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Acta Scientiarum. Education

versión impresa ISSN 2178-5198versión On-line ISSN 2178-5201

Acta Educ. vol.42  Maringá  2020  Epub 01-Mar-2020

https://doi.org/10.4025/actascieduc.v42i1.45516 

FORMAÇÃO DE PROFESSORES E POLÍTICAS PÚBLICAS

A narrativa na educação infantil: a mobilização de funções psicológicas superiores em situações de interação discursiva

The narrative in the children's education: the mobilization of higher psychological functions in discursive interaction situations

La narrativa en la educación de los niños: la movilización de funciones psicológicas superiores en situaciones de interacción discursiva

1Universidade de Passo Fundo, BR-285, 99052-900, Passo Fundo, Rio Grande do Sul, Brasil.


RESUMO.

Este artigo trata da narrativa como uma atividade que movimenta funções psíquicas superiores, tais como linguagem racional, pensamento verbal, atenção voluntária, memória mediada e imaginação, constituindo-se como experiência fundamental para a aprendizagem e o desenvolvimento infantil. São analisados episódios de interação em que crianças de uma escola de Educação Infantil são instadas pela professora a organizar sequências discursivas sobre fatos de sua vida e histórias observadas. O estudo sustenta-se na Teoria Histórico-Cultural e nas produções de Jerome Bruner sobre a narrativa como forma de pensamento sobre e com o mundo. Resultam da análise as seguintes proposições: as funções psicológicas superiores atuam reciprocamente no curso da narrativa; a intervenção da professora e dos pares auxilia na (re)estruturação da linguagem e do pensamento das crianças; a pergunta do outro permite ao narrador qualificar a trajetória de seu pensamento; a escuta ativa é uma das condições fundamentais para a condução do pensamento narrativo. Conclui-se que espaços e tempos em que narrativas são mobilizadas compõem uma das atividades primordiais da Educação Infantil, já que põem em curso um tipo de pensamento discursivo que organiza/complexifica funções psíquicas tipicamente humanas.

Palavras-chave: interação verbal; desenvolvimento da criança; mediação sociocultural; desenvolvimento psicológico

ABSTRACT

ABSTRACT. This article discusses the narrative as an activity that encourages higher psychological functions, such as rational language, verbal thought, voluntary attention, mediated memory and imagination, and how it constitutes a fundamental experience to the learning and the children's development. Situations of interaction are analyzed, during which the children were requested by their teacher to organize discursive sequences about facts of their life and observed stories. This study is based on the Cultural-Historical Theory and the work of Jerome Bruner about the narrative as a category of thought with and about the world. The following propositions stem from this discussion: the higher psychological functions act reciprocally on the course of the narrative; the participation of the teacher and their peers helps in the (re)structuring of the language and the thought of the children; questions from another person allows the narrator to qualify the trajectory of his own thought and make it more complex; active listening is one of the fundamental conditions for the conduction of the narrative thought. It is then concluded that the opportunities during which narratives are employed constitute one of the primordial activities of the children's education, as they utilize a form of discursive thought that organizes/makes typically human psychological functions more complex.

Keywords: interactive communication; child development; socio-cultural action; psychological development

RESUMEN.

Este trabajo se enfoca la narrativa como una actividad que mueve funciones psíquicas superiores, a saber, lenguaje racional, pensamiento verbal, atención voluntaria, memoria mediada e imaginación, constituyéndose como una experiencia fundamental para el aprendizaje y el desarrollo infantil. Se analizan episodios de interacción entre niños de una escuela de Educación Preescolar cuya maestra organiza situaciones para que ellos elaboren secuencias discursivas sobre hechos de su vida y reconstruyan historias. El estudio se sustenta en la Teoría Histórico-Cultural y las producciones de Jerome Bruner sobre la narrativa como forma de pensamiento sobre y con el mundo. Resultan del análisis las siguientes proposiciones: las funciones psicológicas superiores actúan recíprocamente en el curso de la narrativa; la intervención de la maestra y de los iguales auxilia en la (re) estructuración del lenguaje y del pensamiento de los niños; la pregunta del otro califica el habla del narrador y califica la trayectoria de su pensamiento; la escucha activa es una de las condiciones fundamentales para la conducción del pensamiento narrativo. Se concluye que los espacios y tiempos en que narrativas son movilizadas componen una de las actividades primordiales de la Educación Infantil, ya que desarrollan una categoría del pensamiento discursivo que organiza / produje formas más complejas de funciones psíquicas típicamente humanas.

Palabras-clave: comunicación interactiva; educación preescolar; acción sociocultural; desarrollo del niño

Introdução

Em um processo que se prolonga desde o século XIX, a criança sai da obscuridade e é investida do status de sujeito com características distintas das imputadas aos adultos e, contemporaneamente, de sujeito competente, talentoso e de direitos. Isso produziu consideráveis modificações que se manifestam de modo especial na inclusão da Educação Infantil como etapa da Educação Básica e na oferta de um currículo que dê visibilidade às vozes e às culturas infantis e que as reconheça como protagonistas dos processos de aprendizagem. Nesse contexto, adquire especial importância práticas mobilizadoras dos saberes das crianças e de seus modos de enxergar o mundo.

Se considerarmos que a oralidade se constitui, desde cedo, como a principal modalidade de comunicação verbal utilizada pelo ser humano ao interagir e que a criança desenvolve formas sofisticadas de linguagem oral durante a Educação Infantil, concluiremos que ela é, ao mesmo tempo, uma prática de linguagem e de ação no mundo de que esse sujeito dispõe e mediante a qual esse mundo lhe é apresentado e objeto e meio de aprendizagem, cujo lugar tem de estar assegurado na escola.

Uma das atividades culturais que se estrutura mediante recursos da linguagem oral é a narrativa, neste trabalho tratada como uma ação de linguagem que, ao se realizar nas interações entre dois ou mais sujeitos, organiza e impulsiona experiências compartilhadas, por meio das quais se podem observar funções psicológicas movimentando-se e atuando sobre o desenvolvimento psíquico das crianças. É com vistas a explicitar essa tese e dar-lhe sustentação que duas seções foram organizadas.

Na primeira delas, dedicamo-nos a recuperar dentre as contribuições da Teoria Histórico-Cultural elementos para situar o desenvolvimento das funções psíquicas superiores (doravante, FPS) na infância e a narrativa como uma das formas de pensamento sobre e com o mundo (Bruner, 1997a). A segunda contempla a análise de dois excertos de um episódio de interação, por meio dos quais se observa a movimentação das FPS em um contexto pedagógico de produção de narrativas, envolvendo professora e crianças de um grupo de Educação Infantil. Ao final, é apresentada uma síntese da análise realizada e alguns indicadores que permitem associar o presente estudo a outras pesquisas sobre o tema.

A psique humana como um sistema complexo e dinâmico de funções

Nesta seção, trataremos da relação entre funções psicológicas elementares e FPS no desenvolvimento humano e, nesse caso, sobre como elas se tramam no percurso evolutivo da criança, dando origem a um sistema psíquico dinâmico, cujos elementos atuam reciprocamente uns sobre/com os outros. Tendo em vista que Lev S. Vigotski investigou a constituição e o funcionamento desse sistema, seus escritos e os de autores de mesma abordagem fundamentam este estudo.

Segundo Vigotsky (2007, p. 42), a história do comportamento da criança nasce do entrelaçamento de duas linhas de desenvolvimento, diferenciadas em sua gênese: “[...] de um lado, os processos elementares, que são de origem biológica; de outro, as funções psicológicas superiores, de origem sociocultural”. Ao ser da espécie humana, dotado de características biológicas filogenéticas, são acrescidas “[...] ‘funções’ produzidas na história de cada indivíduo singular por decorrência da interiorização dos signos [...]”, as FPS (Martins, 2011, p. 39, grifo da autora). Essas funções se desenvolvem mediante a participação do indivíduo na cultura, a interação com os outros e as intervenções dos meios culturais, em especial, da linguagem, e se consagram, no ser humano, como mecanismos intencionais e estruturas que lhe possibilitam o domínio de reações naturais pelo acionamento de recursos culturais e o controle consciente das ações.

Friedrich (2012, p. 48, grifo da autora) elucida que o psiquismo tipicamente humano é considerado a forma superior de escolha. Por ser assim, a caracterização do seu funcionamento pode estar na imagem de um “[...] ‘órgão de seleção’, de ‘filtro’, mas também de um ‘funil’ que se estreita. Todos esses ‘instrumentos’ têm uma função em comum, a saber, a de ‘escolher’, de selecionar, de deixar passar determinados elementos da realidade e de reter outros”. Para Vigotsky (2000), as FPS abarcam dois grupos distintos e indissoluvelmente unidos que, tomados em conjunto, constituem formas superiores de conduta da criança/formas mediadas de comportamento.

Trata-se, em primeiro lugar, de processos de domínio dos meios externos de desenvolvimento cultural e de pensamento: a linguagem, a escrita, o cálculo, o desenho; e, em segundo lugar, dos processos de desenvolvimento das funções psíquicas superiores especiais, não limitadas com exatidão, que na psicologia tradicional se denominam atenção voluntária, memória lógica, formação de conceitos etc. (Vigotsky, 2000, p. 29, tradução nossa)1.

Esses dois grupos - os meios externos (que são internalizados) e as funções psíquicas que deles se utilizam -, além de operarem conjuntamente, são alvo do ser humano em desenvolvimento, já que estão na cultura, disponíveis à aquisição do indivíduo. Em outras palavras, o desenvolvimento do psiquismo humano é continuamente mediado por algo interposto - algo concreto como um objeto ou simbólico como o emprego da linguagem - por outros sujeitos do grupo cultural. Daí a presença do ‘outro’ na constituição cultural do homem como condição do seu desenvolvimento (Pino Sirgado, 2000).

Tudge e Rogoff (1995) reiteram esse primado vigotskiano, situando o meio como instância de desenvolvimento da criança e requerendo dos estudos que abraçam essa abordagem o detalhamento das implicações da ‘interação social’ nesse desenvolvimento. Na perspectiva histórico-cultural, essa é uma das principais categorias para compreender esse problema, já que remete às “[...] ações e reações dos envolvidos numa relação” (Pino Sirgado, 2000, p. 71). Ela é um dos recursos de que se dispõem para compreender como os membros mais jovens de uma comunidade se apropriam dos diferentes funcionamentos psicológicos e do patrimônio histórico da humanidade. Segundo Rego (2014), a criança reconstrói singularmente os modos de ação realizados no mundo exterior e aprende a organizar os processos psíquicos ao passo que internaliza as experiências fornecidas pela cultura. Essa compreensão se orienta em outra tese vigotskiana.

No curso do desenvolvimento infantil, todas as FPS aparecem duas vezes: como funções interpsíquicas, ocorrendo nas atividades coletivas/na relação social, e como funções intrapsíquicas, aparecendo nas atividades singulares, como propriedades internas do pensamento (Vigotsky, 2014). Em virtude disso, as FPS construídas ao longo da história social e cultural do sujeito são consideradas ‘relações sociais internalizadas’.

Se considerarmos que “[...] a mudança estrutural da consciência é o que constitui o conteúdo central e fundamental de todo o processo de desenvolvimento psicológico [...]” (Vigotsky, 2009, p. 285) e que essa mudança é, por sua vez, constituída no processo de internalização das funções interpsíquicas, a concepção de desenvolvimento psíquico, tal como apresentada por Vigotsky “[...] ao dissertar sobre a estrutura das funções psíquicas superiores, indica contínuos arranjos interfuncionais e, nesse sentido, o psiquismo como sistema é, permanentemente, a articulação e reconstrução de tais funções. É, portanto, movimento” (Martins, 2011, p. 57). Pino Sirgado (2000, p. 70), assim como Martins (2011), relembra que a abordagem vigotskiana concebe “[...] o psiquismo como algo dinâmico, que está sempre se (re)fazendo e em perpétuo movimento. Algo que nos faz pensar na criação ininterrupta do velho no novo, do significado dado na flutuação do sentido [...]”, e é por esse motivo que o termo ‘função’ faz menção a um acontecer permanente. Portanto, para se compor um sistema psíquico, há elementos que, pelo movimento constante, articulam-se e afetam-se mutuamente para que o indivíduo se constitua humano.

Uma das funções que cumpre um papel essencial nesse sistema é a linguagem, categoria chave nas investigações de Vigotsky, pois, além de ser um meio externo de desenvolvimento cultural, ela mesma é uma FPS, como linguagem racional, e força propulsora na constituição de outras funções psíquicas tipicamente humanas. Seus estudos o levaram a concluir que a linguagem torna a criança apta a providenciar instrumentos auxiliares na resolução de tarefas complicadas, a superar a ação automática, a planejar uma solução antes que o problema se materialize e a controlar o comportamento (Vigotsky, 2007). Ainda, a linguagem é “[...] base do elemento que realiza nosso pensamento como sistema de organização interior da experiência” (Vigotsky, 2010, p. 229).

Ao estudar as raízes do pensamento e da linguagem, Vigotsky (2009) afirma que a relação entre essas duas funções se modifica no processo de desenvolvimento. O pensamento e a palavra não têm ligação imediata, mas, ao longo do desenvolvimento, inicia-se uma conexão entre ambos que se transforma, dependendo “[...] dos instrumentos de pensamento e da experiência sociocultural da criança” (Vigotsky, 2009, p. 149). É no significado que se encontra a unidade das funções básicas da linguagem: o intercâmbio social e o pensamento generalizante. Diante disso, uma importante premissa do estudo vigotskiano é a mutabilidade do significado das palavras, ou seja, os significados se desenvolvem no curso das interações. Segundo ele, “[...] podemos afirmar que todos os sistemas fundamentais das funções psíquicas da criança dependem do nível alcançado por ela no desenvolvimento do significado das palavras [...]” (Vigotsky, 1998, p. 75), isto é, a complexificação do pensamento se dá pela ação da linguagem, se constitui ‘da’, ‘pela’ e ‘na’ linguagem, ou ainda, quanto maior o grau de generalizações/significados mais sofisticada será a forma de pensar. Nesse sentido, “[...] ao transformar-se em linguagem, o pensamento se reestrutura e se modifica. O pensamento não se expressa mas se realiza na palavra” (Vigotsky, 2009, p. 412).

Nesse processo, o pensamento se complexifica e assume um papel na relação com outras FPS. Segundo Vigotsky (1998, p. 76, grifo nosso), “[...] ‘o que é central para toda a estrutura da consciência e para todo o sistema de atividade das funções psíquicas é o desenvolvimento do pensamento’. Isso também está relacionado à ideia da intelectualização de todas as outras funções [...]”, ou seja, suas variações dependem da atribuição de sentido e, com ela, a criança exerce um comportamento racional sobre a atividade psicológica. Logo, o desenvolvimento do pensamento e a intelectualização das funções são a chave para a compreensão do sistema de FPS. É ele que “[...] exerce o papel de organizador prévio do nosso comportamento” (Vigotsky, 2010, p. 226). Por sua vez, a linguagem e o pensamento da criança pequena desenvolvem-se e se sofisticam mediante a interação, seja com um adulto do núcleo familiar, seja no âmbito escolar com o(a) professor(a) e/ou os pares, interlocutores privilegiados que lhe oferecem suporte.

Coerente com essa abordagem, Bruner (1997a) parte do pressuposto de que para entender a condição humana é preciso compreender os modos como os seres humanos constroem seus mundos. Para tanto, segundo ele, o ser humano produziu dois modos de pensamento - o paradigmático ou lógico-científico e o narrativo -, cujas formas variam de acordo com a ênfase dada pela cultura. O primeiro deles prova a veracidade empírica e é construído por hipóteses fundamentadas; já o segundo retrata as ações e vontades humanas, bem como as variações que marcam a trajetória do sujeito. Devido ao foco de nosso trabalho, voltar-nos-emos com mais vagar sobre o pensamento narrativo.

Foi olhando para a criança que Bruner (1997a, 1997b) observou que, para ordenar experiências e construir realidades, ela produz narrativas utilizando-se de artefatos fornecidos pelas relações das quais participa. Para ele, essas produções evidenciam a abertura da mente da criança para propor significados e criar mundos reais e possíveis, incidindo sobre o desenvolvimento cognitivo e assumindo um importante papel na culturalização do ser humano. A narrativa, assim, pode ser concebida não somente como “[...] um modo de pensamento [...]”, mas como “[...] uma estrutura para a organização de nosso conhecimento[...]” e, também, um “[...] veículo no processo de educação” (Bruner, 2001, p. 117).

Para adentrar no processo de elaboração das narrativas, Bruner (1997a) propõe o conceito de ‘transações’, que designa as negociações que são estabelecidas na mútua partilha para elucidar como o mundo é, como a mente funciona e de que modo a comunicação deve acontecer: “[...] não se trata simplesmente do fato de que todos nós ‘possuímos’ formas de organização mental que sejam afins, mas que ‘expressamos’ essas formas constantemente em nossas transações com os outros” (Bruner, 1997a, p. 67, grifo do autor). A nossa mente é, portanto, compartilhada, está em constante negociação, por meio de atividades comungadas.

Situado no mesmo campo daquele autor, François (2009) reitera que a atividade narrativa é cultural e não natural, em virtude de se estabelecer como prática entre diferentes espaços, gerações, grupos e mentalidades, e acrescenta que se trata de uma atividade linguageira que se beneficia de modelos ou formas momentaneamente consolidadas e reconhecidas pelo contexto cultural. Essa atividade lhe requer “[...] certo número de especificidades de conteúdo e de forma (personagens, acontecimentos, temporalidade, conectores, aparências dos textos etc.)” (François, 2009, p. 43), que, mesmo submetida a uma estrutura convencional, é aberta e flexível à organização dada pelo indivíduo.

Ao mesmo tempo, o enfoque do narrador orienta a expectativa do ouvinte, surpreendendo-o ou não, contestando-a ou não, fortalecendo-a ou não, ao ponto de os dois tornarem-se interlocutores, sujeitos ativos e em interação, e se modificarem pela ação do outro. François (2009, p. 37) emprega o termo ‘refiguração’ “[...] para designar a maneira pela qual um discurso pode modificar nossa visão do mundo, nosso modo de sentir os ‘arredores’”. É essa transformação e projeção de um mundo em outro que também faz sentido que fornece à narrativa uma força discursiva.

A essa altura temos os elementos conceituais essenciais para reposicionar a tese, desenvolvida neste trabalho, a saber: a narrativa é uma atividade de linguagem que, ao se realizar nas interações entre os sujeitos, permitindo ‘transações’ e ‘refigurações’, organiza e impulsiona experiências compartilhadas, por meio das quais se pode observar a cultura agindo no/sobre/com ele. O que nos falta recompor ainda é por que consideramos essa atividade uma possibilidade de confluência e de movimentação de outras funções psíquicas tipicamente humanas (para além da linguagem e do pensamento) e, portanto, uma situação de desenvolvimento a ser reivindicada na Educação Infantil, já que essa etapa da Educação Básica congrega espaços, tempos e práticas organizados intencionalmente com esse fim. Isso é o que faremos na próxima seção.

Nas interações entre crianças e professora, a narrativa como atividade mobilizadora de FPS

Este trabalho tem origem em uma pesquisa que teve por objetivo explorar as configurações que assumem as situações de interação em que a linguagem atua como mediadora/mobilizadora/impulsora do sistema psíquico da criança, tomando como campo de investigação grupos de Educação Infantil, suas professoras e crianças. O processo de geração dos dados, constante de videogravações, registros fotográficos e diário de campo, foi realizado junto a uma Escola de Educação Infantil, situada em um município do Estado do Rio Grande do Sul, a Escola Margarida2, e com dois grupos de Pré-Escola (crianças de 4 e 5 anos). As informações foram organizadas em episódios de interação, procedimento metodológico utilizado para expor o fenômeno investigado, dando visibilidade a um núcleo determinante dos eventos observados mesmo que situados em diferentes tempos. Desses episódios, selecionamos para análise duas cenas a fim de observar, na atividade compartilhada de produção de narrativas, professora e crianças instaurando/mobilizando funções psíquicas tipicamente humanas e configurando juntos e por meio dessa atividade uma situação social de desenvolvimento psíquico.

Na primeira delas, as crianças, posicionadas em roda de conversa, um dispositivo pedagógico intencional frequentemente utilizado pela docente, relatam os acontecimentos do final de semana. Protagoniza esse momento o menino Júlio, já que o evento que reconstrói provoca e faz convergir a atenção de seus interlocutores.

Cena 1

[...]

(1) Júlio: Daí fui na prima, daí eu fiquei, daí eu fui lá no meu tio. O meu tio ele tem uma baia, eu andei na baia dele, daí eu peguei e fui lá no... meu tio. O pai foi no cavalo chucho, daí no otro dia de noite, nós fomo almoçá lá no meu tio, daí o pai queria ir num bar tomar cerveja com o tio, que ele nunca foi. Tá... Foram e eu fui junto.3

(2) Crianças: ((risos)).

(3) Felipe: Você também bebeu?

(4) CNI4: Esse teu pai, né ((fazendo gesto com a mão como se estivesse tomando algo)).

(5) Pedro: Você tomou refri?

(6) Júlio: Sim, né?!

[...]

(10) Professora: Deixem o Júlio terminar de contar. Vamos ver.

(11) Júlio: Chegaram lá... Quatro home armado.

(12) Crianças: (falas paralelas).

(13) Professora: Deixem o Júlio contar!

[...]

(15) Professora: Como é que tu sabia que tava armado, Júlio?

(16) Júlio: Porque o cara foi no banheiro, o cara do Tonho e o, ô, ô... E um que tava de camisa amarela pegou e ó... toool! ((gesto com a mão como se estivesse cortando)).

(17) Felipe: Toool!

(18) Pedro: Então era marginal?

(19) Ruan: Então era uma arma e tchiu tchiu ((levanta e coloca as mãos no bolso como se estivesse carregando a arma)).

(20) Professora: E daí, Júlio... Vocês ficaram lá ou foram embora?

(21) Crianças: (falas paralelas).

(22) Professora: Ei gente, sentem, vamos terminar de ouvir o Júlio.

(23) Júlio: Daí, ôô... Teve um ca(ra)... um, um... O dono do bar, o cara que apartô daí, o cara apartô, daí ele pegô e deu um tiro, deu um tiro assim, e no otro tiro o dono do bar apareceu do baião. Eles queriam o dono do bar, pegô e deu um taio no dono do bar, assim ó da orelha até a boca ((gesto com a mão mostrando o lugar do corte)).

(24) Professora: Tu viu isso Júlio?

(25) Júlio: Não. Meu tio que contô.

(26) Professora: Ah tá, mas você já tinha ido embora?

(27) Júlio: Não, eu já tava dentro do carro com o meu pai.

(28) Pedro: Então porque o teu pai não saiu? ((fala acompanhada pelo gesto com a mão)).

(29) Júlio: Ele saiu correndo tudo.

(30) Felipe: Ruuuuuuum! ((barulho de carro e gesto como se estivesse dirigindo)).

[...]

Se considerados os nove universais, constituintes da narrativa, sistematizados por Bruner (2001), o pensamento narrativo compartilhado no grupo orienta-se igualmente por: 1. uma estrutura do tempo que não é medida por relógios, mas pelos eventos ou ações humanas mais marcantes, com início, meio e fim; 2. uma singularidade genérica que permite a todos os participantes agir em conformidade com o gênero que lhes compete no momento; 3. motivos, que incluem estados intencionais, crenças, vontades, valores; 4. possibilidades interpretativas que remetem a múltiplos significados; 5. um rompimento com o canônico, que torna o corriqueiro algo estranho; 6. uma abertura ao questionamento; 7. ‘problemas’, constituídos como o núcleo das realidades narrativas, na medida em que giram ao redor de normas violadas; 8. uma possibilidade de contestação, mediante a qual se conta e negocia versões da história; 9. prolongamento e resumo histórico, com pontos cruciais de mudança, respeitados os elementos centrais da narrativa, a saber, o enredo, os personagens e o contexto. A isso pretendemos dar visibilidade no que segue.

Júlio encadeia um conjunto de eventos (turno 1) em uma forma que possivelmente seja a forma canônica de organização de um relato solicitado pela professora em uma roda de conversa, na segunda-feira. No entanto, na situação de interação, o encadeamento (‘modelo mental’) de Júlio é interrompido pela interposição de um enunciado (ao qual se seguem outros) que detém a atenção de seus interlocutores: “Você também bebeu?” (turno 3). A professora sustenta-os no foco que se impõe e ajuda Júlio a reorganizar sua fala a partir dessa intervenção inesperada: “Deixem o Júlio terminar de contar. ‘Vamos ver’” (turno 10 - grifo nosso).

Ao analisarmos as perguntas feitas pelos ouvintes a Júlio - “Você também bebeu?” (turno 3); “Você tomou refri?” (turno 5); “Como é que tu sabia que tava armado, Júlio?” (turno 15); “Então era marginal?” (turno 18); “E daí, Júlio... Vocês ficaram lá ou foram embora?” (turno 20); “Tu viu isso Júlio?” (turno 24); “Ah tá, mas você já tinha ido embora?” (turno 26) -, observamos que todas derivam de dois eventos reconstruídos por Júlio - “[...] daí o pai queria ir num bar tomar cerveja com o tio, que ele nunca foi. Tá... Foram e eu fui junto” (turno 1) e Chegaram lá... Quatro home armado.” (turno 11) -, sendo que o segundo deriva do apoio dado pela professora à continuidade da narrativa. Essas perguntas trazem consigo o que Bruner (2001) designa como avaliação implícita dos eventos: se criança não pode ingerir bebida alcoólica, ‘logo’, “Você também bebeu? (turno 3) e “Você tomou refri?” (turno 5); ‘se’ crianças devem ser preservadas de atos de violência física, ‘logo’, “Tu viu isso Júlio?” (turno 24) e “Ah tá, mas você já tinha ido embora?” (turno 26). Para o autor,

[...] narrativa é discurso, e a principal regra do discurso é que deve haver um motivo para que o mesmo se distinga do silêncio. A narrativa é justificada pelo fato de que a sequência de eventos que ela conta é uma violação da canonicidade: ela conta algo inesperado ou algo que o ouvinte tem motivo para duvidar. O ‘motivo’ da narrativa é resolver o inesperado, eliminar a dúvida do ouvinte ou, de alguma forma, corrigir ou explicar o ‘desequilíbrio’ que, antes de mais nada, fez com que a história fosse contada. Uma história, portanto, tem dois lados: uma sequência de eventos e uma avaliação implícita dos eventos contados. (Bruner, 2001, p. 119, grifos do autor).

A sequência de eventos, sendo eles reais ou imaginários, é sustentada independentemente do acontecimento ou da série de acontecimentos mais ou menos concatenados, porque, como narrativa, vale-se do discurso para existir, podendo o ato de narrar alterar significativamente o sentido das coisas simplesmente pelo impacto na vida do outro. Logo, a estrutura de mão dupla que envolve a narrativa demanda acima de tudo a interpretação dos interlocutores que, aos poucos, vai se tornando cada vez mais aperfeiçoada, assim como a organização do pensamento do locutor.

Júlio deu a entender que não presenciara todos os fatos, pois havia sido retirado do local em que a briga ocorreu: “Não. Meu tio que contô” (turno 26). Mesmo assim, Júlio opera prolongamentos - “[...] daí ele pegô e deu um tiro, deu um tiro assim, e no otro tiro o dono do bar apareceu do baião. Eles queriam o dono do bar, pegô e deu um taio no dono do bar, assim ó da orelha até a boca” (turno 23) - e resumos - “Ele saiu correndo tudo” (turno 29) - em pontos categóricos de mudança, comportamento típico do pensamento narrativo. Como afirma Bruner (2001, p. 137, grifo do autor), “[...] o formato do problema narrativo não é definitivo nem histórica nem culturalmente. Ele expressa um tempo e uma circunstância; então, as ‘mesmas’ histórias mudam e suas interpretações também, mas sempre com um resquício do que prevalecia antes”.

Na interação, não é apenas Júlio que recompõe os fatos reais ou possíveis, mas, também, as demais crianças. As versões desses fatos expressam ‘transações’, já que os ouvintes avaliam o contexto para adentrar na narrativa, utilizando-se dos recursos culturais e figurativos de que dispõem na memória, atualizando-os. Ao mesmo tempo, essa vontade de saber e de imergir no evento do outro atua sobre o grau de detalhamento e sobre a direção da narrativa, exigindo do sujeito que narra negociar a seleção de fatos e o andamento da história e conciliar sua exposição com o que os colegas evocam seja pelas complementações (“Esse teu pai, né” - turno 4; “Então era uma arma e tchiu tchiu” - turno 19), seja pelas avaliações contidas nas perguntas. Na atividade discursiva, nesse caso mediante a narrativa, produzem-se formas de pensamento que são apoiadas por essas marcações. Assim, a criança recupera voluntariamente a memória, delimitando o objeto de sua atenção e conduzindo a imaginação, “[...] uma forma mais complicada de atividade psíquica, a união real de várias funções em suas peculiares relações” (Vigotsky, 1998, p. 127).

Na Cena 2, a professora propõe a (re)construção da narrativa contida em um desenho animado5, tarefa que integra a sequência didática sobre histórias de pescadores, modalidade de organização do trabalho pedagógico utilizada pela professora. As crianças estão em suas cadeiras e a professora as orienta a prestar atenção na história, observando o que acontece, como acontece e em que espaços o Chico Bento, protagonista da história, está.

Cena 2

(1) Professora: E hoje, eu trouxe mais uma história do Chico. Porém, ela não está parada ((coloca a mão nas imagens do mural)), ela está em movimento, ela está em um vídeo. Eu gostaria que vocês observassem tá, olhem para a prô aqui ó. Eu gostaria que vocês observassem a história, olhar o que acontece nessa história, para depois vocês me contarem, certo, sim?

As crianças assistem ao filme e riem.

(2) Professora: Ouviram o que ele falou no final?

(3) João: Mais ou menos, volta de novo.

(4) Professora: Eu vou voltar, eu só quero conversar um pouquinho mais com vocês. Prestaram atenção no vídeo?

(5) Crianças: Siiim!

(6) Professora: Me contem, o que aconteceu?

(7) João: Ele caiu dentro da água, pegô um pexão, pegô otro pexão, pegô um piquinininho ((gesticulando com as mãos)).

(8) Matias: E entrô dentro da água.

(9) Professora: Ele pegou um peixão, primeiro, né. Alguém lembra a cor do peixão?

(10) João: Vermelho.

(11) Professora: E aí, o que que ele fez com o peixão?

(12) João: Botô dentro da água ((gesto como se estivesse jogando o peixe de volta para a água)).

(13) Professora: E aí depois?

(14) Caetano: O otro pexão.

(15) Professora: O outro peixão, e o que que aconteceu com o outro peixão?

(16) Caio: Voltô pra água.

(17) Caetano: Ele pegô e jogô na água.

(18) Professora: Botou de volta para dentro da água e aí, depois, o que aconteceu?

(19) Caio: Pegô o pequeno e levô pra casa.

(20) Professora: Pegou um pequeno e levou para casa. E o que que ele fez com esse pequeno?

(21) Matias: Daí ele botô/

(22) João: Botô pra fora e cozinhô ((gesticulando com as mãos)).

(23) Matias: Cozinhô.

(24) Professora: Tá, eu tenho uma pergunta para vocês.

[...]

(26) Professora: Por que que ele não levou o grandão?

(27) João: Porque ele não quis.

(28) Professora: Por que ele não quis?

(29) Caetano: Porque era tão... pesado.

(30) Matias: Era muito pesado e /.../ ((gesto como se estivesse segurando e caminhando com o peixe)).

[...]

(33) Professora: Eu quero que vocês prestem atenção nesse vídeo agora... Olha a pergunta que eu vou fazer, agora vocês vão assistir de novo e vocês têm que descobrir o porquê que o Chico Bento não leva pra casa os peixes grandes.

(34) Caetano: O peixão?

(35) Professora: Isso. Por que que ele levou... Vocês têm que descobrir assistindo ao vídeo agora por que que ele só levou o pequenininho. E eu vou dar uma dica... Ele fala no final... ele fala o porquê que ele não levou. Então prestem atenção, posso colocar de novo?

(36) Crianças: Sim!

(37) Professora: Prestem atenção, eu sei que está baixinho, mas se vocês ficarem bem quietinhos dá para ouvir.

As crianças assistiram novamente ao vídeo, mas agora com bastante atenção.

(38) Professora: Ouviram o que ele disse?

(39) Matias: Eu ouvi. A mãe dele disse, por que ela não compra uma frigidera mais grande.

(40) Professora: Ótimo. Exatamente Matias. Então por que que o Chico Bento botava de volta de volta no rio os peixes grandes?

(41) João: Porque ele não qué, porque é muito grande ((gesto com as mãos; abre os braços para mostrar o tamanho do peixe)).

(42) Professora: Era muito grande. Por que que ele não podia levar para casa o grandão?

(43) Caetano: Porque era muito, muito pesado ((gesticulando com as mãos)).

(44) João: Daí não dá pra cozinhá ((levanta da cadeira)).

(45) Professora: Verdade, mas por que que não dava pra cozinhar?

(46) Crianças: (falas paralelas).

(47) Matias: Porque /.../ ficava pra fora ((gesticulando com as mãos)).

(48) Professora: É, a frigideira era muito pequena e aí o peixe ia ficar pra fora e não ia dar pra cozinhar ((gesticulando com as mãos)).

[...]

Diferentemente da Cena 1, na Cena 2, o conjunto de elementos que compõem a narrativa - enredo, tempo, lugar, personagens, narrador e ponto de vista - está dado às crianças pelo material apresentado pela professora. Chico Bento, o protagonista, está junto à margem de um rio, pescando. Fisga dois peixes quase tão grandes quanto ele, mas os devolve à água. Fisga um peixe pequeno e fica satisfeito. Apresenta-o à mãe que o coloca em uma frigideira. Finalmente o inusitado, o enunciado que instaura a relação entre os acontecimentos anteriores, é explicitado na fala final do personagem: “[...] ô mãe, ma por que que a senhora não compra uma frigideira mais grande, hein?”.6

A proposta da professora, pela sucessão de perguntas apresentadas às crianças, é reconstruir oralmente os fatos, encadeando-os por esse sentido que os unifica. Para isso, ela as orienta: “[...] eu gostaria que vocês observassem a história, olhar o que acontece nessa história, para depois vocês me contarem, certo, sim?” (turno 1). Como as crianças riram com a história, a professora pressupõe que o que deflagra o riso possa ser reconstruído imediatamente e pergunta: “[...] ouviram o que ele falou no final?” (turno 2). Não satisfeita com o que João lhe diz - “[...] mais ou menos, volta de novo [...]” (turno 3) -, ela reforça o pedido ao grupo: “Me contem, o que aconteceu?” (turno 6). O mesmo menino passa a enumerar fatos, aos quais Matias, Caetano e Caio agregam outros, acionados em boa parte por perguntas da professora, que, observando que a lógica reconstrutiva utilizada pelos meninos não é a que tem por base o mote da história engraçada, adere ao ordenamento proposto por João e seguido pelos demais(turnos 7 a 23).

(7) João: Ele caiu dentro da água, pegô um pexão, pegô otro pexão, pegô um piquinininho ((gesticulando com as mãos)).

(8) Matias: E entrô dentro da água.

(9) Professora: Ele pegou um peixão, primeiro, né. Alguém lembra a cor do peixão?

(10) João: Vermelho.

(11) Professora: E aí, o que que ele fez com o peixão?

(12) João: Botô dentro da água ((gesto como se estivesse jogando o peixe de volta para a água)).

(13) Professora: E aí depois?

(14) Caetano: O otro pexão.

(15) Professora: O outro peixão, e o que que aconteceu com o outro peixão?

(16) Caio: Voltô pra água.

(17) Caetano: Ele pegô e jogô na água.

(18) Professora: Botou de volta para dentro da água e aí, depois, o que aconteceu?

(19) Caio: Pegô o pequeno e levô pra casa.

(20) Professora: Pegou um pequeno e levou para casa. E o que que ele fez com esse pequeno?

(21) Matias: Daí ele botô/

(22) João: Botô pra fora e cozinhô ((gesticulando com as mãos)).

(23) Matias: Cozinhô.

Insatisfeita com a conclusão - “Botô pra fora e cozinhô” (turno 22) -, a professora problematiza: “Por que que ele não levou o grandão?” (turno 26). Em virtude das respostas, que ignoravam o inusitado que reconectaria os eventos - “Porque ele não quis.” (turno 27); “Porque era tão... pesado [...]” (turno 29) -, ela conduz novamente as crianças à apreciação do filme, mas agora com um problema a ser resolvido (turnos 33 e 35):

(33) Professora: Eu quero que vocês prestem atenção nesse vídeo agora... Olha a pergunta que eu vou fazer, agora vocês vão assistir de novo e vocês têm que descobrir o porquê que o Chico Bento não leva pra casa os peixes grandes.

[...]

(35) Professora: Vocês têm que descobrir assistindo ao vídeo agora por que que ele só levou o pequenininho. E eu vou dar uma dica [...] Ele fala no final [...] ele fala o porquê que ele não levou. Então prestem atenção [...].

Matias é o primeiro a tentar acompanhar o pensamento da professora, expresso na pergunta “Ouviram o que ele disse?” (turno 38), respondendo-lhe: “[...] por que ela não compra uma frigidera mais grande” (turno 39). Apesar do feedback positivo à resposta do menino, a professora reposiciona a pergunta na expectativa de que algo ainda mais próximo do encadeamento que ela deseja seja produzido: “Então por que que o Chico Bento botava de volta de volta no rio os peixes grandes?” (turno 40). A insistência, por fim, é recompensada por três enunciados (turnos 41, 44, 47) que, justapostos, permitem chegar ao elemento articulador da narrativa, não sem o apoio das perguntas intercaladas da professora (turnos 42 e 45).

41. João: Porque ele não qué, porque é muito grande.

42. Professora: Era muito grande. Por que que ele não podia levar para casa o grandão?

44. João: Daí não dá pra cozinhá.

45. Professora: Verdade, mas por que que não dava pra cozinhar?

47. Matias: Porque /.../ ficava pra fora ((gesticulando com as mãos)).

48. Professora: É, a frigideira era muito pequena e aí o peixe ia ficar pra fora e não ia dar pra cozinhar.

A Cena 2 apresenta movimentos de uma situação didática aparentemente trivial: o reconto de uma história. Ao ser surpreendida, no entanto, impele-nos a um olhar cuidadoso. Em um ângulo do triângulo didático, temos a professora e a intencionalidade pedagógica que se materializam, fundamentalmente, no formato de perguntas. Em outro, as crianças, envolvidas pela situação proposta pela docente, e no terceiro, a narrativa exposta no filme da Turma da Mônica (Sousa, 2014). São três pensamentos que convergem: o do narrador, que tudo sabe e organiza os quadros de modo a deixar o problema encadeador da narrativa para o último deles; o de João, acompanhado pelos outros meninos, ordenado pelo encadeamento tradicional de uma narrativa - início, meio e fim -; e o da professora que, cúmplice do narrador, deseja opor o pensamento canônico das crianças à observação dos fatores que produzem o humor.

Já que, como antecipado na primeira seção, “[...] as realidades sociais não são tijolos nos quais tropeçamos ou nos contundimos quando os chutamos, mas os significados que conquistamos ao partilharmos cognições humanas” (Bruner, 1997a, p. 128), a ‘transação’ que transcorre, permite-nos observar que o significado que a professora deseja compartilhar com as crianças tem por obstáculo os recursos disponíveis a elas para a percepção da narrativa, derivados das formas reconhecidas naquele contexto cultural. A docente faz uma opção por mobilizar esses recursos até que se esgotem (do turno 7 ao 23). Nesse processo, usa a pergunta como agenciadora da memória, sem acrescentar informações que pudessem antecipar a solução do problema por ela pautado, mas apoiando as crianças na problematização dos fatos trazidos em suas respostas. Ao mesmo tempo, as crianças parecem perceber que há algo por trás da postura inquiridora da professora e aderem ao raciocínio que a orienta, tornando-se copartícipes de uma situação de ‘transação’, de convergência ou compartilhamento de organizações mentais distintas. A professora, fortalecendo o enfoque das crianças, mantém-nas como interlocutoras em condições de o modificarem no decorrer da interação e as conduz, por suas intervenções, a uma ‘refiguração’ desse enfoque.

Nesse quadro, a memória de cada criança atua cooperativamente, seja instada pela pergunta da professora seja pelas informações recuperadas por um colega, algo evidente entre os turnos 7 e 23, especialmente. A pergunta contida no turno 2 e a apresentada no turno 38 são as mesmas. No entanto, observamos nas respostas das crianças à segunda questão o esgotamento do modelo mental que as conduzira em relação à primeira. Se a professora sustenta a pergunta, é sinal de que as respostas dadas anteriormente não foram suficientes. Engajadas no modo de funcionamento mental da professora e orientadas a solucionarem um problema antes não apresentado (turno 33 e 35), sofistica-se o movimento da atenção, mediada, então, pela instrução dada pela professora.

A narrativa e a condução metodológica da professora permitem que de todas as ocorrências as crianças selecionem informações específicas. Segundo Martins (2011, p. 112), “[...] considerando a miríade de estímulos captados pelo aparato sensório-perceptual, o direcionamento do comportamento à vista de seu objetivo seria impossível na ausência de seletividade sobre eles, e esta é a função primária da atenção”. A professora, portanto, dispõe de uma ferramenta que auxilia os pequenos a guiarem a percepção de um dado elemento: a palavra. Isso permite evocar a reciprocidade existente entre as FPS, indicada por Vigotsky. Com o auxílio da função indicativa das palavras, a criança passa a ter o domínio de sua atenção, criando novos centros estruturais dentro da situação percebida (Vigotsky, 2007).

A atenção, assim como as demais funções psíquicas humanas, é submetida a processos de comando por meio dos quais o sujeito a conduz voluntariamente para elementos que considera relevantes. É nesse processo que a capacidade de seleção dos estímulos do ambiente se desenvolve e permite que o sujeito opere seleções, viabilizando aprendizagens complexas. Veer e Valsiner (2014, p. 259) analisam esse processo da seguinte forma:

[...] crianças pequenas não são capazes de direcionar sua atenção para o uso de meios externos, de vez que não dominaram ainda seus processos de atenção e são escravas de fatores externos. À medida que elas crescem, aprendem a fazer uso de meios externos para direcionar sua atenção. A princípio, este uso é imperfeito e as crianças são dominadas pelos meios culturais disponíveis, mas, aos poucos, elas aprendem a usá-los segundo sua própria vontade. Por fim, os instrumentos culturais se internalizam.

A questão é que as crianças não aprendem a fazer isso sozinhas ou somente à medida que crescem, mas necessitam da ajuda e da instrução de alguém que já domina esse modo de operar psiquicamente para fazer junto/com. Na Cena 2, é a fala da professora que apoia as crianças na reorganização do campo visual-auditivo e que permite o reposicionamento do foco de observação. Em outras palavras, elas controlam verbalmente sua atenção para reorganizar sua esfera perceptiva e, assim, “[...] prestam atenção para poder ver” (Vigotsky, 2007, p. 28).

Considerações finais

O estudo exposto nas duas seções deste trabalho pretende contribuir com o acúmulo teórico da área da Educação Infantil e nela com a compreensão do fenômeno pedagógico junto a crianças na escola. Nessa perspectiva, o desenvolvimento das funções psíquicas tipicamente humanas, que dependem, portanto, do convívio da criança com pessoas que as têm desenvolvidas, é o foco de nosso interesse investigativo. As pesquisas realizadas e a interlocução com trabalhos da área aproximaram-nos da narrativa como atividade complexa, em que as FPS movimentam-se atuando reciprocamente mediante a ação de linguagem do adulto e dos pares.

Essa proposição tem por base a intervenção pedagógica como agenciadora dos recursos disponíveis nas crianças e da oferta de problemas que explicitem os seus limites e as impulsionem à busca de recursos psíquicos mais sofisticados, entre eles o pensamento, a linguagem, a memória, a atenção. Esse achado corrobora e, ao mesmo tempo, expande o proposto por Bassedas, Huguet, e Solé (1999), os quais destacam que é preciso avançar na ideia de que uma intervenção educativa se constitui como ajuda proporcionada às crianças em seu processo construtivo, ajuda essa que se ajusta a esse processo, avançando um pouco em relação a ele.

Ajustar-se ao processo que a criança realiza implica reconhecer o modo de pensamento que ela articula e materializa nas várias formas de ação, explorar o que ele pode oferecer e lhe expor a seus limites. Além disso, o que se pode extrair dos estudos realizados é que essa ‘transação’ se ocupa das diferentes posições assumidas não somente pela professora, mas também pelos pares.

A professora, por ser adulta, é considerada como uma ‘colecionadora’ dos mecanismos culturais infantis, chegando a ser quase uma ‘enciclopédia’ para as crianças, pois são múltiplas as experiências e os conhecimentos que são levados e partilhados no espaço escolar. Cabe ao adulto compreender as linguagens e estabelecer relações de mediação, fomentando o pensamento e sofisticando o universo linguístico infantil. Na fala do outro, a escuta atenta encontra abertura para se fazer integrante da cena, pensa junto, narra com. E disso resulta um processo de pensamento compartilhado que ‘refigura’ o lugar de cada um, constrói estruturas, representações e/ou realidades distintas.

A narrativa se mostrou uma unidade de análise fecunda para instaurar e compreender esse processo, constituindo-se objeto e estratégia de investigação, algo passível de ser melhor investigado em futuros trabalhos. Além disso, a pergunta do outro permite ao narrador qualificar e complexificar a trajetória de seu pensamento e dos recursos psíquicos (como a memória e a atenção) que atuam na sua configuração e materializa também o modelo mental que a instrui, agindo como uma força motriz da atenção, agenciadora da memória e materializadora do pensamento em ação.

Nossa finalidade, com a análise das cenas 1 e 2, foi fazer o possível para mostrar as funções psíquicas agindo de maneira integrada, isto é, atuando reciprocamente no processo de desenvolvimento das crianças e tendo a linguagem verbal como a grande mobilizadora desse sistema. Tal conduta corrobora o exposto por Souza e Andrada (2013, p. 357) ao reafirmarem que as FPS, “[...] como memória, consciência, percepção, atenção, fala, pensamento, vontade, formação de conceitos e emoção, se intercambiam nesta rede de nexos ou relações e formam, assim, um sistema psicológico, em que as funções se relacionam entre si”. Os nexos são entendidos como a própria configuração de novos significados e sentidos, e isso ocorre quando as FPS se entrelaçam, impulsionando o processo de desenvolvimento do sujeito.

A escola de Educação Infantil é um contexto fundamental para a construção de narrativas. Ao escutar histórias contadas pelos outros e ao narrar com o apoio dos outros e para os outros, a criança se institui como narradora, como protagonista, organizando sua experiência, compartilhando e negociando significados. Nessas situações, várias FPS agem mutuamente e o seu sistema psíquico atua em um complexo dinâmico de funções.

Narramos pensando e pensamos narrando... Trata-se de uma (re)construção. Narrar é materializar o pensamento em palavras, é sustentar a atenção, é recuperar na memória o que é/foi relevante, é dar abertura para uma imaginação constante, é dotar de emoção o vivido, é organizar a percepção com liberdade. A narrativa, portanto, constitui-se como atividade de convergência de diversas FPS, instância, portanto, de desenvolvimento fundamental a essa etapa da Educação Básica.

Referências

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1 “[…] Se trata, en primer lugar, de procesos de dominio de los medios externos del desarrollo cultural y del pensamiento: el lenguaje, la escritura, el cálculo, el dibujo; y, en segundo, de los procesos de las funciones psíquicas superiores especiales, no limitadas ni determinadas con exactitud, que en la psicología tradicional se denominan atención voluntaria, memoria lógica, formación de conceptos, etc.” (Vigotsky, 2000, p. 29).

2A pesquisa da qual se origina o presente artigo foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade de Passo Fundo. Com vistas a manter suas identidades resguardadas, como prevê o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido assinado pelos envolvidos na pesquisa, a escola, a professora e crianças são designadas por pseudônimos.

3Procedemos a pequenos ajustes no que se refere às falas da professora, mas, em relação às falas das crianças, julgamos pertinente mantê-las o mais próximo do original, já que trazem informações relevantes sobre o grupo com o qual foi realizado o trabalho de campo.

4Criança não identificada.

5A professora utiliza-se do desenho animado Chico Bento em: A Pescaria - Turma da Mônica (Sousa, 2014).

6Em uma narrativa, cabe ao narrador organizar as ações que vão ser apresentadas. Para isso, pode-se valer da estrutura canônica - situação inicial / conflito / consequências / desfecho/situação final ou começo, meio e fim - ou de estrutura menos convencional, como a estrutura in media res, em que as ações são apresentadas a partir de um determinado ponto do enredo, ignorando o seu início, e somente ao final, pelo que se convencionou chamar de analepse, um fato (como o do último quadro no filme) esclarece os fatos anteriores.

9NOTA: As autoras foram responsáveis pela concepção, análise e interpretação dos dados; redação e revisão críticas do conteúdo do manuscrito e, ainda, aprovação da versão final a ser publicada.

Recebido: 22 de Novembro de 2018; Aceito: 24 de Maio de 2019

* Autor para correspondência. E-mail:dickel@upf.br

Adriana Dickel: Doutorado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas e Pós-Doutorado na área de Didática da Língua pela Universitat Autònoma de Barcelona. Graduação em Letras - Licenciatura Plena pela Universidade de Passo Fundo e Mestre em Educação pela Unicamp. Docente do Curso de Pedagogia, na área do Ensino da Língua Portuguesa e da Alfabetização, e do Programa de Pós-Graduação em Educação - Mestrado e Doutorado/UPF, Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Alfabetização - GEPALFA. Ordcid: https://orcid.org/0000-0001-6151-8397 E-mail: dickel@upf.br

Francieli Sartori: Mestrado em Educação pela Universidade de Passo Fundo. Graduada em Pedagogia - Licenciatura Plena e especialista em Orientação Educacional pela Universidade de Passo Fundo (2014). Docente da rede privada de ensino, na área de Educação Infantil. Integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Alfabetização. Ordcid: https://orcid.org/0000-0002-6024-9233 E-mail: afbfrancieli@gmail.com

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