados do texto em questão; também toma a seu encargo a redação e a revisão crítica do conteúdo do manuscrito e ainda, a aprovação da versão final a ser publicada.

Recebido: 30 de Janeiro de 2019; Aceito: 25 de Julho de 2019

E-mail: mrgugaster@gmail.com

Gustavo Araújo Batista: possui graduação em Letras pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU - 2001); cursou também Filosofia pela mesma universidade (UFU - 1998). Além disso, possui mestrado em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU - 2003) e doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP - 2008), assim como Pós-Doutorado em Educação pela sua alma-mater (UFU - 2011). Atualmente, é professor na Universidade de Uberaba (UNIUBE) e na Fundação Carmelitana Mário Palmério (FUCAMP), mantenedora da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FACIHUS). Tem experiência docente tanto na graduação quanto na pós-graduação, além de pesquisa na pós-graduação stricto sensu em Educação, com ênfase em Fundamentos da Educação (relações entre Educação e Filosofia). De 2011 a 2015, atuou como Pesquisador da REDECENTRO (Rede de Pesquisadores sobre o Professor da Região Centro-Oeste). A partir de 2015, passou a figurar entre os membros acadêmicos do ATINER (Athens Institute for Education and Research - Instituto de Atenas para Educação e Pesquisa), na Divisão de Pesquisa de Artes e Humanidades (Arts & Humanities Research Division). A partir de 2016, tornou-se membro do Comitê Científico da AGP (Academic Genesis Platform) - Plataforma Acadêmica Gênesis: associação independente e mundial de professores e pesquisadores, sediada em Londres e em Istambul, cuja finalidade é propiciar uma multiplicidade de plataformas para intercâmbio interdisciplinar de avanços e novas informações. Endereço para acessar este CV: http://lattes.cnpq.br/5216094907418949 ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8528-3833 E-mail: mrgugaster@gmail.com

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons